A Rádio Terrana é um podcast do Pimentalab da Unifesp e do coletivo Tramadora, um programa sobre ciências terranas, tecnopolíticas e experimentações em tempos de catástrofes. Encruzilhadas sonoras entre práticas científicas, ações de retomada e lutas pelo Comum. São Histórias de experimentações que nos convocam a pensar juntas sobre possíveis futuros de transição societal. O podcast ensaia diálogos com ativistas/lutadoras implicadas com problemas concretos em práticas políticas, territórios, corpos e pensamentos de retomada e também com cientistas/pesquisadores que realizam deslocamentos nos modos de produção de conhecimento, conectados com as urgências impostas pelo antropoceno.
Episódio 1 – A Terra do Redor: o chamado Guarani para outras práticas de conhecimento
Conversamos com Jerá Guarani, liderança Guarani Mbya da aldeia Kalepity, nas Terras Indígenas Tenondé Porã, em Parelheiros, extremo sul da cidade Sao paulo; e com Lucas Keese, que é pesquisador, antropólogo, mas que há muito tempo é parceiro da luta Guarani, ajudando a articular ações no território, tecendo encontros e lutas. Vamos falar um pouco sobre os limites das formas de produção de conhecimento em nossas escolas e universidades a partir de uma perspectiva terrana que vem sendo elaborada e cultivada no território guarani mbya. Como a luta e os modos de existência guarani interpelam o colapso civilizacional produzido pelo mundo dos brancos? Há mundos por vir?
Ficha Técnica:
Equipe Pimentalab e Tramadora: Alana Moraes Bru PereiraGustavo LemosHenrique ParraJessica Paifer Entrevistados: Jera Guarani, Lucas Keese Edição, mixagem, e trilha sonora: Gustavo Lemos Produção:Pimentalab (Laboratório de Tecnologia, Política e Conhecimento, UNIFESP): https://www.pimentalab.net Coletivo Tramadora: https://www.tramadora.net Apoio:Rede Lavits (Latinoamericana de Estudos em Vigilância, Tecnologia e Sociedade) e Fundação Ford: https://www.lavits.org
Conversações febris: Quinta-feira, 19 de novembro as 19hs
A intrusão viral covid-19 produziu uma série de atravessamentos e colapsos nos nossos modos de ser e estar no mundo. Colapsos mundificadores e modificadores de escala que nos lembram que mesmo entre tantos humanos, existem escalas que nos perfuram e nos invadem, escalas moleculares-bacterianas-virais-simbióticas-parasitárias, escalas que atrelam o menor dos organismos aos Estados nações, ao capitalismo moderno e suas inúmeras plantations, à vida nas ruas da cidade ao #FiqueEmCasa, ao aqui e agora.
Experimentamos também, junto ao luto (ou falta dele) de milhares de mortos pela covid19, uma incapacidade coletiva de habitar este acontecimento naquilo que ele nos interroga sobre as cumplicidades entre os diferentes regimes de poder (cispatriarcal, colonial, racista, antropocêntrico, capitalista, …); e naquilo que ele nos incita acerca dos modos pelos quais somos parte do problema a ser respondido.
Que agora, boa parte do debate público esteja limitado aos conflitos em torno da produção da vacina, é um sintoma de que os sentidos da vida (individual e coletiva) neste planeta estão reduzidos a um problema biomolecular, cujo tabuleiro está sendo construído e definido na confluência da Ciência&Tecnologia Corporativa e das disputas geopolíticas, uma aliança capitalista infernal entre corporações privadas e estados nacionais.
Interrogar a crise sanitária-ambiental como um problema da nossa civilização, implica em insistir na radicalidade das relações de interdependência entre diferentes processos que participam da criação do fenômeno covid19.
É preciso considerar as longas cadeias produtivas e seus arranjos sociotécnicos: do vírus à plantation transnacional; da extração de minério colonial para a confecção de chips e celulares; do agro-tôxico-transgênico-negócio ao prato na mesa; das infraestruturas de comunicação, as mediações algorítmicas e as interfaces da modulação existencial; das biomoléculas à informatização da vida; das turbinas de Belo Monte, das vidas submersas à tomada 110V de nossas casas.
Retomar a vida, reconquistar a possibilidade de um futuro não programado, florescer mesmo ali onde o solo é radioativo, acontece ali onde se cultiva e se avança tateando, ao mesmo tempo inventando, sustentando e defendendo um território comum. Para acompanhar essas tramas e desvios, nutrimos uma ciência dos dispositivos que investiga os poderes e suas técnicas, ao mesmo tempo em que praticamos uma ciência das retomadas, através de perguntas de nos implicam com os grandes problemas e que ampliam nossas potência de imaginar, desejar e criar.
Em nossos fazeres cotidianos e em ações de diversas coletividades, há diversas experiências de tensionamento da monocultura técnica e tecnológica que organiza nossas vidas. Há uma pluralidade de éticas-estéticas (decoloniais, antiracistas, contra-heterossocial…) que se atualizam em formas de vida, e cada uma delas é indissociável da produção e da sustentação de um mundo comum e suas infraestruturas. Há, portanto, cosmotécnicas distintas que produzem mundos diferentes.
Cosmotécnicas e tecnopolíticas: investigar e narrar as experimentações e lutas de fabricação de mundos.
Conversações Febris – 13 de agosto, quinta-feira, as 19hs – LINK pra SALA.
Passadas algumas semanas de nosso ultimo encontro, queremos retomar a conversa para organizarmos um novo ciclo de atividades da Zona de Contagio a partir de agosto. As agendas já estão sendo engolidas pelo trabalho e demandas da vida. Urge sinalizar alguns horizontes de confluências pra que possamos abrir espaço para novos encontros.
Seguindo a disponibilidade inicial, pensamos em manter as quintas-feiras (19hs `as 21hs) como um momento de encontro para a realização de atividades e produções coletivas (conversações febris, entrevistas; produção audiovisual, podcast, leituras e estudos coletivos etc). Um período reservado para respirarmos juntos, trocarmos experiências e também experimentarmos outras linguagens na criação e produção de conhecimento.
Seguiremos investigando as questões que emergiram e que ganharam consistência em nosso percurso do semestre anterior; tramando nas encruzilhadas entre as ciências dos dispositivos e as ciências das retomadas. Nossa investigação também implica numa meta-investigação sobre as formas de pesquisa e coprodução de conhecimentos [uma síntese do percurso pode ser consultada aqui]
A Zona de Contágio pode se fazer como um experimento (um protótipo) de uma de rede de pesquisa entre as muitas experiências com que estamos implicadas; uma zona de confluência temporária entre as investigações e fazeres com que cada um aqui esta envolvido. Imaginar, inventar, conectar outros fazeres (ensino, pesquisa e extensão), modos de produção de conhecimento, ciências e tecnologias, alianças entre espaços educacionais formais e não formais, experimentações de linguagens, transbordamentos e produções contra-disciplinares.
Se os regimes hegemônicos de produção de conhecimento, ciência e tecnológica e a configurações atuais de suas instituições (universidades e escolas) são parte do problema que hoje enfrentamos (crise ambiental, covid-19, as muitas formas de reprodução do colonialismo, racismo e desigualdades); quais seriam então os desenhos possíveis de outros modos de conhecer (e suas instituições) que apontem para rotas de fuga do capitaloceno e das formas renovadas de dominação e exploração? Que tipo de conhecimento somos capazes de produzir na contramão do \”realismo político\” e das novas estratégias de controle?Onde aterrissar?
Para o próximo encontro (13 de agosto – 19hs) sugerimos uma experimentação especulativa na abertura de novos possíveis: Conversações Febris – 13 de agosto, quinta-feira, as 19hs – LINK pra SALA
*O que pode ser uma universidade terrana no tempo das catástrofes?
*O que pode ser uma aula?
