Tag: Uncategorized

  • Intervenção e Revolta – Revista PDF

    No dia 19 de abril de 2018, na livraria Tapera Taperá, lançamos a publicação impressa \”Intervenção e Revolta\”, produzida pelo Urucum. Ela agora está disponível no link abaixo.

    DOWNLOAD PDF => urucum_intervenção_e_revolta

  • O último cerco à utopia

     

    Mas eu prefiro abrir a janela pra que entrem todos os insetos

    por Bárbara Lopes

     

    Meu pai gostava muito de ficção científica. Ao longo da adolescência, eu pegava alguns de seus livros. Outros ele mesmo colocava na minha mão. Já nos meus vinte-e-poucos, os livros de ficção científica começaram a chegar por outros caminhos. Em 2003, quando a Aleph lançou uma tradução do Neuromancer, eu emprestei para o meu pai, que escreveu uma resenha para um site que eu co-editava então.

    Os mundos real e virtual convivem, sem que seus “habitantes” humanos sequer percebem com clareza em qual deles estão, num determinado momento. De qualquer forma, qualquer dos mundos de Neuromancer é sórdido, cruel e violento. Nenhuma fumaça de ética, exceto nos Panteras [Modernos] e nos Rastafaris. Toda a ciência e a tecnologia avançadas servem somente à desgraçada miséria da condição humana. Como diria Drummond, quando todo esse progresso chegar, felizmente estarei morto.

    Achei curioso porque meu pai gostava do sombrio na poesia e porque eram raras as vezes em que a gente discordava sobre literatura. Eu tinha adorado o livro! A distopia me parecia uma escolha mais acertada e mais interessante que a ficção triunfante de Julio Verne e Asimov (de que ele gostava).

    Desde então, vez ou outra encontrei esse tipo de crítica à ficção científica distópica e seu pessimismo paralisante. Se o progresso distópico preocupava o meu pai, o utópico me entediava. Achava mais relevante denunciar que não há um caminho natural para um futuro de avanços científicos e sociais e que esse sonho pode, de muitas e variadas formas, se converter em pesadelo. Diferentemente dele, poeta e comunista, eu havia incorporado o desgosto com as utopias.

    Essas reflexões voltaram por conta de duas obras. Na virada do ano, finalmente segui as diversas recomendações de ler Os Despossuídos, da Ursula le Guin. Logo depois, assisti a Pantera Negra. O livro e o filme têm bastante em comum: não são distopias, mas também não são utopias (pelo menos da forma como eu sempre pensei em utopias). Em ambos, há mundos melhores do que aquele em que vivemos, mas que, não sendo universais, não nos deixam esquecer o que são: possibilidades. Dessa forma, esses mundos têm de lidar com os dilemas de se manterem puros ou de correrem o risco da abertura. Há também uma diferença importante. Anarres, o planeta anarquista d\’Os Despossuídos, sofre com a escassez de recursos. Em Wakanda, não apenas há abundância, como há um metal alienígena que só é encontrado lá, o vibranium.  

    No livro, um físico deixa Anarres rumo a Urras – onde está a potência capitalista A-lo, além de outros países – para concluir e divulgar uma importante teoria científica. Anarres e Urras são um sistema planetário: um é a lua do outro. O romance alterna passagens em cada um dos mundos, antes e depois da viagem do protagonista. Ele é o primeiro anarresti a deixar sua terra, que desde a fundação vivia praticamente isolada. Sua decisão é motivada por um desejo político e coletivo de romper o isolamento e também pelos conflitos que emergem mesmo em uma sociedade sem Estado e sem proprietários.

    \"\"

     

    Wakanda é também uma terra isolada. Os demais países não sabem de sua riqueza e de seus avanços científicos. A trama do filme é a da sucessão do trono de Wakanda (cujo titular também recebe o título de Pantera Negra), em que o herdeiro T\’Challa é desafiado por seu primo, conhecido como Killmonger, que cresceu na Califórnia e cujo pai foi morto após ser descoberto traficando vibranium. Junto ao desejo de vingança, o primo se revolta com o fato de o país ser tão próspero para seus moradores, enquanto negros ao redor do mundo sofrem com a miséria e o racismo. Há também a personagem de Lupita Nyong\’o, que, sem o ódio, mas também sem a radicalidade de Killmonger, espera que seu país influencie para melhorar a situação de afrodescendentes ao redor do mundo.

    Ambas histórias são honestas, ao admitir que seus mundos podem ser bons, mas não perfeitos, como também ao deixar claro que se fechar é de fato o caminho mais seguro. N\’Os Despossuídos, isso é inclusive questionado por alguns personagens. Os anarrestis são revolucionários e não devem se conformar com a segurança. Sair de suas fronteiras é um jogo em aberto: nada garante que aquela possibilidade não será aniquilada. É fundamental que a resposta possa até parecer óbvia, mas que não seja fácil.

    Esse impasse é um terreno muito mais fértil que as certezas utópicas ou distópicas. Foi também o impasse que emergiu em um laboratório da Vila Itororó, aquela que parecia ruína, mas era construção. Um espaço que carrega as marcas de uma intensa vida comunitária. Vida e comunidade são esses fenômenos que acontecem em meio à pujança, como em Wakanda, ou em meio à escassez, como em Anarres. Na Bela Vista, essa vida foi arrancada quando os moradores foram retirados em nome da proteção a um patrimônio cultural, e conseguiu brotar de novo com a abertura do galpão para atividades públicas. Mais uma vez está sendo sacada, com a decisão da prefeitura de não dar continuidade ao Canteiro Aberto. Mas nesse intervalo, quando foi possível o exercício de lembrar-viver-imaginar, se vislumbraram: cozinha pública, moradia, redes de troca, lavanderia, memória.

    Dito assim, parece utopia (ainda mais contra o fundo distópico de mais um fechamento da Vila) nos dois polos dessa palavra: no desejo por algo melhor, justo, bonito; e também num horizonte final e impossível. É ao sair da utopia que as coisas se tornam mais interessantes. Ao descer e se debruçar sobre esse mundo não como um fim, mas como um começo, outras questões surgem: é possível – e como – preservar para os moradores aspectos importantes da vida cotidiana (como privacidade, segurança, tranquilidade) e também manter a possibilidade de circulação aberta para qualquer pessoa? É possível – e como – ter um espaço fundado nos vínculos entre as pessoas e também totalmente poroso ao mundo externo? Quais são os limites de uma comunidade? Quem fica de fora?

    As possíveis respostas precisam passar por experiências de mulheres (não é à toa que ambas obras tenham um tanto de feminismo e que os mundos que retratam apontem para outras possibilidades de relações de gênero). Não apenas porque tenha cabido, historicamente, às mulheres manter comunidades e os vínculos que as sustentam, já que \”o mundo lá fora\” surge como esfera masculina. Mas porque também coube a elas – a nós – fazer escolhas sobre o que mostrar e o que esconder. Os saberes femininos – sobre corpo, natureza, ciclos, cuidados – foram um dos alvos prioritários da caça às bruxas, como nos lembra Silvia Federici. São até hoje alvo tanto da ameaça de aniquilamento como da apropriação mercadológica. Assim, mulheres de comunidades urbanas, camponesas e indígenas estão em constante negociação sobre quanto compartilhar e quanto guardar.

    Ao invés das certezas utópicas ou distópicas, precisamos cada vez mais nos mover nesse universo de possibilidades e perigos. Felizmente, não é progresso, já chegou e estamos vivos.

