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  • por uma política da vida vivível

    por uma política da vida vivível

    bárbara lopes

     

    Comida, filhos, casa. Audiências, comissões, leis, tribuna. São dois mundos interligados, mas com um muro que os separa.

    Quando se fala em política, a associação mais imediata é com o mundo de lá. São os espaços de decisão governamental e econômica, majoritariamente ocupado por homens. Para existir, depende do trabalho invisível de uma multidão de mulheres (e também de homens) que preparam sua comida, limpam suas casas, lavam suas roupas, cuidam de suas famílias. No mundo de cá, essas mulheres precisam inventar estratégias de sobrevivência, para dar conta de si, dos seus e daqueles do mundo de lá. Essas estratégias também são política, mas dificilmente são vistas como tal.

     

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    No território comum das ocupações urbanas de moradia, as mulheres começaram a se reconhecer, a identificar, nomear e compartilhar suas práticas. Fazer uma horta para produzir alimentos para a família e para ajudar na renda; sustentar redes que compartilhem o cuidado com as crianças; apoiar umas às outras na lida com casos de violência doméstica. Mas não só: manter viva a sabedoria das ervas medicinais, da cultura do povo negro, as festas e a memória dos que vieram antes. E, além disso, fazer o enfrentamento necessário para se opor às frequentes ameaças de despejo. São as práticas que tornam a vida vivível, mote elaborado pelo Coletivo Etinerancias/Rede Comadre, que possibilitou o encontro realizado no dia 25 de setembro em Belo Horizonte, reunindo mulheres das ocupações Dandara, Rosa Leão, Vitória, Vicentão, Anita, Tomás Balduino e Guarani-Kaiowá. “ Aqui estão mulheres que constroem diversas cidades, essa é memória do mundo que a gente faz, e nos reconhecermos. É estratégico para a vinculação com a politica que há nessas práticas” comenta Débora Del Guerra, que integra  o coletivo.

     

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    São experiências que vêm de longe, das aldeias e quilombos até as comunidades rurais e periferias urbanas. Mas existe algo novo nessa história: uma fresta no muro que separa essas experiências da política institucional. Junto às mulheres das ocupações, estavam as vereadoras Áurea Carolina e Cida Falabella, que compõem a Gabinetona com Bella Gonçalves. A experiência das Muitas, que levou Áurea a ser a vereadora mais votada da cidade, se repete este ano. Ela é candidata a deputada federal. No encontro, estavam ainda as candidatas estaduais Andréia de Jesus e Kênia Ribeiro.

    As três candidatas trazem um sentido muito profundo à ideia de representação política. Andréia expressou isso: “nós estamos hoje desafiando ocupar espaços institucionais, ocupar espaços de decisão. Onde não vão falar por nós, mas nós vamos estar lá falando juntas”. Áurea vem da educação popular, do hip hop e dos movimentos juvenis de periferia. Andréia trabalhou como doméstica, atuou nas Comunidades Eclesiais de Base e na Pastoral Carcerária e tornou-se advogada. Kênia é uma liderança da Ocupação Vicentão e do movimento de camelôs.

     

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    A chegada dessas mulheres negras à política institucional não significa uma saída do mundo da política do cotidiano, mas a incorporação dessa esfera. Provoca um abalo no funcionamento das institucionalidades. “Graças à nossa força é que temos a possibilidade de ter um país em que podemos viver. Só não está pior porque a mulherada mostra que tem outro jeito de viver, de cuidar das pessoas, das crianças, de nós mesmas, das plantas, dos animais, da terra. A política de lavar vasilha, fazer uma horta, que é tão desvalorizada, vai salvar a gente do mal pior. É tirando a cerca, a competição, os muros que colocam entre nós. A Gabinetona é uma ocupação, porque não queremos uma propriedade”, definiu Áurea. Bella, que também é militante das Brigadas Populares, completa: “A Gabinetona é uma experiência de aprendizado, com indígenas, pessoas trans, camelôs, com a juventude negra. Estamos construindo uma forma diferente de fazer um mandato. A Gabinetona transforma a si mesma para transformar a sociedade”.

    O encontro se apoiou em três dimensões fundamentais dessa outra política: o território, o corpo e a memória. Uma política que não paira abstrata, mas que se materializa em espaços, sujeitos e tempos. Uma de suas expressões é a transformação física que a experiência das ocupações causa nas mulheres, visível na superação de quadros de depressão e paralisia. “A gente se cura na coletividade. A ocupação nos cura. Tem de tudo, mas é um grande local de aprendizado. Sou preta, pobre, sapatão e favelada. Minha vida toda é de revolução, sou uma revolução em pessoa. Juntas nós vamos dominar a política e fazer outra”, anunciou Kênia.

     

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    No meio da costura das conversas, a antropóloga Alana Moraes lembrou que, para as mulheres indígenas, duas chaves são importantes: a festa e a guerra. No encontro na ZAP 18 – espaço cultural e educativo no bairro Santa Terezinha – os duros enfrentamentos que passamos não foram esquecidos. A dor que se vive no dia a dia também se vive na política: de um lado, o avanço do conservadorismo e do fascismo expresso na candidatura de Bolsonaro; de outro, o assassinato de Marielle Franco, que também representava essa ocupação da política. “Nosso desafio é grande, mas a morte da Marielle e de tantas companheiras não vai nos calar”, desabafou Vagna, moradora da Ocupação Dandara. “Quando a gente fala que basta, isso incomoda e vem uma reação para tentar nos silenciar. Foi o que aconteceu com a Marielle. São ataques contra nossos corpos individuais e coletivos”, ressaltou Áurea.

    Existe a guerra, mas também existe a festa. A noite foi também de alegria, de troca de olhares e abraços, de mãos dadas e de poesia. Como lembrou Natalia Alves: “A gente luta por causas perdidas, mas por isso mesmo sempre saímos vencedoras”.

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    Fotos por Zi Reis

  • Pensar: uma necessidade contemporânea

    Artigo de Amador Fernández-Savater, publicado no blog Interferências, no periódico El Diário (Espanha), em 21/09/2018. Tradução: Vapor ao Vento.

    Agradecimentos à tradutora anônima do Vapor ao Vento!

    Imagem: Colaborabora

    A catástrofe da sociedade contemporânea é produzir um tipo de relação com o mundo: a posição de espectador e de vítima. Não se trata de oferecer novos conteúdos mas de sair dela.

    Em A Sociedade do Espetáculo, um livro que desde seu aparecimento em 1967 se converteu num clássico (ou seja, um livro sempre contemporâneo), o pensador francês Guy Debord afirma que a verdadeira catástrofe da sociedade moderna não é um acontecimento por vir, nem sequer um processo em marcha (mudança climática etc), mas um tipo de relação com o mundo: a posição de espectador, a subjetividade espectadora.

    Em que sentido? O espectador não entra em contato com o mundo, ele o vê frente a si. De um “mirante” (o espetáculo) que concentra o olhar: centraliza e virtualiza, separa da diversidade de situações concretas que compõem a vida. O espectador é incapaz de pensamento e de ação: limita-se ao juízo exterior (bem/mal), às generalidades e à espera. É uma figura do isolamento e da impotência.

    O espectador de Debord não foi superado nem mesmo pela “interação” das redes sociais: converteu-se simplesmente no “opinador” de nossos dias, que sempre tem algo a dizer sobre o que passa (na tela), porém não tem nenhuma capacidade de mudar nada.

    O espectador é uma categoria abstrata não alguém concreto. É por exemplo qualquer um que se relacione com o mundo opinando sobre os temas midiáticos, sem se dar a si mesmo nenhum meio adequado para pensar ou atuar a respeito. Qualquer de nós pode se colocar na posição de espectador e também qualquer um pode sair. Isso é o que nos interessa agora: Como sair?

     

    O espectador assombrado

    Acaba de aparecer na Argentina La brujería capitalista (Hekht libros), um livro da filósofa Isabelle Stengers e do editor Philippe Pignarre que nos permite avançar nessas questões. Inclusive por caminhos diferentes dos de Guy Debord. Que quero dizer?

    Para Debord, o espectador é um ser enganado e manipulado. Ele explica isso muito claramente, sobretudo, em seus Comentários sobre a sociedade do espetáculo, o livro que escreveu em 1988. Stengers e Pignarre, deslocam essa questão: não se trata de mentiras ou ilusões, mas de “feitiçaria” (1). Ou seja, o problema é que nossa capacidade de atenção está capturada e nossa potencia de pensamento está bloqueada. Portanto, a emancipação não passa por ter ou dizer a Verdade, mas por gerar “contra-feitiçaria”: transformações concretas da atenção, da percepção e da sensibilidade.

    Vejamos isso mais devagar. O espectador é pego uma e outra vez no que os autores chamam “alternativas infernais”. Por exemplo: ou bem levantam cercas altas e pontiagudas ou se produzirá uma invasão migrante. Ou bem se baixam os salários e desmantelam os direitos sociais ou as empresas marcharão para outro lugar com o trabalho. Isolado em frente a sua tela, o espectador é refém da alternativa entre dois males. Como escapar?

    Não se trata de “crítica”. De fato, o espectador pode ser muito crítico, assistir por exemplo indignadíssimo – como todos nós hoje – ao espetáculo da corrupção, gozar vendo rodar as cabeças dos poderosos etc. Porém isso não muda nada. Seguimos na posição espectadora: vítimas da situação, reduzidos ao juízo moral, às generalidades (“são todos corruptos”, a “culpa é do sistema”) e à espera de que alguém “solucione” o problema.

    Saímos da posição espectadora quando nos tornamos capazes de pensar e atuar. E nos tornamos capazes de pensar e atuar produzindo o que os autores chamam um “agarramento” ou um “ponto de apoio”. Ou seja, um espaço de pensamento e ação a partir de um problema concreto. Nesse momento já não estamos diante da tela, opinando e à espera, mas envolvidos numa “situação de luta”. Tanto hoje quanto ontem, são essas situações de luta que criam novos enfoques, novos possíveis e põem a sociedade em movimento.

    Sem pensamento nem criação é impossível que haja alguma mudança social substancial e o mal (a corrupção ou qualquer outro) reproduzirá seus efeitos mais tarde ou mais cedo. Nesse sentido, enquanto bloqueia o pensamento e a criação, a sociedade do espetáculo é uma sociedade presa, um caracol infinito dos mesmos problemas.

     

    Situação de luta

    Não se abre uma situação de luta porque se sabe, mas precisamente para saber. Não se cria uma situação de luta porque tomamos consciência ou finalmente aberto os olhos, mas para pensar e abrir os olhos em companhia. A luta é uma aprendizagem, uma transformação da atenção, da percepção e da sensibilidade. O mais intenso, o mais potente.

    Os autores apresentam vários exemplos: por exemplo, a luta dos medicamentos anti-AIDS. Em 2001, 39 empresas farmacêuticas mundiais, sustentadas por suas associações profissionais, abrem processo contra o governo sul-africano que garantia a disponibilidade a custo moderado de medicamentos para a AIDS. A alternativa infernal então dizia: ou tem patentes e preços altos ou é o fim da pesquisa. O progresso tem um custo e um custo.

    Porém as associações de pacientes de AIDS saem de seu papel de vítimas e politizam a questão que lhes afeta: pesquisa, disponibilidade dos medicamentos, direitos dos enfermos, relação com os médicos. Pensam, criam, atuam. Suscitam novas conexões com associações humanitárias, outros afetados, empresas farmacêuticas sensíveis, Estados favoráveis como o Brasil etc. Porque o mapa de uma situação de luta (os amigos e os inimigos) nunca está claro antes que se abra, senão que a luta o redesenhe.  Não há “sujeito político” a priori, a situação de luta o cria.

    A alternativa infernal perde força e os industriais acabam retirando sua demanda. Não porque os afetados lhes tenham oposto bons argumentos críticos, mas porque criaram nova realidade: novas legitimidades, maneiras de ver, sensibilidades, alianças. Numa situação de luta, nos dizem os autores, os diagnósticos críticos são “pragmáticos”, ou seja, inseparáveis da questão das estratégias e dos meios adequados. É definitivo, só se sai das alternativas infernais “pelo meio”: através de situações concretas, por meio de práticas, desde a vida.

    Podemos pensar o mesmo sentido das lutas dos últimos anos: da PAH até o Eu Sim Saúde Universal, passando pelos movimentos de aposentados e de mulheres. Uma situação de luta é o “intelectual” mais potente: não só descreve a realidade, como a cria, suscitando novas conexões, problematizando novos objetos, inventando novos enunciados. De fato, os intelectuais-portavozes (novos e velhos) surgem, muitas vezes, na ausência de situações de luta, para representar aos que não pensam.

    Sem situações de luta não há pensamento. Sem pensamento não há criação. Sem criação somos pegos pelas alternativas infernais e espetaculares. A representação se separa da experiência social. Só ficam os juízos morais, as generalidades e a espera. O zunzum cotidiano do espetáculo midiático e político, assim como nossas redes sociais.

     

    Que as pessoas pensem

    Hoje vemos crescer, um pouco por todas as partes, movimentos ultraconservadores. Como combate-los? A subjetividade que todos estes movimentos interpelam é a subjetividade espectadora e vitimista: “o povo sofrido”. A vítima critica, porém não empreende um processo de mudança; considera a algum Outro culpado de todos os seus males; delega suas potencias a “salvadores” em troca de segurança, ordem, proteção.

    Escutamos hoje em dia as pessoas de esquerda dizer: disputemos o vitimismo à direita. Façamos como Trump ou Salvini, porém com outros conteúdos, mais “sociais”. É uma nova alternativa infernal: fazer como a direita para que a direita não cresça. Um modo de reproduzir a catástrofe que, como dizíamos a princípio, está inscrita na própria relação espectadora e vitimizadora com o mundo.

    Em 1984, a uma pergunta sobre o que é a esquerda, o filósofo francês Gilles Deleuze respondia: “a esquerda necessita que as pessoas pensem”. A estas alturas me parece a única definição válida e a única saída possível. Não disputar com a direita a gestão do ressentimento, do medo e do desejo de ordem, mas sair da posição de vítimas. Que as pessoas pensem e atuem, como se fez durante o 15M, a única barreira contra a direitização que funcionou durante anos neste país.

    Deixar de repetir que “as pessoas” não sabem, que as pessoas não podem, que não têm tempo nem luzes para pensar ou atuar, que não podem aprender ou produzir experiências novas, que só podem delegar e que a única discussão possível – entre os “espertos”, claro, entre os que não são “as pessoas” – é sobre que modos de representação são melhores que outros. Há muita direita na esquerda.

    Que as pessoas pensem: não convencer ou seduzir as pessoas, consideradas como “objeto” de nossas pedagogias e nossas estratégias. Abrir processos e espaços onde apresentar juntos nossos próprios problemas, tecer alianças inesperadas, criar novos saberes. Aprender a ver o mundo por nós mesmos, ser os protagonistas de nosso próprio processo de aprendizagem.

    Pensar é o único contra-feitiço possível. Implica ir mais além do que se sabe e começa por assumir um “não saber”, arriscar-se a duvidar ou vacilar. É a arte de liberar a atenção de sua captura e volta-la para a própria experiência. Por no corpo, precisamente o que falta à posição de espectador, de tertuliano, de comentarista da política, de polemista nas redes sociais.

    Seguramente necessitamos uma nova poética política. Por exemplo, uma palavra nova para falar de luta, que associamos muito rapidamente à mobilização, à agitação ativista, a um processo separado da vida etc. Reinventar o que é lutar. Na realidade uma luta é um presente que nos damos: a oportunidade de mudar, de nos transformar ao mesmo tempo que transformamos a realidade, de mudar de pele. Não há muitas.

