Posicione o seu fone, é Lua nova. Começar novo, de novo. No contrafluxo de veículos automotorizados um corpo-peregum caminha entre as árvores e procura afinar-se com o arco ancestral.
– Escuta! O que é que ressoa? – É um corpo sonoro. – Mas qual? Uma corda, um metal, ou o meu próprio corpo? – Escuta: é um arame esticado entre uma câmara de ressoar mundo e um pedaço de pau, e que um outro golpeia, fazendo-te ressoar segundo o teu timbre e ao seu ritmo.
O coronavírus tem nos ensinado muitas coisas — algumas delas, vamos
demorar para esquecer. Porém, poucas foram tão inesperadas como a
aproximação entre a cultura crítica e a cultura dos cuidados. Pareciam
pertencer a planetas diferentes: uma, ligada à busca de certeza,
metodologias conflitantes e gestos públicos; a outra, vizinha da dor,
inclinada pelo tácito e reclusa no âmbito privado. Ambas, muito seguras
de sua importância, mas muito diferentes em seus reconhecimentos. Para o
espírito crítico, sempre existiu um posto de honra entre os
inteligentes, os poderosos, os administradores. Os críticos possuem a
chave que abre as portas do mundo, desde a empresa e a academia, até o
conselho ou comitê. Ser crítico é uma qualidade característica dos que
conseguem enxergar além das aparências, dos que sabem ler as entrelinhas
e dos que não se deixam levar pelo refrão. Quem não é crítico está
sujeito a ser doutrinado, manipulado e menosprezado.
Nosso mundo sempre reservou lugares especiais para a crítica. O
espírito crítico nos protege dos farsantes, dos malandros e dos
vigaristas. E, como nunca faltam aqueles que querem tirar proveito de
nossa ingenuidade, desconhecimento ou incapacidade, fazemos bem em
confiar na nobreza daqueles que se dispõem por nós a depurar as ideias,
comparar informações e destrinchar propostas. Os debates públicos nos
são apresentados muitas vezes como um duelo de espadachins, como um
exercício de virtuosismo retórico, como uma amostra do dandismo
entre “filhos de alguém”, tão inúteis quando desprezíveis. Isso não tem
nada a ver com a crítica, está mais para um produto da vaidade
pretensiosa: um embuste entre bobos. Já a crítica, é necessária e
urgente. Uma das ferramentas mais valiosasas de que dispomos para
navegar entre as tormentas ou para nos guiar entre as brumas. Sem ela,
não existiria a civilização.
Os cuidados transitam em outro tipo de abundâncias invisíveis. Eles têm a ver com todas as práticas que levam à reparação ou à manutenção da vida. Possuem relação com o que há de mais simples e comum: dar comida, fornecer aconchego, produzir bem-estar, manter a conversa, ouvir o incabível ou inusitado, oferecer esmero, sentir o futuro, experimentar com os outros, fazer coisas juntos, desfrutar as nuances, acompanhar processos e criar espaços seguros. No mundo, não há nada mais abundante do que a dor, o desconsolo, o desabamento. Nada é mais necessário do que oferecer confiança, paz ou tempo. Seja para descobrir suas (novas) vulnerabilidades, seja ao se encontrar (novamente) estagnado, o que você vai querer por perto não é um cérebro privilegiado capaz de performar uma capacidade de análise impecável. Nesses momentos, precisamos de outro tipo de talento: o de alguém que saiba se colocar em sua situação, em seu lugar, conter a ansiedade de aconselhar, ficar em silêncio, saber ouvir, deixar fluir e acompanhar, enquanto, aos poucos, você se reencontra com a vida que merece ou a resposta que procura.
Não quero dizer que os que pensam não cuidam, nem que os que cuidam
não pensam. Isso seria uma simplificação inaceitável e ofensiva. Todos
nós podemos passear pelos dois mundos. Podemos utilizar a crítica para
reparar aquilo que ouvimos e fazê-lo crescer. Podemos renunciar a usar
nossas habilidades para ganhar vantagem e competir melhor. Nada nos
obriga a querer sempre ganhar. Não é necessário demonstrar que estamos
por cima dos outros, nem temos que tratar nossos adversários como
inimigos, traidores ou estúpidos. Na crítica, pode existir um quê de
sadismo. É normal que exista, e que toda vez que numa conversa alguém
cite um especialista, um fato ou uma prova, para nos dar um soco e calar
a boca. Esses críticos são pessoas perigosas das quais é bom se
proteger, porque costumam ser implacáveis.
A ciência é um dos terrenos da crítica. Não é o único, nem o mais
visível. Os que se gabam de ser críticos são aquelas pessoas da
literatura, das artes, das ciências humanas e também, portanto, das
ciências sociais. O que eles chamam de “espírito crítico” é muitas vezes
percebido como arrogância banal. E é por isso que nós desconfiamos
dessa forma de nos desenganarem, que, do outro lado do espelho, é
percebida como uma maneira de nos deixar nus. Justamente o oposto
daquilo que esperávamos: alguém que nos ajudasse a encontrar as roupas
para não nos deixar na intempérie. Abandonados ao acaso, novamente, sem
redenção.
A cultura do cuidado não é só compaixão. Precisamos dela, também,
para criar outros mundos possíveis e dar espaço às diferentes práticas
cognitivas de que precisamos aprender a apreciar. Se o crítico é quem vê
mais e melhor, quem cuida possui como ferramenta fundamental de
trabalho o tato. Se a simbologia reservou para os inteligentes a figura
da coruja, do livro e dos óculos de armação grossa, aqueles que cuidam
são representados como pessoas que acariciam com os olhos, com os gestos
e com as mãos. As mãos alcançam lugares que os olhos nem conseguem
imaginar. O tato é a chave que abre a porta que nos permite imaginar
outros mundos possíveis, baseados em cumplicidade, empatia e
vulnerabilidade. Nos cuidados, explora-se sem propósitos e sem
condicionantes, se avança entre suspeitas e desconfianças, até chegarmos
ao lugar onde experimentaremos a companhia como uma bênção. Ou uma
epifania.
Se a visão gera a distância entre o sujeito e o objeto, o tato
mistura esses dois mundos. A visão cria outros espaços, enquanto o tato
inventa a complexidade. Tudo fica interligado e se torna próximo,
entrelaçado. A visão quer fazer do mundo um objeto, enquanto o tato
torna mundano o objeto. Mundano quer dizer comum, cotidiano, semelhante.
Quiçá, também, barato, jovial e compartilhado.
A crise do coronavírus aproximou esses dois mundos para nos ajudar a
entendê-los melhor, para descobrirmos que ambos são imprescindíveis e
que os dois são deste planeta. Que ambos pertencem ao âmbito público e
são duas potências cognitivas que deveriam parar de brigar e se unir num
longo abraço. Sim, isso mesmo: um abraço em tempos de coronavírus pode
parecer uma transgressão, mas não é, não, não se trata de uma pegadinha:
esperamos muito desse atrito, pois não nos conformamos com apenas
sobreviver — que é o que nos prometem os cientistas e seus porta-vozes.
Não nos conformamos com apenas continuar vivos, pois queremos imaginar
mundos mais ousados. A pandemia demonstrou que, em termos cognitivos, é
imprescindível que se estruturem adequadamente três epistemes que se
destacam: o mundo dos dados, dos modelos de previsão e da inteligência
artificial; o mundo da virologia, da epidemiologia, das vacinas e do
laboratório; e, por último, mas não menos importante, os territórios da
clínica, dos profissionais da saúde e das práticas de cuidados.
Curar corpos nos forçou a cuidar de mundos. De repente, descobrimos
que inconsistências estatísticas, causadas por uma coleta de dados ruim,
poderiam levar a medidas que nos ameaçariam a todos. Dados não são
números, mas coisas que precisam ser produzidas do mesmo jeito que são
produzidas as bolas de sinuca: se elas não possuírem as características
necessárias, não funcionam, não servem pra nada, não deslizam
corretamente e não transmitem os efeitos esperados. Os dados precisam
ser interoperáveis. Você precisa projetá-los com precisão, coletá-los
com cuidado e transmiti-los a tempo. Podemos ter os melhores
matemáticos, construindo os modelos mais sofisticados, porém, fazendo
propostas mal-sucedidas porque os coletores de dados se desentenderam ou
ficaram desmotivados ou deprimidos. Porque eles pararam de se projetar
em seu trabalho com amor e orgulho. Não estavam atentos o suficiente
para detectar algo suspeito, uma variação imprópria, um viés inesperado
ou, finalmente, uma prática inconsistente. Talvez ninguém os fez
acreditar na importância do que estavam fazendo. Talvez eles tenham se
cansado de ser invisíveis, ou talvez se convenceram de que eram seres
descartáveis, secundários ou irrelevantes.
Fazer vacinas ou, em termos mais gerais, projetar e realizar
experimentos não é uma tarefa mecânica. Quem faz experimentos precisa
improvisar o tempo todo — ou seja, precisa enfrentar um montão de
imprevistos que exigem habilidades que não são ensinadas nos livros, mas
que, entretanto, foram aprendidas com os colegas. Experimentar é uma
atividade que possui muitas semelhanças com o trabalho dos artesãos.
Todos os cientistas experimentais são uma espécie de faz-tudo, pessoas
que sabem consertar coisas, que encontram soluções: são próprios bricoleurs.
Ou, em outras palavras, pessoas que conseguem trabalhar sem um manual
de instruções, e que, principalmente, tornaram-se muito tolerantes à
incerteza. Sabem andar às cegas, guiando-se pelas paredes para não bater
e mantendo-se conectados a tudo o que acontece para poder ser sensíveis
às pequenas diferenças, às nuances esquecidas ou aos tons
imperceptíveis.
Não é ficar observando o seu objeto, mas sim estar abertos a se
deixar afetar por qualquer sinal que vier de seu universo ou do ambiente
que os cerca para decidir, em tempo real, se essa coisa, ainda não
identificada, possui algum significado ou contém alguma mensagem. A
relação que os cientistas mantêm com seus objetos, aquilo que não deixa
de interpelá-los e que não conseguem parar de olhar, é muito menos
objetiva, distante ou abstrata do que nos contaram. É uma relação muito
menos crítica do que afetiva, e tem muito mais a ver com as virtudes de
quem cuida de alguém ou de algo, do que com os estereótipos de quem
observa, aponta e dispara — quero dizer, com as qualidades de um bom
crítico.
Ao falarmos da clínica tudo parece mais fácil, porque pouquíssimas
pessoas já visitaram um laboratório na vida e a maioria nunca ouviu
falar da nova profissão de curador de dados. Mas todos ou já cuidamos,
ou já fomos cuidados. Entretanto, reside nessa simplicidade a maior
dificuldade — porque corremos o risco de psicologizar os cuidados e de
transformá-los em habilidades mentais livres de materialidade. Não será
preciso insistir, agora, na importância das máscaras, dos testes, dos
termômetros, dos sabonetes, da história clínica e dos aplausos. A maior
parte do trabalho possui maior relação com gerir espaços, decidir
dosagens, administrar alimentos, conhecer lamentos, identificar sinais,
comparar respostas, contrastar experiências, aprender de erros,
retificar protocolos, pular algumas normas, enfim: improvisar, corrigir,
deixar-se afetar, escutar — tudo isso sem um manual.
Cada quarto de hospital carrega um universo: todos os dias são
percorridos todos os climas: o dos bacanas, o dos espertos, o dos
exigentes, o dos egoístas, o dos intrigantes, o dos desconfiados, o dos
pessimistas, o dos amorosos… todos os universos cabem num só dia. Não é
preciso viajar, basta mudar de quarto. Existe um forte desgaste
emocional, cuja origem varia. A televisão, sempre apressada e sempre
resumindo e generalizando, fala do impacto que a dor do ambiente causa
aos profissionais da saúde. É verdade, mas não se resume a isso: essa é
só a parte mais midiática. Há muito mais. Existe a vontade de aprender, o
desejo de entender, a necessidade de corrigir e a obrigação de curar;
tudo isso, ao mesmo tempo e de forma rápida, representa um esforço de
intelecção cansativo e infinito, porque os corpos são todos diferentes e
o que vale para um pode ser contraproducente para outro.
Assim funciona o saber experiencial: está nos corpos e não nos
livros. Pode-se aprender, mas não numa aula. É um saber contrastado,
eficiente, tácito e imprescindível. A clínica é a interface entre esses
dois mundos, que com tanta frequência negam-se a chegar a um
entendimento: o mundo da crítica e o mundo dos cuidados. É tanto uma
interface como uma fronteira que precisamos aprender a contrabandear
todo dia. Nessa fronteira, somos todos iguais, não há regras claras, não
há normas específicas — e nem podem existir. Esse é o interesse das
fronteiras que servem para experimentarmos outros mundos possíveis e
necessários. Nas fronteiras, há sempre conflitos que, quando são de
curto prazo, resolvemos com astúcia, dando um jeito; mas, se pensarmos
em formas de convivência relativamente estáveis, precisaremos das
ferramentas da diplomacia.
Às vezes, não precisamos de uma demonstração, e sim de uma conversa.
Os diplomatas sabem disso melhor do que ninguém, como costumam saber
aqueles que fazem parte do mundo dos cuidados. O diplomata compreende
que não pode convencer seu interlocutor. E, portanto, precisa renunciar
às ferramentas da crítica e admitir que a solução não vai ser imposta
por um exercício de depuração de dados, de citação de fontes ou de
ampliação dos fatos comprobatórios. Entre os diplomatas, a conversa tem a
finalidade de encontrar um relato, um acordo, um espaço de convivência
mais complexo que o anterior, onde caibam igualmente os dois pontos de
vista, mesmo quando enfrentados. A questão é evitar a guerra, e
reiniciar a convivência. E é disso que precisamos agora: uma negociação
que torne possível não só a convivência de epistemes. Os mundos dos
dados, dos fatos e das experiências precisam um do outro e têm de
aprender a conviver sem se censurarem. Nenhum deles é mais coerente ou
necessário do que os outros.
Atualmente, fala-se muito em abrir a ciência. Mas não ficou claro o
que queremos dizer com isso. Evidentemente, abrir a ciência significa
abrir os conteúdos e os dados: dar acesso ao conhecimento disponível,
mais ainda quando a maior parte dele é produzida com dinheiro público.
Também parece lógico que as infraestruturas que suportam e fazem com que
esses dados se tornem operacionais deveriam estar nas mãos dos próprios
cientistas, o que equivale a reivindicar soberania para os hardwares e
softwares que suportam todo o acervo da ciência aberta. Se a prática da
ciência depende de decisões políticas arquitetadas em comitês que
definem prioridades, destinam recursos, validam méritos e constroem
reputações, parece imprescindível que, também, todas essas operações
tenham muita transparência e disponibilização. Tudo isso já foi dito e
está na agenda de muitas organizações nacionais e internacionais, não é
novidade. Tomara que o coronavírus acelere esses processos em curso.
Além disso, porém, abrir a ciência requer abrir suas ontologias. Não
tem a ver apenas com transformar as práticas para que sejam mais
operativas, ou, em outras palavras, os “como”, as epistemes. Temos de
aprender a escutar aqueles que falam desde outras formas de se aproximar
da realidade. É evidente que o respeito às metodologias acreditadas
continua de pé. Ninguém aqui falou em fazer tábula rasa. Pelo contrário:
os tempos de coronavírus exigem que nenhum conhecimento seja
desperdiçado e que demos a todos eles a visibilidade e o mérito que
merecem e que precisamos. Cuidar é uma forma de conhecer, envolve outra
maneira de se aproximar dos problemas e de encontrar respostas adaptadas
para eles. Envolve mobilizar saberes tácitos e afetivos: saberes que,
consequentemente, não podem ser codificados. Saberes que não podem ser
desvinculados e que são estreitamente ligados às circunstâncias
concretas nas quais foram gerados. São saberes dos quais a Modernidade
nos ensinou (e até forçou) a desconfiar. Saberes que desde Descartes
consideramos contaminados pelas emoções, pelos preconceitos, pelos
contextos, ideologias e fragilidades dos corpos envolvidos, já que nem
sempre eles enxergam bem, estão atentos ou com as faculdades plenas.
O conhecimento experiencial era desprezado pela sua alta contaminação por todo tipo de aderência local, corporal e cultural. Não foi sequer considerado um ativo a valorizar. Temos museus de etnografia, onde as realidades locais são mostradas como parte de um exotismo turistificável — e, agora, identitário. Justamente o oposto do que consideramos necessário por aqui. Nos interessa o comum e interdisciplinar, como forma de conhecimentos opositores — e não como curiosidades excêntricas e arbitrárias. Não são fruto do capricho, são consequência de uma adaptação secular. O fato de terem sido desvalorizadas fala muito sobre a nossa insensibilidade e, assim, da nossa facilidade em desprezar aquilo que ignoramos. O fato de serem não-codificáveis, tácitos, quer dizer que estamos frente a um saberes que não podem ser coisificados, alienados e mercantilizados. Mas isso não significa que sejam inúteis. Talvez por isso a imensa maioria das pessoas que trabalham com enfermagem e serviços sociais são mulheres. Nada a ver com falta de talento, mas sim com utilizá-lo em outras coisas. As quais, como sabemos, às vezes são as mais importantes. Mas nossa intenção não era fazer uma competição entre a cultura crítica e a cultura dos cuidados, e sim tentar suscitar uma conversa, mais ontológica do que epistêmica, que abrisse o mundo do conhecimento a novas perguntas, diversas soluções e novas formas de convivência. Não é que a gente precise de menos ciência, mas de mais atores: abrir a ciência a conversas difíceis, porém, urgentes. O coronavírus nos pede também uma cura de humildade.
*Antonio Lafuente Físico, pesquisador do Centro de Ciências Humanas e Sociais do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) da Espanha, na área de estudos da ciência. Seu interesse pela relação entre tecnologia, patrimônio e bens comuns desembocou nos laboratórios cidadãos, na inovação social e na cultura do prototipado.