  • o Brasil ratifica que lugar do negro é na favela, se não estiver na favela é nas prisões, e se não for nas prisões é no cemitério

     

    “Com a intervenção militar o Brasil ratifica que lugar do negro é na favela, se não estiver na favela é nas prisões, e se não for nas prisões é no cemitério”. Entrevista com Monica Cunha

     

    Por Alana Moraes e Fábio Zuker

     

    publicado originalmente em Horizontal: https://goo.gl/w8i2DP

     

    Não é exagero dizer que desde 2015 o Brasil está mais parecido com ele mesmo. Ao menos com o Brasil dos vencedores, o Brasil branco e colonial. O governo do presidente Michel Temer, fruto de um golpe de Estado maquiado de impeachment que destituiu a presidenta Dilma Rousseff, estabelece um plano de governo jamais submetido ao escrutínio popular pelas urnas. As paredes que sustentam a reação neoliberal imposta por meio das medidas de austeridade aliadas a retrocessos trabalhistas, ambientais e de políticas sociais são as mesmas que ainda mantém de pé um aparato racista de genocídio e extermínio. Austeridade e violência de Estado constituem-se como um novo regime de governo da vida que agora se atualiza com a intervenção militar no Rio de Janeiro.

     

    A proposta tirada da cartola da noite para o dia, sem plano claro, e que causou incômodo não apenas na mídia e em círculos próximos a defensores de Direitos Humanos, mas também no alto escalão do exército – que considera a medida ineficaz para combater a violência, embora não tenham hesitado em solicitar pública e oficialmente que eventuais crimes cometidos pelas forças armadas não fossem julgados. Marielle Franco, mulher negra e favelada, eleita com 46.502 votos, era relatora de comissão legislativa que fiscaliza a intervenção e desde o início foi uma das vozes mais contundentes contra a operação militar.

     

    Na quarta-feira, 14 de março, por volta das 22h, Marielle Franco, do Partido Socialismo com Liberdade (PSOL) foi assassinada com quatro tiros na cabeça, ao sair de um debate sobre direitos das mulheres negras. A munição usada foi de um lote vendido para a Polícia Federal. Mais uma vez, o Brasil maior revela sua face em uma cena trágica de execução. Mas agora, o Brasil das revoltas subterrâneas e permanentes atende o chamado de Marielle e inunda as ruas do país nos lembrando que a guerra não acabou.

     

    É esse o momento em que realizamos a entrevista com Monica Cunha, uma mulher negra, militante e mãe de um jovem executado pela polícia civil em 2006. É desse lugar de mãe que Monica denuncia um Estado que mata um jovem negro a cada 23 minutos. Monica e Marielle, duas mulheres negras que se encontram para ecoar a voz de um Brasil que ainda não se deixa matar.

    A intervenção militar no Rio de Janeiro

     

    O meu entendimento sobre a intervenção militar no rio de janeiro não é igual ao da maioria. Mas deveria ser, pois a maioria das pessoas no Rio de Janeiro são pretas, pobres e faveladas, moradores da periferia. Apenas uma minoria que entende para que serve, e para que é essa intervenção dentro do estado do Rio de Janeiro. Pra mim, é mais uma forma de militarizar o negro, o pobre e o favelado. É mais uma forma de não dar a oportunidade, de segregar esse povo dentro de seus espaços e seus lugares. É mais uma forma de tirar o direito desse povo de ir e vir.

     

    Durante a ocupação na Maré [complexo de favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro], que ainda não era uma intervenção (…) quem está lá dentro sabe que não foi bom. Mas é óbvio que quem está aqui fora não tem a mesma visão. As pessoas de fora acham que a intervenção veio para combater os jovens que estão dentro desse varejo. Por que eu digo varejo? Eu não digo tráfico e nem bandido, pois eu tenho um outro entendimento sobre isso. Se eu for ficar ratificando que esses adolescentes e jovens são bandidos e traficantes, terei que dizer que eu pari um bandido. E isso não é verdade! A droga não é feita dentro do morro, não existe condições de se ter uma central de produção de armas dentro da favela. Então isso tudo é trazido de fora.

     

    Temos que entender por que esses adolescentes tiveram apenas essa alternativa de vida para arrumar dinheiro. Eles querem estar na linha de frente? Eles querem estar com o corpo deles caído no chão? Te digo com certeza que eles não querem! Mas eles não têm oportunidades: as escolas públicas são uma vergonha, no Brasil todo. Dá pra contar nos dedos os dias de aulas que tem na favela.

     

    Esses jovens infratores são vistos com uma arma na mão, com um saquinho de maconha na mão, então muitos acreditam que é ele que precisa ser abatido, que é ele o bandido. Mas isso foi construído por quê? O Brasil foi o último país a abolir a escravatura e ainda não fez nenhuma reparação. Com a intervenção militar, o Brasil ratifica que o lugar do negro é na favela, se não estiver na favela é nas prisões, e se não estiver nas prisões é no cemitério. A militarização vem para, mais uma vez, afirmar essa situação.

     

    Monica Cunha, 52 anos: mulher, negra e militante

     

    Tenho dezesseis anos de militância de direitos humanos anos, que começam com a situação do meu próprio filho. Sou uma mulher negra, moradora da zona norte, do Rio de Janeiro, e tive três filhos. O meu filho do meio se chamava Rafael da Silva Cunha, e se tornou um adolescente autor de ato infracional. Aos 15 anos de idade, entre 2000-2001, ele ingressou no sistema carcerário para cumprir medidas sócio educativas.

     

    Até conhecer esse lado cruel da vida, eu tinha uma situação razoável, com meu marido tínhamos uma pensão. Eu trabalhava na cozinha. Depois trabalhei em restaurantes e bares. Mas uma das primeiras coisas que me aconteceu, quando passei a viver essa experiência, foi perder o meu emprego, por conta dos dias de visita ao meu filho cumprindo medidas sócio-educativas. Perdendo o emprego, perdi o meu sustento, e aí comecei a decair.

     

    De 2001 para cá começa o meu entendimento, no começo muito cru, porque eu nunca tinha vivido isso na minha família. Aprendi tudo na marra, com muito tropeço, sendo muito maltratada, desrespeitada, tendo a minha autoridade de mãe retirada, não sendo mais vista como mãe, e sim como culpada por ter parido um filho que está dentro do sistema carcerário.

     

    Eu entendi logo no início, é que precisava estar junto dessas outras famílias [de jovens cumrpindo medidas sócio-educativas], e principalmente fazendo o recorte de gênero e de raça, porque eram as pessoas que estavam nessa luta junto comigo, desde o início. Então eu visualizei que minha luta precisava começar por aí. Comecei eu mesma passando a me identificar como mulher negra – o que na minha geração não era algo que se acontecia de imediato. Essa identificação auxilia para entender também o que eu estava passando, inclusive outras mulheres com histórias muito mais complicadas do que a minha; com situação de moradia muito mais complexas, pois eu nunca vivi numa favela. Essa separação entre asfalto e favela existe e é real.

     

    Aos poucos fui entendendo melhor as formas de atuação, me formei como Técnica em Educação Social, coordenei projetos dentro do governo do estado. Atualmente trabalho na Comissão de Direitos Humanos da ALERJ [Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro] presidida pelo deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) e continuo no Criola [instituição de 25 anos voltada à defesa dos direitos de mulheres negras no Estado do Rio de Janeiro]. Para eu estar dentro disso tudo e ter base, fundei o Movimento Moleque, constituído por mães e familiares de adolescentes dentro do sistema prisional, em um contexto que debate o direito dessas mães e familiares em cuidar desses adolescentes, retirando a culpabilidade que lhes é imposta; a sociedade acha que nós familiares somos as culpadas pelos adolescentes cometerem atos infracional.