    Uma situação de luta não é nenhum caminho de salvação. Assim só a vê o espectador, que se relaciona com tudo de fora. De dentro, é uma trama infinitamente frágil, muito difícil de sustentar e avivar. Mas também é esse presente. A ocasião de aprender, junto a outros, de que está feito o mundo que habitamos, de estendê-lo e nos estender, de prova-lo e nos provar. Para não viver e morrer idiotas, ou seja, como espectadores.

    (1) x tradutxr do texto do Amador optou por traduzir \”feitiço\” por \”fascínio\”. Alteramos aqui para o conceito originalmente adotado por Stengers e Pignarre, \”feitiço\” e \”feitiçaria\”.

  • Brasil Casa-Shopping Cidade Jardim

     

    por: Ricardo Belano *

     

    Há alguns dias tomei o trem do Grajaú, pela Marginal do Rio Pinheiros, até a estação Cidade Universitária. Ao longo do caminho, pensando na crise política, econômica e social na qual se insere o país, avistei, do outro lado da marginal, o Shopping-Condôminio Cidade Jardim.

    Conhecido por ser o metro quadrado mais caro do país, a construção faraônica, em estilo grotesco-neoclássico combina um enorme shopping quadrangular, ao qual apenas se chega de carro, e sobre o qual se sobrepõem uma série de torres pareadas. Um formidável obra arquitetônica, que em tudo contrasta com o seu entorno: uma das vias mais barulhentas da cidade, com elevados índices de acidentes automobilísticos, de frente a um rio poluído e fedorento, e cercado por residências de pessoas em situação de pobreza extrema.

    Eis um retrato do Brasil. Mais do que um retrato; um modelo de país.

     

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    Modelo este que vem sendo minuciosa e detalhadamente articulado pelo governo Temer, em oposição aos ganhos democráticos e sociais acumulados pela série histórica composta pela tríade FHC-Lula-Dilma. Parênteses: pese as não pouco importantes diferenças entre os governos mencionados, todos os índices sociais como expectativa de vida, analfabetismo e mortalidade infantil melhoraram durante eles.

    Economistas, cientistas sociais e militantes não hesitaram em contestar o plano do governo Temer de congelamento dos gastos com saúde e educação por vinte anos. Afirmavam que com a população em crescimento, o congelamento orçamentário implicaria, na prática, em uma redução do valor, e não manutenção, e geraria uma situação caótica para a próxima geração. Erraram! Não foi necessário mais de dois anos para a população sentir os primeiros efeitos: faltam vacinas no país, o sarampo e raiva humana voltaram a ser uma realidade, o índice de mortalidade infantil, que desde o governo Collor apenas caía, voltou a subir. Os efeitos superaram, em muito, a velocidade dos mais descrentes nas medidas apocalípticas de Temer.

    A Reforma Trabalhista, o desinvestimento programático em cultura e educação, o desmonte da Funai, o aumento das verbas para segurança pública, a intervenção militar no Rio de Janeiro, as tentativas de avanços de privatizações em setores de infraestrutura e saúde, não podem ser lidas como um acaso. São um projeto muito bem articulado. Teve até Ministro da Agricultura, Blairo Maggi, defendendo o fim do combate ao trabalho escravo.

    O projeto de país, o legado que o Governo Temer nos deixa – e que está sendo abertamente defendido nessas eleições – é o de um mundo forjado em todas as suas facetas nos moldes da competitividade absoluta, numa guerra de todos contra todos em busca de suas formas de sobrevivência. Nesse projeto de país, apenas duas instituições possuem a legitimidade de atuação social: o mercado, em primeiro lugar, e a polícia, quando o primeiro falha.

    Formação de classe média, acesso à educação, à cultura, incentivos para a formação de pessoas com habilidades múltiplas para trabalhos e exercício da sua vida pública; tudo isso ficou para o passado. O ideal de sucesso do governo Temer é o Casa-Shopping Cidade Jardim: a riqueza de muitos poucos, com seus privilégios absolutos e incontestável poder de mando, cercado por uma cidade suja, intoxicada e violenta. Preferencialmente, fazendo a gestão desde Miami, via Whatsapp, tendo apenas que vir para São Paulo para reuniões pontuais.

    *Ricardo Belano é escritor e adepto à técnica de conhecer pelos abismos

     

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  • peço forças porque não temos armas

     

    por:  Clarissa Reche

    Fecho os olhos e peço ajuda. Pra quem? Com quem eu falo? Me sinto doente. Meu corpo dói e meus olhos tem uma sensação estranha, como se eu tivesse chorado por horas. Mas não chorei. O choro não sai e me pego apertando os dentes com força, mandíbula contra mandíbula, sufocando o grito e nutrindo o nó que me afoga. Fecho os olhos e peço força. Pra quem? Não falo com Deus, definitivamente não. Deus é um homem barbudo de pele clara que olha pra mim lá de cima. Não, Deus não.

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    Estou sozinha e num desespero silencioso peço um sinal. Pra quem? Saio do trem. Atravesso a ponte erguida sobre o manto duro pelo qual os carros aceleram rápido. Eles tentam sair correndo. Eles tentam fugir o mais rápido que podem. Querem velocidade e não importa o sangue derramado. E eles se entorpecem de sangue e querem velocidade. Rápido eles enxergam muito pouco do desastre que os acompanha ao lado, não querem ver as águas podres que são o espelho da inexistência do que eles chamam de progresso. Para os mais pobres fica o cheiro, na impossibilidade de se fechar completamente em uma bolha móvel com ar condicionado. Estação Morumbi. Meio dia e vinte e três. Não sei pra quem peço, mas peço ajuda. Me sinto uma refém submetida a planos de homens ruins netos de homens ruins. E penso que eles têm armas. Muitas armas, armas grandes, armas russas e israelitas. Armas de guerra e munições de guerra. Sigo andando no calor, no sol que toca o solo estéril de concreto lisinho e limpinho. O sol, que não se importa com a ridícula tentativa de imitação de um cenário homogêneo de lugar-onde-a-grana-rola. O sol, que impõe toda sua tropicalidade para essas hordas de coitados engravatados. São muitos. Horário de almoço. Todos envoltos numa bizarra atmosfera de felicidade histérica. Não sei pra quem peço, mas peço forças porque não temos armas. Nós não temos nada e cada vez temos menos. Pelo menos tenho a mim mesma, penso enquanto navego no cardume de engravatados que, apesar das tentativas ridículas de viver no progresso, estão pingando suor nos únicos poucos minutos por dia que ficam diante do sol. Na hora do almoço. Numa felicidade histérica. Penso nos meus amigos e nos seus trabalhos. Humilhados não podem fazer muito mais do que sobreviver, constantemente ameaçados de morte, chantageados e coagidos a entregar suas dignidades humanas vendendo seus corpos a troco de quase nada. Porque precisam. E tentam não enlouquecer. Não sei pra quem peço, mas peço um sinal. Nesse canto infértil e podre da cidade. Nessa caricatura de progresso. Em meio a tantas pessoas doentes cujas vidas foram infertilizadas e apodrecidas pela escravidão que o rio não esquece e que permanece, agora cristalizada em um monumento gigantesco de vidro espelhado. Fortaleza que faz questão de mostrar sua imensidão e que ao mesmo tempo repele qualquer mínima tentativa de penetração. É preciso evitar o contágio. Peço ajuda. Peço força. Peço um sinal. Meu amigo me contou que os entregadores são obrigados a entrar nos prédios pelas docas e a subir pelos elevadores de serviço feitos de maderite. Entrar e sair sem ser visto. É preciso evitar o contágio. Uma refeição que ele entrega custa o triplo do que ele ganha em um dia inteiro. O sol, o cheiro, o suor, as pessoas engravatadas rindo, mais dez minutos de almoço, histéricas, felizes, doentes, vendidas e compradas por quase nada. E meu nó na garganta. Eu tenho ele porque tenho a mim, e pelo menos isso eu tenho! Mas sozinha é muito difícil. Peço para algo amorfo e sem sentido, difuso e que talvez por isso mesmo que insisto em pedir. Peço pela horda suada, por mim, por minha irmã e meus pais, pelos meus amigos e pelos moleques que limpam roda de carro importado no farol.

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    Um suspiro arranca de mim a certeza de que peço para algo muito antigo, para uma história vergonhosa que o concreto lisinho e limpinho tenta esconder mas que invade meu corpo e o toma sem pedir minimamente licença. É o cheiro do rio. Peço para o sangue. Peço para a ousadia das vidas vividas em sua plenitude. Peço pelas vidas, para que sejam vividas plenamente. Mas não temos armas de guerra nem munições de guerra. Temos apenas nós (nas gargantas). Temos apenas uns aos outros. Mas pelo menos temos isso.

    fotos:  As fotos são de um ensaio que dei o nome de lua nova. Tirei as fotos com o microscópio que eu mesma construí, observando meu sangue menstrual.

  • O Devir Negro do Comum: reflexões a partir dos desafios do SUS

    Tadeu de Paula Souza é professor do Departamento de Saúde Coletiva da UFRGS e coordenador adjunto da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da ABRASCO. Autor do livro – Estado e Sujeito: a saúde entre a micro e macropolítica…de drogas

    Foto: Peter Ilicciev

    O XII Congresso da ABRASCO foi, certamente, um marco na história da saúde coletiva e expressou aspectos do que pretendo organizar nessa breve fala. O desafio que tomei como urgência para se problematizar alguns impasses do SUS foi o de pensar o comum a partir da perspectiva de lutas, em especial na perspectiva da negritude. Trata-se de um ensaio que embasou minha fala na mesa “Direito a saúde, direito a uma vida comum: novas formas de lutar em tempo de neoliberalismo” que reverberou com uma certa vibe do congresso. Mesa que tive o prazer de compartilhar com Henrique Parra, Henrique Sater e Alana Moraes.

    Do mesmo modo que o comunismo não foi um regime político do comum o seu fim não encerrou as lutas do comum. As lutas altermundialistas do final do século XX e início do século XXI apontam para um ciclo de lutas que se conectam em torno da defesa do comum: a revolta de Seattle contra o Fórum Econômico Mundial no final da década de 1990, a luta contra a privatização da água em Cochabamba no início do século XX na Bolívia, o Fórum Social Mundial de Porto Alegre em 2001 e mais recentemente os movimentos do Occupy, Primavera Árabe e as jornadas de junho de 2013 no Brasil. São movimentos em escala global que tem recolocado o conceito de comum como princípio político, por ser potencialmente um conector de lutas contra o neoliberalismo. Potencialmente, pois todos esses movimentos têm nuances que não necessariamente rumam a uma política do comum. Eis nosso desafio!

    Esse ciclo de lutas lança o comum como princípio político, mas também como critério que nos permite pensar as lutas e as políticas públicas a partir do comum. O esforço de pensar o público e, em especial o SUS a partir do comum, é uma estratégia política vital, pois como veremos nem sempre o público coincide com o comum. O ataque ao SUS, que com a EC 95 pretende ser fatal, vem dentro de um ciclo de ataques as nossas reservas de comum em escala global. Aquífero Guarani, terras indígenas e quilombolas, pré-sal, a biodiversidade das faunas e floras brasileiras, os direitos trabalhistas se tornaram alvo de uma política da rapinagem. Esse ciclo de ataque, que alguns autores enxergam como um novo ciclo mundial de acumulação primitiva em escala ostensiva, tem gerado a necessidade de revisitar o conceito de comum e lança-lo numa perspectiva revolucionária. Pensar o comum como um princípio político revolucionário porque recoloca a vida social fundada naquilo que não é passível de ser apropriável e desse modo refundar as relações sociais a partir do comum!

    Como critério para se pensar o público o comum traça uma perspectiva para analisar uma radicalidade possível ainda a ser exercida no SUS. Existem muitos problemas e insuficiências macroestruturais do SUS, como o eterno tema do financiamento, que tende a ser colocado como um problema que escapa a governabilidade de qualquer ator político constituído. Tendo a acreditar que este problema decorre de outro, de uma tarefa ainda a ser feita na esfera do comum. Uma tarefa não só do SUS, mas do próprio campo da esquerda institucional. Uma tarefa que nesses 30 anos de SUS ainda não foi exercida numa radicalidade possível. Tal tarefa ainda não realizada que só será possível se adotarmos um perspectivismo do sul do mundo para pensar o comum, criando assim um contra-ponto com a perspectiva eurocêntrica do comum. Mas de que comum falamos?

    O DEVIR DO CONCEITO

    A história do conceito do comum não constitui uma linearidade, nem mesmo uma história interconectada. Os diferentes sentidos que emergem de diferentes impulsos históricos, com bifurcações e meandros que não constituem uma totalidade: assim percorrem Dardot e Laval na arqueologia do conceito de comum. A etimologia da palavra comum (co-munus) dá uma pista: munus designa atividade de reciprocidade, de dádiva mútua. Comum estaria relacionado a um agir pautado num compromisso com uma coletividade. Além de sua origem etimológica os autores apontam quatro impulsos do conceito de comum.

    Um primeiro impulso moral e teológico provém do cristianismo: o “bem comum” ou utilidade comum (no singular) indica ao mesmo tempo uma finalidade última das instituições e um princípio moral do homem. As instituições e o homem estão destinados à procura do bem comum. Esse sentido de comum, embora não tenha hoje uma extensa penetração na vida social, não se dissolveu e segue sendo um lugar comum do comum, sua matriz moral-religiosa.

    Um segundo impulso que surge no direito romano emerge de um campo de disputa em torno da demarcação de bens apropriáveis e não apropriáveis. Os “bens comuns” (no plural) como a água, o ar, a terra são tratados como campos de disputa mediada pelo direito que demarca uma distinção entre a res publica, a res nullis. Enquanto a res publica indica o que “pertence a todos” e resguardado pela administração estatal a res nullis refere-se ao universo daquilo que não pertence a ninguém porque ninguém se apossou. Nesse ínterim estaria a res comunnis que indicaria aquilo que não é passível de ser apropriado, portanto difícil de ser situado, pelo menos no direito romano, na esfera do jogo institucional. A imprecisão do direito da res comunnis, ou bens comuns, deixou desde o império Romano, a possibilidade aberta da res comunnis ser considerada res nullis, uma vez que no direito Romano a res comunnis não formar exatamente uma categoria jurídica. O comum como “coisa” (res) se recoloca hoje nas lutas pelos direitos dos bens comuns, incluindo aí a linguagem, o conhecimento, o ciberespaço e o espaço extra-atmosférico.

    Aqui tem um problema central para o problema do comum colocado por Dardor e Laval, pois até hoje não existe uma jurisdição clara para aquilo que não é apropriável. Os bens comuns ocupam um lugar impreciso de quase não direito, uma vez que no ocidente e em especial na modernidade, o direito se ergueu em grande medida a partir da propriedade enquanto direito natural.

    Um terceiro impulso, filosófico, associa o comum ao universal, seja para depreciá-lo ou para equivalê-lo ao universal. A história moderna da filosofia ocidental, de Descartes a Kant, o comum ora expressa o que é ordinário e trivial ora designa o transcendental que iguala todos os seres humanos, uma faculdade ou uma essência.

    Um quarto impulso do comum vem de diferentes lutas e movimentos sociais da modernidade e funda o “comum” como princípio político ou como prefere Hardt e Negri, como carne da democracia. Um impulso que apresentaremos em quatro momentos de lutas contra a mega-máquina de captura do comum: os movimentos republicanos contra o absolutismo no século XVII, o movimento proletário do século XIX, os movimento contra culturais do século XX e os movimentos altermundialistas no início do século XXI. Esses quatro momentos de luta do comum estão relacionados a diferentes estágios de desenvolvimento do capitalismo que expressam quatro formas principais de apropriação do comum: a representação, a expropriação, a exploração e a normalização. Quatro impulsos do comum que emergem de estratégias de resistência à apropriação do comum pelo capital.

