Author: tramadora_q3o93j

  • ReSpirar: uma ciência dos contagiosamente vivos

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    Conversações Febris – 04 de junho de 2020 – 19hs.

    Mais um grupo de zap lotado de mensagens não lidas, outra página no facebook pra seguir, caixa de emails com 987 msgs não lidas, notificação de reunião agendada, duas lives imperdíveis no mesmo horário, recomendação de leitura enviada no grupo do trabalho, panela de pressão apitando, o meme sem graça enviado pelo colega, ninguém comentou a mensagem da convocatória do sindicato, celular sem espaço na memória, apagar rapidamente 2573 fotos, filha pede socorro pra entrar na sala virtual com a professora, impossivel abril o powerpoint enviado pelo chefe com as tarefas da semana. Nos solicitam para curtir, compartilhar, subir uma hashtag, assinar mais uma petição, ter uma opinião sobre a última polêmica, estar disponível, entrar em um novo grupo, nos mobilizar. Mais um jovem negro morto pela polícia, outra medida de precarização dos direitos aprovada pelo governo sem qualquer protesto, hoje 1048 mortos em decorrência do covid-19, uma reunião ministerial que nos faz entrever com assombro a transparência do funcionamento do poder.

    Tudo na mesma tela, na mesma superfície, no mesmo ambiente, a mesma topografia, com a mesma velocidade.

    \”Não posso respirar!\”
    A circulação da imagem de George Floyd, como um contra-feitiço, disparou uma onda inesperada de revolta nos EUA. Os corpos pretos são sensores de um mundo que não pode mais se sustentar, enunciam os caminhos de uma ciência de retomada e nos revelam a verdade da guerra em curso. \”Não posso respirar\” também contém as formas do possível, as imaginações de liberdade produzidas pela revolta contra os comandos do provável.
    Contagiosamente vivos.

    Saturação, esgotamento, asfixia. O que significa poder respirar?


    Neste momento, desejamos experimentar e investigar entre todxs uma dobra intensiva no percurso de habitar uma forma coletiva de pesquisa diante dessas muitas impossibilidades do encontro. Como, nessa condição de isolamento e de crescente mediação tecnológica, fabricar e sustentar novas alianças, inteligência e ação coletiva? Quais características (linguagens, sensibilidades, infraestruturas) devem estar presentes para sustentar uma conversação que é também um modo de conhecer?

    Foi preciso aguardar alguns dias após nosso último encontro para enviar uma nova mensagem. Criar um breve silêncio, desaturar, fazer vazar, deixar o corpo vibrar um pouco mais com as palavras, as mensagens, a revolta e todos os acontecimentos da semana.

    Como Laboratório de experimentação (ontoepistêmica e política) a Zona de Contágio vai adquirindo novos adensamentos e nos interpela sobre como seguir a investigação. Realizamos 3 encontros virtuais, criamos zonas de confluência entre linhas de investigação (ciência dos dispositivos e ciência de retomadas), compartilhamos produções, literaturas e começamos a estabelecer um vocabulário e sentidos compartilhados. Neste percurso um pequeno coletivo de pessoas, afetadas por questões intensificadas pelo acontecimento Covid-19 começou a fabricar novas alianças. Um \”laboratório do comum\” é inseparável da comunidade política transitória que emerge em torno de problemas comuns e das estratégias de luta que esses problemas provocam:

    1) Regimes de conhecimento (as disputas em relação à ciência, os saberes menores e não autorizados, as ontoepistemologias dos saberes das lutas, corpos como sensores);
    2) Regimes de poder que atualizam formas de controle; Biopoder-Biopolítica, dispositivos (novas formas de mobilização e desempenho, tecnologias de gênero e racializadoras/racistas, a relação entre a casa, o corpo, o prazer e a produção);
    3) Regimes tecnopolíticos e tecnoestéticos (a complexidade tecnosomática; dataficação, algoritmização da vida e novos modos de extração e trabalho; alteração nos modos de associação, desejos e individuações tecnomediadas);
    4) Transição societal e os limites do capitaloceno/plantationoceno/antropoceno (terra e o mundo vivo, relação entre viventes; extrativismo ampliado e formas cosmopolíticas de luta).

    Essas dimensões dão forma a um amplo programa de investigação que atravessa de diferentes formas as motivações e desejos dos praticantes do Laboratório Zona de Contágio. Com a experiência desta breve trajetória, sentimos que o momento nos convida a uma nova dobra que contribua para intensificarmos as conversações entre nós. Isso nos leva, imediatamente, a pensar sobre as próprias condições exigidas para essa investigação: um problema relativo ao desenho do laboratório.

    Em diversos espaços da vida, o isolamento físico e a crescente mediação das tecnologias de comunicação digital, radicalizaram uma mutação em curso. Há uma crise generalizada das formas de representação: nas dinâmicas de produção do real e verdadeiro; nas instituições das democracias representativas. Seja no âmbito no trabalho, em nossos coletivos políticos, nos espaços de ação institucional e familiar, sentimos um esgotamento da capacidade de produzir conhecimentos coletivos e sentidos compartilhados sobre o que nos passa e nos acontece. A própria arquitetura dos ambientes digitais nos agencia a emitir continuamente mais uma explicação, mais uma opinião, mais uma tomada de posição. Conversações implicadas, cumplicidades do pensamento e conspirações são mais raras. Estamos saturados de informações que produzem impotência, infelicidade e desorganização, bloqueiam a possibilidade da experiência, de sermos afetados pelo mundo.

    Com uma Ciência de retomada, deslocamo-nos do representacionismo para uma política experimental. A Zona de Contágio nasce nessa encruzilhada que não separa o modo de conhecer dos modos de existência que desejamos fazer prosperar. Um laboratório é também um lugar onde se fabricam coisas. No primeiro encontro esboçamos o problema de um possível protótipo: um dispositivo de pesquisa coletiva, um arranjo para uma conversação em tempos de pandemia, como sustentar e fazer reverberar uma prática? Como produzir um encontro entre corpos e pensamentos, desejos, intuições diante de um terreno esgotado, cansado e de poros obstruídos? Como produzir espaços para o ritmo, o contra-tempo em um mundo cada vez mais cibertecnomediado?

    Este meta-problema de investigação (desenho do laboratório) é um problema análogo àquele vivido em diferentes espaços da vida social (nos coletivos de trabalhadores, nas organizações sociais, em grupos ativistas etc). A crise de presença e a erosão das formas de vida em comum que agora sentimos de maneira radical é apenas um sintoma mais agudo do um modo de vida neoliberal que já vivíamos.

    Assim, imaginamos que uma boa maneira de experimentarmos a construção deste protótipo seria pensarmos sobre quais são as perguntas que nos implicam com aquele conjunto de problemas enunciados acima em 4 grandes eixos. Pensar sobre novas perguntas que nos interessam é também realizar uma cartografia-investigativa do Comum entre nós. Um percurso de investigação situada em nossa experiência contemporânea tecnomediada pode nos ajudar a compreender um pouco mais sobre as condições de emergência de novas subjetivações políticas e novas individuações coletivas, a começar pela própria Zona de Contágio.

    Próximo encontro: Conversações Febris – 04 de junho de 2020 – 19hs.

    Para esse ciclo sugerimos alguns textos inspiradores

    Partilhas sensíveis e essenciais em tempos pandêmicos [ou quando poderemos novamente ir ao teatro sem medo?], de Marina Guzzo: https://n-1edicoes.org/062

    “Voltar a nos entediar é a última aventura possível”: Amador Fernadez-Savater entrevista Franco Berardi, Bifo: https://vaporaovento.blogspot.com/2018/10/voltar-nos-entediar-e-ultima-aventura.html

    Economia psíquica dos algoritmos e laboratório de plataforma: mercado, ciência e modulação do comportamento. Fernanda Glória Bruno, Anna Carolina Franco Bentes, Paulo Faltay (PDF)
    http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/download/33095/19357

    O direito universal à respiração de Achille Mbembe: https://n-1edicoes.org/020

  • Tempo, Silêncios, ritmos em pandemia [Video]

    Vídeo da segunda conversação-investigativa e febril que conta com muita coisa bonita já produzida entre nós. Silêncios, contra-tempo, respiros coreográficos, todo um ritmo que soubemos inventar na esquiva algorítmica.

  • A comunidade pandêmica

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    de: Nil Mata Reyes, traduzido para o português e publicado em: https://coletivoponte.noblogs.org/post/2020/04/10/a-comunidade-pandemica-nil-mata-reyes/

    Versão em inglês: https://www.nilmatareyes.com/thepandemiccommunity.html

    1. Bem-vindo à comunidade pandêmica, uma forma de pertencimento social estruturada pela lógica participativa e profilática das máquinas em rede. O objetivo da vida na comunidade pandêmica é estar intimamente “em contato”, mas seguramente fora do alcance, estar totalmente conectado em isolamento higiênico e, portanto, totalmente isolado por redes higiênicas.

    2. Toda a vida que tinha sido organizada na resolução da instituição – a universidade, a fábrica, o escritório, o hospital, a prisão – está agora organizada na resolução dos endereços de rede. Na comunidade pandêmica, a vida social, a vida laboral, a vida escolar e a vida política, todas se contraem na vida doméstica antes de explodirem na vida em rede. Tudo o que tinha conseguido escapar fugitivamente à captura digital de redes, lamentavelmente, submete-se e conecta-se.

    3. A abundância de tempo recentemente não estruturado na comunidade pandêmica transborda rapidamente com a abundância de notificações, anúncios, atualizações, alertas, mensagens, pings e convites para tempo conectado. Se antes da pandemia uma vida podia passar por várias instituições ao longo de um dia, tornando-se um trabalhador, um consumidor, um paciente e um estudante a cada vez, agora uma vida pode assumir formalmente todas estas posições simultaneamente como abas em navegadores, como aplicativos em dispositivos, e como software em redes. As subjetividades algorítmicas piscam incessantemente como entradas em bases de dados.

    4. Na comunidade pandêmica, o risco de contágio é deslocado por redes para outros racializados e sexualizados que não podem trabalhar. Armazenistas, motoristas de caminhão, funcionários de custódia, empregados de supermercado, funcionários de hospitais, catadores de lixo e trabalhadores por empreitada são os alicerces materiais para uma vida doméstica maximamente ligada em rede e minimamente ambulatória. O que não pode ser transmitido é compensado por uma classe móvel tão precária como o contato é contagioso, tão essencial como dispensável.

    5. A comunidade pandêmica reimagina a domesticidade como a síntese conectada de segurança e eficiência, um local integrado e interoperável onde a divisão espacial e temporal entre trabalho produtivo e reprodutivo pode ser superada. Em lares confinados mas interligados, as vidas podem dormir, comer, ser pais, trabalhar, beber, cozinhar, foder, ensinar e fluir em ambientes controlados e disciplinados. Quer seja realizado em casa ou realizado para sustentar as casas dos outros, todo o trabalho é agora doméstico. As vidas cujas casas são hostis devido a rendas inacessíveis, abusos domésticos ou edifícios superlotados são abandonadas como estatisticamente previsíveis mas, em última análise, descartáveis, enquanto aqueles que são desalojados nunca entram na equação.

    6. A comunidade pandêmica não é uma comunidade de corpos, mas de dados. À medida que mais vida vem a ser posta em rede, as redes sabem mais sobre a vida, e à medida que mais vida vem a ser conhecida pelas redes, as redes têm mais poder sobre a vida. A produção recíproca de conhecimentos e de poder sobre os quais foram fundadas as instituições disciplinares é totalmente automatizada na comunidade pandêmica. Todas as ações realizadas em redes produzem excedentes de dados que – através da sua acumulação – regressam, em última análise, como uma arma contra a vida. A política é dispensada como outro problema técnico.

    7. Antes da pandemia, a forma cultural privilegiada era a atividade que excedia as redes. Tudo o que acontecia “na vida real” e “longe dos teclados” era fetichizado, mesmo que eventualmente também viesse a circular em rede. Na comunidade pandêmica, a própria rede assume o lugar do privilégio. Instituições culturais de todo o tipo despedem pessoal e alugam servidores, cancelam shows e encomendam conteúdos. A vida social é traduzida na vida em rede de uma forma participativa e improvisada. Na sequência da convergência da estética e da cibernética, a comunidade pandêmica refaz a cultura de acordo com os seguintes truísmos: “Tudo o que se conecta é bom, e tudo o que é bom se conecta e “A boa vida é a vida conectada”.