     

    O que ocorre é que esse ato infracional cometido por jovens cria um entendimento de que esses adolescentes podem ser assassinados, [muitas pessoas pensam]: “eu posso matar esse menino porque, afinal de contas, ele já roubou alguém, ele é ladrão!”. O Movimento Moleque debate que além do Brasil não ter pena de morte, os adolescentes não podem cumprir pena, e sim medidas sócio-educativas. Assim, é fundamental o apoio familiar aos jovens. Pois não é só a mãe a responsável. Muitas vezes eles não tem o pai. Eles apenas doam o seu espermatozóide. Mas e as avós, as tias, as primas? O Estado, diante de jovens cumprindo medidas sócio-educativas, lida só com a mãe, o que a faz a gente carregar todo esse peso nas costas.

     

    A culpa não é desse jovem e nem da sua família. Toda essa situação é caracterizada pelo racismo, que leva esses adolescentes a estarem onde estão, e acabarem com suas próprias vidas e serem enterrados por conta disso. Em um país em que a maior parte da população é a negra, não temos as mesmas oportunidades: não temos políticas públicas que funcionem, que façam com que esse adolescente tenha uma situação de direitos adquiridos, e consiga ter uma infância e uma adolescência com todas as oportunidades que qualquer outro da classe alta tem.

     

    O assassinato de Marielle Franco

     

    Esse abate foi muito grave, foi uma perda muito profunda. Essa relação com as mulheres, era o que ela gritava com muito orgulho: “eu vim da favela, eu vim da Maré, eu sou mulher, mulher preta! Eu vivi isso”. Ela trazia no corpo a experiência que a maioria de nós, mulheres negras, vivemos – mas que para termos voz é muito difícil. Construímos a várias mãos, e então conseguimos colocar Marielle lá [na posição de vereadora]. Essa mulher que gritava a perda de nossos filhos, essa mulher que gritava o encarceramento dos nosso filhos, essa mulher que gritava as más condições em que nós vivíamos! Ela entendia bem o que gritávamos também.

     

    O assassinato dela foi uma perda irreparável, foi um baque muito grande. Mas como nós estamos acostumadas a chorar e nos desesperar, ao ver como nossos filhos são abatidos, nós temos que, antes mesmo do enterro, limpar as nossas lágrimas e sair gritando por justiça. E foi exatamente o que nós fizemos a partir da execução da Marielle. Já estamos à frente gritando por justiça. Já estamos ecoando o que ela falava. Já estamos não deixando morrer a voz dela e o que ela pregava. O seu assassinato é mais uma vez matar a voz do povo negro. Mais uma vez afirmar que essa mulher é negra, que essa mulher é da favela.

     

    Quando essa Marielle chegou lá [na assembleia legislativa], ela não foi maquiada. Ela foi para de fato cumprir o que os eleitores esperavam dela. Ela carregava muita coisa, como negra, favelada e lésbica – imagina a dificuldade que é para tantas meninas dentro da favela, a homofobia, pessoas querendo matá-las. E ela levantava o debate “a gente pode sim! Podemos ser!”. Muitas demandas que vinham no corpo dela, e que a cara dela mostrava.

     

    A Marielle é um símbolo muito forte.A voz da Marielle não pode morrer! E a voz da Marielle está em nós todas! Desde quarta-feira, dez da noite, todas nós, mulheres negras, estamos nos chamando Marielle Franco, levando a bandeira dela, que é uma bandeira nossa. Vamos dar continuidade a tudo que em um ano e três meses ela começou. Nós podemos estar nesses espaços, câmara dos vereadores, ALERJ, Brasília. Esses espaços são nossos, não só como vereadoras e deputadas, mas também enquanto sociedade civil ocupando esses espaços.

     

    Esse foi o legado que essa mulher nos deixou, e que não vamos deixar calar. Quando me perguntam quem fez essa brutalidade contra Marielle, eu respondo: foi o racismo! Foi a forma com que este país trata a maior parte da sua população. Eles deixaram claro que para um negro, não faz diferença se você é vendedor de balas, uma doméstica ou uma vereadora. No final das contas, o corpo fica no chão, baleado, de qualquer jeito. Mas não vão nos amedrontar.

     

    Reportagens para saber mais:

     

    (em espanhol)

     

    Brasil llora por una mujer negra, lesbiana y feminista

    El País, março 2018 >>

     

    (em português)

     

    Nota do PSOL: Marielle Franco, presente!

    Site do Partido Socialismo com Liberdade, março 2018 >>

     

    Meu guri: a mãe, a avó e a mulher de um dos 250 mil brasileiros presos antes do julgamento. Revista Piauí, setembro 2017 >>

     

    Mal-estar na caserna: Intervenção no Rio expõe divergências entre generais e empurra o Exército para o centro do processo eleitoral.

    Revista Piauí, março 2018 >>

     

    Homenagem a Marielle de um coronel da PM do Rio: Os sinos dobram por ti

    Geledés, março 2018 >>

     

     

     

     

     

  • um mundo de soldados e estrangeiros

     

     

    por Frederico Lyra de Carvalho

     

    Não tem sido raro ir na feira comprar tomate e cebola e, seja no caminho de ida ou de volta, ser escoltado até quase a porta de casa. Ou ainda, na hora de pegar trem para uma outra cidade qualquer, ter de passar no meio de uma patrulha na estação. Ou ainda me ver obrigado a dividir o trajeto do ônibus com nove soldados todos juntos de pé. Como estou quase sempre de mochila nas costas, vai que sou confundido com um homem-bomba? Desde os atentados do 13 de novembro de 2015, patrulhas do exército francês invadiram as ruas de Paris e das outras cidades importantes da França. Se antes dos atentados elas se limitavam a vigiar os lugares mais turísticos, hoje as patrulhas de quatro a nove soldados proliferam pelos quatro cantos da cidade. A presença de soldados por todos os lados já pode ser incluída na nova normalidade do modo de vida parisiense. Se antes era essencialmente “pra gringo ver”, agora é para todo mundo sentir esta presença e não esquecer que eles estão lá. Permanentemente? Parece ser este o caso. É difícil imaginá-los saindo de um dia para o outro da rua como se nada houvesse acontecido. E dada a reestruturação profunda no Estado e modo de vida francês que está sendo levada a cabo pelo governo de Emmanuel Macron, o mais provável é piorar. Não foi com ele que esse movimento se iniciou, mas ele tende a se agravar. O mais provável é que eles tenham chegado para ficar.

    “Mas eles não fazem nada”, me disse um amigo outro dia. Ainda bem, mas até quando? “Parece que as metralhadoras não ficam carregadas de munição. Embora eles as possuam consigo, eles teriam que parar por um segundo para carregá-las, então não tem perigo imediato”. Menos mal, mas até quando? No entanto, se for este mesmo o caso, poderíamos nos perguntar o porquê de encher as ruas de soldados se eles nem vão ter tempo hábil de “metralhar os terroristas”? Visto por este ângulo, no fundo eles estão lá para não agir. Menos mal. No entanto, já que a justificativa para o qual foram incumbidos de efetuar, isto é, vigiar as ruas para evitar novos atentados, está impedida de ser efetivamente realizada dado o tempo hábil de que eles não dispõem para disparar o seu armamento, talvez fosse melhor afinal que eles não estivessem nas ruas. A naturalização da presença militar efetiva para a defesa da sociedade francesa já está em vias conclusão. Praticamente ninguém, além daqueles vistos como potenciais terroristas que cada vez que cruzam com um patrulha se lembram que é contra eles que aquele dispositivo é dirigido, estranha a sua presença. Nada como comprar pão e ter o privilégio de ter tal escolta no caminho. É quase um luxo.