    A MEGA MAQUINA DE CAPTURA DO COMUM

    O primeiro problema, o da representação foi mais diretamente enfrentado pelo filósofo Espinosa, numa certa aliança entre o pensamento subversivo e as lutas republicanas do século XVII, as lutas da ‘multidão’. Positivando o conceito político de multidão o pensamento de Espinosa trava um confronto direto ao pensamento político e teológico dominante, em especial o Leviatã de Hobbes.

    Embora Hobbes considere a multidão como uma realidade política é sempre sob o signo da barbárie. A multidão existe como aquilo que deve ser governado, pois somente o que é uno pode governar. A heterogeneidade, as singularidades, em suma a carne da multidão é sempre irracional e estaria fadada ao caos e a guerra. A multidão comparece na condição daquilo que deve ser governada e unificada a partir de um governo que a representa, o soberano, o Estado. A possibilidade de paz, da ordem e do progresso depende de um contrato social entre pessoas livres que por decidem transferir seu poder para uma instância superior que as representam. A representação estabelece e estabiliza a relação multidão/governo através da forma povo/soberano.

    Em ‘Tratado Político’ Espinosa afirma que não é possível um indivíduo transferir seu poder a outrem, pois isso seria a própria morte. O poder individual será sempre exercido em alguma esfera da vida. O contrato social não se dá mediante uma decisão livre e espontânea de renúncia, mas a partir de mecanismos de coerção que tendem a homogeneizar a multidão. A representação como mecanismo política produz uma separação entre a potência da multidão e o Estado. Doravante o público se confunde a administração Estatal, situado numa esfera distante e separada do poder da multidão. Contrário a esse modelo Espinosa vai propor um governo que não separa povo e poder, poder e multidão. Sua obra inconclusa, Tratado Político, deixou em aberto justamente o ultimo capítulo em que traria uma forma de governo democrático. Após abordar as formas de governo monarca e aristocrático, Espinosa caminhava para apresentar uma forma de governo da multidão, quando ainda jovem morre após anos de perseguição. Seria a forma de governo democrático uma forma de encontro entre os conceitos de comum e multidão? Não seria justamente essa junção inacabada que Negri e Hardt, em “Multidão” e “Bem-estar Comum” vão buscar traçar já num contexto das lutas altermundialistas do século XXI? O comum como uma modalidade política da multidão, em que as diferentes singularidades possam ganhar expressão e institucionalidade política. Deixemos essa questão mais para adiante.

    Os impasses da representação são retomados por Foucault quando este analisa a racionalidade liberal. Pois veremos como coube aos liberais completar a equação inacabada do sujeito moderno proposto por Hobbes. Com John Locke e Adam Smith surge não um sujeito do direito pautado no contrato social e na renúncia, mas o sujeito que se realiza na medida em que tem interesses, interesses egoístas em que o auto empreendimento se torna a verdadeira mola propulsora da vida social. O poder individual não foi transferido para o Estado, ele foi bloqueado pelos mecanismos políticos da representação para ser investido na esfera privada. O sujeito moderno se torna um sujeito bifaceado: um sujeito da renuncia na esfera pública e um sujeito egoísta e competitivo da esfera privada. O sujeito da renúncia da esfera pública, que passa a atuar de forma limitada a partir da representação política, encontra a possibilidade de realização e exercício de seu poder na esfera privado, no mercado. A moral do ‘bem comum’ como finalidade do homem se vê agora lançada a uma esfera bem específica da vida, a espiritual. O homem universal que a modernidade quer fundar a ferro, fogo e sangue é ao mesmo tempo o homem paranoico “lobo do próprio homem”, que necessita de uma mediação política transcendente e o homem essencialmente egoísta, que necessita da concorrência para se realizar na esfera social. Essa natureza humana que se imporá como universal, marca o momento inaugural da braquitude como estética, ética e política do capitalismo, derivando em um amplo e longo processo de expropriação e exploração do comum em escala global.

    A braquitude que funda um homem universalmente paranoide e egoísta constitui elemento indispensáveis para se compreender o Estado Moderno como mega-máquina capitalista de captura de toda forma de comum. A subjetividade paranoide e egoísta institui uma violenta barreira para se pensar um sujeito da solidariedade e do compromisso coletivo. Se somos essencialmente lobos de si e universalmente egoístas, o comum não tem qualquer serventia ou viabilidade política e institucional.

    COMUM E DESIGUALDADE

    Não é para menos que para Marx o direito do comum que se quer fundar é um que seja formulado a partir de outro universal, um universal que não se fundamenta numa suposta natureza humana, mas um universal historicamente constituído, o universal da pobreza. Das lutas contra a expropriação e exploração emerge um novo campo para o comum. Aqui Marx se opõe a toda uma tradição do direito inglês como direito comum (ComumLaw) como um direito consuetudinário, ou seja, que surge dos costumes e dos hábitos coletivos. Marx faz questão de diferenciar os costumes dos privilegiados e os costumes dos pobres. É toda uma reflexão que gira em torno do direito dos pobres colherem os galhos caídos das árvores no chão, fonte de grandes debates e reflexões do jovem Marx. Os cercamentos dos ‘comunners’ deixaria ainda em aberto a possibilidade do hábito de recolher galhos caídos nas florestas um direito do comum?

    Embora seja um costume secular, Marx vê na criminalização desse costume um Estado a serviço dos interesses dos grandes proprietários e um direito comum que se constitui sempre a partir dos costumes e hábitos dos privilegiados. Será, doravante, na constituição das lutas de classes que o comum se vê lançado para fora do direito consuetudinário dos privilegiados para se tornar um objetivo político dos explorados. Somente a partir das lutas contra a expropriação e a exploração que o comum pode se erguer contra um modo de vida que se funda na propriedade, na concorrência e no individualismo.

    Trata-se de um impulso que, com todos os meandros impossíveis de serem abordados aqui, levou a luta de classes rumo aos diferentes destinos do comum no início do século XX. Principalmente ao trágico regime comunista em que o Estado se confunde com o próprio partido que se volta contra todo modo de exercício coletivo e descentralizado de poder. Por outro lado, essas lutas produziram um grande legado e uma importante reserva de comum em torno de novos direitos do comum que emergiram das lutas, em especial na Europa ocidental. As lutas sociais como fonte de criação de direitos do comum refunda um sentido de público que não se confunde e não se encerra no Estado. Se no seio da Europa foi assim que a luta de classes situou o comum como um princípio político que não se nasce do seio do Estado, mas das lutas e mobilizações dos marginalizados, em escala mundial ele precisa ganhar uma perspectiva que não se separa do problema geral do racismo.

    O capitalismo movido pela racionalidade liberal controlou os movimentos da multidão a partir da repartição em dois eixos: um material e um imaterial – uma separação da multidão entre uma minoria que tem e uma minoria que não tem: uma separação desigual dos bens material, criando uma massa de desapropriados. Processo esse que sempre veio associado a uma segunda separação: entre quem é e quem não é, uma repartição desigual entre singularidades ditas normais e singularidades anormais. Agora é possível retomar as quatro formas de apropriação do comum e como elas se articulam. 1) a representação que separa o poder da multidão, como uma forma de organização política a partir do contrato social pautado na renuncia acabou por se tornar um modo de perpetuação de um mesmo tipo político: o homem branco hetero de classes privilegiadas. 2) A expropriação dos bens comuns a partir do processo que Marx chamou de acumulação primitiva que separa o trabalhador dos meios de produção comunais, em escala mundial instituiu o Negro como signo de anormalidade e destino da pobreza; 3) a exploração que se efetua com a alienação na medida em que separa os trabalhadores no interior da fábrica transformando a produção comum produzido em mais valida; 4) os processos de normalização analisadas por Canguilhem, Foucault que subdivide a multidão e separa o normal do anormal, tendo sempre um foco e um peso especifico para negros, mulheres e gays. As diferentes singularidades se encontram desse modo cindidas e barradas de caminhar em direção ao comum.

    A longa marcha do movimento operário europeus no antes e pós-grandes guerra foi um processo de constituição de reservas de comum: direitos sociais e humanos, políticas públicas, ampliação da participação e inclusão de grupos excluídos na esfera política. Esses acúmulos produziram algumas aberturas que foram desembocar em novos movimentos na década de 1960. Momento em que é possível perceber uma diferença entre os rumos dos questionamentos entre intelectuais europeus e os movimentos de intelectuais negros, especialmente nas Américas: uma revisão da história capitalista a partir da perspectiva de uma negritude, nos termos defendidos por Fanon. Se Negro é o nome dado ao europeu para determinar um lugar de não humano, negritude é o termo que demarca uma apropriação em torno das lutas por liberdade, justiça e direitos dos expropriados e descendentes dos escravizados de África.

    COMUM E DIFERENÇA

    No documentário sobre maio de 68 – “No intenso agora”- o diretor Moreira Sales é preciso ao atentar que nas cenas recuperadas das ruas de Paris se vê poucos negros e nas raras cenas aparecem sempre num segundo plano.

    Franz Fanon, Angela Davis e mais recentemente Achille Mbembe não deixam passar em branco que foi sempre sobre a denominação ‘NEGRO’ imposta pelos brancos que a pilhagem, o roubo de terras e riquezas e o trabalho forçado se legitimaram e assim criaram as condições para o desenvolvimento do capitalismo. Embora a acumulação primitiva e a exploração tenham ocorrido no interior da Europa foi sobre a África e as Américas que sua faceta genocida deixaram traumas profundos ainda não curados. O Negro se torna a um só tempo marcador de pobreza e de anormalidade. A raça como signo de anormalidade e a pobreza como signo racial geram um novo significante: da pobreza como fruto de uma anormalidade genética, a pobreza como origem e destino de uma raça inferior.

    Se no centro do capital as tecnologias de subjetivação operaram através de dispositivos sofisticados e sutis como bem analisa quase toda obra de Foucalt, na periferia do capital esse processo se deu a partir do extermínio de todo modo de vida que não seguia a regra da braquitude. A confirmação de que o humano é essencialmente egoísta e competitivo se deu através do extermínio de toda etnia que não confirmava essa regra.

    Junto a esses pensadores saltamos para uma terceira cena do comum, a partir de grupos que foram silenciados durante séculos, por não serem até então incluídos como humanos: as mulheres e os negros. A década de 1960 marca o momento em que se diz: não só existe desigualdade social como ela é ainda mais aguda entre negros e mulheres, e especialmente mais grave entre mulheres negras. As diferenças de gênero e de raça e seus processos de subjetivação são colocadas como estruturante das desigualdades sociais. Sobre a necessidade de afirmação das diferenças que foram sujeitadas, criminalizadas, anuladas e patologizadas que um novo grito do comum se faz ouvir. Será no pensamento interseccional emergente, especialmente de negros e feministas que novos territórios identitários traçam uma nova perspectiva política do comum e das lutas de classe.

    Desde então tem havido um esforço com parciais sucessos, mas sempre violentamente paralisado, um esforço de não separar as estratégias de dominação das estratégias de subjetivação. Foi nesse momento da história de lutas que o neoliberal comparece como uma nova racionalidade e reação a nova produção do comum. O extermínio das principais lideranças do movimento negro nos EUA se agenciou gradativamente a uma nova racionalidade de governo. Em 1971 a fundação Rockefeller financia um encontro para discutir as razões das revoltas dos anos 60 e pensar caminhos para o futuro. O relatório indica que o problema dos anos 60 foi excesso de democracia, lê-se: participação de negros e mulheres na arena político-institucional. Com Reagan se inicia a política da “Economia Livre e Estado forte” que no âmbito da segurança interna se intensificam o extermínio das principais lideranças do movimento negro e criminalização dos negros. Na esfera mundial entra em cena o pacote neoliberal, que na América Latina se deu pelas portas arrombadas pelas ditaduras militares.

    O Brasil, de breve período democrático, não consolidou instituições democráticas capazes de se moldar e incluir as novas demandas da multidão expressas pelos movimentos do Cinema Novo, Tropicalismo, movimento feminista, movimento negro e intensificação dos ideais socialistas. A luta contra a ditadura tem seu mais radical expoente o negro baiano Mariguela, que assim como os negros norte-amaricanos morreram assassinados pelo Estado. Ditadura militar no Brasil, democracia nos EUA: regimes políticos distintos conectados por uma mesma racionalidade neoliberal que resultam em mesmo destino aos negros. O neoliberalismo encontrou na abertura lenta e gradual as possibilidades de manter um estado de exceção que através da Polícia Militar segue a exterminar negros pobres das periferias. A década de 90 marcaria mais um violento passo na destruição das proteções do comum.

    O devir negro do mundo e o devir negritude do comum

    O problema atual do neoliberalismo parece recolocar a dinâmica da acumulação primitiva do capital novamente na centralidade dos sistemas financeiro internacional. Ao contrário de Marx, Rosa Luxemburgo via a acumulação primitiva não como uma etapa do capitalismo, mas como um processo central e coextensivo ao capitalismo. O capitalismo vai sempre precisar expropriar, seja nas periferias do capital, seja criando zonas de instabilidade no interior dos estados capitalistas. Essa onda de expropriação generalizada que se intensifica nos anos 90 e que se intensificou ainda mais depois da crise de 2008, tem gerado um movimento que Mbembe denominou de um devir-negro do mundo. Se o negro foi o modo como os brancos nomearam os povos expropriados e escravizados, agora tal realidade se apresenta a toda humanidade numa divisão entre os 1% e o restante de toda a humanidade: uma necropolítica.

    Tal problema vital impõe o compromisso de pensar uma via do comum que seja ele mesmo restituidor e reparador, no sentido clinico-politico do qual falam Fanos e Mbembe. Contra um devir-negro do mundo existe também um devir negritude do comum, um devir provocado pelos movimentos negros que desponta uma potência produtora do comum que deve inexoravelmente passar pela questão da restituição e reparação.

    Aqui voltamos ao ponto de partida desse ensaio. Se existe uma tarefa a ser feita no SUS, como efetivação de uma política pública pautada no comum, é a tarefa de inclusão do comum pela expressão da negritude. Não será possível repensar um SUS universal que não passe pela produção do comum, assim como não é possível produzir um comum que não seja pela abertura a um protagonismo dos afrodescendentes. Aqui tem se colocado um certo impasse para a esquerda, tanto partidário-institucional quanto no campo intelectual.

    Esse impasse tem sido evidenciado pelo estranhamento e critica de parte dos intelectuais aos movimentos ‘identitários’ negros. Tem sido lugar comum os intelectuais brancos acusarem esses movimentos de se fecharem a composição sendo, portanto, uma barreira ao comum, um fechamento à diferença. Entretanto, a possibilidade de um negro se diferenciar da determinação subjetiva que o branco lhe impôs está muito mais acessível no encontro com outros negros do que com brancos. Trata-se de um devir negritude do comum nos termos colocados pela intelectual negra Neusa Santos Souza em ‘Torna-se Negro’. Do mesmo modo as mulheres entre si, e os gays entre si, e as trans entre si. Primeiro é necessário diferenciar-se da determinação heteronormativa, misógina e racista no encontro com o semelhante. A aliança constitutiva de um devir comum das diferenças sujeitadas pode produzir acumulação de potencia para equivocar o lugar do home branco hetero e criação de um si negro. Isoladas, essas diferenças não ganharão expressão institucional pois não será por livre e espontânea vontade que o branco vai ceder o seu lugar de poder. Logo, não se trata de esperar que esses grupos identitários se abram, mas que esses movimentos identitários produzam uma abertura no movimento identitário dos homens brancos heteros cis. O mundo branco deve se abrir rumo a dissolvência e não o contrário. O suposto lugar de neutralidade ou de universalidade do homem branco revela-se um lugar identitário hegemônico.