    8. Na comunidade pandêmica, o capitalismo não se pode sustentar a si próprio e, por isso, é simulado. Uma avalanche de pacotes de estímulo, empréstimos sem juros e suspensões de pagamentos reanimam a economia de forma virtual, onde a subtração em massa do trabalho global é compensada pela multiplicação em massa da dívida global. A suspensão política da economia capitalista e a simulação técnica das relações capitalistas são empreendidas apenas como preparação para a eventual chegada de um mundo pós-pandêmico onde as contradições do capitalismo se possam tornar reais de novo. Até lá, a comunidade pandêmica vive a virtualizada precarização, expropriação e privatização do capitalismo como parte de um ensaio em rede, onde a simulação dos mercados capitalistas também simula a sua violência.

    9. A linguagem da comunidade pandêmica é a linguagem dos protocolos. O intercâmbio sincronizado e sequenciado de dados entre os endereços da rede, a cascata coordenada de fluxos binários, é um meio técnico para tornar a vida numérica determinada. A linguagem é capturada como caracteres legíveis por máquina, a fim de analisá-la e monetizá-la como comunicação, enquanto a consciência é capturada como cliques e rolagenes de tela, a fim de medi-la e manipulá-la como atenção. Mesmo a morte só pode ser compreendida numericamente na comunidade pandêmica, capturada como estatística e depois visualizada como uma série pixelada de gráficos, curvas e mapas. Viver e morrer tornam-se formalmente permutáveis na medida em que ambos são capturados dentro da abstração e mediação de redes.

    10. As forças destrutivas da comunidade pandêmica são simultaneamente a condição de possibilidade de processos pandêmicos imensamente produtivos, e tudo o que for produzido para defender a vida do contágio pode vir a servir de modelo para a vida pós-pandêmica em geral. Quando os tratamentos surgirem, a imunidade do rebanho se desenvolver e uma vacina chegar, a economia global terá sido totalmente reorganizada e as novas infra-estruturas, aparelhos e redes constituídas para a pandemia já terão sido bem implementadas. Entre os resultados mais consequentes da pandemia estarão não só as muitas vidas perdidas para o vírus, mas também a total reinvenção das próprias formas em que as vidas são vividas.

    11. O que quer que funcione na comunidade pandêmica acaba por funcionar contra a vida. A ociosidade que caracteriza o potencial da vida é entendida pela comunidade pandêmica como um potencial que, se não se tornar produtivo, ameaça, em última análise, destruir a comunidade pandêmica. Por outras palavras, a comunidade pandêmica vê o potencial produtivo e destrutivo da vida como duas expressões do mesmo potencial. A exigência de que continuemos a estudar sem pausas, de que nos apressemos praticamente a voltar ao trabalho, de que as nossas vidas prossigam em rede, só se articula agora tão urgentemente porque, numa pandemia que privou a vida dos seus usos sociais, a vida parece ameaçar totalmente a sociedade. O ponto zero da vida para além da comunidade pandêmica torna-se assim a própria vida, a vida para além de qualquer uso particular.

    12. Na comunidade pandêmica, a nossa capacidade de nos conhecermos a nós próprios e uns aos outros – de conhecer a nossa situação – é totalmente mediada e estruturada por redes. Os algoritmos e protocolos que compõem as redes não são apenas estruturados pelo pensamento dos programadores, mas também estruturam o pensamento que ocorre conjuntivamente com e em rede. Nessas condições, a vida examinada só pode tomar forma como um exame em rede que nunca deixa de validar mais concretamente os seus próprios pressupostos: a vida vivida em rede só se redescobrirá sempre como vida em rede. Se a forma de rede é totalizante neste sentido, a nossa tarefa passa de saber o que somos a recusar o que somos.

    13. À medida que estas últimas palavras vão sendo digitadas, começou a surgir uma nova atividade em cidades de vários continentes que sugere a existência e a resistência da vida que excede e escapa à comunidade pandêmica. Todas as noites, pessoas fora das janelas, nos alpendres e dos telhados começaram a gritar, a bater em tachos e panelas e a tocar música uns para os outros, uma atividade que, à sua maneira, se tornou contagiosa. Este gesto coletivo pretende celebrar aqueles que arriscam a vida para nos sustentar a todos, mas também é uma forma de nos encontrarmos sonoramente na cacofonia de uma multidão dispersa mas reunida. Para além da morte, da depressão e do desespero, que tão intensamente atravessam o coração da comunidade pandêmica, as pessoas clamam umas às outras por aquilo que não se encontra nas suas redes em casa, por uma vida que não se limita a viver, mas que vale a pena viver.

  • Caderninho verde

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    por: Carmen Capra

    * caderninho verde 2/4/2020

    2/4/2020
    passei a mão no rosto de pele lisa e macia como nunca ou nunca
    passei a mão no rosto

    3/4/2020
    um punhado de perfume
    jasmim estrela

    4/4/2020
    a maçã gala tem 4 sementes
    às vezes
    uma é seca

    eu fui lá fora e vi dois sóis
    sem explicação

    5/4/2020
    não veja eu
    olha
    o que digo

    o diálogo cortez
    tem na cortesia o que corta
    o dizer da palavra

    6/4/2020
    o pingo da chuva
    só existe sozinho pela algerosa
    da vizinha

    gargalhada de criança, pipoca estourando, live com parente aos gritos, cortina bordô aberta,
    chão de parquet, homem fazendo apoios
    vistas das janelas vizinhas

    2020 a cada vez é um número difícil ser escrito

    10/4/2020
    quando a cordialidade reveste a indiferença e a hostilidade?

    Vazer
    (va.zer)

    v.

    vazia, pretérito imperfeito do verbo vazer

    13/4/2020
    acordar sem sobressalto
    desligar os 4 alarmes
    mexer nas cortinas
    fazer fotos às 10 da manhã
    olhar as unhas das mãos e dos pés, os pelos das pernas
    saber as quantidades de comida
    esquecer de
    dormir quando se dorme

    21/4/2020
    perdi várias ideias
    cortando couve fininha, sinto a testa contraída. pinguei o vinagre e misturei com os dedos.
    sorri. pinguei o azeite e misturei com sorriso. viva.

    sem marcadores do tempo, encontrar outros

    trabalhar cansa, já disse o Pavese

    4/5/2020
    7 ½ andar

    futuro no presente
    a planta na semente,
    colher na semente do caqui

    5/5/2020
    a distopia, nas séries, vem por partículas no ar
    flocos
    a contaminação invisível,
    polvilhada

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  • Ressonâncias

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    por Marcelo Jungmann Pinto


    Posicione o seu fone, é Lua nova. Começar novo, de novo.
    No contrafluxo de veículos automotorizados um corpo-peregum caminha entre as árvores e procura afinar-se com o arco ancestral.

    – Escuta! O que é que ressoa?
    – É um corpo sonoro.
    – Mas qual? Uma corda, um metal, ou o meu próprio corpo?
    – Escuta: é um arame esticado entre uma câmara de ressoar mundo e um pedaço de pau, e que um outro golpeia, fazendo-te ressoar segundo o teu timbre e ao seu ritmo.

    fotos: Pierre Verger, Bahia 1940

  • Elogio à potência cognitiva dos Cuidados

    Por Antonio Lafuente*, do Centro de Ciências Humanas e Sociais (CSIC), Madri | Tradução de Simone Paz Hernández

    Publicado no Outras Palavras

    O coronavírus tem nos ensinado muitas coisas — algumas delas, vamos demorar para esquecer. Porém, poucas foram tão inesperadas como a aproximação entre a cultura crítica e a cultura dos cuidados. Pareciam pertencer a planetas diferentes: uma, ligada à busca de certeza, metodologias conflitantes e gestos públicos; a outra, vizinha da dor, inclinada pelo tácito e reclusa no âmbito privado. Ambas, muito seguras de sua importância, mas muito diferentes em seus reconhecimentos. Para o espírito crítico, sempre existiu um posto de honra entre os inteligentes, os poderosos, os administradores. Os críticos possuem a chave que abre as portas do mundo, desde a empresa e a academia, até o conselho ou comitê. Ser crítico é uma qualidade característica dos que conseguem enxergar além das aparências, dos que sabem ler as entrelinhas e dos que não se deixam levar pelo refrão. Quem não é crítico está sujeito a ser doutrinado, manipulado e menosprezado.

    Nosso mundo sempre reservou lugares especiais para a crítica. O espírito crítico nos protege dos farsantes, dos malandros e dos vigaristas. E, como nunca faltam aqueles que querem tirar proveito de nossa ingenuidade, desconhecimento ou incapacidade, fazemos bem em confiar na nobreza daqueles que se dispõem por nós a depurar as ideias, comparar informações e destrinchar propostas. Os debates públicos nos são apresentados muitas vezes como um duelo de espadachins, como um exercício de virtuosismo retórico, como uma amostra do dandismo entre “filhos de alguém”, tão inúteis quando desprezíveis. Isso não tem nada a ver com a crítica, está mais para um produto da vaidade pretensiosa: um embuste entre bobos. Já a crítica, é necessária e urgente. Uma das ferramentas mais valiosasas de que dispomos para navegar entre as tormentas ou para nos guiar entre as brumas. Sem ela, não existiria a civilização.

    Os cuidados transitam em outro tipo de abundâncias invisíveis. Eles têm a ver com todas as práticas que levam à reparação ou à manutenção da vida. Possuem relação com o que há de mais simples e comum: dar comida, fornecer aconchego, produzir bem-estar, manter a conversa, ouvir o incabível ou inusitado, oferecer esmero, sentir o futuro, experimentar com os outros, fazer coisas juntos, desfrutar as nuances, acompanhar processos e criar espaços seguros. No mundo, não há nada mais abundante do que a dor, o desconsolo, o desabamento. Nada é mais necessário do que oferecer confiança, paz ou tempo. Seja para descobrir suas (novas) vulnerabilidades, seja ao se encontrar (novamente) estagnado, o que você vai querer por perto não é um cérebro privilegiado capaz de performar uma capacidade de análise impecável. Nesses momentos, precisamos de outro tipo de talento: o de alguém que saiba se colocar em sua situação, em seu lugar, conter a ansiedade de aconselhar, ficar em silêncio, saber ouvir, deixar fluir e acompanhar, enquanto, aos poucos, você se reencontra com a vida que merece ou a resposta que procura.

    Não quero dizer que os que pensam não cuidam, nem que os que cuidam não pensam. Isso seria uma simplificação inaceitável e ofensiva. Todos nós podemos passear pelos dois mundos. Podemos utilizar a crítica para reparar aquilo que ouvimos e fazê-lo crescer. Podemos renunciar a usar nossas habilidades para ganhar vantagem e competir melhor. Nada nos obriga a querer sempre ganhar. Não é necessário demonstrar que estamos por cima dos outros, nem temos que tratar nossos adversários como inimigos, traidores ou estúpidos. Na crítica, pode existir um quê de sadismo. É normal que exista, e que toda vez que numa conversa alguém cite um especialista, um fato ou uma prova, para nos dar um soco e calar a boca. Esses críticos são pessoas perigosas das quais é bom se proteger, porque costumam ser implacáveis.

    A ciência é um dos terrenos da crítica. Não é o único, nem o mais visível. Os que se gabam de ser críticos são aquelas pessoas da literatura, das artes, das ciências humanas e também, portanto, das ciências sociais. O que eles chamam de “espírito crítico” é muitas vezes percebido como arrogância banal. E é por isso que nós desconfiamos dessa forma de nos desenganarem, que, do outro lado do espelho, é percebida como uma maneira de nos deixar nus. Justamente o oposto daquilo que esperávamos: alguém que nos ajudasse a encontrar as roupas para não nos deixar na intempérie. Abandonados ao acaso, novamente, sem redenção.