    Se obviamente não é possível, sob hipótese alguma, comparar a situação dos boulevards parisienses com a das favelas cariocas e demais cidades nas quais o exército brasileiro tem sido chamado a intervir, é, no entanto, interessante observar que a ocupação militar do cotidiano civil tem se tornado, cada vez mais, uma prática recorrente para os mais diversos Estados pelo mundo afora. Isso talvez nos lembre que a situação de Estado de Sítio tem sido sentida nas suas mais diversas escalas possíveis. A generalização desse dispositivo militar é no fundo compartilhada por todo mundo. Ou quase. Há um outro aspecto que decorre e que também é interessante de ser observado no uso militar pelo governo francês. Ao menos por enquanto, ele tem se dado na direção contrária à brasileira. Os bairros populares localizados nas banlieus das grandes cidades continuam sob forte vigilância e controle apenas do aparelho policial. O exército ainda não foi chamado para intervir nestas localidades. O dispositivo militar se encontra nos grandes centros. Dito de outra forma, com a sua intensa presença nas ruas de Paris, ele meio que passa a funcionar como um dispositivo ideológico de pacificação da classe média e da elite francesa. No final das contas é quase um teatro social. O exército serve para lembrar a estas camadas que eles não precisam se preocupar demasiadamente, pois o Estado continua sim firme e forte, omnipresente.

     

    imagem: Basquiat

  • A morte branca de uma feiticeira negra

     

     

    Por Alana Moraes

    Uma névoa densa e ácida ainda habita nossos pulmões.
    Foi o Estado.
    A respiração experimenta um ritmo impreciso. É forte e súbita como a ventania que tomava conta do Rio de Janeiro no instante em que Marielle era executada.
    Foi o Estado.
    Dizem que é no pulmão onde guardamos as tristezas difíceis.
    Foi o Estado.
    Estamos inundadas por dentro, respirando o vendaval deixado pela ausência forçada de Marielle.
    Foi o Estado.
    A bala que perfurou Marielle pertencia ao Estado e ele vai ter que provar sua inocência – mas à essa altura, já não somos tão ingênuos para acreditar em suas provas.

    No mesmo momento em que tentamos reunir força e coragem para juntar nossos cacos e para recuperar a voz que não seja apenas grito, temos que ver a Globo se apresentando para contar essa história. A globo está desaparecendo com Marielle pela segunda vez. A Globo está arrancando de nós uma história, um corpo, um grito. E está fazendo isso com uma habilidade assustadora. Bem diante dos nossos olhos.

    Já sabemos bem que a história que nos contam é quase sempre a história dos vencedores.  \”Até que os leões possam contar a sua história a caça glorificará sempre o caçador\”diz um antigo provérbio africano. No dia de sua execução, Marielle lembrava no twitter o nascimento de Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra que ousou contar sua própria história. Diário de uma favelada foi uma arma contra a autoridade narrativa dos poderes que traduzem, explicam, interpretam.

    O que vimos no Jornal Nacional de sexta-feira e no fantástico de domingo foi uma violência narrativa, um ataque simbólico e extremamente concreto à força de Marielle, à sua voz e luta política. Imagens de Marielle entram em cena nas reportagens, quase sempre, silenciadas e narradas por um narrador externo. Quando Marielle aparece falando é sempre interpretada por uma voz (branca?) que explica sua atuação: \”ela lutava por paz\”, \”ela queria justiça\”, \”os brasileiros que não toleram mais a violência, a covardia e a impunidade\”. A globo é parte dessa ficção que produz medo para vender a segurança, cúmplice da política de militarização e pilhagem dos recursos públicos. Mostram militares \”levando a cidadania\” à favela, a única saída possível. A Globo está vendendo seu renovado programa político.

     

    O que está em curso é uma operação de  domesticação da figura de Marielle, a fabricação de uma comoção que clama por \”justiça\” e \”punição\”, mas temos que saber: essa justiça não é a nossa. A nossa guerra tem nome. A guerra de Marielle era contra o Estado penal, a cultura punitivista e patriarcal, o funcionamento racista e colonial que ainda dirige a potente máquina de exterminar e encarcerar pretos pobres. Essa máquina que também é dirigida pela emissora quando legitima cotidianamente chacinas, execuções, ocupações militares. É um renovado regime de governo sustentado por poderes à margem da lei, no qual a \”paz\” assume a face de uma guerra incessante.

    Não vamos aceitar a violência interpretativa da Globo, não concedemos à essa empresa o direito de narrar nossos mortos. Não vamos aceitar o esvaziamento político da execução de Marielle.

     

    É preciso respeitar a dor, o luto, o sofrimento dos mais próximos – mas é também preciso coragem para não deixar a dor ser capturada pela máquina de extermínio, pela necropolítica da globo e daqueles que defendem a militarização do rio de janeiro, do Brasil. O filósofo camaronês Achille Mbembe costuma dizer que o capitalismo contemporâneo tem um projeto de tornar negro o mundo todo, expandindo assim a experiência de violência e exclusão que é parte constitutiva da vida negra. Essa necropolítica, segundo o filósofo, atua pela \”instauração de práticas imperiais inéditas que devem tanto às lógicas escravagistas de captura e de predação como às lógicas coloniais de ocupação e exploração\”.

     

    A execução de Marielle não foi fruto de um \”caos\” ou \”desgoverno\”, mas ao contrário, a execução é parte de um plano de governo. Um governo cujo programa é a produção incessante do medo e de inimigos matáveis. A máfia de todas as máfias ainda é aquela que compra deputados, compra a justiça e agora decidiu empenhar um crédito extraordinário de mais de um bilhão para a intervenção no Rio de Janeiro. Mas a nossa guerra não se compra.  A globo está usando a comoção em torno da morte de Marielle para convencer a todos que não temos mais saída a não ser a intervenção militar. Pacificar para governar.

     

    No candomblé, Exu é um orixá extremamente poderoso, capaz de transitar entre o sagrado e o profano, o mundo dos vivos e o mundo dos deuses. Exu é a figura mais importante da cultura iorubá: ele é capaz de falar todas as línguas e, portanto, se impõe soberano na arte de narrar. Ele é o começo de tudo e o começo foi a desobediência de Exu recusando  as fronteiras entre o mundo dos deuses e o mundo da carne, do humano.

    No final da década de 1970, Renato Ortiz escrevia um livro sobre as transformações e traduções da figura do Exu do candomblé para a umbanda. Com suas influências católicas e kardercistas, a umbanda (em algumas de suas expressões, não é possível generalizar) operou uma \”purificação\” de Exu, o tornando um \”guardião de luz para as trevas\”, um espírito em constante \”crescimento e evolução\”. Foi a morte branca de um feiticeiro negro.
    A potência de Marielle deve ser cuidada e amplificada. Exu é o fim, mas antes disso, o começo. O Estado colonial e suas formas narrativas operam domesticando a revolta, silenciando os tambores, purificando os sacrifícios. Marielle é nossa encruzilhada histórica. Seu corpo agora vibra desobedecendo fronteiras entre mundos, nos convoca a pensar sobre a força política da ancestralidade. Marielle não é santa, mas feiticeira. Feiticeira negra de um mundo que nunca se calou e que não se pode deixar traduzir.  Denunciava o enquadramento maniqueísta do estado penal e profanava seu esquema de classificação que elege os matáveis daqueles que merecem viver. Os bandidos são os mocinhos, insistia Marielle.
    Silvia Federici afirma que se Marx tivesse olhado a história do surgimento do capitalismo pela perspectiva das mulheres, ele não seria tão otimista com a noção de progresso. A execução de Marielle nos arrasta também para uma perspectiva incontornável: o pilar de todo o poder é ainda o Estado colonial, racista e patriarcal. A reação neoliberal hoje no mundo e o que conhecemos como politica de austeridade tem como modo de funcionamento o genocídio contra o povo negro, o encarceramento, sem falar na explosão do feminicídio – produzir miséria e conter a revolta. A guerra é declarada e se a esquerda não assumir essas perspectivas vamos ser engolidos pela máquina de extermínio neoliberal.
    Precisamos reconstruir nossa radicalidade a partir de uma nova língua. Nomear aqueles que nos matam, convocar saberes ancestrais que estão há séculos construindo e narrando experiências de resistência e sofrimento. \”Para curar a cisão entre mente e corpo, nós, povos marginalizados e oprimidos, tentamos resgatar a nós mesmos e às nossas experiências através da língua. Quando preciso dizer palavras que não se limitam a simplesmente espelhar a realidade dominante ou se referir a ela, falo o vernáculo negro\”.  Aprender com Bell Hooks e o feminismo negro. O grito de liberdade de Angela Davis. A força de vendaval de Marielle Franco.