    De modo abstrato e generalizante os intelectuais europeus pensam na produção do comum como composição das diferenças sem definir claramente uma perspectiva. Fato que pode conduzir a um certo relativismo ou mesmo demarcar uma perspectiva transcendental do comum. Esse é tema que requereria mais tempo e dedicação para se analisar, mas existe uma apropriação desse discurso do comum que enxerga de modo abstrato uma potência política no encontro entre diferentes. Essa apropriação do encontro com a diferença enquanto uma aposta ético-política expressa um lugar de fala do homem branco. Pois é certo que o encontro com outros não brancos abre uma possibilidade do homem branco hetero se diferenciar do seu lugar de poder. Já para as subjetividades e modos de vida marginalizados, criminalizados e patologizados essa possibilidade está mais aberta no encontro com o seu semelhante. O mais importante da constituição do comum está no processo de diferenciação do que num encontro generalizado das diferenças. Nesse sentido há senso estratégico em curso dos movimentos identitários se fortalecerem, pois tem uma perspectiva bem situada. E pode haver aqui um equivoco de leitura de quem não se coloca numa perspectiva marginalizada, mas fala de um lugar de privilégio.

    Existe um objetivo dos movimentos identitários de se chegar a um estágio em que essas identidades não sejam mais necessárias, porém isso só irá acontecer quando o lugar identitário do branco, como medida e verdade, for dissolvido. Há, portanto, um desejo de comum, uma dissolução da raça como medida e critério que passa por um devir-negritude do comum. A identidade, o encontro com o semelhante como signo de potência se expressa aqui como território de luta, estratégia, meio de passagem, criação de abertura num mundo fechado.

    Se o SUS é uma política do comum, o é ainda de forma parcial. Nossas instituições do SUS ainda são de domínio de homens brancos, tanto das instituições acadêmicas quanto das instituições de saúde. Os negros seguem a compor o grupo que sofre mais violência institucional no SUS e são os negros que seguem morrendo mais e adoecendo mais apesar do SUS. Na sua dimensão de política de Estado, o SUS reproduz o modelo da representação em que o povo, de maioria negra, não se vê representado nas suas instituições. Nossa tarefa de democratizar as instituições de saúde implica numa atenção real a participação de negros e mulheres mais especialmente de mulheres negras, sem o qual o SUS se torna mais uma instituição em que o negro participa sempre na condição de passivo e assujeitado. Num país de maioria pobre negra como pode o SUS ter sustentação social que não seja por um projeto comum que passe centralmente pela negritude? Tarefa ainda não realizada que nos lança a um porvir do SUS pautado num comum efetivamente inclusivo.

    Um SUS que rume ao encontro do que bem aponta Djamila Ribeiro na aposta de uma nova humanidade que seja refundada desse “outro do outro”: a mulher negra. Que desse ventre originário e mítico, mas também ético e político, retornemos a uma ancestralidade para propor outro futuro possível que não separe o gesto político do gesto do amor! Ou como nos canta o rapper Rincon Sapiência: “os pretos e as pretas estão se amando”!

  • Saúde coletiva e tecnopolíticas do comum

    Henrique Z.M. Parra

     

    texto apresentado no 12° Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, no Rio de Janeiro, 27 de julho de 2018 (*)

     

    Foto: George Magaraia

     

    Recebi o convite para participar do Congresso da Abrasco como uma boa oportunidade para compartilhar com vocês alguns problemas que venho investigando no campo dos estudos sociais em ciência e tecnologia. Não sou da área da saúde e nem tenho a saúde como um tema/objeto específico de trabalho. No entanto, penso que este encontro é o início de um novo diálogo e de parcerias de trabalho. Em parte porque acredito que estamos enfrentando problemas semelhantes (na educação, na ciência e no desenvolvimento tecnológico), mas também porque na área da saúde muitos dos problemas que vamos tratar aqui adquirem uma convergência e interdependência muito densa.

    Mas também, outra razão que me aproxima das preocupações da Abrasco é a possibilidade de tomarmos a Saúde como um Comum e aí, problematizarmos quais poderiam ser as estratégias, ações, normas, protocolos, infraestruturas que dão forma à instituição (no sentido de ação instituinte) da Saúde como um Comum.

    Quais seriam as formas desses direitos e institucionalidades que dariam existência e sustentação à Saúde como um Comum? Como resistir, portanto, às dinâmicas neoliberais (micro, meso e macropolítica)? Essa é uma grande pergunta que dá forma a um exaustivo programa de pesquisa e de práticas.

    Mais especificamente, sob o guarda-chuva dessa ampla questão, tenho investigando algumas experiências (que denominamos de laboratórios cidadãos ou laboratórios de prototipado) onde este problema é enfrentado com recortes muito limitados. O que me interessa nessas experiências é a forma de enfrentamento dessas questões. Nos laboratórios constitui-se uma comunidade de afetados (ou uma comunidade de atores co-implicados) em torno de um problema que emerge diante da ameaça de destruição de um comum. Em seguida, o problema é investigado, adensado pelas distintas perspectivas (saberes incorporados e situados) dos atores, através de um esforço de criação de um protótipo, um artefato ou um dispositivo que contribua para dar um melhor entendimento e tangibilidade sobre os mecanismos de produção e sustentação deste Comum ameaçado.

    E no âmbito dessas iniciativas, o meu interesse é mais especificamente por aquelas experiências que estão envolvidas com a criação de arranjos sociotécnicos orientados para a produção do Comum. Dito de outra forma, “tecnopolíticas do comum”.

    Sinteticamente, o argumento da minha exposição será a seguinte:

    1. Caraterização de uma experiência política de assombro: não só no Brasil, mas em diversos países, experienciamos uma profunda crise institucional e das políticas sociais. Há um acelerado desmanche dos direitos sociais e o fortalecimento de um Estado-Empresa onde o público-estatal é cada vez mais indistinto do privado-corporativo. A lei, as instituições, os canais de representação parecem insuficientes para responder à atual configuração dos conflitos de uma perspectiva democrática (falamos agora em democracia autoritária, democracia securitária, normalização do estado de exceção, entre outros…).

    2. Dentro deste processo interesso-me por uma dinâmica de deslizamento nos mecanismos de exércicio do poder e nas formas de orientação da ação social, que se deslocam de uma orientação por valores, normas e leis, para uma forma de determinação/orientação que podemos denominar “tecnopolítica”. São as técnicas, protocolos, infraestruturas, procedimentos, tecnologias diversas através das quais conduzimos nosso cotidiano e se realizamos, de forma imanente, as formas de vida que elas propagam.

    3. Investigar a maneira como alguns arranjos sociotécnicos (dispositivos, aparatos e tecnologias utilizadas por humanos) participam da mudança social e abordam o problema da escalabilidade de outra forma. Um desafio que temos (na educação, saúde etc) quando pensamos numa política pública é o de encontrar formas de transpor uma iniciativa de pequena escala para uma outra escala. Todavia, ao invés de pensar em como transpor escalas (do micro para o macropolítico), assumo um caminho alternativo: como pequenos dispositivos através da recursividade e reticulação vão constituindo longos arranjos sociotécnicos.

    Ao pensar a produção do Comum por essa perspectiva, minha hipótese é que podemos encontrar estratégias complementares de luta e de instituição de novas formas de vida.

    ***

    O Comum, no sentido que estamos utilizando aqui (e inspiro-me sobretudo no trabalho de Antonio Lafuente), diz respeito à algo que é sempre produzido entre todos. Atualmente, são muitos os sentidos que podem ser atribuídos ao Comum e há uma vasta literatura sobre isso (link para uma apresentação onde discorro especificamente sobre este tema).

    O ar que respiramos, a cultura, a experiência de urbanidade, o cuidado na reprodução da vida, a escuridão da noite que permite ver as estrelas, o conhecimento, a saúde são possíveis exemplos desse Comum.

    Frequentemente este Comum só emerge, só aparece quando ele se encontra ameaçado. Quando o ar que respiramos se torna poluído, um Comum (a qualidade e portanto a participação do ar em nossa saúde) foi destruído por formas de uso que o degrada. Em termos econômicos, formas de uso e apropriação exclusiva que externalizam os efeitos de sua utilização. O Comum tem portanto uma dimensão não codificada, não formalizada, não essencialista, tácita e relacional, mas que é fundamental à produção e sustenção da vida. Essa paradoxal invisibilidade e presença constitutiva do Comum em nossas vidas é simultaneamente sua maior potência e ao mesmo tempo sua maior fragilidade.

    É neste sentido que o problema do “Comum” não pode ser separado (como bem descreveu Ricardo Teixeira) de um problema da “percepção do Comum”. Por isso, a forma do Comum transitar entre o intangível e o sensível depende de um regime de sensibilidades que dá forma a uma Política, onde as dimensões afetivas-culturais-cognitivas-econômicas são indissociáveis.

    Como percebemos que somos co-partícipes na produção do Comum? Quais as estratégias, práticas, tecnologias, infraestruturas que dão forma a essa experiência de co-implicação na produção do comum?

    Para a Abrasco é evidente que a saúde é um problema coletivo. Não há saúde individual sem saúde coletiva. Parte do conflito histórico e atual, em torno dos direitos à saúde, dá-se pelas dinâmicas que procuram submeter a Saúde a dinâmicas individualizantes (em termos dos modos de subjetivação, na forma como nos constituímos e nos relacionamos com nossa da saúde) e privatizantes (em termos das formas de codificação, mercantilização e regulação social). Mas falar em termos do “Comum” significa transbordar a dicotomia público-privado; humano-não-humano. Ele é uma terceira margem que não está em oposição nem ao público, nem ao privado. O Comum convive e apoia-se tanto no público como no privado, assim como ele se realiza com os humanos e não-humanos (objetos, recursos naturais, artefatos tecnológicos).

    ***

    Retorno então ao tema mais específico das “tecnopolíticas da produção do comum” para indicar 3 eixos de questões que me levam a eleger este recorte como forma de criação e resistência.

    1. Como explicar isso que reconhecemos como uma rápida erosão de conquistas duramente construídas? Como explicar essa intensificação, aceleração, austúcia nos processos de desmanche dos direitos sociais? Isso é sinal de uma fragilidade institucional ou baixa qualidade democrática de nossas instituições? É sinal da precariedade do nosso marco regulatório? Ou é algo que convive e integra desde muito tempo a produção do atual regime de governo, mas que agora adquire novos contornos? Quais são as continuidades e rupturas?

    Neste momento, é fundamental identificar quais são as práticas, as áreas da saúde que estão sendo capazes de resistir e persistir na produção da Saúde como um Comum. Ao longo da história, o Comum e as comunidades que o produzem tem aprendido a sobreviver a diversas investidas que procuram destruí-lo ou submetê-lo a regimes de apropriação e expropriação. Ao mesmo tempo é importante identificar quais os novos mecanismos, as estratégias, e as novas práticas que tornam possível a privatização da saúde. Em resumo, partilho da impressão de que o desenho institucional que temos disponível é importante, porém parece ser insuficiente para responder às ameaças atuais.

    2. Quais os limites, quais os modos de interação do público-estatal com o privado-corporativo? É possível encontrarmos outras composições para além da dicotomia Estado-Mercado? Aqui também a percepção ordinária (para não dizer senso comum) que se difunde em nossa sociedade é de uma crescente indistinção entre o público-estatal e o privado-corporativo. Como essa experiência se constituí? Quais as mediações entre os cidadãos, o acesso aos serviços de saúde, as relações entre os trabalhores da saúde e os demais cidadãos?

    Cada vez mais precisamos indagar como os diversos aparatos, equipamentos públicos servem e funcionam como infraestruturas para a expropriação e apropriação privada da Saúde?

    Ao mesmo tempo, qual é a percepção, a experiência que se constitui desde o cidadão, o usuário na ponta? Qual é a interface, a mediação que ele tem o sistema?

    Pensando desde a borda do sistema, a partir dos modos de uso e apropriação do cidadão, e do modo de relação e de subjetivação que ele constitui com o sistema de saúde, quais seriam as possíveis formas de ativar um devir-comum do público-estatal? Como o cidadão reconhece a produção do Comum e como ele experiencia as diferenças e conexões entre aquilo que é público-estatal e aquilo que é privado-corporativo?

    3-Cotidianamente nos confrontamos com práticas, procedimentos e tecnologias que se instalam em nossa vida como dispositivos que se apresentam como neutros (\”pós-ideológicos\”). Há evidentemente princípios e valores que constituem as relações tecnicamente mediadas. A capacidade de captura e adesão a um dispositivo depende de sua eficácia prática e de sua capacidade de tornar-se desejável. Sua adoção é quase “natural” (ela se aproveita das disposições emergentes num campo de possíveis). Ao prover a “melhor solução” para um determinado problema ela atualiza de forma imanente uma racionalidade específica. Assim, novas técnicas e tecnologias vão paulatinamente modificando o seu ambiente, criando recursivamente um contexto cada vez mais favorável à sua adoção, de forma que num momento posterior seja impossível não adota-las (veja artigo que publicamos sobre Google as Universidades brasileiras).

    Simetricamente, quais seriam nossas técnicas, nossas tecnologias que poderiam promover as formas de vida e cuidado que desejamos propagar?

    ***

    Em resumo: se nossas instituições e os canais de mediação política são importantes, porém insuficientes; se a ciência e tecnologia, participam cada vez mais da criação de artefatos que influenciam nossas vidas; e se há um crescente processo de delegação da agência à mediação técnica, neste cenário talvez a criação e a resistência tecnopolítica seja um importante campo de lutas.

    Certos arranjos sociotécnicos são capazes de informar e produzir efeitos sobre seu entorno de maneira a produzir certas configurações de mundo. Destaco duas propriedades neste processo de propagação e estabilização: a recursividade e a reticulação. Juntas elas abordam o problema de escala (micro, meso, macro) de uma outra maneira. Nós, cientistas sociais, poderíamos trabalhar mais com os engenheiros, cientistas da computação, arquitetos, médicos e sanitaristas para aprender juntos a “construir coisas”.

    Um exemplo (veja ensaio \”Do protesto aos arranjos tecnopolíticos\”): “a criação da pílula anticoncepcional, o protocolo TCP/IP da internet e o telefone celular são exemplos de artefatos técnicos-científicos que produzem arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares. Sua forma de adoção e propagação vai gradativamente modificando as relações sociais através do seu uso, e os efeitos de sua adoção nas pontas (sujeito individual ou máquinas) cria mecanismos de reforço sistêmico. […]

    Recursividade: Uma prática, uma tecnologia, uma organização que atue recursivamente está desenhada para a resolução prática de um problema, cujo modo de ação dá-se mediante a criação de sub-rotinas que atacam frações de um problema maior, e a cada movimento ela volta à sua função (missão) original, porém agregando um “aprendizado” que a torna mais eficiente. Este aumento de eficiência (ou ganho de poder) acontece também porque além de resolver partes do problema (diminuindo a força do seu oponente) ela modifica gradualmente o seu meio de ação (meio-associado), criando um ecossistema mais favorável à sua execução. Ou seja, um artefato recursivo é um dispositivo prático (material-simbólico) que executa um programa (uma ação normativamente orientada) cuja eficiência está na transformação do seu meio-associado e não apenas na realização de um objetivo final abstrato). Como efeito, a recursividade apoia-se na produção de uma “comunidade” ou de “públicos recursivos” que dão sustentação ao processo.

    Reticulação: A reticulação é um processo de propagação não-linear e rizomático de uma estruturação emergente criando níveis subsequentes de estruturação de uma realidade. Quando uma prática, uma tecnologia, uma organização se reticulariza, significa que ela é capaz de tornar durável, de diferentes formas, o seu programa de ação, criando níveis crescentes de estruturação. Como efeito, ela amplia sua capacidade de determinação sobre um campo de possíveis. Ou seja, a reticulação dá maior consistência e força para seu programa de ação (PARRA, 2018).