    A cultura do cuidado não é só compaixão. Precisamos dela, também, para criar outros mundos possíveis e dar espaço às diferentes práticas cognitivas de que precisamos aprender a apreciar. Se o crítico é quem vê mais e melhor, quem cuida possui como ferramenta fundamental de trabalho o tato. Se a simbologia reservou para os inteligentes a figura da coruja, do livro e dos óculos de armação grossa, aqueles que cuidam são representados como pessoas que acariciam com os olhos, com os gestos e com as mãos. As mãos alcançam lugares que os olhos nem conseguem imaginar. O tato é a chave que abre a porta que nos permite imaginar outros mundos possíveis, baseados em cumplicidade, empatia e vulnerabilidade. Nos cuidados, explora-se sem propósitos e sem condicionantes, se avança entre suspeitas e desconfianças, até chegarmos ao lugar onde experimentaremos a companhia como uma bênção. Ou uma epifania.

    Se a visão gera a distância entre o sujeito e o objeto, o tato mistura esses dois mundos. A visão cria outros espaços, enquanto o tato inventa a complexidade. Tudo fica interligado e se torna próximo, entrelaçado. A visão quer fazer do mundo um objeto, enquanto o tato torna mundano o objeto. Mundano quer dizer comum, cotidiano, semelhante. Quiçá, também, barato, jovial e compartilhado.

    A crise do coronavírus aproximou esses dois mundos para nos ajudar a entendê-los melhor, para descobrirmos que ambos são imprescindíveis e que os dois são deste planeta. Que ambos pertencem ao âmbito público e são duas potências cognitivas que deveriam parar de brigar e se unir num longo abraço. Sim, isso mesmo: um abraço em tempos de coronavírus pode parecer uma transgressão, mas não é, não, não se trata de uma pegadinha: esperamos muito desse atrito, pois não nos conformamos com apenas sobreviver — que é o que nos prometem os cientistas e seus porta-vozes. Não nos conformamos com apenas continuar vivos, pois queremos imaginar mundos mais ousados. A pandemia demonstrou que, em termos cognitivos, é imprescindível que se estruturem adequadamente três epistemes que se destacam: o mundo dos dados, dos modelos de previsão e da inteligência artificial; o mundo da virologia, da epidemiologia, das vacinas e do laboratório; e, por último, mas não menos importante, os territórios da clínica, dos profissionais da saúde e das práticas de cuidados.

    Curar corpos nos forçou a cuidar de mundos. De repente, descobrimos que inconsistências estatísticas, causadas por uma coleta de dados ruim, poderiam levar a medidas que nos ameaçariam a todos. Dados não são números, mas coisas que precisam ser produzidas do mesmo jeito que são produzidas as bolas de sinuca: se elas não possuírem as características necessárias, não funcionam, não servem pra nada, não deslizam corretamente e não transmitem os efeitos esperados. Os dados precisam ser interoperáveis. Você precisa projetá-los com precisão, coletá-los com cuidado e transmiti-los a tempo. Podemos ter os melhores matemáticos, construindo os modelos mais sofisticados, porém, fazendo propostas mal-sucedidas porque os coletores de dados se desentenderam ou ficaram desmotivados ou deprimidos. Porque eles pararam de se projetar em seu trabalho com amor e orgulho. Não estavam atentos o suficiente para detectar algo suspeito, uma variação imprópria, um viés inesperado ou, finalmente, uma prática inconsistente. Talvez ninguém os fez acreditar na importância do que estavam fazendo. Talvez eles tenham se cansado de ser invisíveis, ou talvez se convenceram de que eram seres descartáveis, secundários ou irrelevantes.

    Fazer vacinas ou, em termos mais gerais, projetar e realizar experimentos não é uma tarefa mecânica. Quem faz experimentos precisa improvisar o tempo todo — ou seja, precisa enfrentar um montão de imprevistos que exigem habilidades que não são ensinadas nos livros, mas que, entretanto, foram aprendidas com os colegas. Experimentar é uma atividade que possui muitas semelhanças com o trabalho dos artesãos. Todos os cientistas experimentais são uma espécie de faz-tudo, pessoas que sabem consertar coisas, que encontram soluções: são próprios bricoleurs. Ou, em outras palavras, pessoas que conseguem trabalhar sem um manual de instruções, e que, principalmente, tornaram-se muito tolerantes à incerteza. Sabem andar às cegas, guiando-se pelas paredes para não bater e mantendo-se conectados a tudo o que acontece para poder ser sensíveis às pequenas diferenças, às nuances esquecidas ou aos tons imperceptíveis. 

    Não é ficar observando o seu objeto, mas sim estar abertos a se deixar afetar por qualquer sinal que vier de seu universo ou do ambiente que os cerca para decidir, em tempo real, se essa coisa, ainda não identificada, possui algum significado ou contém alguma mensagem. A relação que os cientistas mantêm com seus objetos, aquilo que não deixa de interpelá-los e que não conseguem parar de olhar, é muito menos objetiva, distante ou abstrata do que nos contaram. É uma relação muito menos crítica do que afetiva, e tem muito mais a ver com as virtudes de quem cuida de alguém ou de algo, do que com os estereótipos de quem observa, aponta e dispara — quero dizer, com as qualidades de um bom crítico.

    Ao falarmos da clínica tudo parece mais fácil, porque pouquíssimas pessoas já visitaram um laboratório na vida e a maioria nunca ouviu falar da nova profissão de curador de dados. Mas todos ou já cuidamos, ou já fomos cuidados. Entretanto, reside nessa simplicidade a maior dificuldade — porque corremos o risco de psicologizar os cuidados e de transformá-los em habilidades mentais livres de materialidade. Não será preciso insistir, agora, na importância das máscaras, dos testes, dos termômetros, dos sabonetes, da história clínica e dos aplausos. A maior parte do trabalho possui maior relação com gerir espaços, decidir dosagens, administrar alimentos, conhecer lamentos, identificar sinais, comparar respostas, contrastar experiências, aprender de erros, retificar protocolos, pular algumas normas, enfim: improvisar, corrigir, deixar-se afetar, escutar — tudo isso sem um manual.

    Cada quarto de hospital carrega um universo: todos os dias são percorridos todos os climas: o dos bacanas, o dos espertos, o dos exigentes, o dos egoístas, o dos intrigantes, o dos desconfiados, o dos pessimistas, o dos amorosos… todos os universos cabem num só dia. Não é preciso viajar, basta mudar de quarto. Existe um forte desgaste emocional, cuja origem varia. A televisão, sempre apressada e sempre resumindo e generalizando, fala do impacto que a dor do ambiente causa aos profissionais da saúde. É verdade, mas não se resume a isso: essa é só a parte mais midiática. Há muito mais. Existe a vontade de aprender, o desejo de entender, a necessidade de corrigir e a obrigação de curar; tudo isso, ao mesmo tempo e de forma rápida, representa um esforço de intelecção cansativo e infinito, porque os corpos são todos diferentes e o que vale para um pode ser contraproducente para outro.

    Assim funciona o saber experiencial: está nos corpos e não nos livros. Pode-se aprender, mas não numa aula. É um saber contrastado, eficiente, tácito e imprescindível. A clínica é a interface entre esses dois mundos, que com tanta frequência negam-se a chegar a um entendimento: o mundo da crítica e o mundo dos cuidados. É tanto uma interface como uma fronteira que precisamos aprender a contrabandear todo dia. Nessa fronteira, somos todos iguais, não há regras claras, não há normas específicas — e nem podem existir. Esse é o interesse das fronteiras que servem para experimentarmos outros mundos possíveis e necessários. Nas fronteiras, há sempre conflitos que, quando são de curto prazo, resolvemos com astúcia, dando um jeito; mas, se pensarmos em formas de convivência relativamente estáveis, precisaremos das ferramentas da diplomacia.

    Às vezes, não precisamos de uma demonstração, e sim de uma conversa. Os diplomatas sabem disso melhor do que ninguém, como costumam saber aqueles que fazem parte do mundo dos cuidados. O diplomata compreende que não pode convencer seu interlocutor. E, portanto, precisa renunciar às ferramentas da crítica e admitir que a solução não vai ser imposta por um exercício de depuração de dados, de citação de fontes ou de ampliação dos fatos comprobatórios. Entre os diplomatas, a conversa tem a finalidade de encontrar um relato, um acordo, um espaço de convivência mais complexo que o anterior, onde caibam igualmente os dois pontos de vista, mesmo quando enfrentados. A questão é evitar a guerra, e reiniciar a convivência. E é disso que precisamos agora: uma negociação que torne possível não só a convivência de epistemes. Os mundos dos dados, dos fatos e das experiências precisam um do outro e têm de aprender a conviver sem se censurarem. Nenhum deles é mais coerente ou necessário do que os outros.

    Atualmente, fala-se muito em abrir a ciência. Mas não ficou claro o que queremos dizer com isso. Evidentemente, abrir a ciência significa abrir os conteúdos e os dados: dar acesso ao conhecimento disponível, mais ainda quando a maior parte dele é produzida com dinheiro público. Também parece lógico que as infraestruturas que suportam e fazem com que esses dados se tornem operacionais deveriam estar nas mãos dos próprios cientistas, o que equivale a reivindicar soberania para os hardwares e softwares que suportam todo o acervo da ciência aberta. Se a prática da ciência depende de decisões políticas arquitetadas em comitês que definem prioridades, destinam recursos, validam méritos e constroem reputações, parece imprescindível que, também, todas essas operações tenham muita transparência e disponibilização. Tudo isso já foi dito e está na agenda de muitas organizações nacionais e internacionais, não é novidade. Tomara que o coronavírus acelere esses processos em curso.

    Além disso, porém, abrir a ciência requer abrir suas ontologias. Não tem a ver apenas com transformar as práticas para que sejam mais operativas, ou, em outras palavras, os “como”, as epistemes. Temos de aprender a escutar aqueles que falam desde outras formas de se aproximar da realidade. É evidente que o respeito às metodologias acreditadas continua de pé. Ninguém aqui falou em fazer tábula rasa. Pelo contrário: os tempos de coronavírus exigem que nenhum conhecimento seja desperdiçado e que demos a todos eles a visibilidade e o mérito que merecem e que precisamos. Cuidar é uma forma de conhecer, envolve outra maneira de se aproximar dos problemas e de encontrar respostas adaptadas para eles. Envolve mobilizar saberes tácitos e afetivos: saberes que, consequentemente, não podem ser codificados. Saberes que não podem ser desvinculados e que são estreitamente ligados às circunstâncias concretas nas quais foram gerados. São saberes dos quais a Modernidade nos ensinou (e até forçou) a desconfiar. Saberes que desde Descartes consideramos contaminados pelas emoções, pelos preconceitos, pelos contextos, ideologias e fragilidades dos corpos envolvidos, já que nem sempre eles enxergam bem, estão atentos ou com as faculdades plenas.

    O conhecimento experiencial era desprezado pela sua alta contaminação por todo tipo de aderência local, corporal e cultural. Não foi sequer considerado um ativo a valorizar. Temos museus de etnografia, onde as realidades locais são mostradas como parte de um exotismo turistificável — e, agora, identitário. Justamente o oposto do que consideramos necessário por aqui. Nos interessa o comum e interdisciplinar, como forma de conhecimentos opositores — e não como curiosidades excêntricas e arbitrárias. Não são fruto do capricho, são consequência de uma adaptação secular. O fato de terem sido desvalorizadas fala muito sobre a nossa insensibilidade e, assim, da nossa facilidade em desprezar aquilo que ignoramos. O fato de serem não-codificáveis, tácitos, quer dizer que estamos frente a um saberes que não podem ser coisificados, alienados e mercantilizados. Mas isso não significa que sejam inúteis. Talvez por isso a imensa maioria das pessoas que trabalham com enfermagem e serviços sociais são mulheres. Nada a ver com falta de talento, mas sim com utilizá-lo em outras coisas. As quais, como sabemos, às vezes são as mais importantes. Mas nossa intenção não era fazer uma competição entre a cultura crítica e a cultura dos cuidados, e sim tentar suscitar uma conversa, mais ontológica do que epistêmica, que abrisse o mundo do conhecimento a novas perguntas, diversas soluções e novas formas de convivência. Não é que a gente precise de menos ciência, mas de mais atores: abrir a ciência a conversas difíceis, porém, urgentes. O coronavírus nos pede também uma cura de humildade.


    *Antonio Lafuente
    Físico, pesquisador do Centro de Ciências Humanas e Sociais do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) da Espanha, na área de estudos da ciência. Seu interesse pela relação entre tecnologia, patrimônio e bens comuns desembocou nos laboratórios cidadãos, na inovação social e na cultura do prototipado.