     

  • Do protesto aos arranjos tecnopolíticos: recursividade e reticulação

    por Henrique Parra

    Tomar as ruas, protestar e expressar nossa indignação é fundamental. Porém, pressionar os governos e as instituições já não parece ser suficiente para traduzir as reivindicações das ruas em novas políticas ou práticas institucionais. Essa crise não é exclusiva do Brasil, mas aqui a situação adquire formas e conteúdos específicos. E como em toda guerra, essa é também uma guerra de velocidades entre ecossistemas concorrentes. O assassinato da vereadora Marielle Franco não é apenas uma mensagem de ameaça a tod@s ativistas, é também uma tentativa de bloquear um caminho de ação política institucional (construção de mandatos populares, partidos e disputa eleitoral). É um crime racista, de gênero (feminicídio), de classe e contra todas as forças e pessoas que ela representava. Tudo parece indicar que o momento histórico exigirá uma multiplicidade de novas formas organizacionais, ferramentas, tecnologias e estratégias de luta. Não é esta ou aquela, mas a combinação de várias estratégias. Não se pode enfrentar o novo com velhas armas.

    Como transformar a energia política das ruas em ganho organizacional e novas institucionalidades? Os limites de junho de 2013 e a forma de captura pelos poderes instituídos do potencial político da multidão deveria servir de lição. Diante das configurações políticas do pós-Golpe e dos protestos multitudinários contra a execução de Marielle essas questões retornam.

    Entendo que seja muito importante disputar as eleições, as instituições etc. O assassinato de Marielle e de tantos outrx ativistas políticos no Brasil é uma clara resposta à ameaça que esta nova geração de lutadoras representa aos poderes instituídos. Ao mesmo tempo (e de forma complementar) é urgente imaginarmos e praticarmos outras formas de ação para além dessas que conhecemos e seguimos fazendo nos últimos 30 anos.

    Acredita-se demasiadamente no poder discursivo e na capacidade da mobilização ideológica. Mas, o poder é sobretudo logístico, é maquínico, funcional, pragmático. Em nossas vidas o poder se inscreve e se realiza mediante dispositivos materiais-simbólicos, humanos e não-humanos. Nossas ações realizaram-se com técnicas e artefatos sociotécnicos. Militantes e ativistas poderiam conversar mais com xs arquitetxs, xs engenheirxs, xs físicxs, biólogxs, cientistas da computação, médicxs etc. É necessário investigar uma outra camada, transbordando do protesto em direção a experimentação prática (prototipagem). Isso não é novidade, muitos coletivos e comunidades já estão fazendo isso.

    A criação da pílula anticoncepcional, o protocolo TCP/IP da internet e o telefone celular são exemplos de artefatos técnicos-científicos que produzem arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares. Sua forma de adoção e propagação vai gradativamente modificando as relações sociais através do seu uso, e os efeitos de sua adoção nas pontas (sujeito individual ou máquinas) cria mecanismos de reforço sistêmico. Também podemos citar algumas comunidades territoriais que desenvolvem formas de autogoverno sobre seus recursos e infraestruturas comuns (água, eletricidade ou da sua pequena horta). Certas ordens religiosas também são exemplos de tecnologias organizacionais capazes de criar economias de suporte e com infraestruturas (materiais e simbólicas) interdependentes. Não a toa, o controle de infraestruturas e serviços básicos pelo crime organizado em espaços da vida social coloca em funcionamento toda uma máquina social, com normas, modos de subjetivação e legitimação próprios. Em todos esses casos o problema de escala é atacado de outra forma, por reticulação.

    Há duas noções que podem contribuir para a construção de novos arranjos sociotécnicos: recursividade e reticulação.

    Recursividade: faço uma livre combinação desta propriedade da ciência da computação com a caracterização de Chris Kelty sobre as comunidades de software livre. Uma prática, uma tecnologia, uma organização que atue recursivamente está desenhada para a resolução prática de um problema, cujo modo de ação dá-se mediante a criação de sub-rotinas que atacam frações de um problema maior, e a cada movimento ela volta à sua função (missão) original, porém agregando um \”aprendizado\” que a torna mais eficiente. Este aumento de eficiência (ou ganho de poder) acontece também porque além de resolver partes do problema (diminuindo a força do seu oponente) ela modifica gradualmente o seu meio de ação (meio-associado), criando um ecossistema mais favorável à sua execução. Ou seja, um artefato recursivo é um dispositivo prático (material-simbólico) que executa um programa (uma ação normativamente orientada) cuja eficiência está na transformação do seu meio-associado e não apenas na realização de um objetivo final abstrato). Como efeito, a recursividade apoia-se na produção de uma \”comunidade\” ou de \”públicos recursivos\” que dão sustentação ao processo.

    Reticulação: da cristalografia e do pensamento de G.Simondon, mas também dos estudos de inovação em ciência e tecnologia. A reticulação é um processo de propagação não-linear e rizomático de uma estruturação emergente criando níveis subsequentes de estruturação de uma realidade. Quando uma prática, uma tecnologia, uma organização se reticulariza, significa que ela é capaz de tornar durável, de diferentes formas, o seu programa de ação, criando níveis crescentes de estruturação. Como efeito, ela amplia sua capacidade de determinação sobre um campo de possíveis. Ou seja, a reticulação dá maior consistência e força para seu programa de ação.

    Passar do protesto à criação de arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares significa encontrar formas de organização, práticas e tecnologias adequadas ao novo contexto, capazes de traduzir, mediar e atualizar certos valores através desses dispositivos, para que sua adesão e utilização se propague através de crescente estruturação. Diante das novas formas de exercício do poder quais são as nossas tecnologias de contra-poder? Como nos organizamos, como criamos novas relações de suporte entre nossas práticas, qual é nosso economia, como cuidamos de nossa saúde coletiva, quais são as infraestruturas necessárias e como assumimos controle sobre elas? Investigar a fundo os problemas que enfrentamos, construir estratégias para a criação desses dispositivos e dos pontos-obrigatórios-de-passagem é um ótimo programa de pesquisa-ação.

    #Marielle&AndersonPresente!

  • Sou mulher negra e estou de luto

     

     

    Que território se pretende digno de se declarar “país”, “nação”, “democracia” ao espancar professores pela manhã e assassinar uma mulher negra e de luta à noite?

     

    por Edson Teles

    O luto poderia ser o processo de substituição de uma perda pelo investimento em outros amores, desejos e atenções. Seria um conjunto de estratégias que desenvolvemos para driblarmos as consequências da morte. Um evento comum a todos nós, um elemento constituinte de nossas existências.

    No Brasil não é assim. A perda, neste país, é substituída por outra perda. E o processo de luto não chega a termo, ele é atropelado por outra morte cujo sofrimento produzido se torna maior do que a dor do luto. Não se consegue esquecer.

    Ao contrário, há um processo estatal de aplicação de recursos na produção da morte. Quando se aponta fuzis, tanques e discursos em defesa do uso da força indiscriminada contra as favelas, como se faz com a “Intervenção Militar” no Rio de Janeiro, o que de fato se autoriza?