Até lá receberemos materiais audiovisuais, textos, fotografias, audios que possam contribuir para inaugurar esse novo ciclo de conversas. Os materiais podem ser publicados diretamente como comentários neste post ou enviados para o email conspire [arroba] tramadora.net
Os CEOS das grandes corporações de TI nos dizem hoje que a sala de aula “perdeu o sentido” e que as relações educacionais podem ser muito mais eficientes quando inteiramente mediadas pelas plataformas digitais, já que trata-se de produzir e fazer movimentar o “capital humano”. Edufactory cibernética, a redução de formas de conhecimento em “produção e gestão de conteúdo”. No entanto, desejamos fazer outras perguntas, contar outras histórias. É preciso abrir uma conversa epocal sobre o que significa uma aula, quais os sentidos da presença no que se refere à produção de conhecimento e da ciência e os sentidos fortes da experiência e do encontro que atravessam as formas de criação e de conhecimento – para além das disputas pelas grandes Verdades. Qual é o papel da universidade e dos espaços de educação informal como zonas de sinérgicas de pensamento-luta, diante da corrosão absoluta dos sentidos democráticos que vivemos hoje? Como podemos nos apropriar de outras tecnicidades que intensifiquem a experiência ao invés de neutralizá-las?
***
Sugerimos dois textos de inspiração para essa conversação febril:
Nos primeiros meses de 2020, o Brasil e o mundo foram acometidos
pela pandemia do novo coronavírus. A intrusão viral fez surgir impulsos
múltiplos: negação da ciência, criação de falsos dualismos entre
manutenção da vida e economia, vigilância corporativa e entre pares,
cuidado coletivo, discussão sobre papel do estado, solidariedade,
desejos de explicação e temor foram apenas alguns dos sentimentos,
discursos e práticas que emergiram, e seguem vivos, nesse período.
Habitar o acontecimento covid-19 foi a vontade que motivou a convocação da Zona do Contágio,
um laboratório situado, de prática coletiva de uma ciência do risco,
espaço de convergência de saberes e atores sociais diversos, que deseja
mobilizar uma inteligência coletiva alternativa à vigilância e ao
controle.
“Com o acontecimento COVID-19, o Laboratório Zona de Contágio
instaura-se como um dispositivo de pesquisa e intervenção na medida em
que a produção coletiva de conhecimento sobre as atuais possibilidades
de fabricação de uma vida não-fascista torna-se urgente. Se o
fortalecimento de governos autoritários já era uma ameaça à vida comum, a
intrusão viral potencializa a disseminação de uma cultura imunitária e
securitária de contornos fascistas no tecido da própria vida social”,
descreve a convocatória.
Coordenado por Henrique Parra (Unifesp) e Alana Moraes (doutoranda no Museu Nacional – UFRJ), pesquisadores do Pimentalab – Laboratório de Tecnologia, Política e Conhecimento – da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membros da Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits),
o Laboratório Zona de Contágio é uma iniciativa de confluências, um
híbrido do coletivo Tramadora, Projeto Laboratório do Comum do
Pimentalab/Unifesp e Lavits. O Laboratório recebe o apoio da
Lavits/Fundação Ford. A equipe da Zona de Contágio conta com a
colaboração da antropóloga Bru Pereira e da cientista social Jéssica
Paifer.
Através da internet, os pesquisadores convidaram a todos que se
sentissem interpelados pelas questões apresentadas a participar de um
percurso coletivo de investigação e de criação, formas de expressão
sobre o experienciado, fragmentos coletados do mundo, situações vividas,
sentidas, relatos, hesitações que ajudassem a estabelecer conversações
sobre a pandemia. Além disso, o laboratório promove um ciclo de leituras
e “Conversações Febris” online. O primeiro encontro, realizado no dia
23 de abril de 2020, discutiu o livro No tempo das catástrofes, da filósofa da ciência Isabelle Stengers.
Fernanda Bruno, pesquisadora do MediaLab.UFRJ
e membra da Lavits, entrevistou Henrique Parra e Alana Moraes sobre a
iniciativa. O diálogo está transcrito a seguir e integra o quarto
episódio da série Lavits_covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância.
Diálogos com Alana Moraes, Henrique Parra e Fernanda Bruno
Fernanda Bruno: meu primeiro convite é que vocês apresentem brevemente a trajetória do Laboratório do Comum ao Zona do Contágio, e a partir daí começamos a conversa.
Henrique Parra: ano passado estávamos desenvolvendo o projeto Laboratório do Comum: tecnopolíticas, corpos e territórios,
focado em um conjunto de questões relacionadas às disputas no
território do Campos Elíseos, região central na cidade de São Paulo.
Estávamos observando um conjunto de reconfigurações nas formas de
exercício do poder – seja através das tecnologias digitais, mas também
em processos relacionados à gentrificação, à militarização, à
securitização da vida, atravessadas pelas formas de vida neoliberais – e
como isso está em tensão com as dinâmicas de vida existentes no
território.
A investigação também se debruça sobre o próprio desenho do
Laboratório. Como fazer uma pesquisa situada, coletiva e aberta, a
partir de um convite, uma convocatória aberta para pessoas interpeladas
por problemas comuns?
Desenvolvemos esse projeto ao longo de seis meses e, no início de
2020, ele teria uma nova fase, quando fomos atravessados pelo covid-19, o
que nos obrigou a repensar o cronograma de ações, mas ao mesmo tempo a
observar as questões que já se manifestavam no percurso anterior do
trabalho e que, em razão do coronavírus, ganham contornos mais intensos.
Como fazer pesquisa em tempos de pandemia?
Alana Moraes: o Laboratório do Comum e agora a Zona de
Contágio confluem nessa aposta epistêmica de convocar e insistir em uma
certa inteligência coletiva. É sempre um experimento de uma prática
científica que se pretende ao mesmo tempo aberta e coletiva. Então ela é
sempre precária por um lado, porque do ponto de vista institucional, de
algumas exigências acadêmicas, nós nos colocamos de uma maneira um
pouco mais livre. Ao mesmo tempo, essa instabilidade precisa ser o tempo
todo repensada, cuidada, sustentada de algum modo, ela só funciona a
partir de um engajamento entre todos.
Uma outra convergência importante e que a gente quer seguir
experimentando é essa ideia de uma transdisciplinaridade. Nossas
práticas acadêmicas foram se conformando em lugares muito especializados
e muito disciplinarizados. Então, a partir de uma chamada aberta, que
tem a ver com o território, com a vida no território, havia essa ideia
de que nós pudéssemos experimentar uma ciência que fosse mesmo
contradisciplinar, no sentido de que as questões que ela enuncia não são
propriamente da sociologia, ou da antropologia, ou da arquitetura e do
urbanismo, mas que seja uma esquina contradisciplinar.
Fernanda Bruno: a minha primeira questão tem a ver com essa
condição, com esse convite que vocês fazem, que é o de habitar o limite,
habitar uma certa zona de incerteza. Eu acho que no Lab do Comum já
tinha esse movimento, que se fazia, como destacou a Alana, a partir de
uma contradisciplinaridade, mas que também implicava um deslocamento
territorial, com a ocupação de espaços da cidade em que tradicionalmente
a universidade não estaria presente, ou não estaria presente de um
certo modo, que é o modo com que vocês seguem desejando habitar.
Então, me parece que já havia o desejo de habitar essa fronteira
entre a universidade, a rua, a cidade e o mundo, e agora essa fronteira
se desloca, se encerra um pouco nesse ambiente da casa, que é essa
célula individual, familiar e burguesa, onde a maioria dos
pesquisadores que estão na universidade agora habita quase que
integralmente. Vocês reinventam um movimento para retomar a própria vida
acadêmica, em um certo sentido, e também, de novo, a rua, a cidade, o
mundo. A contradisciplinaridade envolve também uma explosão de
fronteiras, que já estava presente no Lab do Comum, entre o próprio
saber acadêmico e os saberes que estão sendo produzidos pelas diversas
formas de habitar e viver a cidade.