  • Acerca de dispositivos, quebras e autorias

    por: Paula Ordonhes

    “Tricotávamos a lã que sobrava e voltávamos aos livros, a ler tudo outra vez e só reparávamos nas palavras. Queríamos nada saber das histórias. Prestávamos atenção às palavras para sabermos como eram ditas as coisas. Porque alguns livros pareciam perfumar a linguagem, outros sujavam-na e outros ignoravam-na. Os livros podiam ser atentos ou desatentos ao modo como contavam. Nós, inspecionando muito rigorosamente, achávamos melhores aqueles que falavam como se inventassem modos de falar.” (A desumanização, Valter Hugo Mãe)

    Gostaria de escrever algo sobre o texto O que é um dispositivo?, de Giorgio Agamben. Li o ensaio na tradução de Vinícius Nicastro Honesko publicada em O que é o contemporâneo? e outros ensaios, um pequeno livro editado em 2009 pela Argos/Unochapecó.

    Retornei a este texto depois de tê-lo lido anos atrás. Estou começando a escrever o mestrado em filosofia. Venho de outra área – artes visuais – e me lembrava de ter gostado muito da forma do ensaio de Agamben quando o li pela primeira vez. Pensava portanto em recuperá-lo como uma inspiração para dar forma à minha própria escrita.

    Minha lembrança era de que o texto de Agamben se organizava a partir de quebras. De fato, relendo-o agora, vi que ele está dividido em 10 partes, numeradas sequencialmente, sem intertítulos. Cada parte apresenta uma quebra em relação à anterior, e também um acréscimo, como se cada nova seção do texto trouxesse elementos que complementam e ao mesmo tempo se contrapõem à parte precedente. Ao longo das seções 1 a 5, Agamben apresenta uma espécie de genealogia do termo “dispositivo” no sentido utilizado por Michel Foucault. Na seção 6 – talvez não por acaso, o meio do texto –, acontece uma quebra mais significativa que as outras. É o momento em que o autor se desliga de Foucault e passa a pensar no termo dispositivo mais livremente. Na seção 7 usa inclusive a primeira pessoa do singular para descrever seu ódio pelos celulares – telefoninos, em italiano –, um dos dispositivos mais evidentes de nosso tempo. Queixa-se que os telefoninos tornaram as relações entre as pessoas ainda mais abstratas.

    Essa fratura no texto – o momento em que o autor se desliga do outro autor, para talvez seguir com ele mais intensamente, numa relação mais visceral e menos mental – também é o próprio assunto do texto. Está, por assim dizer, na carne do texto. Ao traçar a genealogia do termo “dispositivo”, Agamben verifica sua presença e centralidade na história da religião cristã. Dispositio, em latim, foi o termo encontrado por padres latinos como equivalente ao grego oikonomiaOikos significa casa, e oikonomia, a administração doméstica – e também gestão, management. A dificuldade que os religiosos cristãos procuravam resolver entre os séculos II e VI utilizando o termo oikonomia relacionava-se a um aspecto central de sua doutrina: a Santíssima Trindade. Como justificar a presença da tríade “Pai, Filho e Espírito Santo” sem retornar ao politeísmo? A solução encontrada, explica Agamben, foi pensar Cristo como operador da oikonomia da redenção e da salvação entre os homens (sic). Deus, como substância, é uno; mas necessitava de um gestor na Terra para dar conta do dia-a-dia espiritual dos seres humanos.

    Assim como a solução encontrada pelos padres cristãos aponta, segundo Agamben, para uma cisão entre o que Hegel chamava “religião natural” (a experiência mística, desvinculada de uma inscrição no ordenamento religioso ou social) e “religião positiva” (o conjunto de regras, ritos e determinações que organizam a vida espiritual em suas diferentes formas), a própria constituição do humano estaria também marcada por uma fratura semelhante: a cisão entre ser e agir. O dispositivo – ou a economia –, nesse sentido, enquanto manifestação humana, não vem para “atrapalhar” nossa liberdade; ele é a própria imagem daquilo que somos, de nossa forma enquanto humanos. Forma-manifesto dessa quebra que nos constitui: ser e ação, natureza e cultura. Corpo e finanças algorítmicas.

    Retornando ao início do ensaio, lembramos que dispositivos, na literatura de Foucault, podem ser “discursos, instituições, edifícios, leis, proposições filosóficas”; e sobretudo a rede que se estabelece entre todas essas manifestações dispositivas. A própria linguagem seria também um dispositivo, possivelmente o mais antigo de todos, lembra Agamben. E ainda as prisões, os manicômios, as escolas, a confissão, as fábricas; o cigarro, a navegação, os computadores, e sem dúvida, os telefones celulares. Todas essas manifestações, em alguma medida, contém o que Agamben sugere ser “um desejo demasiadamente humano de felicidade”. O dispositivo – e aqui me parece estar algo muito precioso, talvez o que realmente tenha me feito voltar ao texto – captura o que nos é mais sagrado, e por isso não conseguimos simplesmente nos livrar deles. Nosso corpo a corpo com os dispositivos não pode ser simples, já que o que está em questão é restituir ao uso comum aquilo que nos foi tomado: gestos e pensamentos. Nossa lida crítica com os dispositivos implica nossa própria ressubjetivação. Precisamos nos tornar outras pessoas, em alguma medida (em larga medida).

    Ao sugerir como tarefa urgente a profanação dos dispositivos, entendida como a recuperação de volta para o mundo da carne daquilo que foi abstraído, separado, tornado intangível (ou ininteligível), Agamben recusa, conforme compreendi, a ideia de destruição do que está posto. O dispositivo, afinal, é o próprio humano, já que carrega seu desejo de felicidade. Destruí-lo seria o mesmo que nos autodestruirmos. Talvez isso dê pistas sobre a insistência que experimentamos numa forma de vida que nos trouxe à catástrofe: não conseguimos nos livrar dos dispositivos nem fazer um “bom uso” deles, porque o “incessante girar em vão da máquina” da oikonomia também nos constitui, em alguma medida.

    Talvez a profanação de que fala Agamben possa ser compreendida como um necessário exercício de reconhecimento de nossa parte ciborgue, daquilo em nós que se prolonga nos dispositivos. Porque não propomos outras formas de vida, não enfrentamos de modo mais contundente o neoliberalismo masculino e branco e sua máquina mortífera? Possivelmente porque há algo dele em nós mesmxs, imobilizando-nos em frente às telas. É um reconhecimento duro de enfrentar. E insuficiente, porque não gera necessariamente ação ou profanação. Mas pode ser algo.

    Em Carta de um homens trans ao Antigo Regime sexual, Paul Preciado fala da erotização da dominação como parte da estratégia de perpetuação do que nomeia política do desejo dentro do regime político da heterossexualidade. A diferença de poder entre homens (cis) e mulheres (cis) seria valorizada como desejável num nível não consciente. Esta estratégia não se apresenta enquanto lei claramente estabelecida, e sim como uma norma não-escrita, traduzida em gestos e códigos sutis que determinam o que pode e o que não pode ser feito, quem pode ou não acessar determinados lugares, etc. Contra esse estado de coisas, Preciado propõe uma transformação no modo de desejar, sugerindo que passemos, como sociedade, a desejar a liberdade, em oposição a seguir desejando a dominação. Uma transformação desse porte convoca todo o corpo, precisa ser um exercício diário. Como escrever ou cozinhar.

    Podemos pensar que a rivalidade, a competição, a ambição e a agressividade são igualmente erotizadas sob este regime. Uma pessoa “sem ambição” é vista como desinteressante, como alguém “menor”, e muitas vezes também como alguém que merece viver mais precariamente, não ter acesso a confortos materiais básicos, etc. Desejamos a ambição, a competição. Mas Preciado argumenta que o feminismo queer, do qual participa como teórica, não pretende extirpar a rivalidade ou a dominação das relações, e sim garantir que elas aconteçam de maneira consensuada e que os papeis não sejam fixados e naturalizados de acordo com o corpo biológico dxs envolvidxs. “Não estou dizendo que as culturas queer e trans-feminista evitam todas as formas de violência. Não há sexualidade sem um lado sombrio”. Trata-se, conforme compreendemos, de evitar a hegemonia e a predeterminação de um modelo único no qual homens brancos detém todo o poder.

    Pensando mais uma vez nas quebras do texto de Agamben, na forma que me interessou e me fez retornar a ele em 2020: não há apenas fraturas no texto. Há também costuras, um fio de sentido, algo que entrelaça as partes. Pode ser que seja um desejo, uma pulsão ética, algo que movimentou o filósofo na direção de concluir o ensaio com uma proposição de profanação. Uma das profanações que me ocorrem é o impulso de nos desgarrarmos dos autores, das autoridades, das citações. Tê-los como parceiros, talvez com alguma rivalidade, mas não como dispositivos legitimadores. Agamben, aliás, profanou um dispositivo importante – a autoria – quando afastou-se de Foucault para pensar seu conceito de dispositivo da maneira como achou melhor.

    Pensei em encerrar este texto com algo menos solene e que talvez possa também dar pistas de possíveis profanações. Um amigo costumava dizer que, quando estava em uma situação desconfortável – uma entrevista de emprego, uma reunião difícil com pessoas poderosas –, ajudava-o lembrar que seus interlocutores tinham cu. Me lembrei agora de um texto de Viveiros de Castro, O medo dos outros, se não me engano, que fala nisso também, nesse em-comum que temos não só com outros humanos mas também com outros seres vivos: a boca e o ânus. É um texto bonito, como é bonito o texto de Agamben. Outrxs autorxs tratam do assunto de modos mais poéticos e menos solenes.

    O texto de Paul Preciado pode ser lido aqui; o de Viveiros, neste endereço; e o de Agamben, em versão apresentada pelo autor durante conferência na Universidade Federal de Santa Catarina em 2005, na revista outra travessia, com tradução de Nilcéia Valdati.

  • Investigar dispositivos, controle e mobilização total em tempos de pandemia

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    por: tramadores

    A incandescência histórica tem a virtude de aumentar a legibilidade estratégica de uma época.   Tiqqun

    La cuestión suprema ya no es la extracción de plusvalía, sino el Control. El nivel de extracción de la propia plusvalía ya no indica sino el nivel de Control que es localmente su condición. El Capital ya no es sino un medio al servicio del Control generalizado. Y si aún existe un imperialismo de la mercancía, se hace sentir ante todo como imperialismo de los dispositivos; imperialismo que responde a una necesidad: la de la normalización transitiva de todas las situaciones . Tiqqun

    Seguimos tramando zonas de confluências  entre os fios de uma ciência dos dispositivos e uma ciência de retomada.

    Para a próxima Conversação Febril (21/05 – 19hs) gostaríamos de dar mais atenção para o acontecimento covid-19 como um experimento de novas técnicas de controle. Cartografar os movimentos do poder que não mais restringe, constrange, impossibilita, mas atua fazendo funcionar: mobiliza, engaja e conduz. Dispositivos de desempenho nos exigem provas de eficiência e sacrifício em longas jornadas. Novas formas de medir, qualificar, avaliar – a cidadania sacrificial também é policial e gerencial: todos vigiam, todos denunciam, todos avaliam os \”serviços\” e dão sua nota, todos participam e se sentem convocados em \”fazer sua parte\”. A vida  imersa dentro do trabalho, o trabalho como forma permanente de auto-empreendedorização, mobilização total, uma sociedade de \”capital humano\”, vida convertida em \”administração\” e concorrência.

    Os detratores agora são os improdutivos, vagabundos, aqueles que não são eficientes o suficiente, irresponsáveis. Pílulas para dormir, pílulas para acordar, muitas formas de neutralizar os sintomas. Uma nova arquitetura algoritmizada funcionando para ordenar, permitir as \”melhores decisões\”, as \”melhores buscas\”, evitar os imprevistos, os excessos, os erros. Resultados, relatórios, multitarefas. Ninguém precisa sair de casa agora: está tudo aqui na nova paisagem doméstica-produtiva-reprodutiva e de consumo que se tornou o \”lar\”.

    Nas universidades e escolas, tecnologias coorporativas mediando formas de aprendizagem e  produzindo ambientes educacionais – o que é, de fato, uma \”aula\”? O que é, de fato, uma \”produção relevante\”? O que é, de fato, uma \”experiência\”? O que é, de fato, uma \”avaliação\”?