    Autoriza-se o crime contra o “inimigo” interno da ordem. Qualquer estatística diz quem são: as mulheres, os negros, os índios, os pobres. Como dizia Abdias Nascimento, não é só a morte física, como ocorreu com Marielle, mas a morte cultural, econômica, social, afetiva. A morte dos desejos de se viver uma vida digna.

    Com o golpe de 2016, o “inimigo” não se modificou. Os militantes já eram vítimas, é só ver as denúncias do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Os negros são assassinados desde que se iniciou o processo de colonização, mas que ganhou sofisticação extrema com a produção de territórios anômicos em que a estatização da morte é sintetizada, por exemplo, pelo desejo militar de agir “sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”, como sugeriu o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas.

    O país “cordial e democrático”, em seu cotidiano, tem três mulheres assassinadas por dia. E a maioria das vítimas é composta de mulheres negras (segundo pesquisa da Flacso, de 2015, entre 2003 e 2013 a morte violenta de mulheres negras aumentou 54%, enquanto a de mulheres brancas diminuiu 9,8% [“Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil”]).

    Que território se pretende digno de se declarar “país”, “nação”, “democracia” ao espancar professores pela manhã e assassinar uma mulher negra e de luta à noite?

    Marielle voltava de um debate sobre as “jovens negras movendo as estruturas”. Imagino ela, no carro, conversando com sua assessora e com o motorista sobre o quanto ela estava feliz por ter conversado com aquelas jovens, vendo elas mais articuladas e de posse de maior clareza sobre sua situação do que já se teve em tempos anteriores. Mas, também, preocupada em como a “estrutura” da violência, racista e machista, contra as pessoas que lutam pela democracia, permanece, ou melhor, ganha requintes de tecnologia de governo.

    E a conversa parou. Acabou de modo abrupto. Interrompida pela estupidez da desigualdade, da injustiça, do autoritarismo.

    O desabafo é o primeiro passo do novo luto. Vou para as ruas pois não quero que este processo de “substituição” da perda se interrompa com outra demanda de luto.

    Hoje sou mulher, negra, bicha, jovem, pobre, militante, lésbica, semialfabetizada, indígena, sobrevivente.

  • O que diz a intervenção militar sobre nossas incapacidades?

    De verdade qual é discurso que temos para contrapor? Estamos trabalhando nisso por dentro dos nossos partidos, nos nossos movimentos? Temos propostas concretas, exequíveis, consensuais entre nós (ao menos) para reformas as polícias, combater a violência de Estado, combater o racismo institucional, reorientar as políticas de segurança para a defesa da vida e da integridade física? Nós sabemos como fazer isso? De verdade?

     

    por Jacqueline sinhoretto

    A participação de Bolsonaro no debate eleitoral está produzindo efeitos concretos, como este da intervenção federal na segurança pública do Rio. Ele está arrebanhando um eleitorado que tradicionalmente votou nos partidos de direita. Estes estão tentando reagir a isto, no desespero. O PMDB que governa o Rio (ou ao menos ocupa o governo), deu uma cartada pesada. O problema é que existe este eleitorado conservador, muito raso na discussão política, que há décadas vem repetindo chavões totalmente vazios como \”a solução é jogar uma bomba\”, \”a solução é chamar o exército\”, \”direitos humanos são direitos de bandidos\”.

    A democracia de baixo impacto produz esse sujeito político e ele está especialmente alojado nas camadas sociais que têm acessos precários a seus próprios direitos. É difícil explicar o que significa a liberdade individual a quem está preso em coerções sociais que negam o tempo todo sua liberdade: mulheres presas na maternidade compulsória e no fardo da dupla jornada; homens presos nos conceitos tradicionais de família e masculinidade, mulheres presas nos cuidados com crianças e pessoas idosas ou doentes sem nenhuma ajuda do poder público. Daquela sua tia que vomita repressão sobre a sexualidade dos outros, o que você sabe sobre o que ela abriu mão em sua própria vida para ser uma \”cidadã de bem\”? É difícil explicar para a pessoa que não frequentou a universidade pública que é preciso garantir isso aos outros. É muito difícil reconhecer ao outro o que não se tem para si. Questão difícil que uma democracia de massas que convive com alto nível de hierarquização e de repressão moral, alto nível de desigualdade de renda e desigualdade de direitos não foi até agora capaz de responder. A direita tradicional está com dificuldades de responder aos anseios desse público. A esquerda então…

    De verdade qual é discurso que temos para contrapor? Estamos trabalhando nisso por dentro dos nossos partidos, nos nossos movimentos? Temos propostas concretas, exequíveis, consensuais entre nós (ao menos) para reformas as polícias, combater a violência de Estado, combater o racismo institucional, reorientar as políticas de segurança para a defesa da vida e da integridade física? Nós sabemos como fazer isso? De verdade? Eu tenho umas quantas ideias, temos algumas políticas nas quais nos inspirar. Mas acredito que quem não tem um plano não vai conseguir conquistar votos. Se os candidatos mais à esquerda vão chamar a PM para fazer a repressão e policiamento ostensivo, pode ser que o eleitor pense que é melhor chamar o exército, que tem mais poder de fogo. Se as candidatas feministas vão pedir cadeia e nada mais, talvez a eleitora pense que é melhor votar em quem acredita na cadeia e a tem defendido ao longo dos anos. Bolsonaro é a ponta visível de uma conservadorismo social muito mais espraiado. Muitos dos eleitores dele não são monstros sociopatas, talvez sejam pessoas com quem você irá almoçar amanhã. Se a gente apenas discursar sobre complexidades e conceitos sofisticados, sem concluir com propostas, alguém na mesa dirá: \”pois é, só jogando uma bomba\”.

  • A caixa 623 e os estados de exceção

    por Edson Teles

    Se há um acontecimento síntese dos processos de produção de subjetivação política acerca dos anos de repressão ditatorial no Brasil poderíamos dizer que ele é a experiência da Vala Clandestina de Perus. Polifônico e multifuncional, ao se fazer carne, ao se tornar discurso e ao assumir as funções do medo e da explicação histórica universal, acionou e aciona até hoje mecanismos de dominação e resistência.

    Foi no dia 04 de setembro de 1990 que, após trabalho de pesquisa do jornalista Caco Barcelos e da luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura, a prefeitura de São Paulo decidiu escavar o local onde estariam dezenas de ossadas de indigentes, mortos e desaparecidos políticos e vítimas fatais da polícia durante os anos 70. O resultado foi impactante: sacos contendo ossadas de 1.049 indivíduos e mais outras centenas de corpos misturados por terem tido seus sacos abertos e danificados. A partir desta data se instituía a Vala de Perus, originariamente alocada no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo. Tal fato ocorreu durante o governo da prefeita Luiza Erundina. Acontecimento que poderia deslocar placas tectônicas da memória política, pois as vidas da militância clandestina de resistência se tornariam públicas.

    Passados quase 28 anos, e após um degradante périplo por instituições do Estado, finalmente foi feito o reconhecimento de que a ossada da caixa 623 contém os restos mortais de Dimas Antônio Casemiro (1946-1971*2018). Nascido em Votuporanga, interior de São Paulo, no dia 06 de março de 1946, foi assassinado em abril de 1971, após ser preso pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo), fato ocorrido, segundo a Comissão Nacional da Verdade, sob a responsabilidade do delegado Alcides Cintra Bueno Filho.

    Na biopolítica latino americana, além das características apontadas pelo filósofo Michel Foucault se apresentarem misturadas, as do “fazer e deixar viver e morrer”, somaríamos a prática do “fazer desaparecer”. Por isto, as instituições das democracias herdeiras de regimes autoritários no continente deveriam adotar a marcação acima, com os anos de nascimento e morte e o de identificação do corpo desaparecido.