A pergunta, enfim, é se vocês já têm algum germe de entendimento –
não de respostas, de explicações – do que é esse novo desenho do
laboratório que habita o limite de um outro modo. Uma coisa que acho
interessante é essa ideia de um laboratório que vai se fazendo, que é ao
mesmo tempo o ambiente onde se faz a pesquisa, se produz o pensamento,
mas ele também é objeto, no sentido de que vocês também estão tentando
entender ou desenhar o laboratório no próprio movimento de fazer a
pesquisa. Acho que isso mais do que nunca está presente.
Alana Moraes: eu queria voltar para uma questão que você
colocou no começo, Fernanda, que eu acho que também serve muito para a
gente pensar esse lugar de implosão das fronteiras, ou pelo menos para
gente experimentar um pouco mais essa suspensão das fronteiras
disciplinares, ainda que seja uma prática de pesquisa super difícil, que
nos exija o tempo todo um certo sentido de risco, de assumir esse risco
da suspensão de algumas bordas.
Mas esse risco do instável e do precário vem nos empurrando, desde o
Laboratório do Comum, a encontrar questões muito simples. As questões
com as quais a gente se depara, a partir desse encontro entre múltiplos e
heterogêneos saberes e corpos, são simples no sentido de que conseguem
enunciar problemas muito complexos, mas de um lugar reconhecível por
qual todos nós passamos.
Por exemplo, no Laboratório do Comum, a gente estava muito
interessado, inicialmente, em pesquisar esse tema das novas tecnologias
de vigilância, que hoje são muito presentes no território. Mas a gente
acabou se dando conta de que existia uma camada para além de todo o
arranjo técnico dos poderes que era o fato de as pessoas, nossos
vizinhos, desejarem ter uma câmera de vigilância nas suas casas. O fato é
que existe um certo desejo compartilhado de segurança, que é muito
simples, que é muito reconhecível para além de todo novo ordenamento
sociotécnico, pode ser constatado por qualquer um e no entanto ele nos
exige um esforço brutal de pesquisa e reflexão.
Ele faz a gente se perguntar o que significa vizinhança, o que
significa fazer um bairro, a partir de outros sentidos de pertencimento
que não seja esse da segurança. Esse problema, no fundo, a gente demorou
muito tempo pra chegar nele, mas ele é muito simples, né? Ele pode ser
compartilhado por qualquer pessoa que a gente encontrava em uma praça
quando estávamos fazendo um almoço aberto e coletivo. Encontrar essas
questões, que no fundo são questões simples, nos dizem sobre esse
encadeamento que está entre a casa, a rua, as relações de confiança, as
novas tecnologias e as novas mediações sociotécnicas.
Um desafio para a Zona de Contágio tem a ver com essa investigação
sobre como criar um desenho de uma pesquisa contradisciplinar; um
desenho que permita com que diversos saberes, experiências se contaminem
no processo de pesquisa coletiva, mas também tem muito a ver com essa
ideia persistente de encontrar esses lugares que são muito simples, mas
que também são os lugares em que se cruzam a casa, como uma tecnologia
da domesticidade, e essas novas mediações tecnológicas, o corpo, o que
entendemos como saúde coletiva. Esse lugar do cruzamento, da
encruzilhada, é um lugar importante nesse desenho agora do Laboratório
Zona de Contágio.
Henrique Parra: a situação que estamos vivendo evidencia um
conjunto de elementos relacionados ao funcionamento das infraestruturas
da vida ordinária, da vida cotidiana, que estão absolutamente
invisibilizadas, naturalizadas na paisagem.
Um elemento importante no desenho do laboratório é como criamos
estratégias de visibilização das infraestruturas da vida comum e que,
por diversas razões, tornam-se invisíveis à nossa percepção. Quando
experienciamos o acontecimento covid-19, surge de forma mais aguda uma
percepção sobre diversos mecanismos que participam da produção de
diversas assimetrias sobre, por exemplo, os nossos deslocamentos, as
infraestruturas de comunicação (qual a qualidade do meu acesso à
internet), como ficam as relações dentro da sua casa, a divisão do
trabalho, como a gente se alimenta, como trabalhamos, como cuidamos das
crianças, e tudo muito mediado pelas tecnologias digitais.
Se por um lado o acontecimento covid-19 permite uma intensificação,
um avanço dos mecanismos de produção de várias assimetrias de classe,
gênero, raça e de novas formas de controle, ao mesmo tempo a gente
consegue perceber esses elementos que estão inscritos na paisagem.
Outra dimensão importante do desenho do laboratório é tomar o ser
humano como sensor, um sensor de percepção que é sempre singular diante
do está sendo vivido. Partimos da ideia de um corpo-sensor. O corpo que
percebe, que sente e que produz a possibilidade de uma nova evidência,
um novo elemento que pode abrir ou instalar uma controvérsia sobre a
realidade.
Algo que nos atravessa a todos é a nova sensação e percepção de risco
e vulnerabilidade. A vulnerabilidade não como elemento negativo, da
falta ou da exclusão, mas como esse elemento que produz nossa
interdependência, e ao mesmo tempo que instala a possibilidade de ação
política a partir dessa vulnerabilidade, porque ela é reveladora da
nossa condição de interdependência na produção do comum.
Uma contraste teórico/político importante no desenho desse
laboratório é investigar como o acontecimento covid-19 instala uma
disputa em torno dos sentidos dessa experiência: por um lado temos as
enunciações, práticas e tecnologias que produzem um tipo de sujeito que
se imagina autônomo, autossuficiente, eficiente no trabalho, que só tem
uma “gripezinha”, versus outras possibilidades que sustentam uma
política do Comum, nossa condição de seres interdependentes (inclusive
com entes não-humanos) e de um risco comum.
Claro que as situações de risco são diferentes para cada um
(sobretudo numa sociedade altamente desigual em termos raciais, de
classe e gênero), mas a possibilidade de experienciar essa
vulnerabilidade como uma condição política permite interrogar a ideia do
indivíduo soberano, de cidadão que estão imunizado das relações com seu
entorno, em que o outro é visto como uma ameaça.
Fernanda Bruno: me parece que esse corpo-sensor passa a ser um
indicador ainda mais essencial. A conexão entre as formas de vida e as
possibilidades de pensar ganha uma nova urgência. Me parece que há
também uma outra vulnerabilidade: a pandemia muito rapidamente disparou
uma eloquência explicativa que, de alguma maneira, silenciava ou
resolvia muito rápido essa experiência de poder habitar essa zona de
incerteza por um tempo mais alargado, de uma forma um pouco distinta,
que vocês chamaram na convocatória de dimensão experiencial, que me
parece estar super conectada com esse corpo-sensor.
Agora eu gostaria de fazer uma outra associação, ainda sobre a
questão do risco e a dimensão da vulnerabilidade. Eu super me afino com a
ideia de pensar o risco não na chave ou contorno da atitude individual,
de uma prudência individual, tampouco de uma lógica securitária mais
ampla e coletiva, que pensa na segurança no sentido de uma eliminação do
risco e do perigo. Vocês estão trabalhando com a ideia da
vulnerabilidade como interdependência que supõe, também, suportar uma
certa margem de perigo, uma certa margem de risco.
Em vários momentos vocês falam em uma ciência do risco. Eu vou ler um
trechinho aqui sobre o qual me paira uma certa dúvida. Vocês dizem:
“uma ciência de risco é sempre uma ciência que hesita, uma ciência de
retomada de uma inteligência coletiva, que funciona apesar e contra os
chamamentos da pátria ou da grande ciência e seus regimes de autoridade e
de verdade”.
A provocação que eu queria fazer tem a ver com a “grande ciência” e
com esse momento singular que estamos vivendo. Se por um lado há essa
proposta de uma ciência do risco, nós (professores universitários)
estamos fazendo isso desde as nossas casas. Não estou sugerindo que não
deveríamos estar em casa, mas há um risco bem concreto que está sendo
vivido por muitas pessoas e também por parte da “grande ciência”, por
profissionais de saúde e pesquisadores que estão na linha de frente. Eu
fico me perguntando se essa oposição, nesse momento, não rateia um pouco
ou se ela não merece ser pensada com um pouco mais de cuidado.