“Tricotávamos a lã que sobrava e voltávamos aos livros, a ler tudo outra vez e só reparávamos nas palavras. Queríamos nada saber das histórias. Prestávamos atenção às palavras para sabermos como eram ditas as coisas. Porque alguns livros pareciam perfumar a linguagem, outros sujavam-na e outros ignoravam-na. Os livros podiam ser atentos ou desatentos ao modo como contavam. Nós, inspecionando muito rigorosamente, achávamos melhores aqueles que falavam como se inventassem modos de falar.” (A desumanização, Valter Hugo Mãe)
Gostaria de escrever algo sobre o texto O que é um dispositivo?, de Giorgio Agamben. Li o ensaio na tradução de Vinícius Nicastro Honesko publicada em O que é o contemporâneo? e outros ensaios, um pequeno livro editado em 2009 pela Argos/Unochapecó.
Retornei a este texto depois de tê-lo lido anos atrás. Estou começando a escrever o mestrado em filosofia. Venho de outra área – artes visuais – e me lembrava de ter gostado muito da forma do ensaio de Agamben quando o li pela primeira vez. Pensava portanto em recuperá-lo como uma inspiração para dar forma à minha própria escrita.
Minha lembrança era de que o texto de Agamben se organizava a partir de quebras. De fato, relendo-o agora, vi que ele está dividido em 10 partes, numeradas sequencialmente, sem intertítulos. Cada parte apresenta uma quebra em relação à anterior, e também um acréscimo, como se cada nova seção do texto trouxesse elementos que complementam e ao mesmo tempo se contrapõem à parte precedente. Ao longo das seções 1 a 5, Agamben apresenta uma espécie de genealogia do termo “dispositivo” no sentido utilizado por Michel Foucault. Na seção 6 – talvez não por acaso, o meio do texto –, acontece uma quebra mais significativa que as outras. É o momento em que o autor se desliga de Foucault e passa a pensar no termo dispositivo mais livremente. Na seção 7 usa inclusive a primeira pessoa do singular para descrever seu ódio pelos celulares – telefoninos, em italiano –, um dos dispositivos mais evidentes de nosso tempo. Queixa-se que os telefoninos tornaram as relações entre as pessoas ainda mais abstratas.
Essa fratura no texto – o momento em que o autor se desliga do outro autor, para talvez seguir com ele mais intensamente, numa relação mais visceral e menos mental – também é o próprio assunto do texto. Está, por assim dizer, na carne do texto. Ao traçar a genealogia do termo “dispositivo”, Agamben verifica sua presença e centralidade na história da religião cristã. Dispositio, em latim, foi o termo encontrado por padres latinos como equivalente ao grego oikonomia. Oikos significa casa, e oikonomia, a administração doméstica – e também gestão, management. A dificuldade que os religiosos cristãos procuravam resolver entre os séculos II e VI utilizando o termo oikonomia relacionava-se a um aspecto central de sua doutrina: a Santíssima Trindade. Como justificar a presença da tríade “Pai, Filho e Espírito Santo” sem retornar ao politeísmo? A solução encontrada, explica Agamben, foi pensar Cristo como operador da oikonomia da redenção e da salvação entre os homens (sic). Deus, como substância, é uno; mas necessitava de um gestor na Terra para dar conta do dia-a-dia espiritual dos seres humanos.
Assim como a solução encontrada pelos padres cristãos aponta, segundo Agamben, para uma cisão entre o que Hegel chamava “religião natural” (a experiência mística, desvinculada de uma inscrição no ordenamento religioso ou social) e “religião positiva” (o conjunto de regras, ritos e determinações que organizam a vida espiritual em suas diferentes formas), a própria constituição do humano estaria também marcada por uma fratura semelhante: a cisão entre ser e agir. O dispositivo – ou a economia –, nesse sentido, enquanto manifestação humana, não vem para “atrapalhar” nossa liberdade; ele é a própria imagem daquilo que somos, de nossa forma enquanto humanos. Forma-manifesto dessa quebra que nos constitui: ser e ação, natureza e cultura. Corpo e finanças algorítmicas.
Retornando ao início do ensaio, lembramos que dispositivos, na literatura de Foucault, podem ser “discursos, instituições, edifícios, leis, proposições filosóficas”; e sobretudo a rede que se estabelece entre todas essas manifestações dispositivas. A própria linguagem seria também um dispositivo, possivelmente o mais antigo de todos, lembra Agamben. E ainda as prisões, os manicômios, as escolas, a confissão, as fábricas; o cigarro, a navegação, os computadores, e sem dúvida, os telefones celulares. Todas essas manifestações, em alguma medida, contém o que Agamben sugere ser “um desejo demasiadamente humano de felicidade”. O dispositivo – e aqui me parece estar algo muito precioso, talvez o que realmente tenha me feito voltar ao texto – captura o que nos é mais sagrado, e por isso não conseguimos simplesmente nos livrar deles. Nosso corpo a corpo com os dispositivos não pode ser simples, já que o que está em questão é restituir ao uso comum aquilo que nos foi tomado: gestos e pensamentos. Nossa lida crítica com os dispositivos implica nossa própria ressubjetivação. Precisamos nos tornar outras pessoas, em alguma medida (em larga medida).
Ao sugerir como tarefa urgente a profanação dos dispositivos, entendida como a recuperação de volta para o mundo da carne daquilo que foi abstraído, separado, tornado intangível (ou ininteligível), Agamben recusa, conforme compreendi, a ideia de destruição do que está posto. O dispositivo, afinal, é o próprio humano, já que carrega seu desejo de felicidade. Destruí-lo seria o mesmo que nos autodestruirmos. Talvez isso dê pistas sobre a insistência que experimentamos numa forma de vida que nos trouxe à catástrofe: não conseguimos nos livrar dos dispositivos nem fazer um “bom uso” deles, porque o “incessante girar em vão da máquina” da oikonomia também nos constitui, em alguma medida.
Talvez a profanação de que fala Agamben possa ser compreendida como um necessário exercício de reconhecimento de nossa parte ciborgue, daquilo em nós que se prolonga nos dispositivos. Porque não propomos outras formas de vida, não enfrentamos de modo mais contundente o neoliberalismo masculino e branco e sua máquina mortífera? Possivelmente porque há algo dele em nós mesmxs, imobilizando-nos em frente às telas. É um reconhecimento duro de enfrentar. E insuficiente, porque não gera necessariamente ação ou profanação. Mas pode ser algo.
Em Carta de um homens trans ao Antigo Regime sexual, Paul Preciado fala da erotização da dominação como parte da estratégia de perpetuação do que nomeia política do desejo dentro do regime político da heterossexualidade. A diferença de poder entre homens (cis) e mulheres (cis) seria valorizada como desejável num nível não consciente. Esta estratégia não se apresenta enquanto lei claramente estabelecida, e sim como uma norma não-escrita, traduzida em gestos e códigos sutis que determinam o que pode e o que não pode ser feito, quem pode ou não acessar determinados lugares, etc. Contra esse estado de coisas, Preciado propõe uma transformação no modo de desejar, sugerindo que passemos, como sociedade, a desejar a liberdade, em oposição a seguir desejando a dominação. Uma transformação desse porte convoca todo o corpo, precisa ser um exercício diário. Como escrever ou cozinhar.
Podemos pensar que a rivalidade, a competição, a ambição e a agressividade são igualmente erotizadas sob este regime. Uma pessoa “sem ambição” é vista como desinteressante, como alguém “menor”, e muitas vezes também como alguém que merece viver mais precariamente, não ter acesso a confortos materiais básicos, etc. Desejamos a ambição, a competição. Mas Preciado argumenta que o feminismo queer, do qual participa como teórica, não pretende extirpar a rivalidade ou a dominação das relações, e sim garantir que elas aconteçam de maneira consensuada e que os papeis não sejam fixados e naturalizados de acordo com o corpo biológico dxs envolvidxs. “Não estou dizendo que as culturas queer e trans-feminista evitam todas as formas de violência. Não há sexualidade sem um lado sombrio”. Trata-se, conforme compreendemos, de evitar a hegemonia e a predeterminação de um modelo único no qual homens brancos detém todo o poder.
Pensando mais uma vez nas quebras do texto de Agamben, na forma que me interessou e me fez retornar a ele em 2020: não há apenas fraturas no texto. Há também costuras, um fio de sentido, algo que entrelaça as partes. Pode ser que seja um desejo, uma pulsão ética, algo que movimentou o filósofo na direção de concluir o ensaio com uma proposição de profanação. Uma das profanações que me ocorrem é o impulso de nos desgarrarmos dos autores, das autoridades, das citações. Tê-los como parceiros, talvez com alguma rivalidade, mas não como dispositivos legitimadores. Agamben, aliás, profanou um dispositivo importante – a autoria – quando afastou-se de Foucault para pensar seu conceito de dispositivo da maneira como achou melhor.
Pensei em encerrar este texto com algo menos solene e que talvez possa também dar pistas de possíveis profanações. Um amigo costumava dizer que, quando estava em uma situação desconfortável – uma entrevista de emprego, uma reunião difícil com pessoas poderosas –, ajudava-o lembrar que seus interlocutores tinham cu. Me lembrei agora de um texto de Viveiros de Castro, O medo dos outros, se não me engano, que fala nisso também, nesse em-comum que temos não só com outros humanos mas também com outros seres vivos: a boca e o ânus. É um texto bonito, como é bonito o texto de Agamben. Outrxs autorxs tratam do assunto de modos mais poéticos e menos solenes.
O texto de Paul Preciado pode ser lido aqui; o de Viveiros, neste endereço; e o de Agamben, em versão apresentada pelo autor durante conferência na Universidade Federal de Santa Catarina em 2005, na revista outra travessia, com tradução de Nilcéia Valdati.
A incandescência histórica tem a virtude de aumentar a legibilidade estratégica de uma época. Tiqqun
La cuestión suprema ya no es la extracción de plusvalía, sino el Control. El nivel de extracción de la propia plusvalía ya no indica sino el nivel de Control que es localmente su condición. El Capital ya no es sino un medio al servicio del Control generalizado. Y si aún existe un imperialismo de la mercancía, se hace sentir ante todo como imperialismo de los dispositivos; imperialismo que responde a una necesidad: la de la normalización transitiva de todas las situaciones . Tiqqun
Seguimos tramando zonas de confluências entre os fios de uma ciência dos dispositivos e uma ciência de retomada.
Para a próxima Conversação Febril (21/05 – 19hs) gostaríamos de dar mais atenção para o acontecimento covid-19 como um experimento de novas técnicas de controle. Cartografar os movimentos do poder que não mais restringe, constrange, impossibilita, mas atua fazendo funcionar: mobiliza, engaja e conduz. Dispositivos de desempenho nos exigem provas de eficiência e sacrifício em longas jornadas. Novas formas de medir, qualificar, avaliar – a cidadania sacrificial também é policial e gerencial: todos vigiam, todos denunciam, todos avaliam os \”serviços\” e dão sua nota, todos participam e se sentem convocados em \”fazer sua parte\”. A vida imersa dentro do trabalho, o trabalho como forma permanente de auto-empreendedorização, mobilização total, uma sociedade de \”capital humano\”, vida convertida em \”administração\” e concorrência.
Os detratores agora são os improdutivos, vagabundos, aqueles que não são eficientes o suficiente, irresponsáveis. Pílulas para dormir, pílulas para acordar, muitas formas de neutralizar os sintomas. Uma nova arquitetura algoritmizada funcionando para ordenar, permitir as \”melhores decisões\”, as \”melhores buscas\”, evitar os imprevistos, os excessos, os erros. Resultados, relatórios, multitarefas. Ninguém precisa sair de casa agora: está tudo aqui na nova paisagem doméstica-produtiva-reprodutiva e de consumo que se tornou o \”lar\”.
Nas universidades e escolas, tecnologias coorporativas mediando formas de aprendizagem e produzindo ambientes educacionais – o que é, de fato, uma \”aula\”? O que é, de fato, uma \”produção relevante\”? O que é, de fato, uma \”experiência\”? O que é, de fato, uma \”avaliação\”?
No chão da fábrica: trabalhadoras de saúde e suas tecnologias de cuidado e de guerrilha atuando pela desobediência, defendendo a saúde coletiva contra a necropolítica do Estado;
No chão da fábrica: escolas pensando sobre sua existência e reorganizando a possibilidade de uma comunidade escolar que está para além da sala de aula, mas acontece nessas práticas de cooperação, de viver junto, de sustentar um desejo coletivo atuando pela desobediência ao que ordena o Estado.
No chão da fábrica: os trabalhos mais mal-remunerados, mais precarizados, ligados aos cuidados são o que mais importam agora.
No chão da fábrica: as ruas da metrópole e os vagões lotados de ônibus e metrôs, os corpos pretos, precarizados, são os que habitam a zona do sacrifício e se deslocam para que a produção não seja interrompida, para que as infraestruturas permaneçam funcionando.
No chão de fábrica: constatamos que a família nuclear biológica heterossexual é o que amortece todo o colapso ao mesmo tempo que percebemos os limites de suas formas patriarcais, binárias, suas tecnologias de domesticação e controle que também fazem o gênero \”funcionar\”, \”desempenhar\”. Somos capazes de viver de outra forma?
O poder quer nos convencer que o \”desemprego mata mais do que a pandemia\” – no fundo, isso revela com total transparência o fato de que o trabalho se tornou uma chantagem e que a mobilização total é a única técnica de governo.
O medo do poder reside na nossa capacidade de poder viver sem ele: deponer los poderes que nos gobiernan coincide o tiende a coincidir con un hacer sin ellos, y viceversa.
Para adensar essa conversa gostaríamos de investigar, descrever e analisar coletivamente algumas manifestações e materializações dos dispositivos de controle em nossas vidas durante a pandemia. Como percebemos, sentimos e narramos o que se apresenta como atualização das formas de controle do trabalho, da vida, dos cuidados, das relações, dos afetos, dos corpos. Como funcionam esses mecanismos, suas solicitações, técnicas, formas de mensuração e avaliação? Como somos convidadas a nos criar, a fabricar um “eu” que funcione?
entrevista com Pablo Manolo Rodríguez* por Gabriel Delacoste publicada originalmente em: https://brecha.com.uy/entre-algoritmos-y-biomoleculas/
La pandemia de coronavirus nos metió de lleno, más aun de lo que estábamos antes, en el mundo de las redes y plataformas virtuales. También nos hizo más conscientes de los pequeños seres biológicos con los que convivimos permanentemente y de nuestro vínculo con ellos. Nuestro entrevistado desarrolla una investigación sobre cómo, a partir de la teoría de la información, se fue formando, a lo largo de varias décadas, este mundo en el que vivimos hoy.
GD: Escribiste un libro que menciona en el título a los algoritmos y las biomoléculas, y este parece ser un momento muy intenso para esas cosas. ¿Qué estás pensando estos días?
PMR: Estamos en un momento inédito. Somos muchos los que nunca vivimos una situación así. La comparación inmediata que se nos viene en Argentina, Uruguay o Chile es la dictadura, porque hay un impedimento de circular. En el caso de Chile hay una alusión directa a que el control lo tienen los militares. En Argentina eso no lo podés decir, los militares no tienen el control de las calles, están repartiendo comida. Entonces, cualquier interpretación que podamos hacer es provisoria, puede dar lugar a otras, a medida que se desarrolle este evento, que todavía no terminó. Dicho esto, hay cosas que se relacionan con el tipo de búsqueda que hice en Las palabras en las cosas. Yo planteo que hay una relación absolutamente íntima entre los algoritmos y las biomoléculas, a través de la idea de información. Hoy en día esto lo estamos viendo con el par virus/viralización. El virus, su capacidad de infección, es un trabajo de las biomoléculas, que atacan nuestras ideas de inmunidad, anclada en el cuerpo, tanto desde un punto de vista biológico como político. Y por otro lado, es inentendible esta pandemia sin pensar en la viralización, en el hecho de que hay un virus social que infecta junto con el virus biológico. En esta especie de debate que apareció entre los intelectuales, Byung Chul-Han, pero también Paul Preciado dicen que estamos en un momento en el que para controlar al virus se requiere a la vigilancia de todos los individuos, para saber dónde están los posibles infectados, cómo aislarlos, etc. O sea, una idea similar a la de 1984 de Orwell. Si esto es así, algo que se puede discutir, todos estamos aceptando, sin más, ser vigilados. Estamos aceptando que el hecho de que una organización estatal o privada tenga toda la información de nuestras actividades o de lo que pensamos tiene que ver con el bien común. Es una idea muy difícil de digerir cuando hasta hace unos años la vigilancia existía pero era algo mal visto. Es el mismo esquema que intentó imponer Estados Unidos desde el 11 de setiembre de 2001 hablando de terrorismo. Estamos dispuestos a aceptar cualquier cosa que hagan con nosotros por estar amenazados por un virus, cuando quizás en tiempos de la supuesta amenaza terrorista había, al menos, más voces de resistencia. Entonces, de alguna manera, daría la impresión de que estamos trabajando en dos velocidades parecidas: está la velocidad de propagación del virus, que es lo que está justificando toda esta parafernalia (porque la particularidad de este virus respecto a otros responsables de pandemias es su capacidad de contagio; infecta a más gente, y por lo tanto va a matar a más gente), y también la velocidad de lo que comparten todas las personas encerradas en sus casas, constantamente viralizando memes, grupos de Zoom. Y otra cosa: quizás a lo mejor este virus se vuelve más soportable porque tenemos maneras de viralizar digitalmente. Hay una relación muy estrecha.
GD: Capaz podemos dar un paso atrás. Esta relación entre la forma como se organiza la vida y la forma como funcionan las computadoras no es algo tan intuitivo. ¿Cómo se explica ese vínculo?