    Os vários lugares por onde passaram as ossadas indicaram a relação entre as memórias da ditadura e a ausência topológica ou o uso espacial do caráter político das lembranças e dos esquecimentos no Estado de Direito.

    De Perus para a Unicamp. De lá para o Cemitério do Araçá, algumas ossadas para o IML de São Paulo, outras para o Ministério Público. Algumas voltaram para o Cemitério. Mais tarde, boa parte foi para a Unifesp.

    Foram tantas as instâncias, institucionalizações, relatórios apresentados e outros nunca feitos, ofícios, burocracias. Foram várias as reuniões com representantes de direitos, dos militares, da governabilidade. Lugares sem fim, múltiplos espaços, tantas operações de controle quanto as possibilidades de abertura.

    E eis que em fevereiro de 2018, o Grupo de Trabalho de Perus (GTP), localizado no Centro de Antropologia e Arquelogia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp), confirmou a identificação de Dimas. Lá se encontram as caixas contendo as ossadas de Perus. Estas ossadas ressurgirem identificadas aparece como uma prova contundente do modo de operação e da ideologia de descarte das vidas que o Estado considera desmerecedoras de viver. Coloca em evidência um modelo militarizado de segurança pública ainda vigente.

    Da morte à abertura da Vala, passando pelo DOPS, talvez no Doi-Codi do Exército e nas várias salas de tortura para as quais as “forças da segurança e da ordem” levavam os oposicionistas, foram 19 anos. Mais os 28 para finalmente se fazer a identificação temos 47 anos. Ao ser assassinado, Dimas tinha 25 anos. Quase o dobro de tempo da sua vida para a finalização da morte. Se é que podemos dizer que esteja finalizado. Afinal, não sabemos ao certo como, onde, quais os responsáveis pelo crime cometido.

    A Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) não foi até as profundezas do mecanismo de triturar corpos da ditadura para desvendar os detalhes do que ocorreu com Dimas. Não identificou qualquer desaparecido. Em termos de história praticamente compilou o que já se sabia.

    Então, por que o general chefe do Exército brasileiro, Eduardo Villas Bôas, neste mesmo mês de fevereiro de 2018, dispara uma reclamação-ameaça à sociedade avisando que esta instituição não deseja uma outra comissão da verdade? O que significa esta tática em meio à intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro?

    Trata-se, ao que parece, da posse de poderes de vida e morte sobre a população. Como disse o mesmo general, o “risco sempre existe” de se atingir pessoas que não tenham relação com crimes. E para que serve a comissão da verdade? Apurar as violações da dignidade humana, em especial, na experiência brasileira, a tortura, o assassinato e o desaparecimento por parte de agentes do Estado.

    Então, exigir que não se tenha outra comissão é mais ou menos como dizer que se quer uma anistia antes de cometer a violação de direitos. O modelo do Exército atual é parecido com o da ditadura. Em dezembro de 1968, 50 anos atrás, a ditadura decretou por meio do artigo 11 do Ato Institucional número 5 (AI-5), uma auto-anistia: “excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos”.

    Como nos anos da ditadura, o Exército quer a anistia antes mesmo de começar a violar direitos. Ao expor o desejo de se salvaguardarem de outra comissão da verdade (ninguém pode hoje garantir que uma próxima comissão seria somente 40 ou 50 anos após os fatos), o general expõe as formas de uma segurança pública militarizada: a guerra contra o inimigo interno, o povo pobre, negro, ativista, jovens que usam vinagre contra os efeitos de bombas de gás, coletivos espontâneos que tomam avenidas em revolta devido a mais um assassinato cometido por policiais etc.

    A intervenção militar expõe algumas características que diferenciam os estados de exceção vividos no Brasil desde sua redemocratização nos anos 80 em relação à ditadura. E situações que modelam no Brasil uma vida e uma política militarizadas.

    \"\"

    A primeira característica se refere ao território. Na ditadura a intervenção era em todo o espaço nacional, centralizado, imposto unicamente por armas e sem a necessidade de justificativas. Hoje, os estados de exceção ocorrem em territórios menores, espécies de campos de refugiados que exigiriam uma medida de força e justificado pela necessidade de restabelecer a ordem evitando o pior.

    A segunda característica própria dos estados de exceção no atual estado de direito é a existência de fendas na ordem jurídica. Aciona-se medidas de exceção a partir de mecanismos jurídicos, como a intervenção em curso, mas que não são (porque não é possível ser) regulamentados sobre seu uso. Não há como prever, na letra da lei, o que fazer se não se tem de antemão as circunstâncias que demandam a exceção. A Constituição criou os instrumentos de acionamento da medida de emergência, mas não sabe como será executada. Desta forma, são várias as pressões de militares pela liberação da violação de direitos civis básicos sob a justificativa de que se faz necessário para enfrentar “traficantes armados”. Afinal, como disse o general-interventor Braga Netto, o “Rio é um laboratório para o Brasil”.

    A terceira grande característica dos estados de exceção é seu regime de produção. São décadas de má gestão da segurança pública e de opção pela estratégia do inimigo a ser combatido por táticas militarizadas e em situação de guerra. O resultado, do ponto de vista do cotidiano das populações, é desastroso. Só produziu mais violência e criou territórios nos quais o ser humano passou a ser tratado indignamente. Por exemplo, a cracolândia, os presídios, as favelas nos morros cariocas, as ocupações de movimentos de luta por moradia. Nestes espaços, o Estado (ou forças parceiras dele) é solicitado a agir com desmesura, o tanto quanto estes territórios “anômicos” se encontram “fora da ordem”. A grande questão é: quem produziu estes “campos” apropriados para sofrer a intervenção são os que estão à frente da gestão da vida. Os que governam produzem os territórios que serão alvo da exceção.

    Se as hipóteses acima sobre os estados de exceção estiverem corretas poderíamos dizer que acontecimentos como a intervenção, o golpe de 2016, as chacinas nos presídios, a destruição dos direitos, entre outros, já vêm sendo gestados faz anos. A finalização destes eventos nas tragédias já conhecidas começou com a ampla produção de territórios próprios para a demanda de medidas “duras”. Mas isto não quer dizer que há um projeto político conservador em ação, ou que a ditadura não foi derrotada e permanece nas instituições do Estado. Não. Parece-me que são estratégias de governo, que funcionam em amplas redes, as quais se utilizam dos equipamentos estatais, mas também de formas de organização social e do cotidiano. Lá no bairro em que vivemos, no comércio, no transporte público. Nas várias localidades onde as relações sociais reproduzem os bloqueios de desejos outros que não os das ordens vigentes, onde se dilatam as técnicas racistas, machistas e genocidas.

    A caixa 623 tem nome, história, desejos. Dentro dela habitam os negros, as mulheres, os índios, os homoafetivos, o militante político, as subjetividades atípicas.

    Dimas Antônio Casemiro, presente. Hoje e sempre!

  • A revolta dos Tuiutis

     

    A revolta dos Tuiutis

    \”No “lamaçal” da política brasileira nos chamou a atenção a tamanha confluência de brasilidades. Também um acontecimento complexo. No momento em que parte da “revolta dos Tuiutis” surge por meio da alegria carnavalesca de oposição ao governo Temer e seus apoiadores marionetados, ocorre a intervenção da instituição da República cujo símbolo originário é justamente a batalha homônima que fez uso da vida matável dos negros. Está extinta a escravidão?\”

    Por Edson Teles

    originalmente publicado em: //www.peixe-eletrico.com/single-post/2018/02/23/A-revolta-dos-Tuiutis

    Antigo senso comum nacional, a ideia de que não se discutia futebol, briga de marido e mulher, política e, inclusive, carnaval caiu por terra completamente. Afinal, futebol é um dos assuntos mais debatidos. Discutir os temas políticos parece nunca ter estado em tamanha evidência. “Briga de marido e mulher” virou, por esforço da luta feminista, “violência contra a mulher”. E agora o carnaval. É claro que nas ruas os bloquinhos e os carnavalescos sempre “pularam” em cima das mazelas politizando a brincadeira mais nacional do brasileiro. Mesmo nas passarelas sempre houve a tentativa de desfiles críticos. Mas, neste ano, a escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti expôs o quanto as estratégias de governo levam para a consolidação das práticas dos Estados de exceção.