Henrique Parra: você tem razão, não só com relação à “grande
ciência”, mas também com relação ao Estado. A provocação que a gente faz
não é contra a ciência. Não há “a grande ciência”, mas disputas em
torno dos modos de produção de verdades, em que, aparentemente, o que
está em jogo seria qual a evidência ou o dado “mais verdadeiro”. É um
debate que também se relaciona às discussões sobre fake news e pós-verdade.
A situação é que, diante de um mundo que parece desmoronar, onde as
versões não podem mais ser verificadas, há um movimento de tentar
restabelecer uma forma de produção de evidências, inclusive com a volta
de um argumento digamos, científico, como se as coisas passassem apenas
por uma questão de produção de informações ou evidências de melhor
qualidade, quando o que está em jogo, parece-nos, é uma guerra de
mundos.
Não é suficiente a gente falar em termos de dados e evidências. É
claro que elas são fundamentais para as tomadas de decisão, para
organizar a nossa ação no mundo, mas há uma preocupação em deslocar o
debate para além do falso e do verdadeiro, sair dessa dicotomia, e dizer
“olha, o que seriam as formas de produção de cuidado para a manutenção
da vida, para além do que está disponível como forma-Estado? (no sentido
de uma biopolítica maior)”.
Nós estamos em uma situação de absoluta urgência, de perceber o que
temos disponível como formas de resposta a um problema de saúde
coletiva. Precisamos muito de toda a estrutura e de políticas
fortalecimento da saúde pública. Não é suficiente entrar em uma
investigação que está simplesmente preocupada em produzir mais evidência
da mesma forma, mas pensar também que a forma de produção dessa
informação está, de alguma maneira, situada e implicada na produção de
mundos, de formas de vida. Do contrário, não somos capazes de comunicar
outra experiência de vida, de dizer ao outro como ele participa da
produção da saúde coletiva.
Quando pensamos no debate sobre a produção de conhecimento
científico, quais são as formas de produção de conhecimento científico,
diante dessa situação, que interrogam as formas hegemônicas de
conhecimento tecnocientífico orientados por normatividades econômicas e
políticas de caráter privatista, corporativo e mercadológico?
Observamos, nesse momento, o fortalecimento de formas de produção
colaborativa/aberta que confrontam inúmeras limitações relacionadas ao
regime proprietário-autoral, organizado em torno de uma concepção do
conhecimento como propriedade intelectual e mercadoria.
Alana Moraes: essa convocatória parte, de fato, de um lugar
bem irrigado de controvérsia. Por mais ataque e ameaças que a prática
científica esteja recebendo agora, e por mais que tenhamos que defender
essas práticas, não queremos abrir mão de olhar criticamente para alguns
enunciados de uma ciência que sempre se sustentou a partir de um
privilégio epistemológico, a partir dessa ideia de que o enunciado de
autoridade do fazer científico bastava para que os fatos científicos se
convertessem em verdade.
A gente está colocando um pouco em suspensão esse pressuposto para
tentar experimentar uma ideia aberta e engajada de fazer ciência. Então
não queremos abrir mão de fazer ciência, de pensar junto, de pensar uma
prática investigativa que produza conhecimento objetivo sobre a
realidade. Não tem a ver com uma luta da experiência contra a teoria.
Muito pelo contrário, a gente acha que esses dois lugares não são
opostos e não devem ser opostos. Queremos experimentar o que seria essa
prática científica que se sustente a partir das relações de implicação
que ela tem com o mundo, uma ciência que está no mundo.
Eu tenho dado um exemplo que tem a ver com o embate sobre isolamento
horizontal ou vertical. Muito do pensamento progressista tem respondido a
esse embate afirmando que o isolamento horizontal deve ser feito porque
ele é um fato científico e o isolamento vertical não é um fato
científico. No entanto, quando a gente defende o isolamento horizontal,
nós estamos defendendo porque ele pressupõe uma certa concepção de vida a
ser defendida, porque nos importa viver em companhia no mundo em que a
gente habita, porque ele contém uma ideia sobre o que é saúde coletiva.
Obviamente que ele é um fato científico, mas ele é um fato científico
que mais pode ter efetividade a partir do momento em que ele se mostra
em sua construção ética, a partir dos seus lugares de implicação.
Fernanda Bruno: quando vocês estavam falando, eu lembrei
daquele texto da Donna Haraway, que é uma inspiração para todos nós, dos
saberes localizados. Agora está muito ativa essa ideia de um saber que
pode responder pelo mundo que cria. É um pouco nesse sentido, me parece,
que você está falando, Alana. Para além da verdade científica, que
mundo a gente cria quando a gente propõe um determinado modelo de
controle epidemiológico?
Eu queria voltar um pouco no tema da vigilância e do controle, que
também aparece na chamada de vocês e está presente desde o Laboratório
do Comum. Estamos vendo como uma série de tecnologias de biovigilância
começam a entrar em obra. A minha pergunta é menos sobre elas e mais
sobre ao que você estão atentos nesse campo. Quais são as perguntas que
estão se fazendo? No que vocês estão prestando atenção nesse espectro
das tecnologias de vigilância, dentro do acontecimento covid-19?.
Henrique Parra: há alguns temas em que estou mais envolvido.
Um deles é sobre as práticas de educação tecnicamente mediada. Há uma
aceleração na adoção, por parte de secretarias estaduais da educação e
universidades (públicas e privadas), e na incorporação de tecnologias
digitais para a educação à distância. Elas são permeadas por inúmeros
problemas que estão relacionados à vigilância, à economia informacional,
a precarização do trabalho docente, etc. Como essas questões estão
presentes na Zona de Contágio, a partir da experiência de cada pessoa
com o conhecimento, a informação e a educação nessa situação de
isolamento?
Outro tema é sobre a relação das tecnologias de comunicação digital
com as formas de rastreabilidade, monitoramento, quantificação e o que
emerge como possibilidade de Big Data e governamentalidade
algorítmica. Há um enorme campo de perguntas que ganham novos contornos
porque, de certa medida, há um desejo, amparado na urgência sanitária,
de fazer uso de tudo que estiver disponível. Outra entrada é no universo
do trabalho: como as tecnologias do trabalho remoto introduzem novas
possibilidades de vigilância e controle sobre as atividades do
trabalhador?
Alana Moraes: retornando aos problemas das plataformas e das
mediações tecnológicas no que tem se chamado de “educação à distância”, o
que elas inserem de mais importante são novos sistemas de metrificação e
controle. Agora, para dar aula, você liga um cronômetro, muitas vezes
você grava a sua aula para deixar para os alunos que não puderem entrar online
no momento em que você está dando a aula. Você perde uma relação muito
importante no que diz respeito ao ensino e aprendizagem, que é relação
de confiança entre professor e aluno dentro daquele espaço da sala de
aula. As plataformas de EaD estão sendo inseridas como se não houvesse
outras formas possíveis, “temos que nos acostumar, daqui pra frente vai
ser assim”. A partir do momento em que você grava sua aula e ela circula
por lugares que você não sabe muito bem, esse pacto, essa confiança,
que tem a ver com essa experiência da sala de aula, ela se perde também.
Vemos ainda como o capitalismo da biovigilância é também o do
biodesempenho e como ele atua produzindo uma certa culpa pelo tempo fora
do trabalho. A gente está em casa, mas ao mesmo tempo em que está
culpado por não estar trabalhando do jeito que a gente deveria
trabalhar. Precisamos dar provas cotidianas de que não estamos
“aproveitando” o tempo livre.