    No chão da fábrica: trabalhadoras de saúde e suas tecnologias de cuidado e de guerrilha atuando pela desobediência, defendendo a saúde coletiva contra a necropolítica do Estado; 

    No chão da fábrica: escolas pensando sobre sua existência e reorganizando a possibilidade de uma comunidade escolar que está para além da sala de aula, mas acontece nessas práticas de cooperação, de viver junto, de sustentar um desejo coletivo atuando pela desobediência ao que ordena o Estado.

    No chão da fábrica: os trabalhos mais mal-remunerados, mais precarizados, ligados aos cuidados são o que mais importam agora.

    No chão da fábrica: as ruas da metrópole e os vagões lotados de ônibus e metrôs, os corpos pretos, precarizados, são os que habitam a zona do sacrifício e se deslocam para que a produção não seja interrompida, para que as infraestruturas permaneçam funcionando.

    No chão de fábrica: constatamos que a família nuclear biológica heterossexual é o que amortece todo o colapso ao mesmo tempo que percebemos os limites de suas formas patriarcais, binárias, suas tecnologias de domesticação e controle que também fazem o gênero \”funcionar\”, \”desempenhar\”. Somos capazes de viver de outra forma?

    O poder quer nos convencer que o \”desemprego mata mais do que a pandemia\” – no fundo, isso revela com total transparência o fato de que o trabalho se tornou uma chantagem e que a mobilização total é a única técnica de governo. 

    O medo do poder reside na nossa capacidade de poder viver sem ele: deponer los poderes que nos gobiernan coincide o tiende a coincidir con un hacer sin ellos, y viceversa.

    Para adensar essa conversa gostaríamos de investigar, descrever e analisar coletivamente algumas manifestações e materializações dos dispositivos de controle em nossas vidas durante a pandemia. Como percebemos, sentimos e narramos o que se apresenta como atualização das formas de controle do trabalho, da vida, dos cuidados, das relações, dos afetos, dos corpos. Como funcionam esses mecanismos, suas solicitações, técnicas, formas de mensuração e avaliação? Como somos convidadas a nos criar, a fabricar um “eu” que funcione?


    *Textos, audios, videos, fotografias podem ser compartilhados aqui neste post na forma de comentários: https://www.tramadora.net/2020/05/15/investigar-dispositivos-controle-e-mobilizacao-total-em-tempos-de-pandemia/
    Sua postagem se tornará pública para outrxs pessoas que por lá passarem também.


    *Para inspirar esse percurso e a Conversação Febril do dia 21 de maio, as 19hs, indicamos alguns textos:

    DELEUZE, Gilles. Post-Scriptum sobre Sociedade do Controle In: Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2007.

    RODRIGUES, Pablo Manolo. Algoritmos y biomoléculas, 2020

    PRECIADO, Paul. Aprendiendo del virus, 2020   Tradução:  https://medium.com/textura/aprendendo-com-o-v%C3%ADrus-1f8542d3ed78

    Seguimos!

    imagem do post: Sea Serpent Swallows Ship. Deccan. Bijapur, 1670.

  • Algoritmos y biomoléculas

    entrevista com Pablo Manolo Rodríguez* por Gabriel Delacoste publicada originalmente em: https://brecha.com.uy/entre-algoritmos-y-biomoleculas/

    La pandemia de coronavirus nos metió de lleno, más aun de lo que estábamos antes, en el mundo de las redes y plataformas virtuales. También nos hizo más conscientes de los pequeños seres biológicos con los que convivimos permanentemente y de nuestro vínculo con ellos. Nuestro entrevistado desarrolla una investigación sobre cómo, a partir de la teoría de la información, se fue formando, a lo largo de varias décadas, este mundo en el que vivimos hoy.

    GD: Escribiste un libro que menciona en el título a los algoritmos y las biomoléculas, y este parece ser un momento muy intenso para esas cosas. ¿Qué estás pensando estos días?

    PMR: Estamos en un momento inédito. Somos muchos los que nunca vivimos una situación así. La comparación inmediata que se nos viene en Argentina, Uruguay o Chile es la dictadura, porque hay un impedimento de circular. En el caso de Chile hay una alusión directa a que el control lo tienen los militares. En Argentina eso no lo podés decir, los militares no tienen el control de las calles, están repartiendo comida. Entonces, cualquier interpretación que podamos hacer es provisoria, puede dar lugar a otras, a medida que se desarrolle este evento, que todavía no terminó. Dicho esto, hay cosas que se relacionan con el tipo de búsqueda que hice en Las palabras en las cosas. Yo planteo que hay una relación absolutamente íntima entre los algoritmos y las biomoléculas, a través de la idea de información. Hoy en día esto lo estamos viendo con el par virus/viralización. El virus, su capacidad de infección, es un trabajo de las biomoléculas, que atacan nuestras ideas de inmunidad, anclada en el cuerpo, tanto desde un punto de vista biológico como político. Y por otro lado, es inentendible esta pandemia sin pensar en la viralización, en el hecho de que hay un virus social que infecta junto con el virus biológico. En esta especie de debate que apareció entre los intelectuales, Byung Chul-Han, pero también Paul Preciado dicen que estamos en un momento en el que para controlar al virus se requiere a la vigilancia de todos los individuos, para saber dónde están los posibles infectados, cómo aislarlos, etc. O sea, una idea similar a la de 1984 de Orwell. Si esto es así, algo que se puede discutir, todos estamos aceptando, sin más, ser vigilados. Estamos aceptando que el hecho de que una organización estatal o privada tenga toda la información de nuestras actividades o de lo que pensamos tiene que ver con el bien común. Es una idea muy difícil de digerir cuando hasta hace unos años la vigilancia existía pero era algo mal visto. Es el mismo esquema que intentó imponer Estados Unidos desde el 11 de setiembre de 2001 hablando de terrorismo. Estamos dispuestos a aceptar cualquier cosa que hagan con nosotros por estar amenazados por un virus, cuando quizás en tiempos de la supuesta amenaza terrorista había, al menos, más voces de resistencia. Entonces, de alguna manera, daría la impresión de que estamos trabajando en dos velocidades parecidas: está la velocidad de propagación del virus, que es lo que está justificando toda esta parafernalia (porque la particularidad de este virus respecto a otros responsables de pandemias es su capacidad de contagio; infecta a más gente, y por lo tanto va a matar a más gente), y también la velocidad de lo que comparten todas las personas encerradas en sus casas, constantamente viralizando memes, grupos de Zoom. Y otra cosa: quizás a lo mejor este virus se vuelve más soportable porque tenemos maneras de viralizar digitalmente. Hay una relación muy estrecha.

    GD: Capaz podemos dar un paso atrás. Esta relación entre la forma como se organiza la vida y la forma como funcionan las computadoras no es algo tan intuitivo. ¿Cómo se explica ese vínculo?

    Una de las cosas que a mí me interesa investigar desde hace muchos años es cómo aparecieron las teorías y las tecnologías de la información. O sea, en qué momento se empezó a hablar de información, bajo qué régimen, quiénes lo hicieron y qué tráficos conceptuales hacían. No es tan difícil encontrar esto, poner fechas, personas. Pero yo utilicé la metodología de la arqueología de Foucault porque no quería caer en la vieja historia de la ciencia, donde un conjunto de personajes arman un paradigma científico, como si fuera tan fácil. La idea es la siguiente: entre la década del 30 y del 50, hace poco menos de cien años, hubo un tráfico conceptual entre ciencias, algunas constituidas y otras que todavía no se habían constituido, en torno a la posibilidad de hacer equivaler a los seres artificiales con los seres naturales, algo que no era nuevo pero que parecía ahora posible en un terreno de mayor concreción. Con esta equivalencia de base, con muchas sutilezas, se puede pensar en máquinas que actúen como si fueran seres vivos. Y que en el fondo sean seres vivos, porque los seres vivos no tienen nada de especial para esta interpretación del mundo. Se trata en todos los casos de un ser que está en un contexto, y que necesita intercambiar cosas con ese contexto (que pueden ser energía, información, no importa) y que eso que intercambian hace que ese ser genere un estado interno en relación con un medioambiente. Eso lo empiezan a pensar para una garrapata y también para una computadora. Y al poco tiempo aparece la biología molecular, que para explicar la actividad de las biomoléculas (que para entonces ya eran un objeto de investigación privilegiado para la biología; no lo eran en el siglo XIX, cuando no había biología molecular) importa de una manera muy extraña la teoría de la información, que venía de las telecomunicaciones, en varios regímenes. La información es considerada desde dos puntos de vista: como un fenómeno trasmisión de una orden o un mensaje (la teoría matemática de la comunicación de Shannon), y como algo que una entidad dotada de un estado interno tiene y procesa. Son parecidas, pero no es lo mismo hablar de trasmisión de información que de procesamiento de información. A través de la idea del procesamiento de información, puedo decir que una máquina puede procesar información, que una molécula puede procesar información, que un cerebro proceso información, y ahí empiezan a correr las analogías. Y de hecho la principal de las analogías es la propia computadora. La computadora (la que usamos ahora) surge de una ensalada que viene de las calculadoras y también de la idea según la cual el mecanismo físico por el que un cerebro puede hacer lo que hace puede ser imitado en una máquina. La computadora es el resultado de eso, explícitamente. Von Neumann creía que los transistores podían ser equivalentes a neuronas, por lo tanto si yo puedo reproducir la forma material, puedo entonces decir que una computadora puede ser un cerebro artificial. Esa analogía, cuando pasa a la biología molecular, pasa como una forma de explicar por qué se dan las modificaciones en las biomoléculas. La computadora es el modelo a través del cual se va a entender lo que hacen las biomoléculas, en especial las encargadas de la trasmisión de la herencia, o sea las genéticas. Entonces la idea del libro es mostrar cómo esas ideas, esos términos, aparecen en toda una serie de ciencias muy diversas entre sí que tratan de colocar bajo un mismo régimen de explicación a los seres naturales, los seres sociales y los seres artificiales. Y por eso también elegí como forma de entender esto a la idea de episteme de Foucault, que es mucho más que la mera existencia de un paradigma científico. En un paradigma uno podría decir que las ciencias, en un momento dado, acuerdan determinadas cosas, tienen ciertos principios que comparten. Pero lo que pasó acá es mucho más: la idea de episteme de Focault habla no solo de ciencias sino de todo un conjunto imbricado de saberes que pueden estar legitimados o no como ciencias. Ya no podemos pensar en términos de ciencias naturales por un lado, y luego ciencias sociales, y luego ciencias de lo artificial, computación, etc., sino que todas están trabajando de una forma común, que es compleja. No es simple. No se deriva de dos o tres axiomas, porque como esta episteme posmoderna (que vendría después de la episteme moderna que describió Foucault) es muy ambiciosa, hay muchas idas y venidas, muchas rispideces, no hay una idea completa. Ni siquiera hay definiciones en lo básico. No hay una definición de información que todo el mundo comparta, pero eso es lo que garantiza que funcione. Si fuera solamente una, si hubiera un sistema axiomático y prolijo, no sería tan amplio.

    GD: Recién decías la palabra “posmoderno”. Es algo que me dejó pensando bastante en el libro, porque normalmente uno asocia a lo posmoderno con la idea de que todo es lenguaje. Y de una manera rara eso sucede en esta episteme que describís, pero no a través de la crítica literaria y cierto pensamiento “débil”, sino a través del código binario, el código genético. Es una salida muy extraña de la idea de posmodernidad, que de alguna manera descoloca el debate que se da por ejemplo cuando los positivistas atacan a los “posmodernos”.