    ***

    A título de contra-exemplo examinemos dois arranjos sociotécnicos que podem produzir fortes agenciamentos de orientação neoliberal.

    Proliferam hoje diversas tecnologias digitais portáteis, tanto os APPs de smartphones como os novos wareables (relógios ou roupas) destinados a fazer a coleta permanente de informações produzidas por nossos corpos. Essas tecnologias são adotadas por milhares de pessoas e permitem a coleta, organização e disponibilização dessas informações em diferentes plataformas. São hardwares e sofwares frequentemente corporativos (mas há também versões em software livre) que criam novas possibilidades de análise, tanto para os indivíduos usuários como o bigdata realizado pelas grandes empresas que centralizam e comercializam esses dados. Aqui, há tanto a formação de uma experiência de individualização na produção e análise dos seus dados pessoais (que pode reforçar uma percepção mais individualizante da saúde), como também a formação de novas comunidades de usuários que compartilham dados e criam novas analíses e diagnósticos sobre problemas específicos. Em ambos os casos, vemos o fortalecimento de um conhecimento que se apoia numa concepção de corpo informático (sem “corpo”), pois os dados são vez mais descontextualizados quando a coleta é seletiva e não leva em conta elementos contextuais, mas também em alguns casos a constituição de novas comunidades que se constituem através da partilha de suas experiências. Hermínio Martins refere-se aquela primeira “forma de conhecer” descorporificada (baseada na metafísica informacional) como ciborgues epistêmicos (veja apresentação \”Algoritmos Encarnados\” realizada no Medialab-UFRJ).

    Neste caso, a crescente adoção dessas tecnologias, ao mesmo tempo em que produz uma nova forma de conhecimento sobre o corpo, produz outro modo de relação com a saúde (percebida aqui cada vez mais numa chave individualizante). Ao mesmo tempo, ela participa de uma economia política informacional baseada na exploração dos dados pessoais (seja para os seguros médicos como para a indústria farmacêutica). A depender do caso, temos ainda a produção de novas formas de governo biopolítico: basta imaginar a utilização de mensuração glicêmica ou da análise da atividade física dos usuários associada à gameficação da vida (seja para o cidadão ou para o consumidor de planos de saúde).

    Mas o contra-exemplo que melhor se encaixa nessa discussão talvez seja os dos novos sistemas de intermediação de consultas médica e exames laboratoriais: Dr.Consulta, Doutor123, CiadaConsulta. Desconheço o funcionamento em detalhes desses serviços, por isso destacarei apenas os elementos que dialogam com os problemas descritos acima (esses serviços merecem estudos minuciosos sobre sua forma de criação e expansão). Podemos ver aí como a recursividade e a reticulação vai acontecendo através da adoção das tecnologias móveis pelo usuário, combinadas ao georeferenciamento, à analise de dados pessoais, infraestrutura física e a gestão do trabalho (na forma de um capitalismo de plataforma).

    São tecnologias – entendidas aqui como ambientes dentro dos quais modos de vida são produzidos – que se efetivam através da criação e propagação de um arranjo sociotécnico que produz um tipo de experiência com a saúde. Alguns desses serviços já estão em operação há alguns anos, e é possível observar como vão expandindo pouco a pouco sua infraestrutura de atendimento fisico. Gradativamente, elas vão se reticulando na vida social, ampliando sua presença, e de forma recursiva vão modificando seu meio de maneira a torná-lo mais favorável ao seu funcionamento.

    ***

    Temos aí em operação (exemplo da articulação micro-meso-macro):

    1. Os efeitos macropolíticos relativos à regulação jurídica das atividades da saúde, criação de dispositivos burocráticos e legais que ampliam os agenciamentos privatizantes, mudanças nos marcos regulatórios dos direitos sociais, a economia política informacional baseada na exploração dos dados pessoais. Mas também a dimensão cultural e discursiva propagada nos meios de comunicação (tanto nos meios corporativos como nas redes de autocomunicação de massas). Nesta camada ainda adicionaria a emergência de novos saberes populacionais que correspondem a novas forma de exércício do poder. Para além do saberes disciplinares e populacionais que dão forma ao modo de governo biopolítico, bem descritos por Foucault, participamos agora da emergência da governamentalidade algorítmica apoiada nos saberes simulacionais, no big data e na estatística preditiva (veja o trabalho de Antoinette Rouvroy).

    2. No nível mesopolítico poderíamos identificar os diversos mecanismos de gestão e organização do trabalho, os regimes de visibilidade e sensibilidade que determinam o que conta e o que não conta numa organização, as formas de mensuração, quantificação, avaliação e tomada de decisão. Quais os limites entre o trabalho visível e o trabalho invisível do cuidado?

    Novamente, é na organização do cotidiano, na produção e reprodução da vida que um amplo conjunto de técnicas, procedimentos e tecnologias utilizados irão constituir modos de vida específicos.

    3. No nível micropolítico um modo de subjetivação baseada numa relação individualizada e mercantilizada com a saúde. Os modos de subjetivação, conforme analisa Suely Rolnik, apoiam-se em dois modos de conhecimento sensível. “A primeira é a experiência imediata, baseada na percepção que nos permite apreender as formas do mundo segundo seus contornos atuais…quando vejo, escuto ou toco algo, minha experiência já vem associada ao repertório de representações de que disponho e que, projetado sobre este algo, lhe atribui um sentido”. Mas há “um outro tipo de experiência que a subjetividade faz de seu entorno, é a que designo como “fora-do-sujeito”, é a experiência das forças que agitam o mundo enquanto corpo vivo e que produzem efeitos em nosso corpo em sua condição de vivente. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver e de sentir aquilo que acontece em cada momento (o que Gilles Deleuze e Félix Guattari denominaram, respectivamente, “perceptos” e “afectos”)” (ROLNIK, 2018).

    Lembro-me aqui do filme Daniel Blake. Em diversos momentos, quando Blake vai ao posto do serviço público para solicitar uma licença médica ou o seguro desemprego ele vive um conflito entre duas ordens distintas: sua experiência, sua cultura, sua subjetividade de trabalhador formada durante os anos de Welfare State constituí-se a partir de uma contrato social. Ele se relaciona com o aparato público-estatal através dessas representações instituídas. Entretanto, nada mais funciona como antes: os funcionários tem que atende-lo sob determinados protocolos, ele tem que produzir resultados e passar por distintos testes para ter sua condição reconhecida. A situação cria um conflito intransponível para ele, a formação do Estado-Empresa. As reações seguem então por duas direções: as estratégias individualizantes que encontram apoio nos modos de subjetivação neoliberal (Você-S/A); as estratégias coletivas que buscam constituir um território comum de experiência e lutas, capaz de tecer a vida.

    Acontece que, quando pensamos a micropolítica, atentamo-nos quase que exclusivamente à dimensão das representações, àquilo que podemos enunciar e disputar discursivamente. Negligenciamos, frequentemente essa dimensão dos afectos e perceptos que está além e aquém do sujeito: o pré-individual e o supra-individual. Por isso sem uma política de subjetivação, capaz de modificar o regime de sensibilidades, a relação com o público e o Comum são subtraídas.

    ***

    Pensando agora nos aspectos mais “proximais”, no âmbito de uma micropolítica ou de uma mesopolítica, gostaria de perguntar e imaginar qual é nossa tecnopolítica? Quais são nossas tecnologias de produção do comum? Que dispositivos, artefatos, protocolos, infraestruturas já temos ou que podemos criar para promover e dar sustenção à saúde como um Comum?

    A partir dos problemas descritos acima, imagino que uma tecnopolítica do comum seria portadora de algumas características.

    Em primeiro lugar trata-se de tecnologias que produzem uma comunidade e que são apoiadas por essa comunidade. Neste sentido, uma tecnologia da comum é sempre uma tecnologia de produção de vínculos, é uma tecnologia de pertencimento (para usar uma expressão de Isabelle Stengers). Uma cozinha coletiva numa ocupação de sem-teto (como analisa Alana Moraes) é uma importante tecnologia de pertencimento que abriga processos terapêuticos. Uma certa metodologia de conversa e escuta pode ser pensada também como um tecnologia de produção do comum (como bem relata Antonio Lafuente sobre a experiência dos alcóolatras anônimos).

    As tecnologias do comum também transitam da simples participação (relação usuário-serviço) para o reconhecimento da condição de co-produtores, onde tod@s estão co-implicados na produção. Que tecnologias temos no âmbito política nacional de Sáude que atendem a essa condição? Talvez as experiências dos conselhos de participação popular, os fóruns, possam ser pensadas como exemplos dessas tecnologias. Após mais de 20 anos de implementação das experiências dos conselhos (na educação, saúde…), já podemos reconhecer algumas estratégias que consideramos mais potentes e outras que convertem a participação em mecanismos de captura e gestão (governamental, partidária, corporativa).

    Transitar de uma cultura participacionista para uma política orientada pelo “princípio do comum”, nos termos de Laval & Dardot, implicaria numa outra forma de composição da política, modificando o regime de subjetivação política e de produção dos sujeitos de direitos; e numa outra forma de composição entre o público-privado, econômico-social, reconhecendo, como o fazem as feministas, que toda a vida é política:

    “a identidade do princípio (o comum) não suprime a distinção das esferas (social-econômica, público-privada, politica, e publica-publica), mas tem a função de organizar o social de tal maneira que seja possível uma deliberação na esfera pública que não fique prisioneira dos interesses de tal ou qual categoria socio-profissional. Isso só pode acontecer se a esfera da produção e dos intercâmbios se reorganize a fundo a partir do autogoverno do comum” (Laval & Dardot).

    Imagino também que nas tecnologias de produção do comum o conhecimento é algo vivo, e portanto, sua forma de produção-circulação e seus regimes de uso devem ser vetores de resistência às diversas expressões do capitalismo cognitivo. Recentemente, a Fiocruz desenvolveu um conjunto de referências que darão forma a uma política de ciência aberta. No momento em que o conhecimento acadêmico e científico é cada vez mais colonizado pelas dinâmicas de fechamento, privatização e mercantilização (seja no ambito dos periódicos científicos e na expansão dos direitos de propriedade intelectual), defender a ciência, a cultura e o conhecimento enquanto um Comum é uma ação fundamental.

    Para isso é necessário criar infraestruturas próprias, orientadas pela noção de “soberania tecnológica”, protocolos, formas de governança que permitam efetivar e lutar pela abertura da ciência. Importante destacar aqui que a noção de “livre e aberto” não se confunde com a noção de “grátis” (free as an freedom of speech, not free beer). Ou seja, promover a ciência enquanto um Comum exige a criação de formas de co-responsabilidade no uso, capazes também de dar sustentação à todo o ecossistema que produz esse Comum.

    As tecnologias de produção do comum também estão orientadas pelo reconhecimento e maior centralidade conferida à experiência do cidadão e d@s trabalhador@s da saúde. Como diz Lafuente: “todos somos expert em experiência”. As tecnologias cognitivas devem então estar alinhadas à capacidade de escuta de diferentes saberes. Isso significa também, que talvez essas tecnologias sejam dispositivos de desacelaração (modo slow). Passamos então de um regime de dominância dos experts para um regime de co-existência entre diferentes saberes da experiência. Ao darmos maior centralidade à experiência, ao saber vivo, interrogamos portanto a idéia dos corpos informáticos dos ciborgues epistêmicos. Novamente, não se trata de colocar-se contra as tecnologias. Ao contrário, penso em formas tecnológicas que dêem lugar aos ciborgues (no sentido de Haraway) encarnados. Ou seja, modos de conhecer e de composição que reconheçam nossa cultura técnica e nossa natureza híbrida.

    São também arranjos sociotécnicos que reconhecem a agência dos objetos, substâncias e máquinas. Os elementos não-humanos devem “ter voz”. Do contrário, corre-se o risco de apagarmos os efeitos de que eles são portadores. O debate sobre os alimentos transgênicos e toda sua relação com a cadeia produtiva e alimentar é um ótimo exemplo desse problema. O mesmo se aplica às nanotecnologicas. Na somatória de algumas dessas características entramos em tensão com aqueles modos de conhecimento científico que estão apoiadas na convergência N.B.I.C. Novamente, defendo que não se trata aqui de confrontá-los, mas sim de criar formas de convivência entre esses diferentes regimes de conhecimento, buscando, todavia, alternativas que fortaleçam o Comum e impeçam a sua apropriação e expropriação.

    Finalmente, nos termos da Isabelle Stengers, temos que pensar numa cosmopolítica que seja capaz de abarcar uma diversa ecologia de práticas. Por isso, uma tecnopolítica do comum implica numa outra política (de saberes e poderes): gosto de fabular em torno da transição de um “saber-poder governar” para um “saber-fazer habitar”. Portanto, são tecnologias que são concebidas e implementadas dentro de uma política do cuidado. O cuidado é um trabalho material, é um fazer do corpo. Em certo sentido, o Programa Sáude da Família em sua versões mais comunitárias, proximais, talvez possa ser pensado como um bom exemplo dessa tecnologia de vínculos, de pertencimento multiplos e de produção de sáude coletiva. Necessitamos de tecnologias de nos permitam co-habitar o mundo, que reconheçam nossa interdependência. Esse é um critério muito claro face à tecnopolítica neoliberal que produz isolamento travestida de liberdade; que produz hipertrofia do privado sob a ilusão do compartilhamento, corroendo a possibilidade de um mundo comum.

    Enfim, como podemos fortalecer esses arranjos sociotécnicos que julgamos relevantes? Como podemos ativar um devir-comum da saúde pública? Como podemos criar mecanismos de recursividade e reticulação que ampliem as condições de produção e sustentação das formas de vida, cuidado e saúde que desejamos propagar?

    (*) Mesa Redonda 55 – Direito à saúde, direito a uma vida comum: novas formas de lutar em tempos de neoliberalismo.

    Coordenador: Henrique Sater de Andrade – UNICAMP (SP)
    Expositor: Tadeu de Paula Souza – UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO
    SUL (RS)
    Expositor: Henrique Zoqui Martins Parra – Universidade Federal de São Paulo (SP)
    Expositora: Alana Moraes de Souza – Museu Nacional/UFRJ (SP)

     

  • As novas eras não começam de uma vez: saúde, doença, começos de mundos

    Alana Moraes

    texto apresentado no 12 congresso brasileiro de saúde coletiva, ABRASCO. Julho 2018*

     

     

    Em um texto publicado no começo desse ano, o filósofo espanhol Amador Fernandez Savater  nos lança uma pergunta que eu gostaria de retomar aqui. É possível ler a conjuntura política não simplesmente como uma disputa entre diferentes grupos pelo poder, mas como um choque entre diferentes percepções da vida social, entre diferentes sensibilidades da vida em comum? Eu faria apenas uma pequena alteração na pergunta porque penso que não se trata apenas de “percepções da vida social”, mas, radicalmente, diferentes modos de viver.

    Como lembra um outro filósofo, o Agamben, “Nós vivemos depois da falência dos povos” e agora que ocidente também experimenta um modo particular de falir podemos, ao menos, nos deslocar para lugares dos escombros mais interessantes. Tentando caminhar com a pergunta do Amador, a hipótese que gostaríamos de abrir aqui é a de que levar à sério a crise em que vivemos é experimentar uma filosofia do fim do mundo. Essa hipótese nos exige arriscar um pensamento que possa convocar aqueles e aquelas contra os quais o capitalismo e o pensamento moderno vem erguendo cercas, fogueiras e tribunais desde o seu principio – aqueles e aquelas, portanto, que são os verdadeiros especialistas em fim de mundo (ampliando ainda mais a proposição do Viveiros de Castro): mulheres pobres, populações indígenas, o povo negro – aquelas e aqueles que tiverem seus mundos dilacerados materialmente mas também as suas cosmovisões variadas: xamãs, feiticeiras, curandeiras, rezadeiras, guerreiros, bruxas, tias, vizinhas – muitas versões do comum, de uma metafísica do sensível e de produções políticas assentadas em paradigmas do habitar uma vida, de insisti-la, e não governá-la.