Eu acho que tem um último aspecto que merece uma reflexão nossa, que é
pensar como habitar em companhia esse problema, que também é o outro
lado da moeda. Existe uma recusa por parte das pessoas que estão nesse
campo progressista, de modo geral, em debater o problema da tecnologia e
os seus usos. Uma recusa da esquerda de entrar nesse debate, como se
toda tecnologia fosse uma tecnologia predadora, que fosse sempre piorar
as experiências de aprendizagem ou intensificar a subjetivação
neoliberal. Outras vezes a esquerda se interessa por esse debate mas
sempre na chave da “resistência” e contenção, o que é importante, mas
nos deixa sempre muitas casas atrás.
Na verdade, acho que há toda uma questão que é como a gente pensa,
primeiro, as tecnologias para além das tecnologias digitais, como é que a
gente recupera as tecnologias menores (ou tecnologias de desaceleração,
tecnologias de encontro, tecnologias de pertença), pensar como a gente
pode produzir outros tipos de associação mais potentes das nossas
relações, das nossas experiências de aprendizagem e pesquisa, dos nossos
desejos de revolta se associando também às formas tecnológicas. Superar
essa recusa também vai ser importante para a gente construir caminhos
mais interessantes, disputar os rumos, fazer funcionar nossa
inteligência coletiva.
Henrique Parra: para complementar, um outro ponto que talvez
seja mais transversal nas discussões sobre vigilância e que ganha relevo
na experiência da Zona de Contágio, é poder pensar e investigar de que
maneira essa situação propicia um tipo de experiência tecnomediada em
que ocorre a produção de um modo de subjetivação, onde uma certa
experiência cultural de vigilância passa a participar de diferentes
instâncias da nossa vida.
Basta pensarmos no modo, por exemplo, com que passamos a olhar para o
outro como uma possível ameaça de contágio. Quais são os mecanismos que
passo a adotar para me proteger de um possível risco de contágio? Como
dentro da casa, na família, passamos a adotar procedimentos e protocolos
que podem gerar mais segurança?
Há uma certa ideia de segurança, de reações imunitárias que colocam
em movimento uma cultura de vigilância, que pode ser economicamente
vantajosa e politicamente eficiente para uma certa produção de mundo
(neoliberal, racista, machista, antropocêntrico, etc). Quando essas duas
dimensões se entrelaçam através de uma mediação tecnológica que se
apresenta como a solução neutra, mais “eficiente” e mais desejada, esse
dispositivo ganha muita força.
Preocupa a todos nós a maneira como a experiência de autoconfinamento
e do isolamento social nos prepara e educa para uma vida sob estado de
sítio. Acho que essa é uma condição muito transversal. Como, diante
disso, estamos a criar e experimentar outras formas de vida que,
orientadas por princípios de solidariedade e emancipação, criem linhas
de fuga da alimentação deste regime da dominação?
É muito interessante ver nas redes de consumo de alimentos, por
exemplo, como vão aparecendo outras iniciativas que criam novas cadeias
de distribuição para a produção da agricultura familiar, da produção do
MST. Como é possível fazer isso em outras áreas de nossas vidas,
utilizando tecnologias que não potencializam as formas de controle sobre
os usuários?
Fernanda Bruno: vou passar para a última questão, que tem a
ver com o coletivo, com o “nós”, o habitar junto esse acontecimento,
essa situação limite, e que é, de novo, um tema recorrente no trabalho
de vocês dois, e se torna absolutamente urgente em uma situação de
isolamento, ao mesmo tempo em que há grupos que estão extremamente
vulneráveis e onde as possibilidades de ação comum estão bastante
ameaçadas pelo fantasma do contágio e pelas medidas efetivas da
contenção da pandemia.
Hoje fiz uma contribuição no site da Zona de Contágio e vi que já há
um material bastante rico. Tem música, poesia, relato, fotografias, e
uma série de expressões da experiência desse tempo. E a conversa sobre o
livro da Isabelle Stengers, que rolou na semana passada, sobre o livro No Tempo das Catástrofes,
foi extremamente diversa. O fluxo da conversação febril tocou em muitos
temas: educação, China, autonomia, sabão de coco, moradia de albergues,
coletivos artísticos na Bolívia, receitas, acupuntura, tecnologias
sociais, poesia, etc.
Que primeira impressão vocês têm desses dois movimentos: a chamada de
envio de materiais em torno de experiência da pandemia e o grupo de
estudos? Gostaria de ouvir vocês sobre o primeiro contorno que esse
“nós” ou esse coletivo ganhou.
Alana Moraes: a nossa pergunta inicial, que tem sido uma
pergunta que acompanha todo o processo da investigação no Laboratório do
Comum e também agora na Zona de Contágio, é como constituir um grupo de
pesquisa. Como é que a gente faz esse “nós” que está pensando junto e
que está pesquisando junto. Esse é um tema que segue com a gente durante
todo o percurso. Obviamente que ele tem um risco, que pode ser a
própria dissolução do grupo. O risco justamente é esse, de ser tão
heterogêneo, tão particular e tão singular, que se torna incapaz de
construir um lugar mais estabilizado.
Pensando um pouco a partir desse desafio sobre que tipo de desenho de
pesquisa seria possível, a gente propôs um primeiro movimento, que
talvez seja um movimento de abertura total que começa assumindo o fato
de que toda produção de pensamento é também uma produção de experiência a
partir de corpos sensores. Queremos saber de que forma as pessoas estão
sendo afetadas por esse acontecimento e como elas elaboraram formas de
narrar esse acontecimento, seja em um forma mais poética, uma imagem, um
texto, um áudio…a gente está experimentando essa abertura completa.
A gente queria entender de onde as pessoas estavam falando e como
elas queriam falar, ou seja, talvez tentar experimentar esse parlamento
de corpos-sensores, que também é uma abertura radical. A partir de
agora, nos próximos movimentos do laboratório, o que a gente vai tentar é
justamente produzir certos contornos, algumas bordas, vamos dizer
assim, que são zonas de confluência.
Essas zonas de confluência vão tentar desenvolver temas que estão
dentro dessa pesquisa e que tem a ver com a biovigilância, com a ideia
do desempenho, com esse cruzamento entre tecnologias da domesticidade e
as tecnologias digitais em suas inúmeras formas de mediação, e tem a ver
com esse pano de fundo maior que é pensar o que significa isso de
biopolítica e de biopoder na situação como essa que a gente está
atravessando agora.
Henrique Parra: acho há um diálogo entre a experiência do
site, esse grupo de estudos e algumas iniciativas que foram lançadas de
maneira relativamente independente. É legal ver como a Zona de Contágio
vai acontecendo. Acho que a gente tinha algumas ações organizadas,
colocamos elas “na rua”, começamos a praticá-las e começamos a
visualizar como elas estão acontecendo e como elas podem criar linhas e
tramas entre elas.
No próprio site Zona de Contágio, o primeiro movimento que a gente
fez foi passar a publicar coisas que nos interessavam, ler e
compartilhar com outras pessoas, textos que já estavam em circulação,
textos que servem de inspiração e que, de alguma maneira, ajudam a
nortear um pouco a forma como a gente está querendo habitar esse
problema.
A gente tinha também uma vontade, que estava organizada para esse
semestre, que era fazer um ciclo de estudos, que estávamos chamando de
ciclo de estudos insurgentes. Com a Zona de Contágio virou um ciclo de
conversações febris, que a princípio poderia correr paralelo ao processo
de investigação, mas a medida que as coisas acontecem, nós repensamos. A
gente lança um texto para conversar, mas a coisa que acontece a partir
desse texto traz uma outra diversidade de debates, o que faz com que a
gente tenha um inflexão para ver como vai alinhando e tramando essas
coisas. É muito a partir do retorno que a gente recebe, que nós
compreendemos melhor a maneira como a gente está elaborando e e
comunicando um problema de pesquisa. O fato de que a gente tenha
recebido muitas respostas de pessoas que fizeram uma produção poética é
um dado importante.
A proposta de que um Laboratório do Comum deve ser permeada por um
conjunto heterogêneo de perspectivas é outro elemento importante. Claro
que quando a gente divulga algo pela internet, isso já exclui um monte
de gente. Claro que a maneira como escrevemos um texto faz com que
algumas pessoas se sintam mais interpeladas que outras. Ainda assim,
parece importante produzir um problema que possa ser transversal e
experimentar criar um espaço em que pessoas de diferentes perspectivas
possam estar juntas.