    Yo tuve muchos problemas por esta cuestión de la “episteme posmoderna”. Todas las personas que leyeron partes o versiones de este libro (el editor, los amigos, durante las defensas de tesis) dijeron “no me cierra esto de episteme posmoderna”, “no funciona”, “no va porque posmodernidad tiene que ver con otra cosa”. Y yo en ese punto no cedí, y dije “no, justamente, se llama posmoderna por eso que estás diciendo”. Nuestra interpretación de la relación entre modernidad y posmodernidad está muy atravesada por el debate que se dio en Francia y en Estados Unidos (como amplificador del pensamiento francés) entre la década del 70 y del 90. Y uno podría decir hoy en día que todo el tema de la posmodernidad está agotado, igual que las cosas que se dicen habitualmente de la posmodernidad: la crisis de los grandes relatos, la falta de centro, la ausencia de discursos unificadores. Pero lo que yo quiero decir es que efectivamente en lo que se llama posmoderno, encontramos un orden (que es lo que quiere decir “episteme”), y eso es insólito porque uno podría decir que posmodernidad es la ausencia de episteme. Bueno, justamente, estas 500 páginas intentan demostrar que para la posmodernidad es posible pensar una episteme. ¿Podría haber elegido otro término? Sin duda, pero ninguno me convencía tanto. Primero porque Lyotard, que es el primero que presenta el concepto de posmodernidad, se basa en estudiar a la cibernética, por lo tanto esto es literal. Segundo, porque lo posmoderno es lo que viene después de lo moderno, de la episteme moderna. Yo le podría haber puesto episteme cibernética, pero episteme cibernética sonaría similar a si Foucault le hubiera puesto a la episteme moderna “episteme evolucionista”. Eso es una sinécdoque, tomamos la parte por el todo. Si yo la llamo episteme cibernética, estoy diciendo que todo se explica por la cibernética, y no es así. La cibernética es la que dio el puntapié inicial de la comparación con la información, pero cuando te vas a otras regiones del saber, hay desplazamientos metafóricos, cosas que no se parecen a la cibernética. La idea con “episteme posmoderna” es presentar un concepto insólito para de alguna manera cargarlo de cierto sentido. No quiero plantear lo mismo que estaba planteado, sino otra cosa. Puede ser una estrategia equivocada, y quizás todos los que me dijeron que lo de episteme posmoderna estaba mal tenían razón, pero por ahora estoy acá.

    GD: Lo que me interesaba no era tanto la palabra “posmoderno”, sino cómo esta cuestión de la centralidad del lenguaje aparece por un lado oblicuo, de como estas ciencias “duras”, tan acostubradas a rechazar a la centralidad del lenguaje en la forma como se plantea en las humanidades, hacen lo mismo pero de otra manera, en la que prácticamente la realidad misma es lenguaje, por eso “las palabras en las cosas”. Esa es una idea bastante llamativa, porque difícilmente un biólogo molecular o un ingeniero de sistemas se pensarían a si mismos como posmodernos.

    Una de las cuestiones que quise mostrar en el libro es que una de las categorías fundamentales de esta nueva episteme es la diseminación del lenguaje hacia lo natural y lo maquínico. Así, el lenguaje no es una propiedad humana: que las biomoléculas tienen lenguaje, que las máquinas tienen lenguaje, pero de un modo que es oblicuo, como decís vos, a la forma estructuralista y posestructuralista de pensarlo. El posestructuralismo intentó poner en crisis a las propias ciencias del lenguaje. El mejor ejemplo es Derrida. Mientras eso ocurría, por otro lado, y de manera también insólita, gente de la ingeniería, de las ciencias duras, de la matemática, se ponen a pensar que en realidad en todos lados hay lenguaje. Y eso es muy, muy interesante. De hecho, una de las reseñas de mi libro que hizo Darío Sandrone en Córdoba hace alusión a eso; a la manera en que se puede construir un puente entre la tradición de la filosofía continental, que es “lenguajecéntrica”, y la tradición de la filosofía analítica, anglosajona, para la cual esas cosas de los franceses son… guitarra. Y en realidad, los ingenieros que trabajan en el mismo mundo espiritual que los filósofos analíticos estaban experimentando con que todo es lenguaje, por lo que no hay tanta distancia. Solamente que unos lo hacen en el marco de ciencias que producen cosas (vacunas, computadoras, plataformas), mientras para los otros, en el marco francés, eso era solamente una discusión intelectual.

    GD: La mirada política de Las palabras en las cosas no es apocalítpica ni optimista, es por momentos burlona, y por momentos fascisna. Se menciona que en el Chile de Allende hubo un experimento de planificación económica con computadoras. Hoy hay toda una discusión sobre la posibilidad de una economía planificada a partir de las posibilidades que da la tecnología digital, un socialismo digital, como lo llama Evgeny Morozov. La lectura del libro también me hizo pensar en Friedrich Hayek, en su liberalismo y en la idea de orden espontáneo. ¿Cómo juegan la política, específicamente el liberalismo y el socialismo, en las cosas que has estado pensando?

    Respecto a Hayek y el neoliberalismo, hay toda una parte de las relaciones que establezco que dejé manifiestamente de lado en el libro. Vos estás planteando un tema que es nodal, y que ha sido trabajado por muchos autores, que es en qué medida todas estas formas cibernéticas sistémicas hacen juego perfecto con el neoliberalismo. Me gustó eso que decís sobre la visión a veces burlona y a veces fascinada. Si es así, creo que ocurre porque efectivamente traté de tomarme en serio la forma arqueológica de Foucault, en el sentido de que no podría a partir de lo que yo estoy estudiando derivar una fórmula o una propuesta de acción, pero se hace necesaria la distancia y el humor para ver el mapa completo. Por otra parte, creo que hay un montón de acciones muy desperdigadas y al mismo tiempo muy potentes, que no sabemos hacia dónde pueden ir, o si directamente no tienen por qué ir a algún lado. Por eso el último capítulo parte de la idea central de que vivimos una crisis de la noción de individuo, que se puede asociar a la forma cibernético-sistémica porque todo se convierte en información. El individuo queda borroneado porque todo se convierte en datos y todo es explotado como dato. Y en este panorama, el socialismo digital está muy lejos, porque si en principio la crisis de lo individual podría ir en ese sentido, hay que decir que por el momento el capitalismo ha podido componer bastante bien con la información. Y esto es así por la sencilla razón de que quienes pensaron el problema de cómo traducir la información en una infraestructura, una economía y una política lo están haciendo desde hace cincuenta años. El capítulo 4, donde pongo en serie las transformaciones de la biología molecular y las transformaciones de los discursos sobre la sociedad postindustrial o de la información, tiene como objeto ver como en dos ámbitos tan diferentes (y sin embargo no tan diferentes) se está construyendo una idea de información desde hace muchos años, aunque ahora nos sorprendamos de cómo aparecen en todos lados los datos. Lo que nosotros vemos ahora es algo que fue pensando hace mucho. Esto no quiere decir que haya un mecanismo teleológico. Estoy totalmente convencido de que si a la gente que estaba pensando esto en los años 50 le mostramos la llamada de Skype o un emoji en un whatsapp no entenderían nada. No pensaban que se iba a dar de este modo. Lo que sí pasa, y esto es lo que estamos viviendo ahora, es que si vos mirás cómo se comportan las empresas que trabajan en lo digital, en lo informático, son empresas que han logrado armar un sistema de valorización, de construcción económica capitalista muy exitoso. Por esto sugiero que a partir de aquí se puede entrar en una discusión sobre la teoría del valor de Marx. A pesar de que puede haber algo, digamos ideológico, en la construcción del discurso de lo postindustrial y en la información como nuevo insumo productivo a partir de la década del 70, sí es cierto que transformaron a los datos en materia de generación de valor. Eso no se ejerce sobre un cuerpo, que es lo que estaba pensando Marx (que pensaba en un cuerpo y una máquina ensambladas en un sistema de producción). No son máquinas que están en el mismo plano material que nosotros, sino que son máquinas de información, con las que nosotros componemos suficientemente bien como para tener 90 perfiles en 90 redes distintas. ¿Quién soy yo ahí? Estoy un poco desdoblado, y ese desdoblamiento genera valor, que es explotado por un sistema capitalista. Ahí está la cuestión de lo dividual (y ya no individual), y toda la cuestión de las biomoléculas y el biocapital, que se trata de cómo se transforma a cualquier ser vivo en una fábrica, que es lo que se hace hoy. Son casos en los que no es posible entender esas transformaciones sin entender que no puede haber plusvalía sin subpoder, como decía Foucault. No puede haber mecanismos de recomposición del capitalismo sin que haya un reacomodamiento de las subjetividades, de las relaciones sociales. Para volver sobre tu pregunta, la idea de la neutralidad de la técnica, según la cual tenemos una alternativa capitalista o una socialista de operar con estos mecanismos tecnológicos ya fue muy criticada y es difícil de sostener. Lo que podemos decir históricamente es que por ahora la forma socialista no se ve. Pero no se ve porque nosotros no vemos una forma socialista. Nosotros mismos no estamos pensando políticamente en ese sentido. No le podemos pedir a las máquinas ni a los sistemas técnicos que lo hagan por nosotros. Ojalá fuera tan simple como esa frase famosa de Lenin: “el comunismo es soviets más electricicidad”. Al mismo tiempo, es cierto que se generan nuevas formas de política, de asociación política, que pueden ser difíciles de entender si nuestra idea de asociación política sólo responde a la construcción de un sujeto político que es históricamente coherente. Eso para mí es claro que no va a existir por mucho más. Pero también me quiero oponer a la idea de que las formas políticas que se expresan en redes sociales son banales, o son menores respecto de las otras formas. Son muy importantes, y eso no quiere decir que las otras ya no se den. Hay una imagen en el libro que me interesa, y es que ir a una marcha es subir una foto de que fuiste a la marcha. Y si no subís la foto no fuiste a la marcha. Y eso no es un acto de frivolidad, es el modo como hoy se conectan personas que no se conocen. Esto no se podía antes, o no de esa forma. Lo digital está combinado con la movilización. Pero creo que falta tiempo para que aparezca una forma política que pueda oponerse a las fuerzas capitalistas de manera consistente. Esto es un fenómeno muy nuevo. Está pasando hace 50 años, o hace 30, o hace 20. Y además con ausencia de bloques monolíticos en frente. Porque uno podría decir que a finales del siglo XIX o principios del XX también se estaban produciendo transformaciones tremendas, pero en ese momento ya existía el marxismo, y el marxismo siempre estaba ahí como un otro para el Occidente capitalista. Entonces es un tiempo de transición, y yo quería trabajar con categorías que para mí son experimentales. Hablo de lo dividual para dar cuenta de una idea de individuo que ya no está funcionando, pero podría haber otras que yo no conozco para explicar lo que está pasando. Yo creo que a lo que pasa no hay que condenarlo anticipadamente. Se habla mucho del narcisismo de las redes, pero además de narcisismo hay un montón de formas políticas de lo común que se están tramando ahí, y hay que atenderlas.

    GD: Me imagino a Marx como alguien que si estuviera vivo estaría muy interesado en la biología y en las computadoras, porque las máquinas y la materialidad del cuerpo eran cosas que a el claramente le interesaban muchísimo.

    No me cabe duda que si Marx viviera nos estaría intentando explicar cómo funciona una computadora, como hizo con las máquinas en El capital. Marx hoy estaría estudiando las computadoras, estaría buscando la economía política del dato, y estaría buscando construir una teoría crítica de las plataformas. De hecho, hay varios autores que tratan de hacen un análisis de todo esto usando categorías marxistas. Está Nick Srnicek, hay todo un pensamiento sobre eso y sobre cómo recuperar a Marx para entender la situación actual. Hay gente que se resiste a eso, porque piensa que el modelo sigue siendo el que Marx definió en el siglo XIX, diciendo que en el siglo XX las formas técnicas cambiaron pero el capitalismo no. Es importante tener una discusión con Marx, y eso supone volver a leerlo muy bien a la luz de lo que está pasando ahora. Que es una cosa que no hice con la profundidad suficiente, pero me lo propongo. Es un poco lo que hicieron los autonomistas italianos y les valió la crítica de un montón de gente, y lo pueden haber hecho bien o mal, pero por lo menos lo intentan.

    GD: Lo que pensaba cuando te escuchaba es que si Marx hace algo nuevo con la economía política de su época, si no será posible, si no habrá alguna forma de dar vuelta todo este pensamiento de la teoría de sistemas para hacer otra cosa con él. Una cosa que uno podría decir, y que el libro no lo dice, pero yo me quedé pensando, es que en el recorrido de la episteme posmoderna se pasa de un pensamiento inicialmente digamos más lineal, más aparatoso, a uno más fluído, más holístico, con ideas como autoorganización o autopoesis. Y a eso uno podría pensarlo como algo “más de izquierda”. Y me pregunto si no está pasando algo ahí, si este último pensamiento más fluido, más sistémico, en algún punto más colectivo, no tiene otras resonancias políticas.