Una de las cosas que a mí me interesa investigar desde hace muchos años es cómo aparecieron las teorías y las tecnologías de la información. O sea, en qué momento se empezó a hablar de información, bajo qué régimen, quiénes lo hicieron y qué tráficos conceptuales hacían. No es tan difícil encontrar esto, poner fechas, personas. Pero yo utilicé la metodología de la arqueología de Foucault porque no quería caer en la vieja historia de la ciencia, donde un conjunto de personajes arman un paradigma científico, como si fuera tan fácil. La idea es la siguiente: entre la década del 30 y del 50, hace poco menos de cien años, hubo un tráfico conceptual entre ciencias, algunas constituidas y otras que todavía no se habían constituido, en torno a la posibilidad de hacer equivaler a los seres artificiales con los seres naturales, algo que no era nuevo pero que parecía ahora posible en un terreno de mayor concreción. Con esta equivalencia de base, con muchas sutilezas, se puede pensar en máquinas que actúen como si fueran seres vivos. Y que en el fondo sean seres vivos, porque los seres vivos no tienen nada de especial para esta interpretación del mundo. Se trata en todos los casos de un ser que está en un contexto, y que necesita intercambiar cosas con ese contexto (que pueden ser energía, información, no importa) y que eso que intercambian hace que ese ser genere un estado interno en relación con un medioambiente. Eso lo empiezan a pensar para una garrapata y también para una computadora. Y al poco tiempo aparece la biología molecular, que para explicar la actividad de las biomoléculas (que para entonces ya eran un objeto de investigación privilegiado para la biología; no lo eran en el siglo XIX, cuando no había biología molecular) importa de una manera muy extraña la teoría de la información, que venía de las telecomunicaciones, en varios regímenes. La información es considerada desde dos puntos de vista: como un fenómeno trasmisión de una orden o un mensaje (la teoría matemática de la comunicación de Shannon), y como algo que una entidad dotada de un estado interno tiene y procesa. Son parecidas, pero no es lo mismo hablar de trasmisión de información que de procesamiento de información. A través de la idea del procesamiento de información, puedo decir que una máquina puede procesar información, que una molécula puede procesar información, que un cerebro proceso información, y ahí empiezan a correr las analogías. Y de hecho la principal de las analogías es la propia computadora. La computadora (la que usamos ahora) surge de una ensalada que viene de las calculadoras y también de la idea según la cual el mecanismo físico por el que un cerebro puede hacer lo que hace puede ser imitado en una máquina. La computadora es el resultado de eso, explícitamente. Von Neumann creía que los transistores podían ser equivalentes a neuronas, por lo tanto si yo puedo reproducir la forma material, puedo entonces decir que una computadora puede ser un cerebro artificial. Esa analogía, cuando pasa a la biología molecular, pasa como una forma de explicar por qué se dan las modificaciones en las biomoléculas. La computadora es el modelo a través del cual se va a entender lo que hacen las biomoléculas, en especial las encargadas de la trasmisión de la herencia, o sea las genéticas. Entonces la idea del libro es mostrar cómo esas ideas, esos términos, aparecen en toda una serie de ciencias muy diversas entre sí que tratan de colocar bajo un mismo régimen de explicación a los seres naturales, los seres sociales y los seres artificiales. Y por eso también elegí como forma de entender esto a la idea de episteme de Foucault, que es mucho más que la mera existencia de un paradigma científico. En un paradigma uno podría decir que las ciencias, en un momento dado, acuerdan determinadas cosas, tienen ciertos principios que comparten. Pero lo que pasó acá es mucho más: la idea de episteme de Focault habla no solo de ciencias sino de todo un conjunto imbricado de saberes que pueden estar legitimados o no como ciencias. Ya no podemos pensar en términos de ciencias naturales por un lado, y luego ciencias sociales, y luego ciencias de lo artificial, computación, etc., sino que todas están trabajando de una forma común, que es compleja. No es simple. No se deriva de dos o tres axiomas, porque como esta episteme posmoderna (que vendría después de la episteme moderna que describió Foucault) es muy ambiciosa, hay muchas idas y venidas, muchas rispideces, no hay una idea completa. Ni siquiera hay definiciones en lo básico. No hay una definición de información que todo el mundo comparta, pero eso es lo que garantiza que funcione. Si fuera solamente una, si hubiera un sistema axiomático y prolijo, no sería tan amplio.
GD: Recién decías la palabra “posmoderno”. Es algo que me dejó pensando bastante en el libro, porque normalmente uno asocia a lo posmoderno con la idea de que todo es lenguaje. Y de una manera rara eso sucede en esta episteme que describís, pero no a través de la crítica literaria y cierto pensamiento “débil”, sino a través del código binario, el código genético. Es una salida muy extraña de la idea de posmodernidad, que de alguna manera descoloca el debate que se da por ejemplo cuando los positivistas atacan a los “posmodernos”.
Yo tuve muchos problemas por esta cuestión de la “episteme posmoderna”. Todas las personas que leyeron partes o versiones de este libro (el editor, los amigos, durante las defensas de tesis) dijeron “no me cierra esto de episteme posmoderna”, “no funciona”, “no va porque posmodernidad tiene que ver con otra cosa”. Y yo en ese punto no cedí, y dije “no, justamente, se llama posmoderna por eso que estás diciendo”. Nuestra interpretación de la relación entre modernidad y posmodernidad está muy atravesada por el debate que se dio en Francia y en Estados Unidos (como amplificador del pensamiento francés) entre la década del 70 y del 90. Y uno podría decir hoy en día que todo el tema de la posmodernidad está agotado, igual que las cosas que se dicen habitualmente de la posmodernidad: la crisis de los grandes relatos, la falta de centro, la ausencia de discursos unificadores. Pero lo que yo quiero decir es que efectivamente en lo que se llama posmoderno, encontramos un orden (que es lo que quiere decir “episteme”), y eso es insólito porque uno podría decir que posmodernidad es la ausencia de episteme. Bueno, justamente, estas 500 páginas intentan demostrar que para la posmodernidad es posible pensar una episteme. ¿Podría haber elegido otro término? Sin duda, pero ninguno me convencía tanto. Primero porque Lyotard, que es el primero que presenta el concepto de posmodernidad, se basa en estudiar a la cibernética, por lo tanto esto es literal. Segundo, porque lo posmoderno es lo que viene después de lo moderno, de la episteme moderna. Yo le podría haber puesto episteme cibernética, pero episteme cibernética sonaría similar a si Foucault le hubiera puesto a la episteme moderna “episteme evolucionista”. Eso es una sinécdoque, tomamos la parte por el todo. Si yo la llamo episteme cibernética, estoy diciendo que todo se explica por la cibernética, y no es así. La cibernética es la que dio el puntapié inicial de la comparación con la información, pero cuando te vas a otras regiones del saber, hay desplazamientos metafóricos, cosas que no se parecen a la cibernética. La idea con “episteme posmoderna” es presentar un concepto insólito para de alguna manera cargarlo de cierto sentido. No quiero plantear lo mismo que estaba planteado, sino otra cosa. Puede ser una estrategia equivocada, y quizás todos los que me dijeron que lo de episteme posmoderna estaba mal tenían razón, pero por ahora estoy acá.
GD: Lo que me interesaba no era tanto la palabra “posmoderno”, sino cómo esta cuestión de la centralidad del lenguaje aparece por un lado oblicuo, de como estas ciencias “duras”, tan acostubradas a rechazar a la centralidad del lenguaje en la forma como se plantea en las humanidades, hacen lo mismo pero de otra manera, en la que prácticamente la realidad misma es lenguaje, por eso “las palabras en las cosas”. Esa es una idea bastante llamativa, porque difícilmente un biólogo molecular o un ingeniero de sistemas se pensarían a si mismos como posmodernos.
Una de las cuestiones que quise mostrar en el libro es que una de las categorías fundamentales de esta nueva episteme es la diseminación del lenguaje hacia lo natural y lo maquínico. Así, el lenguaje no es una propiedad humana: que las biomoléculas tienen lenguaje, que las máquinas tienen lenguaje, pero de un modo que es oblicuo, como decís vos, a la forma estructuralista y posestructuralista de pensarlo. El posestructuralismo intentó poner en crisis a las propias ciencias del lenguaje. El mejor ejemplo es Derrida. Mientras eso ocurría, por otro lado, y de manera también insólita, gente de la ingeniería, de las ciencias duras, de la matemática, se ponen a pensar que en realidad en todos lados hay lenguaje. Y eso es muy, muy interesante. De hecho, una de las reseñas de mi libro que hizo Darío Sandrone en Córdoba hace alusión a eso; a la manera en que se puede construir un puente entre la tradición de la filosofía continental, que es “lenguajecéntrica”, y la tradición de la filosofía analítica, anglosajona, para la cual esas cosas de los franceses son… guitarra. Y en realidad, los ingenieros que trabajan en el mismo mundo espiritual que los filósofos analíticos estaban experimentando con que todo es lenguaje, por lo que no hay tanta distancia. Solamente que unos lo hacen en el marco de ciencias que producen cosas (vacunas, computadoras, plataformas), mientras para los otros, en el marco francés, eso era solamente una discusión intelectual.
GD: La mirada política de Las palabras en las cosas no es apocalítpica ni optimista, es por momentos burlona, y por momentos fascisna. Se menciona que en el Chile de Allende hubo un experimento de planificación económica con computadoras. Hoy hay toda una discusión sobre la posibilidad de una economía planificada a partir de las posibilidades que da la tecnología digital, un socialismo digital, como lo llama Evgeny Morozov. La lectura del libro también me hizo pensar en Friedrich Hayek, en su liberalismo y en la idea de orden espontáneo. ¿Cómo juegan la política, específicamente el liberalismo y el socialismo, en las cosas que has estado pensando?
Respecto a Hayek y el neoliberalismo, hay toda una parte de las relaciones que establezco que dejé manifiestamente de lado en el libro. Vos estás planteando un tema que es nodal, y que ha sido trabajado por muchos autores, que es en qué medida todas estas formas cibernéticas sistémicas hacen juego perfecto con el neoliberalismo. Me gustó eso que decís sobre la visión a veces burlona y a veces fascinada. Si es así, creo que ocurre porque efectivamente traté de tomarme en serio la forma arqueológica de Foucault, en el sentido de que no podría a partir de lo que yo estoy estudiando derivar una fórmula o una propuesta de acción, pero se hace necesaria la distancia y el humor para ver el mapa completo. Por otra parte, creo que hay un montón de acciones muy desperdigadas y al mismo tiempo muy potentes, que no sabemos hacia dónde pueden ir, o si directamente no tienen por qué ir a algún lado. Por eso el último capítulo parte de la idea central de que vivimos una crisis de la noción de individuo, que se puede asociar a la forma cibernético-sistémica porque todo se convierte en información. El individuo queda borroneado porque todo se convierte en datos y todo es explotado como dato. Y en este panorama, el socialismo digital está muy lejos, porque si en principio la crisis de lo individual podría ir en ese sentido, hay que decir que por el momento el capitalismo ha podido componer bastante bien con la información. Y esto es así por la sencilla razón de que quienes pensaron el problema de cómo traducir la información en una infraestructura, una economía y una política lo están haciendo desde hace cincuenta años. El capítulo 4, donde pongo en serie las transformaciones de la biología molecular y las transformaciones de los discursos sobre la sociedad postindustrial o de la información, tiene como objeto ver como en dos ámbitos tan diferentes (y sin embargo no tan diferentes) se está construyendo una idea de información desde hace muchos años, aunque ahora nos sorprendamos de cómo aparecen en todos lados los datos. Lo que nosotros vemos ahora es algo que fue pensando hace mucho. Esto no quiere decir que haya un mecanismo teleológico. Estoy totalmente convencido de que si a la gente que estaba pensando esto en los años 50 le mostramos la llamada de Skype o un emoji en un whatsapp no entenderían nada. No pensaban que se iba a dar de este modo. Lo que sí pasa, y esto es lo que estamos viviendo ahora, es que si vos mirás cómo se comportan las empresas que trabajan en lo digital, en lo informático, son empresas que han logrado armar un sistema de valorización, de construcción económica capitalista muy exitoso. Por esto sugiero que a partir de aquí se puede entrar en una discusión sobre la teoría del valor de Marx. A pesar de que puede haber algo, digamos ideológico, en la construcción del discurso de lo postindustrial y en la información como nuevo insumo productivo a partir de la década del 70, sí es cierto que transformaron a los datos en materia de generación de valor. Eso no se ejerce sobre un cuerpo, que es lo que estaba pensando Marx (que pensaba en un cuerpo y una máquina ensambladas en un sistema de producción). No son máquinas que están en el mismo plano material que nosotros, sino que son máquinas de información, con las que nosotros componemos suficientemente bien como para tener 90 perfiles en 90 redes distintas. ¿Quién soy yo ahí? Estoy un poco desdoblado, y ese desdoblamiento genera valor, que es explotado por un sistema capitalista. Ahí está la cuestión de lo dividual (y ya no individual), y toda la cuestión de las biomoléculas y el biocapital, que se trata de cómo se transforma a cualquier ser vivo en una fábrica, que es lo que se hace hoy. Son casos en los que no es posible entender esas transformaciones sin entender que no puede haber plusvalía sin subpoder, como decía Foucault. No puede haber mecanismos de recomposición del capitalismo sin que haya un reacomodamiento de las subjetividades, de las relaciones sociales. Para volver sobre tu pregunta, la idea de la neutralidad de la técnica, según la cual tenemos una alternativa capitalista o una socialista de operar con estos mecanismos tecnológicos ya fue muy criticada y es difícil de sostener. Lo que podemos decir históricamente es que por ahora la forma socialista no se ve. Pero no se ve porque nosotros no vemos una forma socialista. Nosotros mismos no estamos pensando políticamente en ese sentido. No le podemos pedir a las máquinas ni a los sistemas técnicos que lo hagan por nosotros. Ojalá fuera tan simple como esa frase famosa de Lenin: “el comunismo es soviets más electricicidad”. Al mismo tiempo, es cierto que se generan nuevas formas de política, de asociación política, que pueden ser difíciles de entender si nuestra idea de asociación política sólo responde a la construcción de un sujeto político que es históricamente coherente. Eso para mí es claro que no va a existir por mucho más. Pero también me quiero oponer a la idea de que las formas políticas que se expresan en redes sociales son banales, o son menores respecto de las otras formas. Son muy importantes, y eso no quiere decir que las otras ya no se den. Hay una imagen en el libro que me interesa, y es que ir a una marcha es subir una foto de que fuiste a la marcha. Y si no subís la foto no fuiste a la marcha. Y eso no es un acto de frivolidad, es el modo como hoy se conectan personas que no se conocen. Esto no se podía antes, o no de esa forma. Lo digital está combinado con la movilización. Pero creo que falta tiempo para que aparezca una forma política que pueda oponerse a las fuerzas capitalistas de manera consistente. Esto es un fenómeno muy nuevo. Está pasando hace 50 años, o hace 30, o hace 20. Y además con ausencia de bloques monolíticos en frente. Porque uno podría decir que a finales del siglo XIX o principios del XX también se estaban produciendo transformaciones tremendas, pero en ese momento ya existía el marxismo, y el marxismo siempre estaba ahí como un otro para el Occidente capitalista. Entonces es un tiempo de transición, y yo quería trabajar con categorías que para mí son experimentales. Hablo de lo dividual para dar cuenta de una idea de individuo que ya no está funcionando, pero podría haber otras que yo no conozco para explicar lo que está pasando. Yo creo que a lo que pasa no hay que condenarlo anticipadamente. Se habla mucho del narcisismo de las redes, pero además de narcisismo hay un montón de formas políticas de lo común que se están tramando ahí, y hay que atenderlas.
GD: Me imagino a Marx como alguien que si estuviera vivo estaría muy interesado en la biología y en las computadoras, porque las máquinas y la materialidad del cuerpo eran cosas que a el claramente le interesaban muchísimo.
No me cabe duda que si Marx viviera nos estaría intentando explicar cómo funciona una computadora, como hizo con las máquinas en El capital. Marx hoy estaría estudiando las computadoras, estaría buscando la economía política del dato, y estaría buscando construir una teoría crítica de las plataformas. De hecho, hay varios autores que tratan de hacen un análisis de todo esto usando categorías marxistas. Está Nick Srnicek, hay todo un pensamiento sobre eso y sobre cómo recuperar a Marx para entender la situación actual. Hay gente que se resiste a eso, porque piensa que el modelo sigue siendo el que Marx definió en el siglo XIX, diciendo que en el siglo XX las formas técnicas cambiaron pero el capitalismo no. Es importante tener una discusión con Marx, y eso supone volver a leerlo muy bien a la luz de lo que está pasando ahora. Que es una cosa que no hice con la profundidad suficiente, pero me lo propongo. Es un poco lo que hicieron los autonomistas italianos y les valió la crítica de un montón de gente, y lo pueden haber hecho bien o mal, pero por lo menos lo intentan.
GD: Lo que pensaba cuando te escuchaba es que si Marx hace algo nuevo con la economía política de su época, si no será posible, si no habrá alguna forma de dar vuelta todo este pensamiento de la teoría de sistemas para hacer otra cosa con él. Una cosa que uno podría decir, y que el libro no lo dice, pero yo me quedé pensando, es que en el recorrido de la episteme posmoderna se pasa de un pensamiento inicialmente digamos más lineal, más aparatoso, a uno más fluído, más holístico, con ideas como autoorganización o autopoesis. Y a eso uno podría pensarlo como algo “más de izquierda”. Y me pregunto si no está pasando algo ahí, si este último pensamiento más fluido, más sistémico, en algún punto más colectivo, no tiene otras resonancias políticas.