A partir daí surge um outro problema que é como a gente constitui um
coletivo de investigação e como que a gente vai criando protocolos,
infraestruturas, acordos, perguntas, que podem dar sustentação a uma
prática coletiva. Há uma preocupação na criação de um laboratório do
Comum, que é como que a gente desenvolve essas tecnologias de
pertencimento em torno de uma mesma prática, uma saber-fazer habitar.
Saber qual é o conjunto de perguntas e implicações que atravessam
essas diferentes histórias e interesses dessas pessoas, mas que podem,
gradualmente, ir ganhando um contorno que também nos interessa
(“interesse” como aquilo que diz respeito a “estar entre”. Então não é
que a gente não tenha perguntas que organizam isso. Temos e, de alguma
forma, elas participam da criação dessa borda.
Uma preocupação nossa, desde o início, em fazer uma chamada de
pesquisa que está acontecendo nessasituação de pandemia, em que as
pessoas estão em isolamento e parte dessa interação vai acontecer a
partir de uma mediação tecnológica, é como a gente evita uma certa
prática de pesquisa tecnicamente mediada, que é de ordem extrativista,
em que a gente elabora a pergunta, define os problemas e quer saber como
as pessoas estão dialogando com essa pergunta que a gente tem.
No fundo, a gente também está atrás da criação de outras perguntas,
outros problemas para olhar para essa situação. Evitar também uma
prática de uma pesquisa que desconhece ou não se relaciona com o
contexto dessa pessoa que está respondendo também nos parece importante.
Por isso que um ponto de partida na arquitetura do laboratório e na
ideia do corpo-sensor, é como criar uma infraestrutura de pertencimento.
Isso se tornar uma parte do problema da pesquisa, pensar como a gente
vai dando sustentação coletiva a uma prática de investigação. A ideia de
um Laboratório do Comum funda uma certa comunidade, não no sentido do
unitário e homogêneo mas no sentido de um coletivo de afetados por
aquelas mesmas questões.
Fernanda Bruno: essa questão do pertencimento me parece
essencial. Hoje, dando uma olhada nas contribuições enviadas ao site, vi
algo comum: me pareceu que quase todo mundo desejou expressar algo que
era da ordem de uma interrupção, um intervalo, uma brecha, algo que
estava fora das respostas imediatas que esse momento nos exige, seja de
trabalho, seja de pensamento articulado ou de segurança.
Me pareceu que estavam todos tentando expressar momentos de respiro,
de interrupção de um certo automatismo cotidiano ou de fuga dessa culpa
de não estar trabalhando, não estar produzindo. Capacidade de criação
mesmo. Tudo que apareceu ali, apareceu um pouco como brecha, respiros,
invenções dentro desse contexto que é muito asfixiante. Essa foi a minha
sensação e também o meu desejo. Não quis enviar nada que fosse, por
exemplo, uma reflexão intelectual que pudesse ser confundida com
trabalho, no sentido mais convencional, mas sim algo que escapasse das
demandas que estão colocadas, as demandas dos nossos aparatos de
trabalho, de saúde, de poder, de vigilância. Enfim, a impressão foi de
um tom recorrente, apesar da heterogeneidade dos materiais.
Henrique Parra: voltando um pouco nesse comentário que você
fez, acho que esse é um desafio dessa proposta de laboratório: como a
gente vai modulando e incorporando novos elementos. Uma coisa que chamou
atenção no perfil das pessoas que entraram em contato conosco é que
quase todas estão desenvolvendo, de alguma forma, ações de pesquisa,
seja de maneira informal ou não, mas elas estão interessadas, estão
praticando uma forma de reflexão sobre o que está sendo vivido.
Também surge para nós a pergunta sobre de que maneira a Zona de
Contágio pode ser tanto uma investigação coletiva, a partir de um
conjunto de questões que a gente constitui como borda desse percurso
mais coletivo de investigação, mas também uma zona de confluência entre
essas diferentes iniciativas de pesquisa (informal ou formal) que as
pessoas estão fazendo.
Estou imaginando como é que a Zona de Contágio pode ser as duas
coisas: ela cria a possibilidade de realizarmos o percurso coletivo de
investigação, a partir de perguntas que estão balizando e da
“arquitetura” da forma laboratório, mas ao mesmo tempo ela pode ser
atravessada pelas novas perguntas e investigações que as pessoas estão
criando e que podem compartilhar, fazendo da Zona de Contágio uma caixa
de reverberação.
Fernanda Bruno: esse atravessamento me pareceu acontecer mais
vigorosamente na conversa em torno do texto da Isabelle Stengers do que
na chamada. Na chamada, talvez tenha que haver uma segunda onda, novos
movimentos para que essa dimensão da pesquisa apareça mais. O que senti,
muito de fora, foi um desejo de fuga de um certo lugar da pesquisa. Não
da pesquisa em si, mas de um certo lugar de pesquisa.
As pessoas estão querendo habitar um outro lugar nesse momento e
alimentar outros fluxos de pensamento, de expressão, de narrativa etc. É
fundamental que esse cruzamento com a pesquisa, para usar a imagem da
encruzilhada que vocês utilizam também, seja feito. Vai ser muito rico
quando isso acontecer e vai acontecer, com certeza.
Alana Moraes: eu queria agradecer pela conversa. Achei muito
importante sua observação final desse primeiro material que a gente
recebeu na Zona de Contágio. Ela conflui muito para uma coisa que nós
estamos pensando juntos, que talvez seja justamente sobe pensar essas
tecnologias de frenagem ou como a gente produz infraestruturas que
possam sustentar coletivamente esses momentos de frenagem, esses
momentos de respiro.
Nos últimos anos eu tenho estudado com os sem-teto as ocupações de
terreno também como tecnopolíticas de habitar a exceção. Uma coisa que
aparece muito, nessa experiência, é como as pessoas chegam nos
acampamentos, nas periferias aqui de São Paulo, a partir desse relato de
cansaço e de esgotamento. As pessoas falam muito que a ocupação é um
lugar de descanso, um descanso da casa, da domesticidade, mas um lugar
de descanso em relação ao trabalho, às virações, à essa ideia de que
você tem que estar sempre trabalhando ou procurando um trabalho. Ela se
torna potente justamente porque ela se constitui como uma tecnologia de
frenagem, de respirar junto e de pensar em companhia.
Série Lavits_Covid19
A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.
Ciclo \”Habitar as Fronteiras\” no Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP. Dias 7 e 14 de abril de 2020.
Diante da debilidade existencial intensificada por inúmeros dispositivos de produção de uma vida neoliberal, os encontros convidam ao diálogo pesquisadorxs-praticantes que tencionam as habituais fronteiras entre ciência e luta, vida e política. Assumir a nossa crise da presença como condição de uma vulnerabilidade compartilhada para investigar os diversos dispositivos que a produzem, mas também experimentar como reativar \”uma maior atenção ao devir da presença dos entes\” no mundo vivo; retomar nossa capacidade de \”co-pertencimento e co-produção a cada situação vivida\”.
Partimos de experiências investigativas em que saberes e práticas de lutas emergem de corpos como sensores; formas de vida que sentem, percebem e enunciam, a partir de sua singularidade os diversos dispositivos de erosão do mundo Comum. São também essas experiências que resistem e inventam formas de vida não proprietárias, não securitárias e que intuem que é o movimento de abertura ao acontecimento o que pode sustentar práticas coletivas de insistência na vida como interdependência: tecnologias de aquilombamento, retomadas indígenas, ocupações, as experiências de travessia do corpo-trans, tecnologias de cuidado, territórios do comum e saberes ancestrais/tradicionais, laboratórios cidadãos.