    Eso es algo que me planteé cuando escribía el libro pero no tenía cómo engancharlo. Es interesante esta forma epistemológica, de la autopoiesis, la autoorganización, la complejidad, que tienen una inspiración más biológica que maquínica. Es respetable, uno no puede no estar de acuerdo con ella. Nadie podría decir que está en contra de eso, pero todavía no veo como eso se transforma en una forma política tal como nosotros entendemos la política. Quizás el lugar donde esto se está planteando más claro es en la ecología. En la medida en que el pensamiento ecológico y la acción ecologista se tornen cada vez más importantes (y creo que lo tendría que ser), podremos pensar mejor esto. Otro tema central es de qué manera la ecología forma parte de un pensamiento de izquierda. Son cosas ya muy analizadas, pero en América Latina falta mucho aún. Ocurre que los que hemos sido formados todavía en la modernidad suponemos que la naturaleza está ahí afuera (y eso lo suponía Marx también), lista para ser explotada. Pero me parece que para la conciencia ecológica esto ya no es así. No estamos frente a un mundo, sino adentro de un mundo, y eso supone que no podemos seguir con las prácticas actuales. Eso eventualmente tiene que derivar en una forma política más clara, que no sea una mera conciencia ecológica. Ojo, guarda que a lo mejor este momento, esta pandemia, puede dejar como resultado esto. Entonces para terminar de responder, me parece que la teoría de la autoorganización, la complejidad y la autopoiesis pueden aportar a la política en los términos de poder incluir la agenda de lo biológico completo (esto es, de lo ecológico) dentro de un pensamiento que uno podría pensar progresista, si es que este término tiene algún sentido hoy. ¿Cómo vamos a procesar, cuando termine esta pandemia, que la emisión de gases y la contaminación bajaron de manera increíble? ¿Lo vamos a tomar como un hecho nomás? Nosotros aquí en América tendemos a no darle a la cuestión ecológica la importancia de un problema político clave. Y eso me parece peligroso. Porque cuando uno mira desde el punto de vista geopolítico lo que está pasando, la explotación de los recursos naturales, las formas de riqueza que están apareciendo con el descubrimiento de nuevas materias primas, pienso en el triángulo del litio aquí en el norte de Argentina, Bolivia y Chile, pienso en todo el problema de los petróleos no convencionales, y de los biocombustibles. Que no es un problema tan ajeno, y nos vamos a dar cuenta más temprano que tarde que esos problemas tienen que ser abordados. Hay que mirar a Bolivia, y por qué está pasando lo que está pasando.

    GD: ¿Has recibido comentarios o entablado contactos con gente de la biología o la informática a partir del libro?

    En los agradecimientos digo que este libro se escribió dialogando con un montón de grupos. Esto quiere decir que trabajé el tema biológico con biólogos moleculares que no están conformes con su propia disciplina, y piensan que su disciplina tiene problemas, que tiene agujeros, que tiene derivaciones políticas muy preocupantes. O sea, es una gente muy especial. Y en el caso de informática, todas estas cosas sobre algoritmos y datos, las trabajo con gente de informática de Córdoba, particularmente un personaje clave que es Javier Blanco, con quien justamente lo que tratamos de ver son estos tráficos conceptuales. Ahora, si tu me preguntás si fuera de la gente que yo conozco tuve repercusiones, te diría que todavía no a este nivel. Sí las tuve a raíz de resultados parciales de la investigación. Obviamente fui a dar charlas a muchos lugares. Y en el caso particular de los biólogos están muy sorprendidos, porque es como que estoy haciendo la epistemología de lo que todavía no ha sido convertido en discurso epistemológico. Y eso lo digo casi con certeza, porque me pasó ya muchas veces. La biología molecular no discute de epistemología, no sabe de dónde viene el término “información”, no le preocupa. En alguna medida, los biólogos moleculares son técnicos. Cuando vas a ver en la informática es lo mismo. La computación está siempre centrada en su objeto, y en los últimos años muy convencida (es un saber que ganó mucho poder) de que pueden ser un método válido para cualquier otra cosa. De hecho, hoy en día, de las cuarenta mil cosas que son viralizadas sobre la pandemia de coronavirus figuran todo el tiempo las simulaciones de las curvas, que son medidas estadísticas, modelos informáticos cuyo criterio de validez o lugar de autoridad es el de personas que son estadísticos, informáticos, gente que está trabajando todo el tiempo con simulaciones, en este caso para calcular cuánta gente va a estar muerta en un mes. En todos los lugares donde yo digo este tipo de cosas soy bien recibido en tanto novedad, y también resistido. A mí eso me pone contento porque lo que yo estoy volcando ahí son sorpresas, cosas que responden a leer o a hacer conexiones que yo no había visto que fueran importantes. Cuando yo empecé a leer sobre cibernética, hace 20 años, no había casi nadie que hablara de cibernética. Hoy tampoco, no se habla de cibernética, pero porque todo lo que hay es cibernética. Si en las instituciones educativas, en los lugares de saber, dicen que el conocimiento es esto, que lo que está pasando es esto y que la manera como esto se aplica a la sociedad es esta, yo digo no: primero, no hay aplicación del conocimiento a la sociedad, sino que el conocimiento está adentro de la sociedad; y segundo, estamos ante una nueva forma de saber que todavía no hemos formalizado bien, no la hemos puesto en palabras, no hemos explicitado todos estos supuestos. Cuando yo tengo charlas con grupos de biólogos o de informáticos me parece que para ellos también es nuevo lo que estoy diciendo, cuando en realidad pensaba que era obvio para ellos. En realidad nada de todo esto es obvio porque justamente una de las cosas que nos enseña Foucault es que cuando una disciplina logra armar su historia, cierra la puerta de atrás respecto a cuales fueron sus orígenes, sus protocolos, de cuáles fueron las cosas que llevaron a pensar eso. El asunto es que cuando una disciplina tiene que avanzar a la velocidad que avanza la biología molecular, no puede andar diciendo todo el tiempo“miren, la verdad es que la metáfora del ADN como información es cualquiera, porque si leemos a Shannon eso no es información”, porque está bien pero no sirve para que te den cuatro millones de dólares para secuenciar un genoma. Por lo tanto, ninguna disciplina, de las ciencias humanas, las naturales, lo que fuere, no tratan estos cruces. Yo sólo traté de construir, con mis limitados medios, una historia de lo que todavía no ha sido historizado convenientemente. Porque esto es lo que estamos viviendo, es lo que está en acto ahora.

    GD: Recién hablabas de que esto es una serie de sorpresas, contame alguna cosa que te haya dejado perplejo en la investigación.

    Me pasó cuando encontré “la cuestión de las comillas”. Es una de las pruebas más claras de que hay un desplazamiento que, si no justifica todo esto de la nueva episteme y de un nuevo tipo de ciencia, le pega en el palo. Cada vez que cualquier discurso que parte de lo biológico (sea la inmunología, la genética, la neurología) tiene que cambiar de registro y decir que las moléculas hacen cosas parecidas a los humanos (esto es, que las proteínas interpretan, que la neurona calcula, todo eso), esos verbos antropológicos en una gran mayoría están puestos entre comillas, lo cual me parece notable. Y esto lo veo en autores muy diversos, desde gente de las ciencias sociales o humanas hablando de inmunología (como Sloterdijk o Esposito) hasta los propios manuales de inmunología. Cuando los científicos están muy cerca de antropomorfizar la cosa que están estudiando (porque la ven hacer cosas que los sorprenden), se dan cuenta que están traspasando una frontera y ponen las comillas. Entonces la comilla es un síntoma. ¿Por que no bancás que las proteínas interpretan? Sacale las comillas, las proteínas interpretan, dale.

    GD: Sacar la comilla sería realmente asumir las superación del humanismo, que la interpretación es algo específico de lo humano. Es un paso difícil.

    Sí. A ver, si yo me pongo en el lugar de donde vengo, las ciencias sociales, las ciencias de la comunicación, diría no, bueno, es una metáfora. No interpreta, es solamente que no sabés que nombre ponerle porque es un bicho que parece tener una voluntad, una teleología (un programa, un código, una teleonomía, como dice el discurso cibernético-sistémico), entonces bueno, le ponés comillas a “interpreta” porque sabés que no interpreta. Pero podría responder: ¿A vos te parece que es sólo una metáfora? ¿No podríamos pensar que estamos cambiando nuestra idea de interpretación? Foucault era muy nominalista. Foucault no diría “para mí la interpretación es esto y lo que no es así no es interpretación”. Diría “hay mucha gente aplicando la palabra interpretación a cosas que no son seres humanos”. Entonces, yo puedo decirles que, desde el punto de vista de las viejas ciencias sociales y humanas, decir que una proteína interpreta es un derrape, un desplazamiento metafórico improcedente que no sirve para entender nada. A lo que el biólogo que está estudiando las proteínas me dice “sí, pero ¿sabés que pasa? Yo pongo la proteína en tal solución, hace algo, y la pongo en la misma solución mañana y no lo hace, y le cambio esto y aquello pero la muy turra no hace nada, y de pronto sí lo hace y no sé por qué si no le cambié nada. Bueno, eso es básicamente lo que pasa entre los seres humanos, por lo tanto capaz que la proteína hace muchas más cosas de las que yo pienso”. Es más, creo que tiene sentido decir que la cibernética, aún en su versión primera, en su forma más reduccionista, es una forma de tramitar el hecho de que nos estamos moviendo hacia otra composición del saber donde nosotros los seres humanos ya no somos el centro. Somos el centro en la medida que nos preguntamos sobre nosotros mismos, pero hemos incorporado otros actores a nuestro pensamiento sobre nosotros mismos cuya acción es para nosotros tanto o más importante que la nuestra, como la ecología, o un algoritmo que puede predecir mi comportamiento. Estos son cambios muy profundos. ¡Y son muy rápidos! Yo digo esto hace un siglo, en 1920, y estoy completamente loco. Y un siglo no es nada.

    ***

    *Pablo “Manolo” Rodríguez es investigador adjunto del Conicet (Instituto Gino Germani, UBA); autor de Las palabras en las cosas. Saber, poder y subjetivación entre algoritmos y biomoléculas (Cactus) y miembro de la Red Latinoamericana de Estudios sobre Vigilancia, Tecnología y Sociedad (Lavits). En 2016, fue uno de los organizadores del IV Simposio Internacional LAVITS, “¿Nuevos paradigmas de vigilancia? Miradas desde América Latina”, celebrado en Buenos Aires.

    Veja também o artigo Los intelectuales y los lugares comunes ante el coronavirus de Pablo Manolo Rodríguez publicado no Informe Lavits_Covid19_#5

  • os limites do bolsonarismo

    por Matheus Lock

    Assim como outras epidemias que assolaram a humanidade, o Covid-19 expõe às claras muitos dos limites das nossas formas de organização social. Um dos seus principais efeitos consiste em mostrar o limite da lógica política do populismo de direita contemporâneo. No mundo inteiro testemunhamos uma mudança paradigmática na posição inicialmente negacionista de líderes de direita como Trump, Boris Johnson, Narendra Modi, Orbán e Putin, para posições de aparente sobriedade para lidar com a crise generalizada trazida pelo Coronavírus. Essa mudança foi uma obrigação pragmática da realpolitik que viu na possibilidade da morte aos milhares uma perda abissal de capital político. De outro modo, muitos desses líderes provavelmente não abririam mão da defesa da economia em detrimento da vida das populações que governam.