Eso es algo que me planteé cuando escribía el libro pero no tenía cómo engancharlo. Es interesante esta forma epistemológica, de la autopoiesis, la autoorganización, la complejidad, que tienen una inspiración más biológica que maquínica. Es respetable, uno no puede no estar de acuerdo con ella. Nadie podría decir que está en contra de eso, pero todavía no veo como eso se transforma en una forma política tal como nosotros entendemos la política. Quizás el lugar donde esto se está planteando más claro es en la ecología. En la medida en que el pensamiento ecológico y la acción ecologista se tornen cada vez más importantes (y creo que lo tendría que ser), podremos pensar mejor esto. Otro tema central es de qué manera la ecología forma parte de un pensamiento de izquierda. Son cosas ya muy analizadas, pero en América Latina falta mucho aún. Ocurre que los que hemos sido formados todavía en la modernidad suponemos que la naturaleza está ahí afuera (y eso lo suponía Marx también), lista para ser explotada. Pero me parece que para la conciencia ecológica esto ya no es así. No estamos frente a un mundo, sino adentro de un mundo, y eso supone que no podemos seguir con las prácticas actuales. Eso eventualmente tiene que derivar en una forma política más clara, que no sea una mera conciencia ecológica. Ojo, guarda que a lo mejor este momento, esta pandemia, puede dejar como resultado esto. Entonces para terminar de responder, me parece que la teoría de la autoorganización, la complejidad y la autopoiesis pueden aportar a la política en los términos de poder incluir la agenda de lo biológico completo (esto es, de lo ecológico) dentro de un pensamiento que uno podría pensar progresista, si es que este término tiene algún sentido hoy. ¿Cómo vamos a procesar, cuando termine esta pandemia, que la emisión de gases y la contaminación bajaron de manera increíble? ¿Lo vamos a tomar como un hecho nomás? Nosotros aquí en América tendemos a no darle a la cuestión ecológica la importancia de un problema político clave. Y eso me parece peligroso. Porque cuando uno mira desde el punto de vista geopolítico lo que está pasando, la explotación de los recursos naturales, las formas de riqueza que están apareciendo con el descubrimiento de nuevas materias primas, pienso en el triángulo del litio aquí en el norte de Argentina, Bolivia y Chile, pienso en todo el problema de los petróleos no convencionales, y de los biocombustibles. Que no es un problema tan ajeno, y nos vamos a dar cuenta más temprano que tarde que esos problemas tienen que ser abordados. Hay que mirar a Bolivia, y por qué está pasando lo que está pasando.
GD: ¿Has recibido comentarios o entablado contactos con gente de la biología o la informática a partir del libro?
En los agradecimientos digo que este libro se escribió dialogando con un montón de grupos. Esto quiere decir que trabajé el tema biológico con biólogos moleculares que no están conformes con su propia disciplina, y piensan que su disciplina tiene problemas, que tiene agujeros, que tiene derivaciones políticas muy preocupantes. O sea, es una gente muy especial. Y en el caso de informática, todas estas cosas sobre algoritmos y datos, las trabajo con gente de informática de Córdoba, particularmente un personaje clave que es Javier Blanco, con quien justamente lo que tratamos de ver son estos tráficos conceptuales. Ahora, si tu me preguntás si fuera de la gente que yo conozco tuve repercusiones, te diría que todavía no a este nivel. Sí las tuve a raíz de resultados parciales de la investigación. Obviamente fui a dar charlas a muchos lugares. Y en el caso particular de los biólogos están muy sorprendidos, porque es como que estoy haciendo la epistemología de lo que todavía no ha sido convertido en discurso epistemológico. Y eso lo digo casi con certeza, porque me pasó ya muchas veces. La biología molecular no discute de epistemología, no sabe de dónde viene el término “información”, no le preocupa. En alguna medida, los biólogos moleculares son técnicos. Cuando vas a ver en la informática es lo mismo. La computación está siempre centrada en su objeto, y en los últimos años muy convencida (es un saber que ganó mucho poder) de que pueden ser un método válido para cualquier otra cosa. De hecho, hoy en día, de las cuarenta mil cosas que son viralizadas sobre la pandemia de coronavirus figuran todo el tiempo las simulaciones de las curvas, que son medidas estadísticas, modelos informáticos cuyo criterio de validez o lugar de autoridad es el de personas que son estadísticos, informáticos, gente que está trabajando todo el tiempo con simulaciones, en este caso para calcular cuánta gente va a estar muerta en un mes. En todos los lugares donde yo digo este tipo de cosas soy bien recibido en tanto novedad, y también resistido. A mí eso me pone contento porque lo que yo estoy volcando ahí son sorpresas, cosas que responden a leer o a hacer conexiones que yo no había visto que fueran importantes. Cuando yo empecé a leer sobre cibernética, hace 20 años, no había casi nadie que hablara de cibernética. Hoy tampoco, no se habla de cibernética, pero porque todo lo que hay es cibernética. Si en las instituciones educativas, en los lugares de saber, dicen que el conocimiento es esto, que lo que está pasando es esto y que la manera como esto se aplica a la sociedad es esta, yo digo no: primero, no hay aplicación del conocimiento a la sociedad, sino que el conocimiento está adentro de la sociedad; y segundo, estamos ante una nueva forma de saber que todavía no hemos formalizado bien, no la hemos puesto en palabras, no hemos explicitado todos estos supuestos. Cuando yo tengo charlas con grupos de biólogos o de informáticos me parece que para ellos también es nuevo lo que estoy diciendo, cuando en realidad pensaba que era obvio para ellos. En realidad nada de todo esto es obvio porque justamente una de las cosas que nos enseña Foucault es que cuando una disciplina logra armar su historia, cierra la puerta de atrás respecto a cuales fueron sus orígenes, sus protocolos, de cuáles fueron las cosas que llevaron a pensar eso. El asunto es que cuando una disciplina tiene que avanzar a la velocidad que avanza la biología molecular, no puede andar diciendo todo el tiempo“miren, la verdad es que la metáfora del ADN como información es cualquiera, porque si leemos a Shannon eso no es información”, porque está bien pero no sirve para que te den cuatro millones de dólares para secuenciar un genoma. Por lo tanto, ninguna disciplina, de las ciencias humanas, las naturales, lo que fuere, no tratan estos cruces. Yo sólo traté de construir, con mis limitados medios, una historia de lo que todavía no ha sido historizado convenientemente. Porque esto es lo que estamos viviendo, es lo que está en acto ahora.
GD: Recién hablabas de que esto es una serie de sorpresas, contame alguna cosa que te haya dejado perplejo en la investigación.
Me pasó cuando encontré “la cuestión de las comillas”. Es una de las pruebas más claras de que hay un desplazamiento que, si no justifica todo esto de la nueva episteme y de un nuevo tipo de ciencia, le pega en el palo. Cada vez que cualquier discurso que parte de lo biológico (sea la inmunología, la genética, la neurología) tiene que cambiar de registro y decir que las moléculas hacen cosas parecidas a los humanos (esto es, que las proteínas interpretan, que la neurona calcula, todo eso), esos verbos antropológicos en una gran mayoría están puestos entre comillas, lo cual me parece notable. Y esto lo veo en autores muy diversos, desde gente de las ciencias sociales o humanas hablando de inmunología (como Sloterdijk o Esposito) hasta los propios manuales de inmunología. Cuando los científicos están muy cerca de antropomorfizar la cosa que están estudiando (porque la ven hacer cosas que los sorprenden), se dan cuenta que están traspasando una frontera y ponen las comillas. Entonces la comilla es un síntoma. ¿Por que no bancás que las proteínas interpretan? Sacale las comillas, las proteínas interpretan, dale.
GD: Sacar la comilla sería realmente asumir las superación del humanismo, que la interpretación es algo específico de lo humano. Es un paso difícil.
Sí. A ver, si yo me pongo en el lugar de donde vengo, las ciencias sociales, las ciencias de la comunicación, diría no, bueno, es una metáfora. No interpreta, es solamente que no sabés que nombre ponerle porque es un bicho que parece tener una voluntad, una teleología (un programa, un código, una teleonomía, como dice el discurso cibernético-sistémico), entonces bueno, le ponés comillas a “interpreta” porque sabés que no interpreta. Pero podría responder: ¿A vos te parece que es sólo una metáfora? ¿No podríamos pensar que estamos cambiando nuestra idea de interpretación? Foucault era muy nominalista. Foucault no diría “para mí la interpretación es esto y lo que no es así no es interpretación”. Diría “hay mucha gente aplicando la palabra interpretación a cosas que no son seres humanos”. Entonces, yo puedo decirles que, desde el punto de vista de las viejas ciencias sociales y humanas, decir que una proteína interpreta es un derrape, un desplazamiento metafórico improcedente que no sirve para entender nada. A lo que el biólogo que está estudiando las proteínas me dice “sí, pero ¿sabés que pasa? Yo pongo la proteína en tal solución, hace algo, y la pongo en la misma solución mañana y no lo hace, y le cambio esto y aquello pero la muy turra no hace nada, y de pronto sí lo hace y no sé por qué si no le cambié nada. Bueno, eso es básicamente lo que pasa entre los seres humanos, por lo tanto capaz que la proteína hace muchas más cosas de las que yo pienso”. Es más, creo que tiene sentido decir que la cibernética, aún en su versión primera, en su forma más reduccionista, es una forma de tramitar el hecho de que nos estamos moviendo hacia otra composición del saber donde nosotros los seres humanos ya no somos el centro. Somos el centro en la medida que nos preguntamos sobre nosotros mismos, pero hemos incorporado otros actores a nuestro pensamiento sobre nosotros mismos cuya acción es para nosotros tanto o más importante que la nuestra, como la ecología, o un algoritmo que puede predecir mi comportamiento. Estos son cambios muy profundos. ¡Y son muy rápidos! Yo digo esto hace un siglo, en 1920, y estoy completamente loco. Y un siglo no es nada.
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*Pablo “Manolo” Rodríguez es investigador adjunto del Conicet (Instituto Gino Germani, UBA); autor de Las palabras en las cosas. Saber, poder y subjetivación entre algoritmos y biomoléculas (Cactus) y miembro de la Red Latinoamericana de Estudios sobre Vigilancia, Tecnología y Sociedad (Lavits). En 2016, fue uno de los organizadores del IV Simposio Internacional LAVITS, “¿Nuevos paradigmas de vigilancia? Miradas desde América Latina”, celebrado en Buenos Aires.
Veja também o artigo Los intelectuales y los lugares comunes ante el coronavirus de Pablo Manolo Rodríguez publicado no Informe Lavits_Covid19_#5
Assim como outras epidemias que assolaram a humanidade, o Covid-19 expõe às claras muitos dos limites das nossas formas de organização social. Um dos seus principais efeitos consiste em mostrar o limite da lógica política do populismo de direita contemporâneo. No mundo inteiro testemunhamos uma mudança paradigmática na posição inicialmente negacionista de líderes de direita como Trump, Boris Johnson, Narendra Modi, Orbán e Putin, para posições de aparente sobriedade para lidar com a crise generalizada trazida pelo Coronavírus. Essa mudança foi uma obrigação pragmática da realpolitik que viu na possibilidade da morte aos milhares uma perda abissal de capital político. De outro modo, muitos desses líderes provavelmente não abririam mão da defesa da economia em detrimento da vida das populações que governam.
No Brasil, entretanto, os efeitos do Covid não foram capazes de forçar uma guinada na abordagem de Bolsonaro, mas deixaram expostos os limites da sua lógica de fazer política. Há muito se discute que Bolsonaro, contrariando a lógica, se estabeleceu como um outsider do sistema político mesmo tendo uma longa carreira nas margens quase esquecidas do congresso. Durante o caos político instaurado nos anos pós-impeachment, Bolsonaro conseguiu coadunar em torno de si medos, esperanças e ódios ao PT, e à esquerda como um todo, ao balancear em seu discurso uma série de questões caras a diversos setores sociais. Entre os principais eixos que o Bolsonarismo articula para formar seu discurso político estão a segurança (que mexe com estética do medo onipresente nos principais veículos de comunicação), família (defesa constante de valores conservadores e obediência de sua hierarquia em face a uma pretensa decadência moral da sociedade), religião (que coloca a fé acima de tudo), nacionalismo (ufanismo que define um povo com uma tradição e história específicas que devem ser respeitadas e restauradas), mercado (conversão recente ao neoliberalismo para atrair o “grande capital”), retidão moral (uso do chavão anticorrupção para angariar apoio do lavajatismo mesmo estando enredado com as milícias cariocas, rachadinhas e laranjais) e anti-esquerdismo (tendência mundial de combate ao avanço do socialismo e do chamado Marxismo cultural). Somados a esses eixos temáticos estão ainda outros vetores comuns à extrema-direita contemporânea, como por exemplo, o uso de teorias da conspiração como pano de fundo de construção narrativa da realidade, o posicionamento antissistêmico como se a mão invisível de uma elite liberal esquerdista conspirasse para a dominação mundial, e anti-intelectualismo e anticientificismo que rejeita dados científicos colocando-os como parte da conspiração para acabar com o capitalismo a família, a religião e mesmo com a civilização ocidental branca.
Por meio da articulação desses eixos temáticos, Bolsonaro conseguiu se
tornar o representantes dessas demandas e instituir um novo vínculo social
libidinal onde ele se posta como o líder forte e protetor, uma espécie de pai
edipiano.[1] Ele foi alçado ao status de “mito” salvador da Pátria, concentrando em
sua persona tanto um mal-estar com os sistemas políticos como o desejo repressão
à violência, castração da justiça social e a restauração de valores tradicionais.
Bolsonaro se tornou um dos principais capitães da política do ressentimento.[2] Como diria Ernesto Laclau,[3] seu discurso populista gerou um processo de identificação coletiva,
onde, por um lado, seus seguidores projetam nele suas particularidades (crenças,
ansiedades, medos, esperanças, antipetismo), e, por outro, transforma a
personalidade de Bolsonaro pois tal identificação e representação implica necessariamente
no apagamento de algumas de suas particularidades mais deploráveis (racismo,
xenofobia, misoginia e assim por diante).
No entanto, a linha que amarra ao mesmo tempo que propulsiona o
Bolsonarismo como lógica populista é o antagonismo. É através do antagonismo
que Bolsonaro conseguiu estabelecer uma forte fronteira tanto externa entre ele
e os inimigos, sejam esses o PT, o sistema, os corruptos ou mídia golpista,
quanto interna entre os grupos de apoiadores, delimitando suas diferenças,
semelhanças, objetivos, demandas e alvos. É o antagonismo que, como movimento
de luta, se faz processo de identificação capaz mobilizar afetos e desejos ao
ponto de criar um vínculo quase indestrutível entre Bolsonaro e seus seguidores
mais fiéis. É o antagonismo que dá o sentido de união pela satisfação de
experimentar a comunhão na violação do inimigo e pelo prazer trazido pelo risco
da sua própria dissolução numa batalha perdida, ou seja, sua morte. O bond está
no anseio e no prazer da morte, seja a do outro ou a sua própria.
Essa lógica de construção populista funcionou muito bem durante a
campanha em 2018. Bolsonaro se elegeu com cerca de 57 milhões de votos,
confortável maioria nas duas casas e sem uma oposição suficientemente
articulada. Contava com o apoio de três setores fundamentais, os defensores da
Lava Jato, o “mercado” e os militares, galvanizados pelas escolha de Sério Moro
e Paulo Guedes como superministros e Mourão como vice-presidente. Além disso,
conseguiu obter vasto apoio das bancadas evangélicas, da bala e ruralista.
Bolsonaro tinha a conjuntura ideal num início de governo para implementar suas
políticas e projetos de transformação social, caso existissem. No entanto, Bolsonaro
naturalizou e institucionalizou sua lógica populista num modus operandi que advoga
somente ideias de extrema-direita e funciona fundamentalmente por antagonismo.
Desde o início ficou claro que seu populismo não possuía nenhuma proposta de
transformação sistêmica ou mesmo de melhorias de governança, tampouco projeto
de poder político, mas apenas o objetivo de estabelecer uma nova hegemonia
ideológica no Brasil disfarçada de superioridade moral não ideológica.
É dado que construir um projeto de poder e de governo requer mais do que
o apoio das urnas, demanda principalmente vontade e compromisso para costurar alianças
com vários setores que deem margem de manobra para a implementação de políticas
públicas. Porém, por não ter um projeto de poder, o Bolsonarismo terceirizou a
condução do governo ao lavajatismo punitivista de Moro, ao neoliberalismo
privatizador de Guedes e a organização estrutural conservadora dos militares,
guardando para si apenas aquilo que sua lógica populista beligerante permite: o
constante antagonismo com inimigos imaginários e mobilização dos afetos para
sua política de Estado Suicidário, como bem argumentou Vladmir Safatle.[4] Em poucos meses dessa lógica política, Bolsonaro esgotou os inimigos a
combater e se voltou contra aqueles até então tidos como aliados, incluindo os da
casernas, como Mourão e Santos Cruz.
Em pouco mais de um ano no poder, Bolsonaro conseguiu a façanha de deteriorar
quase todo apoio que tinha, perdendo a liderança tanto para seus ministros
quanto para o congresso, responsável pela costura a aprovação de reformas espinhosas.
Umas das últimas baixas da política beligerante do Bolsonarismo foi a de um dos
mais importantes ministros do governo, o ex-juiz Sérgio Moro, que se demitiu
nas últimas semanas acusando o presidente de interferência na autonomia da
Polícia Federal. A perda do eixo lavajatista do núcleo serve para aumentar o
isolamento do governo e a força de seus posicionamentos e polêmicas. De certa
forma, essa lógica do antagonismo isenta Bolsonaro de tomar decisões que podem
prejudicar sua base ideológica mais dura, colocando assim toda a
responsabilidade no colo de seus inimigos ou possíveis concorrentes, ao passo
que o permite postar-se como vítima de conluio que o impede de governar.
Quando a pandemia aportou em nosso país, Bolsonaro fez a única coisa
possível do seu escopo de ação: saiu ao ataque argumentando que uma gripezinha
não poderia parar o país. Sem dúvida essa postura leva em conta a realpolitik,
pois se a economia vai mal, um dos seus principais fiadores no pleito de 2018,
o mercado, se afasta. Além do mais, o mote mercado ou morte não é novidade, por
isso presidentes de distintos matizes ideológicos adotaram semelhante postura;
o contrário seria surpreendente. Seguindo sua lógica política beligerante,
Bolsonaro decidiu não só contrariar orientações da OMS e de seu ministério da
saúde, mas antagonizou com a ciência, difundiu notícias falsas, teorias da
conspiração e potenciais curas não comprovadas. De Trump a Amlo, diversos
outros líderes adotaram postura parecida, porém mudaram-na quando o Covid-19 se
mostrou muito mais perigoso do que o esperado. E, ao invés de abraçar de vez o
dicionário Maquiaveliano do Beabá do tirano, tomar a liderança no combate à
pandemia e dar vazão ao seus instintos totalitários, como feito por Orbán, a
postura negacionista de Bolsonaro fez com que admitisse e assumisse sua posição
de presidente não-presidente. Ou como Bruno Torturra muito sagazmente colocou,
postura de antipresidente.