07/04, terça-feira, das 19h00 às 21h30 – Encontro com Bru Pereira – antropóloga e educadora, mestre em Ciências Sociais pela UNIFESP; Edson Teles – professor de filosofia na UNIFESP; Maria Fernanda Novo – doutora em filosofia pela UNICAMP. Mediação de Jean Tible – professor de Ciência Política (FFLCH/USP).
14/04 (terça-feira), das 19h00 às 21h30 – Oficina com Alana Moraes – antropóloga, doutoranda pela UFRJ e Henrique Parra – professor de Ciências Sociais da UNIFESP. Pesquisadores do Pimentalab/LAVITS e do coletivo Tramadora.
Oficina: ao adotar a gestão de crise como técnica de governo, o capital não se limitou apenas a substituir o culto ao progresso pela chantagem da catástrofe, ele quis reservar para si a inteligência estratégica do presente\” (C.I). A oficina é um convite para habitar por um pouco mais de tempo os problemas comuns que nos obrigam a pensar juntos. Inspirados na ideia de um \”parlamento de corpos\” queremos retomar a inteligência compartilhada e a potência da situação presente. O parlamento emergente de corpos afetados se instaura a partir de formas de conhecer que possam transformar (narrar/inventar/mediar) a experiencia de um corpo-sensor em um conhecimento de luta coletiva dos corpos vivos, que nada tem a ver com a produção de maiorias ou consensos. A oficina convida os participantes a investigar o problema da crise da presença diante da crescente mediação técnica da vida social e as consequentes alterações do regime de sensibilidade que sustentam ou destroem um mundo comum. Diante da multiplicidade de dispositivos tecnológicos que fazem da vida uma sequencia prevista de condutas, procedimentos e desempenhos funcionais, praticamos uma atenção àquilo que o corpo não aguenta mais, como ponto de partida da construção de formas de vida não fascistas.
***
corpo-como-sensor é uma proposição ético-política da vida em sua ontologia corpórea extremamente vulnerável, um terreno de travessias e cruzamentos no qual a representação dá lugar à experimentação, à variação e ao risco dos encontros. Em há um mundo por vir? (2015), Viveiros de Castro e Débora Danowski se perguntam quem seria o demos de Gaia, “o povo que se sente reunido e convocado por essa entidade, e quem é seu inimigo” (2015:120). Para os autores, não se trata mais de buscarmos um “sujeito revolucionário”, mas seguir uma etnopolítica que suspenda a própria noção de \”sujeito capaz de agir como um só povo\”.
Diante da crise de presença alimentada por inúmeros dispositivos de produção de uma vida neoliberal, o seminário convida ao diálogo praticantes que tensionam as habituais fronteiras entre ciência e política, entre natureza e cultura. Nesse sentido, pensar a nossa crise de presença como condição epocal seria também investigar os diversos dispositivos que a produzem, mas, por outro lado, experimentar como reativar \”uma maior atenção ao devir da presença dos entes\” no mundo vivo; retomar nossa capacidade de \”co-pertencimento e co-produção a cada situação vivida\”. Partimos de investigações em que saberes e práticas emergem de corpos-como-sensores; formas de vida que sentem, percebem e enunciam, a partir de sua singularidade os diversos dispositivos de erosão do mundo Comum. São também essas experiências que resistem e inventam formas de vida não proprietárias, não securitárias, experiências que intuem que é o movimento de abertura e composição com o acontecimento de encontros o que pode sustentar práticas de insistência na vida em interdependência: tecnologias de aquilombamento, retomadas indígenas, ocupações, as experiências de travessia do corpo-trans, tecnologias de cuidado, territórios do comum e saberes ancestrais/tradicionais, laboratórios cidadãos.
Habitar uma política do sintoma que não nos permite \”interpretar\” tendo em vista um lugar seguro do diagnóstico que contorne ou neutralize o mal-estar.. Nessa condição de precariedade de um mundo sem refúgio, a invenção de linguagens, sentidos compartilhados, infraestruturas e tecnologias de suporte à essas formas de vida é inseparável de uma prática experimental de composições de alianças e arranjos sociotécnicos que dão forma a outras individuações coletivas, a emergentes comunidades de afetados. Trata-se de escapar dos imperativos de resultado e impacto, reino da estratégia e da eficiência tecnocrática, para habitarmos um terreno de experimentações de composições sempre situadas, que funcionem como caixas de ressonância de formas de vida não-fascista.
Recebi o convite para participar do Congresso da Abrasco como uma boa oportunidade para compartilhar com vocês alguns problemas que venho investigando no campo dos estudos sociais em ciência e tecnologia. Não sou da área da saúde e nem tenho a saúde como um tema/objeto específico de trabalho. No entanto, penso que este encontro é o início de um novo diálogo e de parcerias de trabalho. Em parte porque acredito que estamos enfrentando problemas semelhantes (na educação, na ciência e no desenvolvimento tecnológico), mas também porque na área da saúde muitos dos problemas que vamos tratar aqui adquirem uma convergência e interdependência muito densa.
Mas também, outra razão que me aproxima das preocupações da Abrasco é a possibilidade de tomarmos a Saúde como um Comum e aí, problematizarmos quais poderiam ser as estratégias, ações, normas, protocolos, infraestruturas que dão forma à instituição (no sentido de ação instituinte) da Saúde como um Comum.
Quais seriam as formas desses direitos e institucionalidades que dariam existência e sustentação à Saúde como um Comum? Como resistir, portanto, às dinâmicas neoliberais (micro, meso e macropolítica)? Essa é uma grande pergunta que dá forma a um exaustivo programa de pesquisa e de práticas.
Mais especificamente, sob o guarda-chuva dessa ampla questão, tenho investigando algumas experiências (que denominamos de laboratórios cidadãos ou laboratórios de prototipado) onde este problema é enfrentado com recortes muito limitados. O que me interessa nessas experiências é a forma de enfrentamento dessas questões. Nos laboratórios constitui-se uma comunidade de afetados (ou uma comunidade de atores co-implicados) em torno de um problema que emerge diante da ameaça de destruição de um comum. Em seguida, o problema é investigado, adensado pelas distintas perspectivas (saberes incorporados e situados) dos atores, através de um esforço de criação de um protótipo, um artefato ou um dispositivo que contribua para dar um melhor entendimento e tangibilidade sobre os mecanismos de produção e sustentação deste Comum ameaçado.
E no âmbito dessas iniciativas, o meu interesse é mais especificamente por aquelas experiências que estão envolvidas com a criação de arranjos sociotécnicos orientados para a produção do Comum. Dito de outra forma, “tecnopolíticas do comum”.
Sinteticamente, o argumento da minha exposição será a seguinte:
1. Caraterização de uma experiência política de assombro: não só no Brasil, mas em diversos países, experienciamos uma profunda crise institucional e das políticas sociais. Há um acelerado desmanche dos direitos sociais e o fortalecimento de um Estado-Empresa onde o público-estatal é cada vez mais indistinto do privado-corporativo. A lei, as instituições, os canais de representação parecem insuficientes para responder à atual configuração dos conflitos de uma perspectiva democrática (falamos agora em democracia autoritária, democracia securitária, normalização do estado de exceção, entre outros…).
2. Dentro deste processo interesso-me por uma dinâmica de deslizamento nos mecanismos de exércicio do poder e nas formas de orientação da ação social, que se deslocam de uma orientação por valores, normas e leis, para uma forma de determinação/orientação que podemos denominar “tecnopolítica”. São as técnicas, protocolos, infraestruturas, procedimentos, tecnologias diversas através das quais conduzimos nosso cotidiano e se realizamos, de forma imanente, as formas de vida que elas propagam.
3. Investigar a maneira como alguns arranjos sociotécnicos (dispositivos, aparatos e tecnologias utilizadas por humanos) participam da mudança social e abordam o problema da escalabilidade de outra forma. Um desafio que temos (na educação, saúde etc) quando pensamos numa política pública é o de encontrar formas de transpor uma iniciativa de pequena escala para uma outra escala. Todavia, ao invés de pensar em como transpor escalas (do micro para o macropolítico), assumo um caminho alternativo: como pequenos dispositivos através da recursividade e reticulação vão constituindo longos arranjos sociotécnicos.