    Pensar com os especialistas do fim do mundo é também nos reconciliar com uma ecologia da prática. Não que acreditemos na separação entre pensamento e vida corpórea, entre fabulações e possibilidades de criação de infra-estruturas – como sempre quiseram nos convencer os modernos – mas é admitir, de uma vez por todas, que nossa guerra não é uma guerra de verdades (narrativas, discursos, mesmo de ideias), mas é uma guerra de corpos e afetos, o que passa entre eles, o que move e o que vincula – algo que Isabelle Stengers insiste quando fala que uma “ecologia das práticas” nos exige um senso de responsabilidade da qual a disputa de verdades nos permite escapar. Ela nos obriga a pensar a partir de situações específicas e agir como praticantes, não mais como mero “formuladores” cujos corpos não se implicam em nada.

    O neoliberalismo, olhado a partir do ponto de vista das especialistas do fim de mundo, é apenas a última versão, bem atualizada, é verdade, da pulsão mais importante desse modo de produzir e governar (mas todos os usuários de máquinas sabem bem o quanto as atualizações são importantes!). A partir desses pontos de vista é possível compreender que o movimento majoritário e mais significativo ao longo do história desse sistema econômico não foi a “exploração da mão de obra assalariada”, mas foi a destruição de modos de vida e a expropriação das formas coletivas de cuidado e conhecimento. Os pontos de vista dos filósofos do fim do mundo, como no perspectivismo ameríndio, não equivalem a “visões” diferentes sobre determinado ponto – os sujeitos antecedendo a realidade – mas, ao contrário, são modos diversos de agenciamentos (humanos, não-humanos, outros) dessa realidade que constituem os sujeitos, muitos mundos incorporados e não apenas \”percepções\” desses mundos.

    Segundo o filósofo xamã yanomami Davi Kopenawa o pensamento do branco atua como um espírito canibal, um espírito xawarari que se movimenta de forma epidêmica e descontrolada. Necropolítica, segundo Mbembe, não mais a biopolítica do delírio de fazer viver do Estado do bem estar social, mas uma declaração descarada e obscena do fazer morrer e, portanto, da produção continua de corpos matáveis e zonas de morte. O fazer-comum seria então a luta pela produção permanente de mundos não cercáveis, mas também o reconhecimento de que a prática de conhecer e de pensar são inseparáveis das múltiplas relações que tornam possível o mundo que estamos pensando, as vidas que estamos reconstruindo e celebrando. Cuidar e relacionar são práticas que nos parecem muito importantes aqui, mas quase sempre apagadas nos registros oficias da “luta de classes”. “Evitar a morte, a desordem e o sofrimento” e isso é o que nos une, fala Mauro Almeida.

    Pra que os marxistas não fiquem muito bravos, eu venho pensando também como o próprio Marx foi marcado em seu pensamento pela força do comum diante do Estado – ele que também era um filósofo do fim de um mundo, ainda que seu otimismo com a noção de progresso tenha o afastado das epistemologias dos mundos despedaçados por algum tempo. Mas a intuição de Marx de que a luta de classes era também uma guerra entre mundos se expressa vivamente no modo pelo qual ele foi afetado com o problema do chamado roubo de lenhas, a luta de camponeses europeus empobrecidos pelo direito à ao uso comum da floresta, ao uso das lenhas que se tornaria crime, um arcabouço legal era então erguido para transformar em delito o que antes era a vida em comum. Marx toma parte da situação e com a inteligência própria daqueles que se deixam arrastar pela paixão das lutas, fabrica sua artimanha argumentativa: o movimento do capital se faz moribundo, se apropriando do que é comum. A propriedade estabiliza, ergue cercas contra os usos incertos, destrói a criação coletiva da auto-organização e o faz em nome do Estado. Transforma a natureza, os corpos e o conhecimento em \”recursos\”, o uso livre em \”crime\”.

    Mas a revolta da comuna de Paris, o levante que levava o comum no nome, também transformou significativamente o pensamento de Marx – essa é uma história praticamente apagada pela ortodoxia marxista posterior (mas agora retomada por Jean Tible em seu Marx Selvagem, um Marx de retomada). Ao se deparar com o levante de Paris, Marx se deu conta que o conflito capital versus trabalho não se daria necessariamente nas fábricas, mas a revolta – protagonizada pelas mulheres e suas cozinhas coletivas, creches e barricadas que estavam defrontando-se com a degradação permanente de seus modos de vida – era tecida por paixões de outro tipo: o desejo de retomar a política para a vida, de organizar a própria vida e de resistir à expropriação da felicidade. “Não basta aos trabalhadores substituírem a gestão do Estado, é preciso destruí-lo”. Marx contra o Estado, vejam!

    Marx-xamã nos brinda agora com um mundo outro, costurado por vários outros mundos e cantos de guerra. Seria possível pensar em um marxismo crítico da modernidade e seus aparelhos conceituais? Um Marx-do-comum, por tanto, que como a comuna de paris ou os sovietes, aldeias ou quilombos, pode pensar em uma prática de democracia na vida, pela diferença e o exercício coletivo da felicidade? Marx mesmo desconfia do pensamento ocidental, quando por diversas vezes, trata o capitalismo como um \”mundo enfeitiçado\”, abstrações e fetiches capitalistas atuando como feitiços do pensamento.

    Não vou, eu própria, cometer a indecência de defender o Fim do Estado justo agora quando precisamos lutar com todas as forças contra todos os desmontes e conquistas. Mas uma boa filosofia de fim do mundo pode reconhecer confortavelmente hoje que o capitalismo não nos expropria apenas materialmente, mas também imaginativamente quando nos convence que todas essas experiências outras de organização da vida fazem parte de um passado e não mais de uma possibilidade latente. Quando nos convence que o SUS é apenas uma política de Estado e não uma prática coletiva de pensar os corpos e suas relações, o território e a proximidade da vida; Quando nos convence que a indústria farmacêutica é uma conquista civilizatória e não uma apropriação privada e rentista de modos coletivos de conhecer, de pesquisar e transmitir conhecimento sobre a vida;

    Não se trata, portanto, de defendermos um comum contra o público, mas ampliar e democratizar o público vai depender de políticas que reconheçam o comum como a única saída possível para uma vitalidade democrática. Na última vez que frequentei uma ala psiquiátrica de um hospital público em São Paulo para acompanhar minha avó, naquele momento apresentando um quadro já avançado de Alzheimer, me dei conta que dentro daquele ambiente hospitalar havia uma ecologia muito heterogênea de conexões entre humanos, máquinas, entre gritos e conversas quase mudas, pessoas que dormiam, trocas de informação sobre os modos diversos de manifestação da doença, receitas caseiras que poderiam amenizar sintomas. Piadas sobre memória e esquecimentos. Havia muita gente, mais de 50 macas se avizinhando e nenhum médico presente, apenas uma enfermeira. Naquele momento me dei conta que eram as mulheres acompanhantes dos doentes que gestavam o cotidiano da ala: elas que ajudavam seus parentes e os parentes de outras a levantarem das macas, a caminharem um pouco pelo corredor, elas que supervisionavam os horários dos medicamentos e construíam uma comunidade de afetadas por aquela situação, se revezavam.

    Outro bom exemplo da coexistência entre o público e o comum vem dos dias de visita nos presídios brasileiros. São as mulheres, companheiras e mães daqueles que estão nas penitenciarias que, semanalmente, garantem alguma dignidade para os encarcerados, uma vida possível de ser vivida, tratam doenças com receitas caseiras, oferecem alimentos que curam, denunciam os mal tratos, torturas e violência de todo tipo.

    Podemos pensar também nas ocupações urbanas dos sem-teto nas periferias, atraindo pessoas que desejam acessar o direito à moradia, mas que acabam experimentando uma nova vida coletiva, a produção de uma outra temporalidade (experimentar o tempo livre outra vez!) onde se pode retomar o engajamento sobre si, contornar as paralisias e medos e tornar-se alguém que importa na produção de um comum. Uma vez ouvi uma mulher na ocupação explicando para uma outra que chegava o porquê de muita gente no entorno abandonar cachorros dentro de uma ocupação: “É porque eles sabem que aqui o cachorro vai viver!”. Vitapolítica contra a necropolítica se atualizando na prática constante de fazer alianças, inclusive inter-espécies.

    Na verdade, podemos até nos perguntar se o “público” seria mesmo possível sem o comum. O que essas mulheres, filósofas de fim de mundos, nos oferecem enquanto paradigma, enquanto possibilidades epistemológicas de cura, é o que a antropóloga Annemarie Mol conseguiu bem captar em seu trabalho no qual ela opõe a lógica do cuidado contra a lógica da escolha.

    A lógica da escolha é aquela que faz o médico apresentar um diagnóstico e falar: “agora você precisa escolher um tipo de medicação ou de tratamento”. Ela presume que a doença é algo estranho, uma zona sufocante na qual a gente só pode trabalhar no sentido de sua superação – e você estará, mais uma vez, irremediavelmente sozinha. Pensar pela lógica do cuidado, ao contrário, é pensar pela vulnerabilidade do corpo e criar uma zona de relação entre o cuidado e o cuidador, uma zona na qual podemos nos engajar juntos, com cumplicidade, onde podemos pensar pela especificidade da relação de cada doença com um determinado corpo. A lógica da escolha transforma a relação no par cliente-consumidor. A lógica do cuidado, desloca ambos os lados: pensar pela doença é deixar de se constituir como um “sujeito autônomo”, mas estar atento aos sinais do corpo, ao mundo, aos sonhos e intuições.

     O paradigma da cidadania ocidental moderna é entendida como a capacidade das pessoas controlarem seus corpos – deixarem o corpo fora da arena publica e escolherem, continuamente, os melhores representantes. A concepção moderna (e mais hegemônica) de “política pública” também tem a ver com a crença nessa relação cidadão-cliente; indivíduo-beneficiário. Mas o corpo doente é incontrolável, ele é errático, ele necessita de cuidado permanente, ele necessita ser pensado permanentemente. Não se trata de uma servidão em relação à doença ou ao cuidador, mas sim de buscar uma heteronomia que potencialize outros vínculos e relações.

    Por isso Annemarie Mol defende o paradigma do pacientismo, esse fabricado na lógica do cuidado, como fundador de uma outra hipótese democrática; é preciso se afinar com as escutas permanente do corpo; produzir aliança entre tecnologia e cuidado, compreender que esse sujeito autônomo cidadão masculino não existe por si só, ele é fruto de relações de cuidado, de uma rede de interdependência. O paradigma pacientista exige tempo livre e talvez seja essa a luta dos nossos tempos: a luta pelo próprio tempo. E não é desprezível o fato de que “ficar doente” tem sido uma prática constante de resistência ao capitalismo: além de romper com tempo do trabalho, a doença pode abrir um campo de relações outra vez – é a reconexão com um corpo, ainda que seja no terreno limite da vulnerabilidade. A luta de classes hoje poderia ser bem descrita pela luta daqueles que tempo contra aqueles que não tem; aqueles que podem pagar por curas e tratamentos contra aqueles e aquelas que insistem em criar relações de cuidado, transmitindo saberes ancestrais, mas também lutando para que o posto de saúde não desabe.

    Por fim, pensar uma radicalização democrática passa por sabermos criar tecnologias de pertencimento. Para os indígenas a guerra e festa são duas dimensões básicas da vida porque justamente são aquelas onde é possível estabelecer alianças. \”Não façam bebês, façam parentes!\” é o slogan feminista de Donna Haraway que aposta na prática de alianças, o parentesco como um idioma vivo de conexão.

    Não é à toa que tanto os evangélicos como os membros do PCC se chamem de “irmãos”, que as mulheres mais velhas nas periferias são chamadas de “tias”. Se o neoliberalismo age fundamentalmente esgarçando relações, rompendo relações, a prática do comum (e também o que é público democratizado) devem ser dimensões fundamentais de produção de tecnologia de pertencimento. Na cracolândia, muitas pesquisas vem apontando que 1/3 das pessoas que permanecem no fluxo não é usuário, mas gente à procura de conexões – egressos do sistema penal, pessoas com problemas de violências domésticas e de outro tipo. As filósofas do fim do mundo vem nos mostrando justamente que nossa política, à curto prazo, precisa ser aquela que possa reconstituir os refúgios.

     Se fizéssemos um exercício de continuar simplificando os antagonismos dos nossos tempo, poderiamos dizer também que o Estado neoliberal é aquele que age rompendo e destruindo relações, enquanto o comum é a pratica permanente de conectar, de relacionar. Pra terminar, com mais uma filósofa do fim do mundo, eu gostaria de ecoar a frase da Bruna Silva, Mãe do Marcos Vinicius, o menino que foi assassinado na Maré quando ia para escola. Carregando para todos os lugares o uniforme manchado de sangue, Bruna tem repetido: “O Estado está doente” “O Estado levou meu filho”. Em uma conversa que tivemos, Bruna contava das profundas conexões que conseguiu estabelecer a partir desse sofrimento incontornável. “Encontrei a mãe de um policial que foi morto em uma operação. Nos abraçamos, choramos. Eu falei pra ela: o mesmo Estado que matou meu filho, matou o seu também”. Do mesmo modo Bruna fala do encontro que teve com a mãe de Marielle: \”Sentimos que a filha dela agora está cuidando do meu filho lá no céu, e eu estou aqui agora cuidando dela\”.

    As mães que perdem seus filhos vitimas da violência policial tem fabricado um dos idiomas de conexão mais potentes dos nossos dias: “nossos mortos tem voz” elas repetem, narrando e atualizando permanentemente a memória dos seus filhos: o que faziam, que musica ouviam, o que gostavam de comer. Elas atuam justamente contra o apagamento do Estado, mostrando que os meninos na verdade são filhos, irmãos, são maridos, faziam parte de uma trama de relacionalidade que também é morta quando eles são mortos – elas são insistente conectoras, de imagens, de memórias, quase todas adoecem e evocam o mundo dos vivos e dos mortos para expressar sua luta por justiça. “Eu vou falar da minha luta, vou falar do meu filho, mas eu não vou chorar. Porque quando eu choro ninguém presta atenção no que eu falo”, insiste Bruna.

    Nossa nova hipótese democrática vai precisar ser fabricada a partir dessas experiências que dilatam o que conhecemos como \”política\”, nos chamam para um mundo povoado de elementos não visíveis. Produzir resistências assim como um novo paradigma de direitos é, portanto, assumir que nossa guerra é também uma guerra de mundos, fazendo da nossa própria existência um campo de batalha. Silvia Cusicanqui, filósofa aimara cita o lênin quando ele diz que a gente precisa sonhar, mas com a condição de praticar nossos sonhos permanentemente, de não abandonar a realidade – nosso projeto de democracia radical deve conter Response-Ability, essa habilidade contínua de responder à situações e não á uma lógica abstrata e universal de emancipação.

    Enfim, Nos reapropriar de nossa inteligência coletiva porque o pensamento branco, alerta Kopenawa, se esfumaçou e se fechou às outras coisas.

    * esse texto é fruto de trocas e reflexões compartilhadas nesses últimos tempos com Herique Parra, Adriana Viana, Ricardo Teixeira, Jean Tible, Bárbara Lopes, Fábio Zuker, Gabriela Acerbi, Débora Del Guerra, Pedro Ekman, Paula Ordonhes, Julia Ruiz e muitas outras.