Essa beligerância institucional fez com Bolsonaro inevitavelmente entrasse
em rota de colisão com seu ministro da saúde, perdendo de vez o pouco de apoio que
lhe restava junto ao congresso e parte dos militares. Essa postura de
antipresidente lhe rendeu não somente aumento de seu isolamento político e
perda quase completa da capacidade de governar, mas também de capital político
junto à população: pesquisas apontam para aumento da rejeição em todas as
camadas sociais, menos junto a seus mais fiéis seguidores. Essa conjuntura de
crise trouxe novamente para os corredores do congresso e para as manchetes
especulações sobre possíveis rotas para a saída de Bolsonaro. Pois como já
diria Wright Mills no seu The Power Elite,[5] um regime que perde apoio das camadas
populares somente se sustenta pela articulação e apoio da tríade da elite econômica,
política e militar; no caso de Bolsonaro, tudo parece ruir ao sabor da sua
intolerância. De impeachment à deslocamento do governo na figura de Braga Neto,
diversas são as alternativas especuladas para a condução do país em tempos de
pandemia. Outra alternativa cogitada é a renúncia, algo de difícil
plausibilidade devido a própria persona voluntarista de Bolsonaro: renunciar
seria admitir seu fracasso e romper com a mitologia do mito. Melhor cair
“lutando” do que sair pela porta dos fundos com o rabo entre as pernas, como
diria um velho capitão tornado político. Somente lutando o mito se faz perene e
mantém sua capacidade de mobilização dos afetos.
E é exatamente aqui que o Coronavírus expõe os limites da lógica
Bolsonarista. Antes da pandemia Bolsonaro usava sua lógica do antagonismo
populista para testar os limites dos domínios das forças em disputas em cada
nova situação, avançando ou retrocedendo conforme o barulhos das redes digitais
ou de seus aliados. Usando uma metáfora corrente em algumas análises políticas,
era como se Bolsonaro e seu núcleo ideológico estivessem constantemente
aumentando suas apostas no poker político, pagando pra ver as reações da mesa
para, assim, calcular possíveis ações.[6] No entanto, com o aumento do seu isolamento político devido ao Covid-19,
essa estratégia fez água. Não só perdeu a liderança da crise para seu ministro,
mas também a capacidade de demiti-lo. Acuado e sem fiadores para manutenção do
governo, Bolsonaro autorealizou sua própria profecia de que todos queriam sua
cabeça e agora sobe a aposta numa espécie de all-in irreversível que só
se sustenta enquanto o caos gerado pela pandemia continuar. Contrário à lógica
da própria política, Bolsonaro aumenta a aposta como forma de sobrevivência,
pois cada antagonismo é uma maneira de estender os limites da identidade do
Bolsonarismo, ou seja, de manter viva uma identidade fundamenta não necessariamente
nas demandas que articula, mas no movimento de antagonismo beligerante que só
pode se afirmar enquanto tal na medida que inimigos existam, na medida que
encara a sua própria morte assim como a de todos que assistem esse jogo
alucinado de poker. Ou seja, a sobrevivência do mito só se dá na autorealização
de sua essência na profecia de combate ao Grande Outro. Por isso aumentar a
aposta é a própria razão de ser do Bolsonarismo. Mas foi só com o Coronavírus
que ficou claro aos olhos do mundo que Bolsonaro usa a lógica do poker para
jogar o xadrez político. Seu blefe se esvaziou, e seus cavalos, bispos e torres
silenciosamente mudaram de lado. Seu all-in hoje cheira a xeque-mate às
avessas.
Se os limites da lógica populista de extrema-direita de Bolsonaro
ficaram expostos e se mostraram insuficientes para governar em qualquer
momento, quem dirá em tempos de crise, fica ainda em aberto o resultado desse
“último round”. Caso os efeitos do Corona sejam menos perniciosos para a vida e
mais para a economia, Bolsonaro usará do velho “eu falei” e poderá capitalizar
politicamente nas ruínas da economia e miséria, mobilizar seu séquito e levar à
condução final ao que Safatle chamou de República Suicidária. Se o número de
vidas cobrado pela pandemia no país for o que especialistas predizem, Bolsonaro
ficará invariavelmente isolado tornando-se ou um alvo móvel para os atiradores
do impeachment, ou um espantalho presidencial, cujo governo ficará a cargo de um
misto entre parlamentarismo branco e militarismo constitucional. Parecem que
restam poucos movimentos nesse complexo xadrez político. Resta saber se a
autodestruição aparentemente inevitável da lógica Bolsonarista levará todos de
arrasto ou então saber que tipo de xeque-mate lhe será dado.
[1] Sigmund Freud, Group Psychology and the Analysis of the Ego (London: The Hogarth
Press, 1949).
[2] Para um discussão sofisticada sobre política do ressentimento, ver Wendy Brown, Nas Ruínas Do Neoliberalismo: A Ascensão Da
Política Antidemocrática No Ocidente (São Paulo: Editora Politeia, 2019).
[3] Ernesto Laclau, On Populist Reason (London: Verso, 2005).
[4] Vladimir Safatle, “Bem Vindo
Ao Estado Suicidário,” N-1 Edições
(São Paulo, 2020), https://n-1edicoes.org/004.
[5] C. Wright Mills, The
Power Elite (New York: Oxford University Press, 2000).
[6] Fábio Bittes Terra, Cláudio
Couto, and João Villaverde, “Bolsonaro e a Política Do ‘All in’: Estratégia de
Confronto,” Nexo, 2020.
O poema acima chegou até mim via
whatsapp como corrente iniciada por amigos que organizaram a leitura diária de
poemas para levar a quarentena melhor. Ele me tocou porque dialoga com a
fratura que vejo hoje percorrer nosso mundo. Vivemos um momento em que o corte
das rotinas anteriores abre um estado de interrogação, onde somos convocados a
pensar no fim de muitas coisas, com dificuldades extraordinárias e não
previstas que nos junta e nos divide, nos aproxima numa causa comum, mas nos
separa na forma em que cada um consegue exercitar uma boa distância.
Com o confinamento, fica em
evidência a artificialidade do arranjo em que vivemos quando toda função,
atividade ou serviço é redefinido ou continuado só após nova e sucessiva
confirmação. O pacto social se explicita e, mesmo que aparentemente estejamos
impossibilitados de discutir seus termos, ele parece estar sendo modificado
para ser assinado novamente. Temos o Leviatã do outro lado da mesa exigindo
novos condicionamentos, antes de restabelecer a segurança e a dinâmica da ordem
social. Será que podemos nos manter sem assinar?
O poema é dedicado à memória da
poeta polonesa Halina Poświatowska, que morreu com 32 anos em decorrência de
cardiopatia e problemas respiratórios adquiridos quando criança, durante a
ocupação nazista da Polônia. Impossível separar funcionamento biológico da vida
político social. Esse texto busca pensar nessa interseção, na encruzilhada em
que nos encontramos.
A holotúria, também chamada de
pepino do mar, é um equinodermo tentacular utilizado no Oriente como iguaria
gastronômica e também na medicina tradicional, inclusive contra a malária e a
artrite, da mesma forma que a hidroxicloroquina… Segundo uma pesquisa rápida
da Internet, vemos que este ser do fundo do mar tem capacidade de se auto
desmembrar em caso de perigo, depois se regenerando a partir do corpo restante.
Em caso de ameaça, a holotúria expele partes do abdome, genitais, intestino e
pulmão através do ânus ou de fendas da pele, como modo de amputação que distrai
os inimigos. Na poesia de Szymborska, a expressão latina “non omnis moriar”, provinda de um verso de Horácio, se traduz por
“não morrerei completamente”.
Qual é a fissura que, como no corpo
da holotúria, separa hoje a vida da morte, o perigo da possibilidade de sobreviver?
Pensando no nível do funcionamento da vida social, a poesia permite entender o
desafio da necessidade de revolta que se impõe para além ou junto com a
urgência da preservação física. Significa manter em pé a necessidade de luta
que a nova situação não posterga, nem suspende na sua urgência.
Na pandemia, renunciamos, de forma
voluntária ou proposta pelo Estado, a muito do que nos era familiar. Não nos
aproximamos uns aos outros como antes e paramos de circular territorialmente
fora dos lugares onde dormimos. O inédito das medidas alcança também a
interrupção da produção, a venda e a distribuição de variadas mercadorias.
Mesmo que momentaneamente notavelmente se interrompe aquilo que não era suposto
de poder parar.
O planeta volta a se mostrar mais
difícil de acabar do que o capitalismo e a espécie humana, ambos fragilizados
simultaneamente. A nossa espécie se diferencia agora não pelas qualidades
específicas da sua civilização (capacidade de linguagem e comunicação, de
trabalho, de história) mas por uma nova fragilidade respiratória que exige
interromper tudo. Forçada a sair momentaneamente da arrogante ideia do controle
da natureza, reaparece nossa conexão com o restante do ambiente como algo
inocultável. Nos encontramos num universo onde não estamos sós, e gotículas,
vírus, remédios, morcegos e oxigênio produzido por florestas se conectam num
único tecido. O capitalismo não se mostra desarticulado, mas inesperadamente
mostra sua subordinação à vida, quase nunca em evidência.
Na pandemia, encontramos uma
igualação de todas as pessoas imposta pela dependência de iguais condições
pulmonares para poder respirar mas, como a holotúria frente ao perigo, ela
também nos divide. Apesar dos discursos de união e um imaginado corpo social
coeso que nos convoca como população, como País, como família, suspendendo a
individualidade pela possibilidade de qualquer um de contagiar, na realidade
muitos são obrigados a ter que continuar circulando. Quem deve garantir o
fornecimento de bens essenciais e cuidado da saúde se vincula ainda à ideia
recuperada de que somos um “social”, mas por uma lógica de sobrevivência outros
devem circular com efeitos em direção contrária do novo consenso geral.
Enquanto um rumo único revitaliza a ideia de welfare State a realidade – respiratória e económica – de muitos
mostra a inevitável falência de qualquer Estado para lidar com o que nos
desafia viralmente.
A resistência que a holotúria nos
propõe, ejetando parte dela para se preservar, pode ser lida com perversidade
neoliberal ou evolucionista, de sobrevivência dos mais aptos, os mais fortes ou
com mais recursos para superar a enfermidade… conseguir uma vaga no hospital
caso precise, frente ao descarte dos que não consigam, os perdedores na
concorrência de todos com todos por não adoecer até que a curva de óbitos se
estabilize. A biologia se encontra com a economia e a sociedade nas mãos do
Estado, como administração de leitos, cidadãos, mortes e vírus no ar. Mas a
holotúria inspira a poeta também de outra maneira.
Quando o poema de Szymborska se
refere à autonomização defensiva da holotúria presente também entre nós, os
humanos, o que o corpo emite e deixa ir, como sussurro sufocado, é o riso e o
poema. O abismo não nos divide de forma simples, afastando a morte de nós: o
perigo nos circunda. Entre nós, o que não morre parece não ser apenas nosso
corpo, que se protege, mas também o que sai de dentro de nós. Pensando na
pandemia, podemos encontrar por esse caminho um lugar que está além da proteção
mais imediata do corpo e da saúde. A experiência de viver em quarentena nos
permite imaginar pequenos atos que se encontram nesse lugar, todo dia, entre o
heroísmo, a transgressão, para além do enquadramento.
Para além do Leviatã e sua tentativa
de administrar a natureza na busca de um antídoto que elimine o perigo e nos
devolva os poderes de super homens dominantes do planeta, não encontramos
apenas a irresponsabilidade de alguns capitalistas, a ignorância da verdade da
ciência, a inconsciência ou cansaço que avança contra o social. Para além do
cuidado do corpo, entregue para as autoridades sanitárias, existe também agora,
quando tudo é reavaliado, a possibilidade de superação dessa ordem social onde
o que hoje nos ataca foi engendrado.
Sem questionar a organização do
mundo que hoje é suspenso, encontramos a posição homicida de quem diz que o
País não pode parar, mas também uma defesa hipócrita da quarentena que não leva
em consideração a incapacidade de proteção frente ao vírus de quem é obrigado a
sair, e não tem como adotar o confinamento. Não nos serve nenhuma dessas duas
posições políticas que hoje organizam a discussão de gestão política estatal. O
vírus se mantém no ar, mas só alguns o encontram. E dessa forma não discutimos
como geramos coletivamente a obrigatoriedade dessa circulação de uma parte de
nós que será sacrificada, como na defesa da holotúria.
Industriais e gestores do Estado
assessorados por expertos medem se vai ter muito contágio, ou contam já com a
previsão de ocorrência de infecções e mortes como parte do cálculo político ou
empresarial. Comparam tabelas de contagem de infecção e morte em países,
províncias, cidades, bairros, locais de trabalho. Milhões de corpos
relacionados com o fornecimento e distribuição; com a sobrevivência e com a
subordinação hierárquica no contexto do trabalho, já tiveram o botão de
“continuar” acionado. Veem como até as pessoas mais próximas os tratam como
apestados, sem o heroísmo reconhecido para os trabalhadores da saúde, que
também devem se adequar a uma lógica de guerra sem os cuidados correspondentes.
Pensando no corpo social único que
se preserva para regenerar, a margem premiada no poema, a necessidade de defesa
demarca um novo limiar civilizacional e de cidadania entre os que estão dentro
e os que ficam de fora. Esses conceitos se aplicam porque envolvem sempre a
definição de quem será excluído. Na quarentena, os de dentro são os que cuidam,
os que podem cuidar de si e ser cuidados. Quem circula, tosse sem cuidado, ou
promove a circulação não participará da civilização dos vencedores da pandemia.
Junto com os dispensáveis pelo lucro ou a exclusão, a margem da vida delimita
também um bom governo e outro que não contribui à curva achatar.
Surpreende o tamanho da nova
coalizão. E conhecendo os participantes, nos perguntamos até onde poderemos
avançar juntos sem repensar a nossa vida no mundo. Ou será que nos exigem
deixar qualquer diferença para depois? Assistiremos a regeneração de uma social-democracia
cínica, que celebra a volta do Estado mas não vai se divorciar dos mercados e
continuará apostando no mesmo modelo de produção.
O velho mito da comunidade nacional
está hoje na ordem do dia, como um abraço com o cotovelo de empresários a busca
de recursos públicos, trabalhadores obrigados a responder à pandemia a partir
da margem de cuidado que lhes é permitida sem ser consultados, e um Estado
especialmente dedicado a preservar a ordem. O novo pacto social, assim, estará
mais perto das mensagens da nova etiqueta sanitária incorporada por marcas que
não aplicam esses cuidados à circulação e trabalho que elas mesmas geram, ou
pelas medidas de suspensão produto da necessidade de manter vivos a quem
precisa voltar a trabalhar, antes que por uma mobilização social de força
criativa.
Se o Estado de modelo chinês,
fascista ou progressista fracassa, e o capitalismo verde do Green New Deal não convence a ninguém,
talvez encontremos um misto de formas velhas com um novo funcionamento pós
pandemia que incorpora as transformações que já estavam encaminhadas e que,
agora, se aceleram. Erguido da rapinha intercapitalista dos que se beneficiem
das ruínas e da falência de um capitalismo “nacional”, um capitalismo menos
controlável pelo Estado avança apostando fortemente nas novas condições de
distribuição e venda, apoiadas na produção ubíqua e descentralizada que depende
de uma precariedade da força de trabalho com custo zero e sem nenhum
compromisso com a velha ideia do “social”.
Por esse caminho, vemos uma cisão
que redefine o capitalismo entre o assalariado e o precário, com ou sem renda,
entre a fábrica e a plataforma de geolocalização, entre especulação financeira,
serviços, informalidade e endividamento generalizado. O abismo nos circunda, e
é outro o lugar onde devemos estar. Não há apenas um modo de enfrentar a
pandemia, embora, como em tempos de guerra, existe apenas um único comando
geral. É no lugar das lutas onde é possível quebrar a hierarquia obrigatória do
consenso e revisar as receitas e diagnósticos construídos com a força de
estatísticas que opõem morte a vida mas não permitem perguntar qual vida.
Contra a nova civilização que se
mantém a mesma, ou como dilaceramento que sai de esta e toma outro rumo, nos
perguntamos pelo espaço para uma insurgência que construa um mundo novo com
outro ritmo e outra orientação principal. Como lutar, hoje, enquanto se impõem
restrições ao encontro e as ferramentas de controle se aperfeiçoam. Como
podemos questionar um modelo de desenvolvimento, de Estado e de ciência que,
longe de melhorar os modos de existência e subsistência de milhões, se
relaciona com as condições de possibilidade da pandemia, e com as dificuldades
e despreparo para enfrentá-la em que nos encontramos.
O perigo -mostra a holotúria- pode obrigar
à invenção de algo novo. Um pouco de voracidade pelo mundo e um pouco de fuga,
que nos permita voltar como fantasma que assombra qualquer novo pacto como
escolha fatalista. Recusando que para preservar a vida seja necessário abrir
mão do riso e da poesia, ou da revolta, a pandemia nos convoca a buscar
caminhos para que uma mobilização semelhante e maior à atual se volte também
para o questionamento da ordem social, com novas instituições a nascer, outro
regime de relação com o mundo não humano, e que de forma independente possa ser
também uma resposta à pandemia.
Se o capitalismo também mata,
enfrentando os jovens que não podem ficar em quarentena com velhos sem UTIs
suficientes, enquanto se eliminam as aposentadorias e os direitos laborais, é
preciso manter no ar a possibilidade concreta, e não apenas imaginada, de
reagir evitando trabalhar pelo restabelecimento daquilo mesmo que devemos
desarticular. Se tudo que é viral se mantém no ar, não nos asfixiemos deixando
a solução em mãos dos que apostam no caos do desespero, ou na ordem da
repressão.
Entre o ressentimento e a coragem, a
resignação e a fuga, se abrem duas formas de agir, como duas metades. Uma vive
o confinamento como fim do mundo, buscando desesperadamente repará-lo no
sentido anterior. O outro é o desafio quase impossível, mas ao mesmo tempo
imprescindível, de não transitar dentro de qualquer consenso se não for com
autonomia, mantendo a luta no ar, contra todo novo pacto que nos imponham, para
que todos possamos respirar.