    Após o carnaval, quando as críticas do samba enredo perguntavam se “Está extinta a escravidão?”, o vampiro da Sapucaí decretou intervenção militar na segurança pública do estado do Rio de Janeiro. Acontecimento complexo. Aparece como outro golpe, desviando o foco em relação às dificuldades de aprovar a reforma da previdência, bem como pautando as próximas eleições presidenciais com o tema da segurança pública.

    Enxadrista político das artimanhas do jogo sujo de Brasília, Temer conseguiu agradar uma ampla variedade de segmentos conservadores e fortalecer as estratégias autoritárias. Foi como bolsomizar as eleições retirando do próprio candidato fascista o protagonismo da proposta de militarização da vida.

    A inserção militar no cotidiano das experimentações sociais e políticas vinha num crescente desde que a promulgação da Constituição, em 1988, pareceu ter consolidado um Estado de Direito. De fato, pouco nela se alterou nas temáticas da segurança pública e da segurança nacional. E nos governos posteriores, a cada grande evento ou problemas de como lidar com estruturas de segurança pública montadas para executar a repressão, e não a prevenção, foi aumentando o intervencionismo.

    Exemplo com características semelhantes à atual intervenção foi a “Operação Rio”, na qual governo do estado e Forças Armadas acertaram uma ação de “faxina na polícia do Rio”, como anunciava a manchete do jornal “O Globo”, de 2 de novembro de 1994. De forma semelhante, a operação foi denunciada como tramoia política para garantir a eleição, em segundo turno, de Marcelo Allencar, do PSDB, cuja vitória era importante para o futuro governo FHC, recém eleito em primeiro turno.

    Nos últimos anos tivemos a efetivação da GLO – instrumento jurídico de Garantia da Lei e da Ordem (regulamentado em 2001), da lei contra o terrorismo (março de 2016) e, recentemente, a lei que leva os crimes de militares contra civis para a a justiça militar (outubro de 2017). Isto se soma a uma série de estruturas autoritárias cujo monstrengo maior é a Lei de Segurança Nacional (LSN), criada pela ditadura e com última versão montada em 1983.

    Só a GLO já foi acionada 29 vezes entre 2010 e 2017. Destaque para intervenções como as das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora), mas com uso também contra manifestações políticas (agosto de 2016, em São Paulo; e, maio de 2017, em Brasília).

    A intervenção do governo ilegítimo, de quebra, ainda paralisou os trabalhos do Congresso Nacional, que aprovou sua própria capitulação com a ampla votação a favor do decreto. Não se pode votar emendas à Constituição enquanto durar o procedimento no Rio de Janeiro. Com isso, o governo se exime da incapacidade de aprovar a reforma da previdência e ainda coloca a espada no pescoço da sociedade ao avisar que suspenderá oficialmente (não na prática) a intervenção no caso de haver maioria para a votação.

    Assistindo e lendo as entrevistas de especialistas em segurança pública fica evidente o quanto inócuo será esta intervenção no sentido de obter resultados positivos para a questão da violência urbana. Por alguns meses, se utilizando de verbas federais e do maciço apoio da grande mídia, o governo e os vários setores “intervencionistas” se beneficiarão do evento. Ao menos até as eleições de 2018 o esquema será mantido, esfumaçando o golpe eleitoral construído com a provável cassação da candidatura Lula.

    Diante de uma sociedade racista, machista e genocida de sua juventude (quando negra e pobre), em meio a uma crise política, social e econômica, não se pode desconsiderar, a título de exemplo, o caráter de revolta dos inúmeros saques a supermercados e vendas em várias localidades do país, e nos últimos dias na cidade do Rio de Janeiro. É também para controlar a revolta social, a “revolta dos Tuiutis”, que se mobilizam as Forças Armadas.

    Mas quem são os “Tuiutis”? Façamos uma viagem em torno da palavra, seus significados e origens.

    Tuiuti é um pássaro sul-americano, um periquito verde com detalhes em azul. Em tupi-guarani significa “lamaçal” ou “barreira”. É também o nome de um morro em São Cristovão, Rio de Janeiro, habitado desde o começo do século XX por ex-escravos. Durante décadas foi uma região industrial da cidade e sobreviveu às várias remoções e despejos de favelas promovidos pelo poder público. Sedia a escola de samba Paraíso do Tuiuti.

    No século XIX, durante a Guerra do Paraguai, na qual a tríplice aliança Brasil-Argentina-Uruguai invadiu e derrotou o país que deu nome ao conflito, houve um momento crucial, cujo resultado determinou a vitória dos aliados. Foi a “Batalha de Tuiuti”, em 1866, assim conhecida por ter ocorrido nos pântanos ao redor do lago de mesmo nome, no interior do Paraguai. Teria sido a batalha com maior número de vítimas na história da América do Sul (alguns documentos falam em 10 mil ou mais mortos). Comandado pelo general Osório, cujo nome se encontra espalhado por nossas cidades em largos e praças, as forças imperiais consideraram este como o acontecimento fundador do Exército. Por décadas, especialmente a partir do golpe militar que proclamou a República em 1889, a batalha foi comemorada em praça pública e o dia em que ocorreu o conflito ficou marcado até a década de 1920 como o “dia do soldado”. Nunca é demais lembrar que boa parte dos “mortos em combate” eram escravos ou ex-escravos, que compunham a linha de frente das infantarias de ambos os lados.

    No “lamaçal” da política brasileira nos chamou a atenção a tamanha confluência de brasilidades. Também um acontecimento complexo. No momento em que parte da “revolta dos Tuiutis” surge por meio da alegria carnavalesca de oposição ao governo Temer e seus apoiadores marionetados, ocorre a intervenção da instituição da República cujo símbolo originário é justamente a batalha homônima que fez uso da vida matável dos negros.

    “Está extinta a escravidão?”

    A situação do indivíduo afro-brasileiro segue sofrendo com os projetos dos proprietários e das instituições garantidoras da atual ordem. Segundo o “Atlas da Violência” (Fórum Brasileiro de Segurança Pública e IPEA, 2016), um jovem negro ou pardo tem 147% mais chances de ser assassinado do que um branco ou amarelo. Em seu cotidiano, o país cordial e democrático tem três mulheres assassinadas por dia. E a maioria das vítimas é composta de mulheres negras (segundo pesquisa da Flacso, de 2015, entre 2003 e 2013 a morte violenta de mulheres negras aumentou 54%, enquanto a de mulheres brancas diminuiu 9,8% [“Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil”]).

    Os “Tuiutis”, me parece, são as subjetividades invisibilizadas, não anunciadas, as que sobrevivem aos racismos, machismos, etnocídios e outros preconceitos. E que diante destas formas de dominação continuamente resistem e produzem saberes da revolta. Presentes no cotidiano da experimentação social e política nacional, força de trabalho precarizada, habitante dos morros, das periferias. Sua “ausência” na elaboração da esfera pública autorizada não impede as movimentações, abaixo do lamaçal, de densas e profundas placas tectônicas de desejos bloqueados, os quais fervilham e se encontram sempre na iminência de uma ebulição.