    Foto de capa: apresentação de rua do Ilú Oba de Mim

    Para mais informaçãoes acesse o site do Ilú Oba de Mim 

  • Brasil e a democracia securitária: nota contra a sentença dos 23 da Copa de 2014

    Brasil e a democracia securitária: nota contra a sentença dos 23 da Copa de 2014

     

    Sob o olhar de um juiz, duro como um jejum,

    Caiu, por acaso, um pavão laranja-azul:

    Na mesma hora virou cor de carvão

    A espaventosa cauda do pavão.

    (…)

    Nem os meus versos escapam à censura:

    São interditos, sob pena de tortura.

    (…)

    Somente, acocorados com rancor sob os livros,

    Ali jazem, deprimidos, os juízes.

    Vladimir Maiakóvski, 1915

     

    O Brasil vive tempos sombrios. Enquanto o cenário eleitoral se divide entre uma direita proto-fascista que inventa notícias e ameaça pesquisadoras nas universidades e uma esquerda majoritária que se ocupa em salvar sua burocracia partidária, a vida cotidiana sucumbe ao mais duro e mortal autoritarismo. Intervenção militar no Rio de Janeiro; recorde de pessoas encarceradas (terceira maior população carcerária do planeta) e assassinadas violentamente (cerca de 60 mil homicídios por ano); massacres nas periferias e penitenciárias. A lista é aterradora e temperada com protagonismo de militares na vida política do país.

    A execução há quase 130 dias, brutal e cirúrgica, de Marielle Franco, vereadora do PSOL pelo Rio de Janeiro é a síntese do estado em que se encontra o país. O Brasil já não é mais uma democracia, embora não seja ainda uma ditadura. Vivemos em uma democracia securitária que tem no poder judiciário e no sistema de justiça criminal seu baraço forte e assassino.

    No dia 17 de julho de 2018, o juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau, da 27º Vara Criminal do Rio de Janeiro, emitiu a sentença condenatória de 23 pessoas detidas em manifestações contra a realização da Copa do Mundo da FIFA em 2014. Num inquérito policial tão absurdo que chegou a indiciar como suspeito o anarquista Mikhail Bakunin, morto há mais de um século. O processo, que se arrastava há 3 anos, é cheio de falhas e ilações, mas mesmo assim chegou a uma sentença de 7 anos por associação criminosa (art. 288 do Código Penal) e corrupção de menores (art. 69 do Código Penal e 244B do ECA). Mas o que de fato se ataca é a liberdade de manifestação dos acusados. Essa sentença expõe como o terror é o artifício ordinário dos agentes da lei, do policial ao juiz, passando por seus servis carcereiros e respectivos mandatários políticos e empresários.

    Conhecido como “processo dos 23 da Copa”, o caso tem particularidades assustadoras e cela a repressão política que se abateu após as jornadas de junho de 2013. Essas 23 pessoas foram selecionadas por um inquérito policial e midiático que visa calar e capturar as maiores manifestações da história recente do país que levaram centenas de milhares às ruas. Manifestações que a partir de uma reivindicação específica relativa aos transportes coletivos e a vida nas cidades deflagrou uma série de lutas represadas por um governo que se dizia popular.

    A partir das jornadas de junho de 2013 os alvos das manifestações no Rio de Janeiro foram: a violência policial nas favelas e nas manifestações; as leis de exceção, como a Lei Geral da Copa nº 12.663/2012; as execuções no interior da Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que teve como símbolo o caso Amarildo de Souza; as remoções arbitrárias e violentas, como na Vila Autódromo e na Aldeia Maracanã; a repressão às greves selvagens, como a dos professores, em outubro de 2013, e dos garis, em 2014; além e reagirem contra a campanha midiática, à direita e à esquerda, que identificava os “black blocs” como terroristas perigosos.

     

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    A sentença do juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau visa atingir e calar toda forma de contestação que ouse desafiar os poderosos, suas máfias e suas milícias. Ela, de certa forma, reconhece a potência de junho de 2013, como algo que ainda está acontecendo nas lutas sociais e, assim, se soma às muitas reações contra esse acontecimento que, mesmo após 5 anos, segue incompreendido e temido por muitos.

    As palavras do juiz expõem seu ressentimento em relação aos acusados. No texto, ele repete diversas vezes que os manifestantes possuem uma “personalidade distorcida”. Reconhece não possuir provas factuais, além de objetos apreendidos na casa de um dos acusados, mas refere-se a “crime[s] de mera conduta e de perigo abstrato”. Por fim, atribui a liderança das manifestações à uma das acusadas sem qualquer justificativa lógica e seguindo um enredo midiático.

    Mas o que mais irrita o juiz Itabaiana é o anarquismo dos manifestantes. Em certo momento ele aponta o que chama de “grupos de ação direta” como responsáveis pelos “atos de vandalismo e de violência”. Somando a ação direta como o que chama de “personalidade distorcida”, o juiz atualiza a imagem do anarquista como sujeito perigoso, aos moldes da psiquiatria do século XIX. Assim, deixa claro que além dos traços intoleráveis de seletividade e racismo característicos do direito penal, sua sentença é a expressão de seu delírio covarde e de sua ucronia conservadora.

    Essa sentença é um golpe violento às liberdades civis de um regime democrático. Por isso, ela precisa ser interrompida imediatamente! Do contrário, marcará, junto à execução de Marielle Franco, um ponto sem retorno no autoritarismo brasileiro.

    Repudiamos a sentença para além dos argumento legais. Juiz nenhum vale mais que um professor, um estudante ou qualquer pessoa que ousa questionar os atos dos poderosos, suas máfias, milícias e juízes com suas togas manchadas de sangue.

    Muitos dos alvos das manifestações de 2013 e 2104 encontram-se hoje presos por envolvimento em atos de subtração do erário público, o que prova a justeza de suas reivindicações ontem e hoje.

    Por tudo isso exigimos a liberdade aos 23 sentenciados!

    E contra o autoritarismo da democracia securitária no Brasil e seu judicoario autoritário, afirmamos:

    Todo preso é um preso político!

     

  • sobreviver ao fim do mundo

    sobreviver ao fim do mundo

    por Leila Saraiva

    publicado originalmente em: https://www.entranhas.org/titulo/

    Tendo a achar que há laços, vidas, conexões que, quando olhamos lá de cima, não conseguimos ver. Diante da destruição contínua operada pelo capitalismo e por essa atual fase de avanço neoliberal, algo segue sendo reerguido. Lembremos que atrás dos números, há pessoas. Pessoas que reconstroem e reinventam suas vidas, diante de projetos de separação, exclusão e fronteiras. Talvez elas não nos salvem (não é essa a ideia). Mas preciso acreditar que elas nos inspirem, com tudo o que são: contradições, capturas e, sim, potências. É nessas sementes cotidianas que talvez possamos reafirmar: como o capitalismo sabe destruir pessoas! E, ao mesmo tempo, como ele não entende nada, nada, sobre o que as constrói.

    Eu não sei a que horas Dona Antônia[1] acorda, todo dia, para chegar ao prédio da Universidade de Brasília onde trabalha. Sei, por conta dessas conversas que, vez por outra, tivemos nos intervalos das minhas aulas, que o caminho é longo e o expediente começa cedo. “Eu atravesso o mundo, entre a minha casa e a universidade”. São longas as horas que, no transporte coletivo cheio de todo dia, D. Antônia assiste o cenário mudando: das ruas quem sabe de terra de uma região do Entorno do DF para o concreto branco do Plano Piloto; mudam as cores, as pessoas, as perspectivas. D. Antônia, todo dia, atravessa o mundo para, enfim, sentar-se à mesa da recepção do prédio do Instituto de Ciências Sociais, onde trabalha como porteira. Ali, naquele lugar onde os acadêmicos conversam, fazem suas leituras e elaboram teorias – sobre os mundos que D. Antônia vive.Ela é uma senhora pequena, de sorriso fácil, que eu só conheço de uniforme. Gosta de fumar seu cigarrinho, na porta do prédio, enquanto conversa com seus colegas ou com um ou outro dos frequentadores/as do Instituto que porventura a veem por ali. Enquanto passam as horas, está acompanhada de sua bíblia, sempre à postos, na mesa em que trabalha. Me pergunto se ela já me disse há quanto tempo é funcionária terceirizada na universidade. Não consigo lembrar. Nossas últimas conversas foram, justamente, sobre a ameaça desses tempos acabarem: D. Antônia, como outra centena de funcionários/as terceirizados/as, anda com a espada da demissão na cabeça.

    Houve um dia em que espada deixou de ser fantasma e virou documento. D. Antônia recebeu, naquele mesmo prédio, o anúncio de sua demissão. O sorriso se desfez e o coração balançou. Ela se sentiu mal, naquele mesmo prédio. Diante do desespero para leva-la ao hospital, seu chefe reclamou: o carro da empresa não poderia ser usado para esses fins. Foi no carro de um professor, dirigido pelos colegas, que D. Antônia foi levada. Felizmente, não foi nada mais grave. Felizmente, a decisão da demissão foi revertida. Ninguém sabe até quando. O documento voltou a virar fantasma.

    ***

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    A ideia, as práticas, a urgência da austeridade[2]: ao menos desde 2016, esse discurso voltou a figurar, com toda força, nas mensagens espalhadas pelos de cima. Manchetes de jornais, comentaristas econômicos: não há o que fazer, a não ser aceita-la. “É mais ou menos como quando estamos com problemas de orçamento em casa: não há outra saída a não ser cortar gastos e esperar a crise passar”. Não é isso, afinal, que ouvimos todos os dias, num mantra encadeado? Se não tomarmos esse caminho duro, dizem, o que há de pior estar por vir – no melhor estilo do que Isabelle Stengers, uma mulher com quem gosto de pensar, chama de “alternativas infernais”. É isso, exatamente a mesma coisa, que D. Antônia escuta da reitora, dos decanos, dos diretores da universidade, quando eventualmente questiona sua demissão: é preciso cortar gastos [infelizmente, o gasto é você].

    Muita gente tem trabalhado exaustivamente para mostrar que não, esse não éo único caminho possível para resolver a crise econômica. Que não há uma única saída. Que a adoção de tais medidas é política e, portanto, uma escolha entre outras. Não tenho a pretensão de discutir nesse texto esses aspectos do que vivemos: para tal, recomendo a leitura do que tem produzido, por exemplo, a economista Laura Carvalho. O que queria é que pensássemos aqui o fundamento da austeridade – o neoliberalismo – não enquanto sistema econômico, mas como produtor de subjetividades. Como se sente D. Antônia, ao se ver dispensável? Como se sentem aqueles/as que, diariamente, seguem adentrando aquele mesmo prédio no qual D. Antônia vive suas angústias, mas caminham como se tudo estivesse no seu devido lugar? Mais: o que sustenta, diante de tudo, o sorriso no rosto de D. Antônia? Estará nele o segredo de nossa resistência? Se é também verdade que não me arrisco a responder essas perguntas, são elas que aqui me guiam.

    Entre as perguntas acima, talvez a que mais me intrigue – no sentido mais incompreensível –  seja a segunda. [É doido pensar como ela se liga necessariamente à primeira: como D. Antônia se sente?] Que força é essa, a que nos permite seguir nossas vidas diante de tragédias diárias? Como foi que nos habituamos a andar, impassíveis, diante de mundos que se despedaçam?

     

    Claro está que esse não é um hábito novo, inclusive entre esse campo amplo que chamamos de esquerda. Se focarmos especificamente na experiência brasileira, podemos afirmar, sem dificuldades, que o convívio com situações extremas de violência é mais que um evento, é uma força constituinte disso que chamamos de país. Nos acostumamos a seguir nossas vidas, apesar daquelas diariamente ceifadas da juventude negra; dos mundos indígenas massacrados; das mulheres trans que não podem fazer planos depois dos 35 anos; de mortes a pedradas de pessoas em situação de rua. Nos acostumamos, enfim, a separar aqueles cuja vida é sagrada, daqueles cuja morte é cotidiana.

    Tomemos como pressuposto, então, que essa separação é constituinte desse mundo que vivemos – um mundo que podemos chamar de colonial, moderno, capitalista, entre outras tantas possibilidades[não vou exatamente me arriscar aqui a entrar nessas discussões de conceito/origem]. Há quem diga, nessa mesma linha, que a própria ideia de Estado é baseada nessa exata operação: a de separar aqueles que o integram e aqueles contra quem temos que nos proteger. Aqui me refiro à Michael Herznfield [3] que, ao refletir sobre as práticas simbólicas do cotidiano da burocracia na Grécia, afirma que elas se fazem e se atualizam na criação de categorias de exclusão, fixando fronteiras entre quem pertence e quem não pertence ao Estado e, assim, atribuindo humanidade a uns em contraposição a outros. A não atribuição de humanidade resulta na impossibilidade de se afetar. A essa operação, de sermos capazes de nos indignarmos por uns enquanto ignoramos a outros, ele chama de produção social da indiferença. Se isso é parte da nossa forma [localizada] de fazer mundo, estaremos diante de algo muito distinto, nesse momento de acirramento do neoliberalismo? Não estaríamos, nesse momento, sendo capazes de indiferenças cada vez maiores, mais abrangentes?

    É difícil pensar nisso sem que outras mil portas se abram, e de novo me parece fundamental afirmar que a crise é mais profunda que a de um momento específico desse projeto de mundo, mas própria dele mesmo. Aqui, gosto de pensar no neoliberalismo como um extremo, para que lembremos que um extremo não é uma ruptura, mas um ponto máximo dentro de uma mesma lógica: estamos, justamente, diante de um momento em que conciliações não fazem sentido e que as máscaras de que esse projeto poderia abarcar e incluir a todos/as caem, sem a menor vergonha. É mais ou menos isso que diz Naomi Klein, no seu último livro “Não basta dizer não:resistir às políticas de choque e conquistar o mundo do qual precisamos”, quando discute um reality show promovido por Donald Trump ainda em 2007, no qual dois grupos de trabalhadores disputam para ver quem será contratado para trabalhar com o atual presidente dos Estados Unidos. A divisão e a perversidade é tão explícita, ela diz, que fica claro que já não há promessa de que o capitalismo possa promover algo bom para todo mundo, como já foi a tônica do sistema algum dia. Trata-se de uma mudança de discurso: sem a promessa [falsa] que caberíamos todos/as, a ideia é que necessariamente há alguns poucos vencedores diante de uma multidão de perdedores. A melhor coisa a se fazer é “se certificar de estar no time vencedor”. Ou, como diz Achile Mbembe, também sobre esse momento que vivemos: “a única coisa que importa é ganhar, por qualquer meio necessário”.

    “Nós já sabíamos que esse mundo não ia dar em nada”, podemos bradar, não sem razão. “Socialismo ou barbárie!”, e de novo estaremos certos/as. Mas não podemos deixar de assumir que o fim da necessidade dessa promessa leva tudo a outro nível – e que, para além do nosso desejo de uma crise transformadora, essa situação corta ainda mais fundo na carne daqueles com quem, justamente, queremos construir esse outro mundo, como D. Antônia. A vontade revolucionária não pode nos levar a um outro tipo de indiferença – há outra coisa aqui que precisamos buscar.

    Se podemos chamar esse momento de fim da era do humanismo, como também afirma Mbembe – e esse fim evoca tanto potência como ruína – temos que assumir que não estamos indo tão bem nesse momento, agora. A balança, ao menos ainda, não está pendendo para o nosso lado. Gosto quando o autor diz: “O capitalismo neoliberal deixou em sua esteira uma multidão de sujeitos destruídos, muitos dos quais estão profundamente convencidos de que seu futuro imediato será uma exposição contínua à violência e à ameaça existencial.” Talvez essa frase nos dê algum lampejo sobre como se sente D. Antônia diante da carta de sua demissão? Mais: se esse regime constrói a indiferença entre aqueles que se julgam vencedores, sua contrapartida é a resignação – perversa- entre aqueles que parecem não merecer o pódio. A destruição causa uma sensação constante de que não há o que fazer – indiferença e resignação como afecções complementares. Há mudança a partir da resignação?