Salvador Schavelzon é antropólogo,
docente e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo.
Quando
alguém fala de distração, penso nos movimentos que parecem difusos… Em
pequenas fugas regidas por coisas que carregamos e perderam a conexão
com o tempo presente… Mas que ainda revelam, a partir do agora, o
magnetismo que as coisas do mundo tem sobre nós e nos dão algumas
pistas, como um mapa no mundo, dos nossos afetos, ou da nossa capacidade
afetiva construída através do tempo.
Por
exemplo, a borboleta que está trabalhando nas flores novas do
abre-caminho no quintal de casa… Isso é trabalho da vida, mas também
associo silenciosamente à distração… pelo modo como ela vai, volta…
salta pra outra planta, pra outra flor, some de vista. Retorna. Sobrevoa
meu corpo deitado ao Sol, volta pra flor.
Associo
então, esse trabalho à distração pelo efeito do voo polinizador da
borboleta sobre mim, por minha aptidão em acompanhá-la visualmente em
seu trabalho que é sua vida.
Noto,
dentro da distração que penso ‘trabalho’ na relação entre a flor a
borboleta. Sobreponho isso a vida da borboleta. O que me parecia natural
passou por um estranhamento no espaço da distração. Por que pensar isso
como trabalho… ou como distração?
Percebo
que em mim a distração normalmente ocorre num espaço que é ao mesmo
tempo dentro e fora. E sobre isso, hoje, me atento às experiências que
faço com a fala em diferentes espaços, públicos e privados, ou alguma
coisa entre isso… e como elas me tornam ora potente, ora enfraquecida.
No propósito, na abertura, na inadequação… A potência na maior parte das
vezes encontra-se na escuta, e as vezes mais especificamente na
evidência da escuta entre as falas, no abrir e orientar sentidos. Se tem
eco… tem eco
Não tem… tem
Se
antes pensava na distração como bifurcação. Agora, ou aqui em
isolamento, ando pensando na distração como espaço, brecha, borda,…
espaço de suspensão e ao mesmo tempo de contato.
… Era pra ser um texto sobre ecologia, mas encontrei uma frase que ecoou:
“Eco amava os bosques e os montes, onde muito se distraía”…
Me
dei conta de que muito se fala da ninfa Eco pela repetição, mas pouco
pela distração. A distração de Eco nesses espaços: nas montanhas,
bosques, cavernas e grutas (onde as oréades habitavam)… relacionada a
seu amor pela vida que ali se expressava, tinha um revés que emergia
como (d)efeito sobre alguns seres, os humanos e os deuses
antropomorfisados… O defeito de Eco era o de falar demais. Queria saber
em que momento emergiu a evidência de que a fala de eco havia passado
dos ‘limites’. Se essa inadequação do quantum de fala era algo
relacionado com o efeito no ambiente, nos corpos, com o efeito do que
ela trazia, apresentava como conteúdo… Fazia emergir das próprias
pessoas.
A
ninfa gostava de dar a última palavra. Se a última palavra fosse uma
afirmação, Eco encerrava a conversa. Se a última palavra fosse uma
questão, havia continuidade.
Qual ‘a diferença entre’ a repetição e a distração? ‘a diferença entre’… Fico na ‘diferença entre’.
Não tenho resposta. Dou passagem
“Dar
passagem”… é uma expressão usada em alguns terreiros para a se referir a
incorporação da entidade pelo médium. “Sua pombagira está pedindo
passagem, você quer dar passagem? Precisa de ajuda?” … Me parece mais
fácil senti-la quando estou só. Tamanha a tensão que fico quando alguém
me diz algo assim… A observação dos sinais no corpo. Sinto, permito com a
mente, mas o corpo resiste. … é numa espécie de rápida distração que
algo acontece.
[ ]
Talvez
repetição seja uma ‘distração de si’ acoplada ao mundo, ao tempo do
mundo… que não tem muito espaço nos “entres”. Uma repetição que quanto
mais rápida… menos espaço há para sentir ou para notar o que se sente.
No ritmo do mundo, no propósito da produção, não é possível pensar pela
distração, observar o que evidencia o corpo distraído. Aqui ela aparece
como dissociada da vida, mas quando ‘a vida’ é trabalho-produção.
Sem espaço não tem Eco. E se o eco lembrara repetição, digo que já não me parece o caso.
No
trânsito da voz trocamos sentidos. A voz como som se propaga pelo
espaço, no tempo. Como a borboleta, constrói o sentido de seus
movimentos difusos nas relações que estabelece entre as flores que
visita. Da sua vida entrelaçada com a continuidade de outras. A natureza
como um todo tem mecanismos que impedem ou dificultam uma polinização
que não efetue troca de material genético. A vida sabe que precisa da
diversidade para continuar para além dos indivíduos, de sua
transitoriedade. A diversidade é resiliente. A vida resiliente é
diversa. Nesse caso, a diversidade fala sobre uma distribuição de
características dentre os indivíduos, ‘soles’, que podem se manifestar
como potências ou vulnerabilidades a depender da ameaça emergente. A
variabilidade vai em direção a uma melhor resposta do todo. Que todo? O
corpo? A casa? A cidade? Biomas? Ecossistemas?
Lembrei
que no começo do texto só queria entender melhor a etimologia de Eco.
Talvez encontrar algum sentido que teria passado despercebido.
Parece que enfim cheguei a ecologia.
[ ]
Se
você conhece o mito de Eco, talvez se lembre também do encontro entre
Eco e Narciso. Ele teria rejeitado a ninfa. Inclusive encontrei uma
versão que a era o contrário, a Ninfa teria rejeitado Narciso. Bem, na
desilusão ante a não-correspondência ela o amaldiçoa a nunca possuir o
objeto de seu amor. O que tem algo a ver com a fixação de Narciso na
própria imagem. A fala e a imagem. Fala como projeção de si.
Eu gosto da distração? Precisei repetir isso em voz alta para perceber que estava ali.
… Não tem eco … tem eco.
O que a distração me permite acessar sobre a vida que me atravessa…
O que a distração me permite acessar?
Essa
semana, ressurgiu o pensamento sobre a relação entre rejeição e fixação
em mim mesma… sobre como me projeto através da fala nos grupos, nas
ações… na capacidade de escuta… Tem coisas com as quais concordo
racionalmente, mas não desejo ecoar. Tem coisas que desejo ecoar. Mas
não consigo… Tem coisas que ecoo sem perceber. Traduzo…
Há
fatos que nos escapam tamanha é nossa capacidade de absorção em relação
ao processamento das experiências, das interações. Continuo sendo
afetada por coisas que vivi há muitos anos atrás, ou ontem… E essa
continuidade me distrai. Como se tudo ainda estivesse acontecendo em
outras dimensões. Essa continuidade me distrai. As vezes a distração sou
apenas eu resgatando o que perdi enquanto estava focada e não
necessariamente atenta. As vezes é ressentimento… sentir, ressentir,
buscar alguma diferença entre ecos de algo que já senti mas não lembro
ao certo o que é… que me ‘marcou’.
Em
algumas situações percebo em mim uma espécie de tristeza em figuras de
destaque que tentam, cedo demais, amarrar os sentido do que ainda
estamos vivendo.
Não
sei como pensar num futuro sincero à vida, sem levar em consideração o
efeito das imagens que acessamos dos animais que ganharam as ruas e
outros espaços antes habitados quase exclusivamente por humanos. Que
espaço é esse? Que brecha é essa que uma pandemia, associada ao nosso
desejo de continuar/medo de sumir possibilitou? O que o silêncio das
cidades permitiu emergir?
…
Quando vi os golfinhos nos canais de Veneza e as manchas de sardinhas
na costa em Recife-Pernambuco, nas ruas em tantos lugares, Gambás,
Cangurus, Veados … Um para e olha seu reflexo no vidro de uma loja em
algum país no norte global. Capivaras… Macacos… pequenos macacos
descansando em um imenso corrimão em Iguaçu. Eles não sabem que aquilo
não é um galho, nem que a piscina do condomínio no Rio de Janeiro não é
um lago.
Não
existe uma palavra para descrever o que senti vendo cada uma dessas
imagens… coisas boas e ruins se juntaram… vontade de rir, de chorar, de
querer sumir… de querer ficar e ver.
Algumas respostas vem cedo demais. Outras demoram um bocado…
[ ]
Só
poder falar repetindo o que os outros dissessem foi um castigo de Hera à
ninfa Eco, por um uso inadequado de sua fala. Mas Hera não imaginava
que Eco contava com o ar. Ela não repete como uma máquina. Nos distrai
com nossa própria voz deslocada, pelo espaço-tempo… Tomada por outros
corpos. Tempo suficiente para nos desencontrarmos do que é “Eu” em cada
fala e nos reencontrarmos com o que é Eu nas falas dos outros… E pensar
no fluxo de Eco como um caminho entre mundos (dentro e fora) a ser
percorrido. No limiar de algo. Nossa fuga em função do encontro. A
distração como aquilo que abre a possibilidade de habitar a vida, viver,
a partir do que o mundo registrara como vulnerabilidade, como falta ou
problema.
Logo,
retorna, como eco, a imagem da borboleta, que tem sua vida associada a
falta de continuidade humana (‘borboletando’) porque não cumpre os
pré-requisitos estéticos que construímos na história recente do planeta
sobre o que é trabalho. Não podemos controlar o fluxo produtivo da
borboleta. Dizer qual a próxima flor. E quais serão as trocas
realizadas.
Nós queremos durar sob uma forma, enquanto a borboleta tem uma vida individual muito curta.
Há muito tempo que não consigo imaginar futuro. Agora ‘não consigo’ com muitas outras pessoas.
Talvez a fala performática de Eco tenha muito a dizer. Talvez não queremos ver o que acontece nos espaços entre o que se ‘repete’. O que encontramos no que parece fuga. O pedido de escuta daquilo que está no que não é dito dentro da linearidade da linguagem estruturada. Às vezes a vida exige o risco da distração.
Echo, de Richard Serra (2019 no IMS São Paulo)
Seguimos
com Gaia, que tendo assimilado as partes de Eco espalhadas pela Terra
(condenada e estripada por rejeitar Pã), passou a operar o efeito sonoro
da ninfa. Se a distração depende da posição do meu olhar, pergunto: De
que distração Gaia nos retorna a partir de seu eco, dessa brecha aberta
para nos reencontrarmos com nós mesmos, e com o efeito de nossas
neuroses,… nossos medos cristalizados no mundo? Ou que distração nos
possibilita para podermos retornar à vida?
Precisei
ler sobre o mito de Eco e viver atentamente minhas distrações no
isolamento provocado pela pandemia de Covid-19, para compreender de
algum modo a obra de Richard Serra que encontrei no Instituo Moreira
Salles. Meses e acontecimentos se passaram entre um momento e outro.
Sabemos
que a experiência do tempo é multidimensional. São muitas as
dobras e escalas e nem caberia aqui tentar explorar todas. Mas há
que dizer pelo menos que o tempo é uma construção “social”, ou
coletiva, envolvendo ritmos mais ou menos independentes de nós e que
se impõem a nós: a hora em que professor e alunos entram em sala de
aula; a hora em que, na Zona de Contágio, nos encontramos para
cons_pirar (5a feira,
19 horas, a cada duas semanas). De outro lado, há também ritmos
subjetivamente construídos, conforme um espaço de escolha – a
“autogestão do sentido”, segundo a sugestiva expressão de
Savater. De um lado, tempo imposto, ritmos obrigatórios. De outro,
tempo escolhido. O tempo nos coordena, mas ele também nos obriga.
Essa coordenação não é neutra – ela é atravessada por relações
de poder.
Qual
o grau de obrigação e qual o espaço de escolha? Não há resposta
única para isso. Tudo depende dos contextos específicos e das
condições individuais. Sempre me pareceu que a universidade ainda é
um espaço relativamente privilegiado do ponto de vista do grau de
liberdade que ela deixa a cada um. Relativamente, porque as condições
de trabalho pioram a cada dia. Em apenas um ano letivo, no meu
departamento da Universidade de Toulouse, três
professoras-pesquisadoras entraram em licença médica durante vários
meses por burn out. Eram jovens mães, com filhos pequenos, em começo
de carreira, que não aguentaram o ritmo. Para elas, o espaço de
escolha foi praticamente zerado.
No
mundo capitalista, há dois vetores principais na construção
coletiva do tempo imposto: o Estado e o “mercado”. Consta que
Jules Ferry, pai da ensino público francês, gostava de olhar o
relógio e dizer: neste exato momento, todas as crianças da
República estão entrando na escola. Essa unidade temporal
manifesta, nos quatro cantos do país, era expressão direta do poder
do Estado em construir, através da escola, uma sociedade nacional.
Os
mecanismos de imposição do tempo a que recorre o “mercado” têm
variado consideravelmente. Em L’Établi
(1978), livro que teve à época uma recepção fulgurante, Robert
Linhart mostrou de que forma os operários resistiam, nas linhas de
montagem, aos ritmos de trabalho impostos pelas usinas fordistas. Com
o declínio do assalariamento e sua substituição crescente pelo
empreendedorismo como modo de construção da dependência econômica,
os mecanismos de imposição do tempo passaram a ser outros – os da
uberização do trabalho e as múltiplas formas de terceirização,
como mostrou Ken Loach em “Você não estava aqui”. Outros, mas
não menos brutais. O tempo escolhido do personagem de Ken Loach,
como o das jovens professoras-pesquisadoras do meu departamento, foi
praticamente zerado.
Apesar
disso, a dialética entre tempo imposto e tempo escolhido permanece
como um dos espaços através dos quais uma reflexão sobre o tempo
se torna possível.
****
Hoje,
no entanto, o grande arquiteto do tempo, o senhor dos relógios, já
não é mais o Estado, e tampouco o capital, mas um vírus altamente
contagioso e particularmente letal, que pôs em cheque os sistemas de
saúde mundo afora. O virus criou a experiência do confinamento,
impôs seu ritmo e suas exigências aos Estados e quebrou a economia
capitalista em um grau jamais visto. Os mercados financeiros
continuam a especular e há gente ganhando muito dinheiro com a
especulação, como mostra o movimento das bolsas. Mas nada e ninguém
é capaz de esconder as impressionantes imagens das filas de aviões
estacionados em grandes aeroportos internacionais como Orly ou
Barajas, o mergulho espetacular dos preços do petróleo ou os trinta
milhões de desempregados nos Estados Unidos.
O
virus introduziu também uma incerteza duradoura em relação ao
presente e ao futuro. Fazendo pairar sobre cada um de nós a sombra
da morte, ele redefiniu nossas urgências subjetivas. Não se trata
apenas, desta vez, de uma simples suspensão do tempo. Trata-se de
uma incerteza radical em relação às nossas condições de
existência e ao que será daqui para frente o normal das nossas
vidas. Pelo menos até que uma vacina esteja disponível – isto é,
daqui a um ano, um ano e meio, segundo as melhores previsões. Penso
que isso nos empurrará – talvez – para comportamentos mais
frugais. Somos mais facilmente levados a reconhecer a inutilidade de
uma parte do que consumimos – a partir da simples consciência de
que aquilo que deixamos de consumir, sem grande dificuldade, em
verdade não nos faz falta; e a partir daquilo que o próprio poder
público define como atividades “essenciais”, jogando todo o
resto para o registro do “não essencial”.
O
confinamento tem favorecido uma volta à cozinha. Na França, falta
farinha de trigo nos mercados porque as pessoas puseram-se a fazer
pão. E o governo se inquieta com a sorte das 50.000 padarias
artesanais desertadas pelos franceses em todo o país. Em São
Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro, já não se encontram galinhas
vivas para comprar porque os moradores do município (terceiro em
população, no Estado) resolveram produzir seus próprios ovos.
Maior frugalidade do consumo, produção doméstica de alimentos,
interesse crescente pela permacultura – tudo isso aponta para uma
redefinição de necessidades e uma reconfiguração dos
comportamentos.
Empurradas
pelos efeitos duradouros da pandemia, pelo prolongamento do
teletrabalho “sempre que possível”, inclusive em situações em
que os governos falam de desconfinamento, essa redefinição de
necessidades e essa reconfiguração dos comportamentos têm muita
chance de se estabilizar. Tanto mais que a crise econômica será
profunda e feroz. A ruptura com a “austeridade” (aquela imposta
aos pobres), mola-mestra das políticas neoliberais e de seus
impasses – que precederam a pandemia – foi imposta pelo virus
como condição minimamente necessária para a gestão da crise ; e
prosseguirá obrigatoriamente no momento da reconstrução e da busca
das saídas de crise. Que governo poderá esquecer, em nome de um
liberalismo agressivo, a importância dos sistemas públicos de
saúde? Que coerência e que sentido poderá ter, para os fiéis das
igrejas evangélicas, a ideia de prosperidade individual quando o
virus nos impõe a solidariedade coletiva?
Em
Como a Democracia Chega ao Fim (2018), David Runciman cita o
especialista em história antiga Walter Scheidel (2017) que afirma
que, na história humana, nenhuma sociedade conseguiu corrigir a
desigualdade crescente sem a intervenção da violência em grande
escala. “Ela não precisa assumir a forma de uma guerra, diz
Runciman. Uma revolução violenta, uma calamidade natural, uma
epidemia ou uma peste podem bastar. Não precisam dar origem às
formas de solidariedade social que surgem no caso das guerras de
sobrevivência das nações. Basta que a experiência coletiva da
violência seja suficientemente difundida para que todos sofram em
relativa igualdade de condições. Uma calamidade que aniquile as
propriedades e as vidas dos ricos no mesmo grau que afeta as dos mais
pobres pode contribuir para o advento de uma sociedade mais
igualitária. E também instalar um verdadeiro inferno na terra”…
O
futuro está em disputa. O virus não destruiu o capitalismo, mas
embaralhou as cartas. Ele está nos dando uma chance de ampliarmos
nossa compreensão e nossa definição do planeta que queremos.
Nos primeiros meses de 2020, o Brasil e o mundo foram acometidos
pela pandemia do novo coronavírus. A intrusão viral fez surgir impulsos
múltiplos: negação da ciência, criação de falsos dualismos entre
manutenção da vida e economia, vigilância corporativa e entre pares,
cuidado coletivo, discussão sobre papel do estado, solidariedade,
desejos de explicação e temor foram apenas alguns dos sentimentos,
discursos e práticas que emergiram, e seguem vivos, nesse período.