    No Brasil, entretanto, os efeitos do Covid não foram capazes de forçar uma guinada na abordagem de Bolsonaro, mas deixaram expostos os limites da sua lógica de fazer política. Há muito se discute que Bolsonaro, contrariando a lógica, se estabeleceu como um outsider do sistema político mesmo tendo uma longa carreira nas margens quase esquecidas do congresso. Durante o caos político instaurado nos anos pós-impeachment, Bolsonaro conseguiu coadunar em torno de si medos, esperanças e ódios ao PT, e à esquerda como um todo, ao balancear em seu discurso uma série de questões caras a diversos setores sociais. Entre os principais eixos que o Bolsonarismo articula para formar seu discurso político estão a segurança (que mexe com estética do medo onipresente nos principais veículos de comunicação), família (defesa constante de valores conservadores e obediência de sua hierarquia em face a uma pretensa decadência moral da sociedade), religião (que coloca a fé acima de tudo), nacionalismo (ufanismo que define um povo com uma tradição e história específicas que devem ser respeitadas e restauradas), mercado (conversão recente ao neoliberalismo para atrair o “grande capital”), retidão moral (uso do chavão anticorrupção para angariar apoio do lavajatismo mesmo estando enredado com as milícias cariocas, rachadinhas e laranjais) e anti-esquerdismo (tendência mundial de combate ao avanço do socialismo e do chamado Marxismo cultural). Somados a esses eixos temáticos estão ainda outros vetores comuns à extrema-direita contemporânea, como por exemplo, o uso de teorias da conspiração como pano de fundo de construção narrativa da realidade, o posicionamento antissistêmico como se a mão invisível de uma elite liberal esquerdista conspirasse para a dominação mundial, e anti-intelectualismo e anticientificismo que rejeita dados científicos colocando-os como parte da conspiração para acabar com o capitalismo a família, a religião e mesmo com a civilização ocidental branca.

    Por meio da articulação desses eixos temáticos, Bolsonaro conseguiu se tornar o representantes dessas demandas e instituir um novo vínculo social libidinal onde ele se posta como o líder forte e protetor, uma espécie de pai edipiano.[1] Ele foi alçado ao status de “mito” salvador da Pátria, concentrando em sua persona tanto um mal-estar com os sistemas políticos como o desejo repressão à violência, castração da justiça social e a restauração de valores tradicionais. Bolsonaro se tornou um dos principais capitães da política do ressentimento.[2] Como diria Ernesto Laclau,[3] seu discurso populista gerou um processo de identificação coletiva, onde, por um lado, seus seguidores projetam nele suas particularidades (crenças, ansiedades, medos, esperanças, antipetismo), e, por outro, transforma a personalidade de Bolsonaro pois tal identificação e representação implica necessariamente no apagamento de algumas de suas particularidades mais deploráveis (racismo, xenofobia, misoginia e assim por diante).

    No entanto, a linha que amarra ao mesmo tempo que propulsiona o Bolsonarismo como lógica populista é o antagonismo. É através do antagonismo que Bolsonaro conseguiu estabelecer uma forte fronteira tanto externa entre ele e os inimigos, sejam esses o PT, o sistema, os corruptos ou mídia golpista, quanto interna entre os grupos de apoiadores, delimitando suas diferenças, semelhanças, objetivos, demandas e alvos. É o antagonismo que, como movimento de luta, se faz processo de identificação capaz mobilizar afetos e desejos ao ponto de criar um vínculo quase indestrutível entre Bolsonaro e seus seguidores mais fiéis. É o antagonismo que dá o sentido de união pela satisfação de experimentar a comunhão na violação do inimigo e pelo prazer trazido pelo risco da sua própria dissolução numa batalha perdida, ou seja, sua morte. O bond está no anseio e no prazer da morte, seja a do outro ou a sua própria.

    Essa lógica de construção populista funcionou muito bem durante a campanha em 2018. Bolsonaro se elegeu com cerca de 57 milhões de votos, confortável maioria nas duas casas e sem uma oposição suficientemente articulada. Contava com o apoio de três setores fundamentais, os defensores da Lava Jato, o “mercado” e os militares, galvanizados pelas escolha de Sério Moro e Paulo Guedes como superministros e Mourão como vice-presidente. Além disso, conseguiu obter vasto apoio das bancadas evangélicas, da bala e ruralista. Bolsonaro tinha a conjuntura ideal num início de governo para implementar suas políticas e projetos de transformação social, caso existissem. No entanto, Bolsonaro naturalizou e institucionalizou sua lógica populista num modus operandi que advoga somente ideias de extrema-direita e funciona fundamentalmente por antagonismo. Desde o início ficou claro que seu populismo não possuía nenhuma proposta de transformação sistêmica ou mesmo de melhorias de governança, tampouco projeto de poder político, mas apenas o objetivo de estabelecer uma nova hegemonia ideológica no Brasil disfarçada de superioridade moral não ideológica.

    É dado que construir um projeto de poder e de governo requer mais do que o apoio das urnas, demanda principalmente vontade e compromisso para costurar alianças com vários setores que deem margem de manobra para a implementação de políticas públicas. Porém, por não ter um projeto de poder, o Bolsonarismo terceirizou a condução do governo ao lavajatismo punitivista de Moro, ao neoliberalismo privatizador de Guedes e a organização estrutural conservadora dos militares, guardando para si apenas aquilo que sua  lógica populista beligerante permite: o constante antagonismo com inimigos imaginários e mobilização dos afetos para sua política de Estado Suicidário, como bem argumentou Vladmir Safatle.[4] Em poucos meses dessa lógica política, Bolsonaro esgotou os inimigos a combater e se voltou contra aqueles até então tidos como aliados, incluindo os da casernas, como Mourão e Santos Cruz.

    Em pouco mais de um ano no poder, Bolsonaro conseguiu a façanha de deteriorar quase todo apoio que tinha, perdendo a liderança tanto para seus ministros quanto para o congresso, responsável pela costura a aprovação de reformas espinhosas. Umas das últimas baixas da política beligerante do Bolsonarismo foi a de um dos mais importantes ministros do governo, o ex-juiz Sérgio Moro, que se demitiu nas últimas semanas acusando o presidente de interferência na autonomia da Polícia Federal. A perda do eixo lavajatista do núcleo serve para aumentar o isolamento do governo e a força de seus posicionamentos e polêmicas. De certa forma, essa lógica do antagonismo isenta Bolsonaro de tomar decisões que podem prejudicar sua base ideológica mais dura, colocando assim toda a responsabilidade no colo de seus inimigos ou possíveis concorrentes, ao passo que o permite postar-se como vítima de conluio que o impede de governar.

    Quando a pandemia aportou em nosso país, Bolsonaro fez a única coisa possível do seu escopo de ação: saiu ao ataque argumentando que uma gripezinha não poderia parar o país. Sem dúvida essa postura leva em conta a realpolitik, pois se a economia vai mal, um dos seus principais fiadores no pleito de 2018, o mercado, se afasta. Além do mais, o mote mercado ou morte não é novidade, por isso presidentes de distintos matizes ideológicos adotaram semelhante postura; o contrário seria surpreendente. Seguindo sua lógica política beligerante, Bolsonaro decidiu não só contrariar orientações da OMS e de seu ministério da saúde, mas antagonizou com a ciência, difundiu notícias falsas, teorias da conspiração e potenciais curas não comprovadas. De Trump a Amlo, diversos outros líderes adotaram postura parecida, porém mudaram-na quando o Covid-19 se mostrou muito mais perigoso do que o esperado. E, ao invés de abraçar de vez o dicionário Maquiaveliano do Beabá do tirano, tomar a liderança no combate à pandemia e dar vazão ao seus instintos totalitários, como feito por Orbán, a postura negacionista de Bolsonaro fez com que admitisse e assumisse sua posição de presidente não-presidente. Ou como Bruno Torturra muito sagazmente colocou, postura de antipresidente.

    Essa beligerância institucional fez com Bolsonaro inevitavelmente entrasse em rota de colisão com seu ministro da saúde, perdendo de vez o pouco de apoio que lhe restava junto ao congresso e parte dos militares. Essa postura de antipresidente lhe rendeu não somente aumento de seu isolamento político e perda quase completa da capacidade de governar, mas também de capital político junto à população: pesquisas apontam para aumento da rejeição em todas as camadas sociais, menos junto a seus mais fiéis seguidores. Essa conjuntura de crise trouxe novamente para os corredores do congresso e para as manchetes especulações sobre possíveis rotas para a saída de Bolsonaro. Pois como já diria Wright Mills no seu The Power Elite,[5] um regime que perde apoio das camadas populares somente se sustenta pela articulação e apoio da tríade da elite econômica, política e militar; no caso de Bolsonaro, tudo parece ruir ao sabor da sua intolerância. De impeachment à deslocamento do governo na figura de Braga Neto, diversas são as alternativas especuladas para a condução do país em tempos de pandemia. Outra alternativa cogitada é a renúncia, algo de difícil plausibilidade devido a própria persona voluntarista de Bolsonaro: renunciar seria admitir seu fracasso e romper com a mitologia do mito. Melhor cair “lutando” do que sair pela porta dos fundos com o rabo entre as pernas, como diria um velho capitão tornado político. Somente lutando o mito se faz perene e mantém sua capacidade de mobilização dos afetos.

    E é exatamente aqui que o Coronavírus expõe os limites da lógica Bolsonarista. Antes da pandemia Bolsonaro usava sua lógica do antagonismo populista para testar os limites dos domínios das forças em disputas em cada nova situação, avançando ou retrocedendo conforme o barulhos das redes digitais ou de seus aliados. Usando uma metáfora corrente em algumas análises políticas, era como se Bolsonaro e seu núcleo ideológico estivessem constantemente aumentando suas apostas no poker político, pagando pra ver as reações da mesa para, assim, calcular possíveis ações.[6] No entanto, com o aumento do seu isolamento político devido ao Covid-19, essa estratégia fez água. Não só perdeu a liderança da crise para seu ministro, mas também a capacidade de demiti-lo. Acuado e sem fiadores para manutenção do governo, Bolsonaro autorealizou sua própria profecia de que todos queriam sua cabeça e agora sobe a aposta numa espécie de all-in irreversível que só se sustenta enquanto o caos gerado pela pandemia continuar. Contrário à lógica da própria política, Bolsonaro aumenta a aposta como forma de sobrevivência, pois cada antagonismo é uma maneira de estender os limites da identidade do Bolsonarismo, ou seja, de manter viva uma identidade fundamenta não necessariamente nas demandas que articula, mas no movimento de antagonismo beligerante que só pode se afirmar enquanto tal na medida que inimigos existam, na medida que encara a sua própria morte assim como a de todos que assistem esse jogo alucinado de poker. Ou seja, a sobrevivência do mito só se dá na autorealização de sua essência na profecia de combate ao Grande Outro. Por isso aumentar a aposta é a própria razão de ser do Bolsonarismo. Mas foi só com o Coronavírus que ficou claro aos olhos do mundo que Bolsonaro usa a lógica do poker para jogar o xadrez político. Seu blefe se esvaziou, e seus cavalos, bispos e torres silenciosamente mudaram de lado. Seu all-in hoje cheira a xeque-mate às avessas.

    Se os limites da lógica populista de extrema-direita de Bolsonaro ficaram expostos e se mostraram insuficientes para governar em qualquer momento, quem dirá em tempos de crise, fica ainda em aberto o resultado desse “último round”. Caso os efeitos do Corona sejam menos perniciosos para a vida e mais para a economia, Bolsonaro usará do velho “eu falei” e poderá capitalizar politicamente nas ruínas da economia e miséria, mobilizar seu séquito e levar à condução final ao que Safatle chamou de República Suicidária. Se o número de vidas cobrado pela pandemia no país for o que especialistas predizem, Bolsonaro ficará invariavelmente isolado tornando-se ou um alvo móvel para os atiradores do impeachment, ou um espantalho presidencial, cujo governo ficará a cargo de um misto entre parlamentarismo branco e militarismo constitucional. Parecem que restam poucos movimentos nesse complexo xadrez político. Resta saber se a autodestruição aparentemente inevitável da lógica Bolsonarista levará todos de arrasto ou então saber que tipo de xeque-mate lhe será dado.


    [1] Sigmund Freud, Group Psychology and the Analysis of the Ego (London: The Hogarth Press, 1949).

    [2] Para um discussão sofisticada sobre política do ressentimento, ver Wendy Brown, Nas Ruínas Do Neoliberalismo: A Ascensão Da Política Antidemocrática No Ocidente (São Paulo: Editora Politeia, 2019).

    [3] Ernesto Laclau, On Populist Reason (London: Verso, 2005).

    [4] Vladimir Safatle, “Bem Vindo Ao Estado Suicidário,” N-1 Edições (São Paulo, 2020), https://n-1edicoes.org/004.

    [5] C. Wright Mills, The Power Elite (New York: Oxford University Press, 2000).

    [6] Fábio Bittes Terra, Cláudio Couto, and João Villaverde, “Bolsonaro e a Política Do ‘All in’: Estratégia de Confronto,” Nexo, 2020.