    Não.

    Há mais do que isso.

     

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    – Mas, D. Antônia, o que você tá fazendo aqui?

    – Ah, eu passei um pouco mal, mas agora já tô bem. Não posso deixar de estar nesse momento, né? As coisas andam complicadas.

    – Eu sei que andam. Mas é que você precisa cuidar da sua saúde.

    – Cuidar da minha saúde é também estar aqui. Não aguentava mais ficar em casa. Eu gosto mesmo é de estar aqui.

    ***

    Quais são as primeiras coisas que sentimos quando nos deparamos com esse diálogo? Talvez uma indignação (justa) de saber que uma senhora, submetida à violência da austeridade, se levanta ao dia seguinte para seguir ao trabalho, para aquele mesminho lugar que a violenta. Talvez, quem sabe, um assombro, sobre isso que gostamos de chamar de resiliência, na busca implacável pela sobrevivência? Estarão, os sentidos e as possibilidades, dessa atitude de D. Antônia restritas às nossas hipóteses? Cabe o sorriso de D. Antônia em nossas explicações?

    Não gosto de teorias que atribuem à esse sorriso qualquer explicação que tire de D. Antônia sua capacidade de se reconstruir: alienação, clientelismo, venda desesperada de sua força de trabalho, qualquer dessas ideias de sempre. Gosto mais de achar que há coisas aí que eu não tô sabendo reconhecer, que ultrapassam minhas leituras, debates, práticas sistemáticas. Reconhecer isso não nega a perversidade do que critico e denuncio, contra o qual sigo construindo minha vida. Reconhece, apenas, a possibilidade de existência, para além do que dizem ser inevitável. O que há, afinal de contas, no sorriso de D. Antônia?

    Tendo a achar que há laços, vidas, conexões que, quando olhamos lá de cima, não conseguimos ver. Diante da destruição contínua operada pelo capitalismo e por essa atual fase de avanço neoliberal, algo segue sendo reerguido. Lembremos que atrás dos números, há pessoas. Pessoas que reconstroem e reinventam suas vidas, diante de projetos de separação, exclusão e fronteiras. Talvez elas não nos salvem (não é essa a ideia). Mas preciso acreditar que elas nos inspirem, com tudo o que são: contradições, capturas e, sim, potências. É nessas sementes cotidianas que talvez possamos reafirmar: como o capitalismo sabe destruir pessoas! E, ao mesmo tempo, como ele não entende nada, nada, sobre o que as constrói.

    Não tenho pretensões de otimismo, mas de transformação – inclusive daquilo que sempre foi na esquerda considerado não como o antídoto, mas como o veneno. O que nos acostumamos a ver com maus olhos é, justamente, o que talvez nos leve a lembrar do que nos faz lutar. Não consigo, mesmo, deixar de me preocupar com o niilismo que vejo nos arrebatar todo dia: uma outra versão do argumento inimigo, que nos diz que não há o que fazer. The dream is over. Seria mesmo essa a nossa saída [um meteoro?]? Se é verdade que os tempos andam críticos, como não vê-los apenas como uma declaração de nossa derrota? A crítica, uma “iluminação crítica” de tudo isso que está aí nos leva a um outro lugar, não menos perverso: deixamos de sentir, de tanto que já sabemos como as coisas funcionam. A questão que me mobiliza talvez seja: como não morrer um pouco cada vez que um dos nossos se vai e não deixar que essas mortes, de tão cotidianas, nos sejam apenas naturalizadas? Como, em outras palavras, não conjugar a indiferença e a resignação?

    Acredito que é preciso criar refúgios – como diz Donna Haraway. Os refúgios que nos façam sobreviver à esses tempos estranhos que destroem tudo, que tentam nos convencer que saída é individual, autossuficiente. É preciso que nos tornemos dependentes do máximo de pessoas possíveis, como aprendi no movimento autônomo do DF – mais conectados do que nunca. Abdicar desses laços é construir o oposto: é apoiar as desconexões sobre as quais o capitalismo e o neoliberalismo se criam. Aqui, referenciando mais um laço daqueles que me constituem, me lembro de Ju Llama e Cled Pereira, na indagação que precede esse texto em muito: “Como manter as pessoas vivas?”. Talvez só agora tenha entendido o desenho que acompanha a campanha: uma cigarra, com asas tremendo. Aquelas mesmas cigarras que, apesar de atormentar os ouvidos dos brasilienses sedentos por silêncio, passam 1, 2, 17 anos embaixo da terra – até que emergem, de seus refúgios, com um canto coletivo que joga na cara de todos nós que há coisas que se criam no subterrâneo. Curiosamente semelhante ao que dizem os zapatistas, quando se viram diante de um mundo surpreso com sua resistência, no auge do neoliberalismo mexicano: “As grandes transformações não começam “por cima”, nem com feitos monumentais e épicos, senão através de persistentes movimentos, algumas vezes, pequenos em sua forma, que aparecem como irrelevantes para os analistas que olham de cima. A história se transforma, a partir da construção consciente de organizações e forças sociais que se conhecem e reconhecem mutuamente, desde baixo e à esquerda, e constroem uma outra política.”

    A única saída, para nós mesmas, é retomarmos, reconstruirmos, reinventarmos os laços que esse sistema tenta nos tirar. E temos que lembrar, sempre, que o erro do capitalismo é achar que a cigarra é formiga.

    *****

    Quando me dispus a escrever esse texto, minha tentativa era a de reavivar a esperança. Não suporto a melancolia desses tempos, a vejo entre as armas mais eficazes para que continuemos neles, caminhando como se não houvesse outros possíveis, outras potências, outras formas de fazer mundos além dessa que nos esmaga. “Defendamos la alegria, el inimigo la teme” – dizia uma frase que ouvi, ainda no começo dos anos 2000, em um cd produzido pelos Hijos, organização argentina de filhos de militantes sequestrados pela ditadura daquele país. A frase se repete em looping na minha cabeça, como uma espécie de antídoto às insígnias inimigas que nos condenam. No meio desse processo, perdi um amigo – não sei bem para que monstros internos. Talvez como uma saída clássica, um subterfúgio de militante que sou, não consigo desconectar essa perda da cara também monstruosa dos tempos de fim de mundo que vivemos. Não sei se consegui ser esperançosa. Mas espero ao menos ter conseguido ser urgente: precisamos descobrir como nos manter vivas. E não podemos mais esperar.

    [1] Nome fictício

    [2] Doutrina econômica que aposta no controle e corte dos gastos, inclusive em áreas sociais e de garantia de direitos, para superação da crise econômica.

    [3] “The social production of indifference: Exploring the Symbolic Roots of Western Bureaucracy”, 1992.

     

    Ilustrações de Juliana Del Lama | Texto revisado por Camila B.

  • Quando Quebra Queima: revolta dos erês e a doçura da sabotagem

    Quando Quebra Queima

    A revolta dos erês e a doçura da sabotagem

    por: Gabriela Acerbi e André Fogliano

     

    os gestos menores que confrontaram o Leviatã com a inocência tumultuada dos erês. A revolta dos erês, poderíamos dizer, sabotou, com alegria, mandinga e sagacidade rueira – como num jogo de capoeira, lúdico e mortal –, a ordem das coisas de um sistema de ensino e de segurança que mata preto e pobre todo dia

     

    É sempre estranho traduzir em relato algo quase da ordem do insondável, do inexprimível. A performance quando quebra queima é um experimento desse tipo: faz com que ginguemos com o indizível. Criação do grupo coletivA ocupação, grupo formado em sua maioria por estudantes secundaristas que fizeram parte das ocupações das escolas públicas de São Paulo em 2015, vergando de joelhos a maquinaria de governo do tucanistão, como poucas vezes se viu, a peça é um desdobramento encenado dos meses de molecagem insubmissa que enxameara no correr daqueles dias.

    quando quebra queima rodeia e fustiga, em tom de brincadeira festiva, dançante e movente, essa camada intempestiva que emerge das barricadas da revolta. quando quebra queima traz a experiência da revolta por outros meios. Revolta dançada, essa peça-ato é um convite para compormos com os sentires e os desejos destravados nas ocupações. Esse baile (funk) afetivo – sa-sabote, sabote o Estado – coreografa maliciosamente àquele momento em que se imaginou politicamente um ritmo e uma batida outros para a escola, para a cidade e para a própria vida. A peça–ocupação é um jeito de afirmar esse acúmulo de desejo que numa contra-dança maloqueira bandou o Estado no chão, deixando evidente que a política de governo imposta não quer outra coisa senão separar os corpos daquilo que eles podem, de sua força desejante.

    O que mais impressiona na peça-ato é, justamente, a exuberância transbordantes dos corpos. Corpos-estranhos, como queria Mateusa, cabelos pluricoloridos em cachos encrespados, transbordando melanina pelos poros, ventando em zigue-zague por entre o público, encarando-os de frente com a coragem da verdade para berrar com jeito: pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro. É preciso encarar o indomável, o insuportável, assim, tete à tete, papo reto, um sorriso abusado de canto, para ser contaminado afetivamente pela semiose fervilhante do levante.

    A memória daqueles dias é contada em fragmentos de imagens, fotos, vídeos, palavras, música, traquejos corporais sinuosos, signos que manejam os gestos menores que confrontaram o Leviatã com a inocência tumultuada dos erês. A revolta dos erês, poderíamos dizer, sabotou, com alegria, mandinga e sagacidade rueira – como num jogo de capoeira, lúdico e mortal –, a ordem das coisas de um sistema de ensino e de segurança que mata preto e pobre todo dia. No mesmo espaço em que seus futuros são diariamente sequestrados, colonizados, exterminados, ali, justamente, os erês indomáveis mostraram que o sistema não aguenta a força desses novos corpos-estranhos, preto-feminino-queer, transando e bejiando na boca um mundo outro.

    Chega, então, o momento inevitável de pular os muros. Atravessar os portões. Levar a sala de aula para o meio da rua. Cedinho, antes da roda do capital começar a girar. Coloca o pé aqui, salta! Dá-me a mão. Depois as barricadas com as cadeiras, as assembleias da madrugada e o motim desordenado da manhã. As festas, claro, sem zoeira não rola. Entra na roda e ginga. Batalha de passinhos. Exu nas escolas. E comida: macarrão, muito macarrão. Café passado ao tumulto. Açúcar, faxina e uma dose de rebeldia. Fora os macho escroto. La digna rabia é baile de baque solto e paixão. Só que agora os vermes estão vindo: Corre, corre! A PM chegou! Pra onde vamos agora? Cuidado: a primeira pessoa que a polícia vai pegar é uma pessoa preta. medo. Assusta. Mas nosso ódio pelo mundo como tal e o amor pela vida é parecido e hoje a cidade vai ser nossa.

    Depois de assistir à quando quebra queima, uma coisa fica evidente: naqueles dias ocupou-se o mundo com artimanha, beleza e doçura. O mundo foi ocupado com sensualidade melanodérmica. Essas ocupações fizeram entrever uma escola que compunha corpo, cuidado e luta. Coreografava-se uma nova ecologia do cuidado, do corpo, da luta. Gestava-se um território existencial diverso, uma cabaça da existência variada, que se parecia com os contornos de um terreiro aquilombado: corpo, cuidado e luta – comida, dança e festa. Escola: quilombo-afrofuturista.

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    Ao experimentar com quando quebra queima, borra-se as separações espaço-temporais entre o espetáculo e as ocupações. Deve-se experimentá-las em co-composição, continuidade, experiência em ato. Prolongamento. Aliança. É de alguma forma um mesmo terreiro existencial, com suas vibrações singulares a cada caso, a cada incorporação, a cada roda. O que mais pode ser a Escola além disso que foi, uma pedagogia da tristeza? É possível destituí-la com táticas de sabotagem dançante? É possível recriar, reinventar, refazenda e refazendo tudo? É possível coreografar outros passos, outras gingas, e forjar novos usos?

    É Negri quem fala da luta contra a desfiguração da vida e do amor. Contra esses mecanismos de degradação e repressão. E como ele coloca, há um sentido de positividade na construção de projetos plurais: há comunidade, liberdade. Há vontade de luta, doçura da sabotagem e todo um tempo do amor que é arrancado ao sistema. Esse tempo existe, reforça: um tempo arrancado do inimigo.

    Nada sei de grandes projetos de reconstrução. Só sei que milhões e milhões de seres humanos como eu constroem a cada instante uma alternativa de desejo, sei que este enorme acúmulo de desejo atrapalha o funcionamento do sistema, e sei que este tempo outro que quero viver constrói um signo de contradição ao inimigo e uma esperança para mim.

     quando quebra queima diz algo desse tempo em que se sentiu liberto. Tempo em que se sabotou gingando as engrenagens estatais, militares, midiáticas. Tempo que se desdobrou numa recusa que era riqueza transbordando os muros. Esse tempo liberto [esse imediato] pode ser uma dança – uma dança que também é doce, como aqueles que honramos aos erês. Essa escola que vem aquilombada, com corpos-estranhos, e uma pedagogia da alegria, do cuidado e da luta. Alegria, essa energia incontrolável que ameaça a ordem brincando: a revolta dos erês.

    Então dance. Dance e sabote o Estado.

    Eu ocupo o mundo com o meu corpo.

    quando quebra queima é sobre aqueles momentos em que o Estado e a pele branca deixaram de ser o centro de gravidade do mundo; esse é o grande acontecimento. E ainda que os delírios dessa modernidade sejam cruéis, essa revelação nos é dada com alegria. Ainda que os arrastões neoliberais nos endividem e tratem os corpos como dos escravos do passado. Há um devir-negro do mundo. E apesar de toda tormenta instaurada, há sobrevivência e força nessa dança-reviravolta. Toda energia aprisionada no corpo está subindo a terra. Circulando. Há ruído no ritual de insurreição e o lugar da dor é agora um lugar da criação.

    Ultima nota: dia 24 de Junho de 2018 foi o último dia da temporada de Quando Quebra Queima no Teatro Oficina. Casa cheia. Corpos eufóricos. Corpos concentrados. Corpos emocionados. Em um mês de lutas e de fogo. E mais uma vez em Junho – que é muita coisa – o calor desses corpos alumiou a rua e a ocupou. Eles trouxeram o prazer da sabotagem. Como é gostoso sabotar o mundo enquanto se dança, sabotar o mundo dançando. Nós temos força pra revirá-lo outra vez.

    Corpo aberto, corpo gira.

    C o r p o R e v o l t a

     

     

    QUANDO QUEBRA QUEIMA é uma peça construída por estudantes que viveram o processo de ocupações e manifestações do movimento secundarista em 2015 e 2016. Frutos da primavera secundarista, 14 corpos insurgentes deslocam para a cena a experiência dentro das escolas ocupadas, criando uma narrativa coletiva e comum a partir da perspectiva de quem viveu intensamente o cotidiano dentro do movimento.

    Ocupando o tempo presente, a ColetivA provoca de maneira pulsante o universo que compõe esse movimento que transformou o corpo e vida de todos que participaram.

    CRIAÇÃO

    Abraão Santos / Alicia Esteves / Alvim Silva / Ariane Fachinetto / Beatriz Camelo / Gabriela Fernandes / Ícaro Pio / Leticia Karen / Lilith Cristina /Marcela Jesus / Matheus Maciel / Mel Oliveira / André Dias de Oliveira / Heitor de Andrade / Martha Kiss Perrone / Mayara Baptista

    https://www.facebook.com/coletivaocupacao/