Habitar o acontecimento covid-19 foi a vontade que motivou a convocação da Zona do Contágio,
um laboratório situado, de prática coletiva de uma ciência do risco,
espaço de convergência de saberes e atores sociais diversos, que deseja
mobilizar uma inteligência coletiva alternativa à vigilância e ao
controle.
“Com o acontecimento COVID-19, o Laboratório Zona de Contágio
instaura-se como um dispositivo de pesquisa e intervenção na medida em
que a produção coletiva de conhecimento sobre as atuais possibilidades
de fabricação de uma vida não-fascista torna-se urgente. Se o
fortalecimento de governos autoritários já era uma ameaça à vida comum, a
intrusão viral potencializa a disseminação de uma cultura imunitária e
securitária de contornos fascistas no tecido da própria vida social”,
descreve a convocatória.
Coordenado por Henrique Parra (Unifesp) e Alana Moraes (doutoranda no Museu Nacional – UFRJ), pesquisadores do Pimentalab – Laboratório de Tecnologia, Política e Conhecimento – da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membros da Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits),
o Laboratório Zona de Contágio é uma iniciativa de confluências, um
híbrido do coletivo Tramadora, Projeto Laboratório do Comum do
Pimentalab/Unifesp e Lavits. O Laboratório recebe o apoio da
Lavits/Fundação Ford. A equipe da Zona de Contágio conta com a
colaboração da antropóloga Bru Pereira e da cientista social Jéssica
Paifer.
Através da internet, os pesquisadores convidaram a todos que se
sentissem interpelados pelas questões apresentadas a participar de um
percurso coletivo de investigação e de criação, formas de expressão
sobre o experienciado, fragmentos coletados do mundo, situações vividas,
sentidas, relatos, hesitações que ajudassem a estabelecer conversações
sobre a pandemia. Além disso, o laboratório promove um ciclo de leituras
e “Conversações Febris” online. O primeiro encontro, realizado no dia
23 de abril de 2020, discutiu o livro No tempo das catástrofes, da filósofa da ciência Isabelle Stengers.
Fernanda Bruno, pesquisadora do MediaLab.UFRJ
e membra da Lavits, entrevistou Henrique Parra e Alana Moraes sobre a
iniciativa. O diálogo está transcrito a seguir e integra o quarto
episódio da série Lavits_covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância.
Diálogos com Alana Moraes, Henrique Parra e Fernanda Bruno
Fernanda Bruno: meu primeiro convite é que vocês apresentem brevemente a trajetória do Laboratório do Comum ao Zona do Contágio, e a partir daí começamos a conversa.
Henrique Parra: ano passado estávamos desenvolvendo o projeto Laboratório do Comum: tecnopolíticas, corpos e territórios,
focado em um conjunto de questões relacionadas às disputas no
território do Campos Elíseos, região central na cidade de São Paulo.
Estávamos observando um conjunto de reconfigurações nas formas de
exercício do poder – seja através das tecnologias digitais, mas também
em processos relacionados à gentrificação, à militarização, à
securitização da vida, atravessadas pelas formas de vida neoliberais – e
como isso está em tensão com as dinâmicas de vida existentes no
território.
A investigação também se debruça sobre o próprio desenho do
Laboratório. Como fazer uma pesquisa situada, coletiva e aberta, a
partir de um convite, uma convocatória aberta para pessoas interpeladas
por problemas comuns?
Desenvolvemos esse projeto ao longo de seis meses e, no início de
2020, ele teria uma nova fase, quando fomos atravessados pelo covid-19, o
que nos obrigou a repensar o cronograma de ações, mas ao mesmo tempo a
observar as questões que já se manifestavam no percurso anterior do
trabalho e que, em razão do coronavírus, ganham contornos mais intensos.
Como fazer pesquisa em tempos de pandemia?
Alana Moraes: o Laboratório do Comum e agora a Zona de
Contágio confluem nessa aposta epistêmica de convocar e insistir em uma
certa inteligência coletiva. É sempre um experimento de uma prática
científica que se pretende ao mesmo tempo aberta e coletiva. Então ela é
sempre precária por um lado, porque do ponto de vista institucional, de
algumas exigências acadêmicas, nós nos colocamos de uma maneira um
pouco mais livre. Ao mesmo tempo, essa instabilidade precisa ser o tempo
todo repensada, cuidada, sustentada de algum modo, ela só funciona a
partir de um engajamento entre todos.
Uma outra convergência importante e que a gente quer seguir
experimentando é essa ideia de uma transdisciplinaridade. Nossas
práticas acadêmicas foram se conformando em lugares muito especializados
e muito disciplinarizados. Então, a partir de uma chamada aberta, que
tem a ver com o território, com a vida no território, havia essa ideia
de que nós pudéssemos experimentar uma ciência que fosse mesmo
contradisciplinar, no sentido de que as questões que ela enuncia não são
propriamente da sociologia, ou da antropologia, ou da arquitetura e do
urbanismo, mas que seja uma esquina contradisciplinar.
Fernanda Bruno: a minha primeira questão tem a ver com essa
condição, com esse convite que vocês fazem, que é o de habitar o limite,
habitar uma certa zona de incerteza. Eu acho que no Lab do Comum já
tinha esse movimento, que se fazia, como destacou a Alana, a partir de
uma contradisciplinaridade, mas que também implicava um deslocamento
territorial, com a ocupação de espaços da cidade em que tradicionalmente
a universidade não estaria presente, ou não estaria presente de um
certo modo, que é o modo com que vocês seguem desejando habitar.
Então, me parece que já havia o desejo de habitar essa fronteira
entre a universidade, a rua, a cidade e o mundo, e agora essa fronteira
se desloca, se encerra um pouco nesse ambiente da casa, que é essa
célula individual, familiar e burguesa, onde a maioria dos
pesquisadores que estão na universidade agora habita quase que
integralmente. Vocês reinventam um movimento para retomar a própria vida
acadêmica, em um certo sentido, e também, de novo, a rua, a cidade, o
mundo. A contradisciplinaridade envolve também uma explosão de
fronteiras, que já estava presente no Lab do Comum, entre o próprio
saber acadêmico e os saberes que estão sendo produzidos pelas diversas
formas de habitar e viver a cidade.
A pergunta, enfim, é se vocês já têm algum germe de entendimento –
não de respostas, de explicações – do que é esse novo desenho do
laboratório que habita o limite de um outro modo. Uma coisa que acho
interessante é essa ideia de um laboratório que vai se fazendo, que é ao
mesmo tempo o ambiente onde se faz a pesquisa, se produz o pensamento,
mas ele também é objeto, no sentido de que vocês também estão tentando
entender ou desenhar o laboratório no próprio movimento de fazer a
pesquisa. Acho que isso mais do que nunca está presente.
Alana Moraes: eu queria voltar para uma questão que você
colocou no começo, Fernanda, que eu acho que também serve muito para a
gente pensar esse lugar de implosão das fronteiras, ou pelo menos para
gente experimentar um pouco mais essa suspensão das fronteiras
disciplinares, ainda que seja uma prática de pesquisa super difícil, que
nos exija o tempo todo um certo sentido de risco, de assumir esse risco
da suspensão de algumas bordas.
Mas esse risco do instável e do precário vem nos empurrando, desde o
Laboratório do Comum, a encontrar questões muito simples. As questões
com as quais a gente se depara, a partir desse encontro entre múltiplos e
heterogêneos saberes e corpos, são simples no sentido de que conseguem
enunciar problemas muito complexos, mas de um lugar reconhecível por
qual todos nós passamos.
Por exemplo, no Laboratório do Comum, a gente estava muito
interessado, inicialmente, em pesquisar esse tema das novas tecnologias
de vigilância, que hoje são muito presentes no território. Mas a gente
acabou se dando conta de que existia uma camada para além de todo o
arranjo técnico dos poderes que era o fato de as pessoas, nossos
vizinhos, desejarem ter uma câmera de vigilância nas suas casas. O fato é
que existe um certo desejo compartilhado de segurança, que é muito
simples, que é muito reconhecível para além de todo novo ordenamento
sociotécnico, pode ser constatado por qualquer um e no entanto ele nos
exige um esforço brutal de pesquisa e reflexão.
Ele faz a gente se perguntar o que significa vizinhança, o que
significa fazer um bairro, a partir de outros sentidos de pertencimento
que não seja esse da segurança. Esse problema, no fundo, a gente demorou
muito tempo pra chegar nele, mas ele é muito simples, né? Ele pode ser
compartilhado por qualquer pessoa que a gente encontrava em uma praça
quando estávamos fazendo um almoço aberto e coletivo. Encontrar essas
questões, que no fundo são questões simples, nos dizem sobre esse
encadeamento que está entre a casa, a rua, as relações de confiança, as
novas tecnologias e as novas mediações sociotécnicas.
Um desafio para a Zona de Contágio tem a ver com essa investigação
sobre como criar um desenho de uma pesquisa contradisciplinar; um
desenho que permita com que diversos saberes, experiências se contaminem
no processo de pesquisa coletiva, mas também tem muito a ver com essa
ideia persistente de encontrar esses lugares que são muito simples, mas
que também são os lugares em que se cruzam a casa, como uma tecnologia
da domesticidade, e essas novas mediações tecnológicas, o corpo, o que
entendemos como saúde coletiva. Esse lugar do cruzamento, da
encruzilhada, é um lugar importante nesse desenho agora do Laboratório
Zona de Contágio.
Henrique Parra: a situação que estamos vivendo evidencia um
conjunto de elementos relacionados ao funcionamento das infraestruturas
da vida ordinária, da vida cotidiana, que estão absolutamente
invisibilizadas, naturalizadas na paisagem.
Um elemento importante no desenho do laboratório é como criamos
estratégias de visibilização das infraestruturas da vida comum e que,
por diversas razões, tornam-se invisíveis à nossa percepção. Quando
experienciamos o acontecimento covid-19, surge de forma mais aguda uma
percepção sobre diversos mecanismos que participam da produção de
diversas assimetrias sobre, por exemplo, os nossos deslocamentos, as
infraestruturas de comunicação (qual a qualidade do meu acesso à
internet), como ficam as relações dentro da sua casa, a divisão do
trabalho, como a gente se alimenta, como trabalhamos, como cuidamos das
crianças, e tudo muito mediado pelas tecnologias digitais.
Se por um lado o acontecimento covid-19 permite uma intensificação,
um avanço dos mecanismos de produção de várias assimetrias de classe,
gênero, raça e de novas formas de controle, ao mesmo tempo a gente
consegue perceber esses elementos que estão inscritos na paisagem.
Outra dimensão importante do desenho do laboratório é tomar o ser
humano como sensor, um sensor de percepção que é sempre singular diante
do está sendo vivido. Partimos da ideia de um corpo-sensor. O corpo que
percebe, que sente e que produz a possibilidade de uma nova evidência,
um novo elemento que pode abrir ou instalar uma controvérsia sobre a
realidade.
Algo que nos atravessa a todos é a nova sensação e percepção de risco
e vulnerabilidade. A vulnerabilidade não como elemento negativo, da
falta ou da exclusão, mas como esse elemento que produz nossa
interdependência, e ao mesmo tempo que instala a possibilidade de ação
política a partir dessa vulnerabilidade, porque ela é reveladora da
nossa condição de interdependência na produção do comum.
Uma contraste teórico/político importante no desenho desse
laboratório é investigar como o acontecimento covid-19 instala uma
disputa em torno dos sentidos dessa experiência: por um lado temos as
enunciações, práticas e tecnologias que produzem um tipo de sujeito que
se imagina autônomo, autossuficiente, eficiente no trabalho, que só tem
uma “gripezinha”, versus outras possibilidades que sustentam uma
política do Comum, nossa condição de seres interdependentes (inclusive
com entes não-humanos) e de um risco comum.
Claro que as situações de risco são diferentes para cada um
(sobretudo numa sociedade altamente desigual em termos raciais, de
classe e gênero), mas a possibilidade de experienciar essa
vulnerabilidade como uma condição política permite interrogar a ideia do
indivíduo soberano, de cidadão que estão imunizado das relações com seu
entorno, em que o outro é visto como uma ameaça.
Fernanda Bruno: me parece que esse corpo-sensor passa a ser um
indicador ainda mais essencial. A conexão entre as formas de vida e as
possibilidades de pensar ganha uma nova urgência. Me parece que há
também uma outra vulnerabilidade: a pandemia muito rapidamente disparou
uma eloquência explicativa que, de alguma maneira, silenciava ou
resolvia muito rápido essa experiência de poder habitar essa zona de
incerteza por um tempo mais alargado, de uma forma um pouco distinta,
que vocês chamaram na convocatória de dimensão experiencial, que me
parece estar super conectada com esse corpo-sensor.
Agora eu gostaria de fazer uma outra associação, ainda sobre a
questão do risco e a dimensão da vulnerabilidade. Eu super me afino com a
ideia de pensar o risco não na chave ou contorno da atitude individual,
de uma prudência individual, tampouco de uma lógica securitária mais
ampla e coletiva, que pensa na segurança no sentido de uma eliminação do
risco e do perigo. Vocês estão trabalhando com a ideia da
vulnerabilidade como interdependência que supõe, também, suportar uma
certa margem de perigo, uma certa margem de risco.
Em vários momentos vocês falam em uma ciência do risco. Eu vou ler um
trechinho aqui sobre o qual me paira uma certa dúvida. Vocês dizem:
“uma ciência de risco é sempre uma ciência que hesita, uma ciência de
retomada de uma inteligência coletiva, que funciona apesar e contra os
chamamentos da pátria ou da grande ciência e seus regimes de autoridade e
de verdade”.
A provocação que eu queria fazer tem a ver com a “grande ciência” e
com esse momento singular que estamos vivendo. Se por um lado há essa
proposta de uma ciência do risco, nós (professores universitários)
estamos fazendo isso desde as nossas casas. Não estou sugerindo que não
deveríamos estar em casa, mas há um risco bem concreto que está sendo
vivido por muitas pessoas e também por parte da “grande ciência”, por
profissionais de saúde e pesquisadores que estão na linha de frente. Eu
fico me perguntando se essa oposição, nesse momento, não rateia um pouco
ou se ela não merece ser pensada com um pouco mais de cuidado.
Henrique Parra: você tem razão, não só com relação à “grande
ciência”, mas também com relação ao Estado. A provocação que a gente faz
não é contra a ciência. Não há “a grande ciência”, mas disputas em
torno dos modos de produção de verdades, em que, aparentemente, o que
está em jogo seria qual a evidência ou o dado “mais verdadeiro”. É um
debate que também se relaciona às discussões sobre fake news e pós-verdade.
A situação é que, diante de um mundo que parece desmoronar, onde as
versões não podem mais ser verificadas, há um movimento de tentar
restabelecer uma forma de produção de evidências, inclusive com a volta
de um argumento digamos, científico, como se as coisas passassem apenas
por uma questão de produção de informações ou evidências de melhor
qualidade, quando o que está em jogo, parece-nos, é uma guerra de
mundos.
Não é suficiente a gente falar em termos de dados e evidências. É
claro que elas são fundamentais para as tomadas de decisão, para
organizar a nossa ação no mundo, mas há uma preocupação em deslocar o
debate para além do falso e do verdadeiro, sair dessa dicotomia, e dizer
“olha, o que seriam as formas de produção de cuidado para a manutenção
da vida, para além do que está disponível como forma-Estado? (no sentido
de uma biopolítica maior)”.
Nós estamos em uma situação de absoluta urgência, de perceber o que
temos disponível como formas de resposta a um problema de saúde
coletiva. Precisamos muito de toda a estrutura e de políticas
fortalecimento da saúde pública. Não é suficiente entrar em uma
investigação que está simplesmente preocupada em produzir mais evidência
da mesma forma, mas pensar também que a forma de produção dessa
informação está, de alguma maneira, situada e implicada na produção de
mundos, de formas de vida. Do contrário, não somos capazes de comunicar
outra experiência de vida, de dizer ao outro como ele participa da
produção da saúde coletiva.
Quando pensamos no debate sobre a produção de conhecimento
científico, quais são as formas de produção de conhecimento científico,
diante dessa situação, que interrogam as formas hegemônicas de
conhecimento tecnocientífico orientados por normatividades econômicas e
políticas de caráter privatista, corporativo e mercadológico?
Observamos, nesse momento, o fortalecimento de formas de produção
colaborativa/aberta que confrontam inúmeras limitações relacionadas ao
regime proprietário-autoral, organizado em torno de uma concepção do
conhecimento como propriedade intelectual e mercadoria.
Alana Moraes: essa convocatória parte, de fato, de um lugar
bem irrigado de controvérsia. Por mais ataque e ameaças que a prática
científica esteja recebendo agora, e por mais que tenhamos que defender
essas práticas, não queremos abrir mão de olhar criticamente para alguns
enunciados de uma ciência que sempre se sustentou a partir de um
privilégio epistemológico, a partir dessa ideia de que o enunciado de
autoridade do fazer científico bastava para que os fatos científicos se
convertessem em verdade.
A gente está colocando um pouco em suspensão esse pressuposto para
tentar experimentar uma ideia aberta e engajada de fazer ciência. Então
não queremos abrir mão de fazer ciência, de pensar junto, de pensar uma
prática investigativa que produza conhecimento objetivo sobre a
realidade. Não tem a ver com uma luta da experiência contra a teoria.
Muito pelo contrário, a gente acha que esses dois lugares não são
opostos e não devem ser opostos. Queremos experimentar o que seria essa
prática científica que se sustente a partir das relações de implicação
que ela tem com o mundo, uma ciência que está no mundo.
Eu tenho dado um exemplo que tem a ver com o embate sobre isolamento
horizontal ou vertical. Muito do pensamento progressista tem respondido a
esse embate afirmando que o isolamento horizontal deve ser feito porque
ele é um fato científico e o isolamento vertical não é um fato
científico. No entanto, quando a gente defende o isolamento horizontal,
nós estamos defendendo porque ele pressupõe uma certa concepção de vida a
ser defendida, porque nos importa viver em companhia no mundo em que a
gente habita, porque ele contém uma ideia sobre o que é saúde coletiva.
Obviamente que ele é um fato científico, mas ele é um fato científico
que mais pode ter efetividade a partir do momento em que ele se mostra
em sua construção ética, a partir dos seus lugares de implicação.
Fernanda Bruno: quando vocês estavam falando, eu lembrei
daquele texto da Donna Haraway, que é uma inspiração para todos nós, dos
saberes localizados. Agora está muito ativa essa ideia de um saber que
pode responder pelo mundo que cria. É um pouco nesse sentido, me parece,
que você está falando, Alana. Para além da verdade científica, que
mundo a gente cria quando a gente propõe um determinado modelo de
controle epidemiológico?
Eu queria voltar um pouco no tema da vigilância e do controle, que
também aparece na chamada de vocês e está presente desde o Laboratório
do Comum. Estamos vendo como uma série de tecnologias de biovigilância
começam a entrar em obra. A minha pergunta é menos sobre elas e mais
sobre ao que você estão atentos nesse campo. Quais são as perguntas que
estão se fazendo? No que vocês estão prestando atenção nesse espectro
das tecnologias de vigilância, dentro do acontecimento covid-19?.
Henrique Parra: há alguns temas em que estou mais envolvido.
Um deles é sobre as práticas de educação tecnicamente mediada. Há uma
aceleração na adoção, por parte de secretarias estaduais da educação e
universidades (públicas e privadas), e na incorporação de tecnologias
digitais para a educação à distância. Elas são permeadas por inúmeros
problemas que estão relacionados à vigilância, à economia informacional,
a precarização do trabalho docente, etc. Como essas questões estão
presentes na Zona de Contágio, a partir da experiência de cada pessoa
com o conhecimento, a informação e a educação nessa situação de
isolamento?
Outro tema é sobre a relação das tecnologias de comunicação digital
com as formas de rastreabilidade, monitoramento, quantificação e o que
emerge como possibilidade de Big Data e governamentalidade
algorítmica. Há um enorme campo de perguntas que ganham novos contornos
porque, de certa medida, há um desejo, amparado na urgência sanitária,
de fazer uso de tudo que estiver disponível. Outra entrada é no universo
do trabalho: como as tecnologias do trabalho remoto introduzem novas
possibilidades de vigilância e controle sobre as atividades do
trabalhador?
Alana Moraes: retornando aos problemas das plataformas e das
mediações tecnológicas no que tem se chamado de “educação à distância”, o
que elas inserem de mais importante são novos sistemas de metrificação e
controle. Agora, para dar aula, você liga um cronômetro, muitas vezes
você grava a sua aula para deixar para os alunos que não puderem entrar online
no momento em que você está dando a aula. Você perde uma relação muito
importante no que diz respeito ao ensino e aprendizagem, que é relação
de confiança entre professor e aluno dentro daquele espaço da sala de
aula. As plataformas de EaD estão sendo inseridas como se não houvesse
outras formas possíveis, “temos que nos acostumar, daqui pra frente vai
ser assim”. A partir do momento em que você grava sua aula e ela circula
por lugares que você não sabe muito bem, esse pacto, essa confiança,
que tem a ver com essa experiência da sala de aula, ela se perde também.
Vemos ainda como o capitalismo da biovigilância é também o do
biodesempenho e como ele atua produzindo uma certa culpa pelo tempo fora
do trabalho. A gente está em casa, mas ao mesmo tempo em que está
culpado por não estar trabalhando do jeito que a gente deveria
trabalhar. Precisamos dar provas cotidianas de que não estamos
“aproveitando” o tempo livre.
Eu acho que tem um último aspecto que merece uma reflexão nossa, que é
pensar como habitar em companhia esse problema, que também é o outro
lado da moeda. Existe uma recusa por parte das pessoas que estão nesse
campo progressista, de modo geral, em debater o problema da tecnologia e
os seus usos. Uma recusa da esquerda de entrar nesse debate, como se
toda tecnologia fosse uma tecnologia predadora, que fosse sempre piorar
as experiências de aprendizagem ou intensificar a subjetivação
neoliberal. Outras vezes a esquerda se interessa por esse debate mas
sempre na chave da “resistência” e contenção, o que é importante, mas
nos deixa sempre muitas casas atrás.
Na verdade, acho que há toda uma questão que é como a gente pensa,
primeiro, as tecnologias para além das tecnologias digitais, como é que a
gente recupera as tecnologias menores (ou tecnologias de desaceleração,
tecnologias de encontro, tecnologias de pertença), pensar como a gente
pode produzir outros tipos de associação mais potentes das nossas
relações, das nossas experiências de aprendizagem e pesquisa, dos nossos
desejos de revolta se associando também às formas tecnológicas. Superar
essa recusa também vai ser importante para a gente construir caminhos
mais interessantes, disputar os rumos, fazer funcionar nossa
inteligência coletiva.
Henrique Parra: para complementar, um outro ponto que talvez
seja mais transversal nas discussões sobre vigilância e que ganha relevo
na experiência da Zona de Contágio, é poder pensar e investigar de que
maneira essa situação propicia um tipo de experiência tecnomediada em
que ocorre a produção de um modo de subjetivação, onde uma certa
experiência cultural de vigilância passa a participar de diferentes
instâncias da nossa vida.
Basta pensarmos no modo, por exemplo, com que passamos a olhar para o
outro como uma possível ameaça de contágio. Quais são os mecanismos que
passo a adotar para me proteger de um possível risco de contágio? Como
dentro da casa, na família, passamos a adotar procedimentos e protocolos
que podem gerar mais segurança?
Há uma certa ideia de segurança, de reações imunitárias que colocam
em movimento uma cultura de vigilância, que pode ser economicamente
vantajosa e politicamente eficiente para uma certa produção de mundo
(neoliberal, racista, machista, antropocêntrico, etc). Quando essas duas
dimensões se entrelaçam através de uma mediação tecnológica que se
apresenta como a solução neutra, mais “eficiente” e mais desejada, esse
dispositivo ganha muita força.
Preocupa a todos nós a maneira como a experiência de autoconfinamento
e do isolamento social nos prepara e educa para uma vida sob estado de
sítio. Acho que essa é uma condição muito transversal. Como, diante
disso, estamos a criar e experimentar outras formas de vida que,
orientadas por princípios de solidariedade e emancipação, criem linhas
de fuga da alimentação deste regime da dominação?
É muito interessante ver nas redes de consumo de alimentos, por
exemplo, como vão aparecendo outras iniciativas que criam novas cadeias
de distribuição para a produção da agricultura familiar, da produção do
MST. Como é possível fazer isso em outras áreas de nossas vidas,
utilizando tecnologias que não potencializam as formas de controle sobre
os usuários?
Fernanda Bruno: vou passar para a última questão, que tem a
ver com o coletivo, com o “nós”, o habitar junto esse acontecimento,
essa situação limite, e que é, de novo, um tema recorrente no trabalho
de vocês dois, e se torna absolutamente urgente em uma situação de
isolamento, ao mesmo tempo em que há grupos que estão extremamente
vulneráveis e onde as possibilidades de ação comum estão bastante
ameaçadas pelo fantasma do contágio e pelas medidas efetivas da
contenção da pandemia.
Hoje fiz uma contribuição no site da Zona de Contágio e vi que já há
um material bastante rico. Tem música, poesia, relato, fotografias, e
uma série de expressões da experiência desse tempo. E a conversa sobre o
livro da Isabelle Stengers, que rolou na semana passada, sobre o livro No Tempo das Catástrofes,
foi extremamente diversa. O fluxo da conversação febril tocou em muitos
temas: educação, China, autonomia, sabão de coco, moradia de albergues,
coletivos artísticos na Bolívia, receitas, acupuntura, tecnologias
sociais, poesia, etc.
Que primeira impressão vocês têm desses dois movimentos: a chamada de
envio de materiais em torno de experiência da pandemia e o grupo de
estudos? Gostaria de ouvir vocês sobre o primeiro contorno que esse
“nós” ou esse coletivo ganhou.
Alana Moraes: a nossa pergunta inicial, que tem sido uma
pergunta que acompanha todo o processo da investigação no Laboratório do
Comum e também agora na Zona de Contágio, é como constituir um grupo de
pesquisa. Como é que a gente faz esse “nós” que está pensando junto e
que está pesquisando junto. Esse é um tema que segue com a gente durante
todo o percurso. Obviamente que ele tem um risco, que pode ser a
própria dissolução do grupo. O risco justamente é esse, de ser tão
heterogêneo, tão particular e tão singular, que se torna incapaz de
construir um lugar mais estabilizado.
Pensando um pouco a partir desse desafio sobre que tipo de desenho de
pesquisa seria possível, a gente propôs um primeiro movimento, que
talvez seja um movimento de abertura total que começa assumindo o fato
de que toda produção de pensamento é também uma produção de experiência a
partir de corpos sensores. Queremos saber de que forma as pessoas estão
sendo afetadas por esse acontecimento e como elas elaboraram formas de
narrar esse acontecimento, seja em um forma mais poética, uma imagem, um
texto, um áudio…a gente está experimentando essa abertura completa.
A gente queria entender de onde as pessoas estavam falando e como
elas queriam falar, ou seja, talvez tentar experimentar esse parlamento
de corpos-sensores, que também é uma abertura radical. A partir de
agora, nos próximos movimentos do laboratório, o que a gente vai tentar é
justamente produzir certos contornos, algumas bordas, vamos dizer
assim, que são zonas de confluência.
Essas zonas de confluência vão tentar desenvolver temas que estão
dentro dessa pesquisa e que tem a ver com a biovigilância, com a ideia
do desempenho, com esse cruzamento entre tecnologias da domesticidade e
as tecnologias digitais em suas inúmeras formas de mediação, e tem a ver
com esse pano de fundo maior que é pensar o que significa isso de
biopolítica e de biopoder na situação como essa que a gente está
atravessando agora.
Henrique Parra: acho há um diálogo entre a experiência do
site, esse grupo de estudos e algumas iniciativas que foram lançadas de
maneira relativamente independente. É legal ver como a Zona de Contágio
vai acontecendo. Acho que a gente tinha algumas ações organizadas,
colocamos elas “na rua”, começamos a praticá-las e começamos a
visualizar como elas estão acontecendo e como elas podem criar linhas e
tramas entre elas.
No próprio site Zona de Contágio, o primeiro movimento que a gente
fez foi passar a publicar coisas que nos interessavam, ler e
compartilhar com outras pessoas, textos que já estavam em circulação,
textos que servem de inspiração e que, de alguma maneira, ajudam a
nortear um pouco a forma como a gente está querendo habitar esse
problema.
A gente tinha também uma vontade, que estava organizada para esse
semestre, que era fazer um ciclo de estudos, que estávamos chamando de
ciclo de estudos insurgentes. Com a Zona de Contágio virou um ciclo de
conversações febris, que a princípio poderia correr paralelo ao processo
de investigação, mas a medida que as coisas acontecem, nós repensamos. A
gente lança um texto para conversar, mas a coisa que acontece a partir
desse texto traz uma outra diversidade de debates, o que faz com que a
gente tenha um inflexão para ver como vai alinhando e tramando essas
coisas. É muito a partir do retorno que a gente recebe, que nós
compreendemos melhor a maneira como a gente está elaborando e e
comunicando um problema de pesquisa. O fato de que a gente tenha
recebido muitas respostas de pessoas que fizeram uma produção poética é
um dado importante.
A proposta de que um Laboratório do Comum deve ser permeada por um
conjunto heterogêneo de perspectivas é outro elemento importante. Claro
que quando a gente divulga algo pela internet, isso já exclui um monte
de gente. Claro que a maneira como escrevemos um texto faz com que
algumas pessoas se sintam mais interpeladas que outras. Ainda assim,
parece importante produzir um problema que possa ser transversal e
experimentar criar um espaço em que pessoas de diferentes perspectivas
possam estar juntas.
A partir daí surge um outro problema que é como a gente constitui um
coletivo de investigação e como que a gente vai criando protocolos,
infraestruturas, acordos, perguntas, que podem dar sustentação a uma
prática coletiva. Há uma preocupação na criação de um laboratório do
Comum, que é como que a gente desenvolve essas tecnologias de
pertencimento em torno de uma mesma prática, uma saber-fazer habitar.
Saber qual é o conjunto de perguntas e implicações que atravessam
essas diferentes histórias e interesses dessas pessoas, mas que podem,
gradualmente, ir ganhando um contorno que também nos interessa
(“interesse” como aquilo que diz respeito a “estar entre”. Então não é
que a gente não tenha perguntas que organizam isso. Temos e, de alguma
forma, elas participam da criação dessa borda.
Uma preocupação nossa, desde o início, em fazer uma chamada de
pesquisa que está acontecendo nessasituação de pandemia, em que as
pessoas estão em isolamento e parte dessa interação vai acontecer a
partir de uma mediação tecnológica, é como a gente evita uma certa
prática de pesquisa tecnicamente mediada, que é de ordem extrativista,
em que a gente elabora a pergunta, define os problemas e quer saber como
as pessoas estão dialogando com essa pergunta que a gente tem.
No fundo, a gente também está atrás da criação de outras perguntas,
outros problemas para olhar para essa situação. Evitar também uma
prática de uma pesquisa que desconhece ou não se relaciona com o
contexto dessa pessoa que está respondendo também nos parece importante.
Por isso que um ponto de partida na arquitetura do laboratório e na
ideia do corpo-sensor, é como criar uma infraestrutura de pertencimento.
Isso se tornar uma parte do problema da pesquisa, pensar como a gente
vai dando sustentação coletiva a uma prática de investigação. A ideia de
um Laboratório do Comum funda uma certa comunidade, não no sentido do
unitário e homogêneo mas no sentido de um coletivo de afetados por
aquelas mesmas questões.
Fernanda Bruno: essa questão do pertencimento me parece
essencial. Hoje, dando uma olhada nas contribuições enviadas ao site, vi
algo comum: me pareceu que quase todo mundo desejou expressar algo que
era da ordem de uma interrupção, um intervalo, uma brecha, algo que
estava fora das respostas imediatas que esse momento nos exige, seja de
trabalho, seja de pensamento articulado ou de segurança.
Me pareceu que estavam todos tentando expressar momentos de respiro,
de interrupção de um certo automatismo cotidiano ou de fuga dessa culpa
de não estar trabalhando, não estar produzindo. Capacidade de criação
mesmo. Tudo que apareceu ali, apareceu um pouco como brecha, respiros,
invenções dentro desse contexto que é muito asfixiante. Essa foi a minha
sensação e também o meu desejo. Não quis enviar nada que fosse, por
exemplo, uma reflexão intelectual que pudesse ser confundida com
trabalho, no sentido mais convencional, mas sim algo que escapasse das
demandas que estão colocadas, as demandas dos nossos aparatos de
trabalho, de saúde, de poder, de vigilância. Enfim, a impressão foi de
um tom recorrente, apesar da heterogeneidade dos materiais.
Henrique Parra: voltando um pouco nesse comentário que você
fez, acho que esse é um desafio dessa proposta de laboratório: como a
gente vai modulando e incorporando novos elementos. Uma coisa que chamou
atenção no perfil das pessoas que entraram em contato conosco é que
quase todas estão desenvolvendo, de alguma forma, ações de pesquisa,
seja de maneira informal ou não, mas elas estão interessadas, estão
praticando uma forma de reflexão sobre o que está sendo vivido.
Também surge para nós a pergunta sobre de que maneira a Zona de
Contágio pode ser tanto uma investigação coletiva, a partir de um
conjunto de questões que a gente constitui como borda desse percurso
mais coletivo de investigação, mas também uma zona de confluência entre
essas diferentes iniciativas de pesquisa (informal ou formal) que as
pessoas estão fazendo.
Estou imaginando como é que a Zona de Contágio pode ser as duas
coisas: ela cria a possibilidade de realizarmos o percurso coletivo de
investigação, a partir de perguntas que estão balizando e da
“arquitetura” da forma laboratório, mas ao mesmo tempo ela pode ser
atravessada pelas novas perguntas e investigações que as pessoas estão
criando e que podem compartilhar, fazendo da Zona de Contágio uma caixa
de reverberação.
Fernanda Bruno: esse atravessamento me pareceu acontecer mais
vigorosamente na conversa em torno do texto da Isabelle Stengers do que
na chamada. Na chamada, talvez tenha que haver uma segunda onda, novos
movimentos para que essa dimensão da pesquisa apareça mais. O que senti,
muito de fora, foi um desejo de fuga de um certo lugar da pesquisa. Não
da pesquisa em si, mas de um certo lugar de pesquisa.
As pessoas estão querendo habitar um outro lugar nesse momento e
alimentar outros fluxos de pensamento, de expressão, de narrativa etc. É
fundamental que esse cruzamento com a pesquisa, para usar a imagem da
encruzilhada que vocês utilizam também, seja feito. Vai ser muito rico
quando isso acontecer e vai acontecer, com certeza.
Alana Moraes: eu queria agradecer pela conversa. Achei muito
importante sua observação final desse primeiro material que a gente
recebeu na Zona de Contágio. Ela conflui muito para uma coisa que nós
estamos pensando juntos, que talvez seja justamente sobe pensar essas
tecnologias de frenagem ou como a gente produz infraestruturas que
possam sustentar coletivamente esses momentos de frenagem, esses
momentos de respiro.
Nos últimos anos eu tenho estudado com os sem-teto as ocupações de
terreno também como tecnopolíticas de habitar a exceção. Uma coisa que
aparece muito, nessa experiência, é como as pessoas chegam nos
acampamentos, nas periferias aqui de São Paulo, a partir desse relato de
cansaço e de esgotamento. As pessoas falam muito que a ocupação é um
lugar de descanso, um descanso da casa, da domesticidade, mas um lugar
de descanso em relação ao trabalho, às virações, à essa ideia de que
você tem que estar sempre trabalhando ou procurando um trabalho. Ela se
torna potente justamente porque ela se constitui como uma tecnologia de
frenagem, de respirar junto e de pensar em companhia.
Série Lavits_Covid19
A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.