Ao pensar a produção do Comum por essa perspectiva, minha hipótese é que podemos encontrar estratégias complementares de luta e de instituição de novas formas de vida.
***
O Comum, no sentido que estamos utilizando aqui (e inspiro-me sobretudo no trabalho de Antonio Lafuente), diz respeito à algo que é sempre produzido entre todos. Atualmente, são muitos os sentidos que podem ser atribuídos ao Comum e há uma vasta literatura sobre isso (link para uma apresentação onde discorro especificamente sobre este tema).
O ar que respiramos, a cultura, a experiência de urbanidade, o cuidado na reprodução da vida, a escuridão da noite que permite ver as estrelas, o conhecimento, a saúde são possíveis exemplos desse Comum.
Frequentemente este Comum só emerge, só aparece quando ele se encontra ameaçado. Quando o ar que respiramos se torna poluído, um Comum (a qualidade e portanto a participação do ar em nossa saúde) foi destruído por formas de uso que o degrada. Em termos econômicos, formas de uso e apropriação exclusiva que externalizam os efeitos de sua utilização. O Comum tem portanto uma dimensão não codificada, não formalizada, não essencialista, tácita e relacional, mas que é fundamental à produção e sustenção da vida. Essa paradoxal invisibilidade e presença constitutiva do Comum em nossas vidas é simultaneamente sua maior potência e ao mesmo tempo sua maior fragilidade.
É neste sentido que o problema do “Comum” não pode ser separado (como bem descreveu Ricardo Teixeira) de um problema da “percepção do Comum”. Por isso, a forma do Comum transitar entre o intangível e o sensível depende de um regime de sensibilidades que dá forma a uma Política, onde as dimensões afetivas-culturais-cognitivas-econômicas são indissociáveis.
Como percebemos que somos co-partícipes na produção do Comum? Quais as estratégias, práticas, tecnologias, infraestruturas que dão forma a essa experiência de co-implicação na produção do comum?
Para a Abrasco é evidente que a saúde é um problema coletivo. Não há saúde individual sem saúde coletiva. Parte do conflito histórico e atual, em torno dos direitos à saúde, dá-se pelas dinâmicas que procuram submeter a Saúde a dinâmicas individualizantes (em termos dos modos de subjetivação, na forma como nos constituímos e nos relacionamos com nossa da saúde) e privatizantes (em termos das formas de codificação, mercantilização e regulação social). Mas falar em termos do “Comum” significa transbordar a dicotomia público-privado; humano-não-humano. Ele é uma terceira margem que não está em oposição nem ao público, nem ao privado. O Comum convive e apoia-se tanto no público como no privado, assim como ele se realiza com os humanos e não-humanos (objetos, recursos naturais, artefatos tecnológicos).
***
Retorno então ao tema mais específico das “tecnopolíticas da produção do comum” para indicar 3 eixos de questões que me levam a eleger este recorte como forma de criação e resistência.
1. Como explicar isso que reconhecemos como uma rápida erosão de conquistas duramente construídas? Como explicar essa intensificação, aceleração, austúcia nos processos de desmanche dos direitos sociais? Isso é sinal de uma fragilidade institucional ou baixa qualidade democrática de nossas instituições? É sinal da precariedade do nosso marco regulatório? Ou é algo que convive e integra desde muito tempo a produção do atual regime de governo, mas que agora adquire novos contornos? Quais são as continuidades e rupturas?
Neste momento, é fundamental identificar quais são as práticas, as áreas da saúde que estão sendo capazes de resistir e persistir na produção da Saúde como um Comum. Ao longo da história, o Comum e as comunidades que o produzem tem aprendido a sobreviver a diversas investidas que procuram destruí-lo ou submetê-lo a regimes de apropriação e expropriação. Ao mesmo tempo é importante identificar quais os novos mecanismos, as estratégias, e as novas práticas que tornam possível a privatização da saúde. Em resumo, partilho da impressão de que o desenho institucional que temos disponível é importante, porém parece ser insuficiente para responder às ameaças atuais.
2. Quais os limites, quais os modos de interação do público-estatal com o privado-corporativo? É possível encontrarmos outras composições para além da dicotomia Estado-Mercado? Aqui também a percepção ordinária (para não dizer senso comum) que se difunde em nossa sociedade é de uma crescente indistinção entre o público-estatal e o privado-corporativo. Como essa experiência se constituí? Quais as mediações entre os cidadãos, o acesso aos serviços de saúde, as relações entre os trabalhores da saúde e os demais cidadãos?
Cada vez mais precisamos indagar como os diversos aparatos, equipamentos públicos servem e funcionam como infraestruturas para a expropriação e apropriação privada da Saúde?
Ao mesmo tempo, qual é a percepção, a experiência que se constitui desde o cidadão, o usuário na ponta? Qual é a interface, a mediação que ele tem o sistema?
Pensando desde a borda do sistema, a partir dos modos de uso e apropriação do cidadão, e do modo de relação e de subjetivação que ele constitui com o sistema de saúde, quais seriam as possíveis formas de ativar um devir-comum do público-estatal? Como o cidadão reconhece a produção do Comum e como ele experiencia as diferenças e conexões entre aquilo que é público-estatal e aquilo que é privado-corporativo?
3-Cotidianamente nos confrontamos com práticas, procedimentos e tecnologias que se instalam em nossa vida como dispositivos que se apresentam como neutros (\”pós-ideológicos\”). Há evidentemente princípios e valores que constituem as relações tecnicamente mediadas. A capacidade de captura e adesão a um dispositivo depende de sua eficácia prática e de sua capacidade de tornar-se desejável. Sua adoção é quase “natural” (ela se aproveita das disposições emergentes num campo de possíveis). Ao prover a “melhor solução” para um determinado problema ela atualiza de forma imanente uma racionalidade específica. Assim, novas técnicas e tecnologias vão paulatinamente modificando o seu ambiente, criando recursivamente um contexto cada vez mais favorável à sua adoção, de forma que num momento posterior seja impossível não adota-las (veja artigo que publicamos sobre Google as Universidades brasileiras).
Simetricamente, quais seriam nossas técnicas, nossas tecnologias que poderiam promover as formas de vida e cuidado que desejamos propagar?
***
Em resumo: se nossas instituições e os canais de mediação política são importantes, porém insuficientes; se a ciência e tecnologia, participam cada vez mais da criação de artefatos que influenciam nossas vidas; e se há um crescente processo de delegação da agência à mediação técnica, neste cenário talvez a criação e a resistência tecnopolítica seja um importante campo de lutas.
Certos arranjos sociotécnicos são capazes de informar e produzir efeitos sobre seu entorno de maneira a produzir certas configurações de mundo. Destaco duas propriedades neste processo de propagação e estabilização: a recursividade e a reticulação. Juntas elas abordam o problema de escala (micro, meso, macro) de uma outra maneira. Nós, cientistas sociais, poderíamos trabalhar mais com os engenheiros, cientistas da computação, arquitetos, médicos e sanitaristas para aprender juntos a “construir coisas”.
Um exemplo (veja ensaio \”Do protesto aos arranjos tecnopolíticos\”): “a criação da pílula anticoncepcional, o protocolo TCP/IP da internet e o telefone celular são exemplos de artefatos técnicos-científicos que produzem arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares. Sua forma de adoção e propagação vai gradativamente modificando as relações sociais através do seu uso, e os efeitos de sua adoção nas pontas (sujeito individual ou máquinas) cria mecanismos de reforço sistêmico. […]
Recursividade: Uma prática, uma tecnologia, uma organização que atue recursivamente está desenhada para a resolução prática de um problema, cujo modo de ação dá-se mediante a criação de sub-rotinas que atacam frações de um problema maior, e a cada movimento ela volta à sua função (missão) original, porém agregando um “aprendizado” que a torna mais eficiente. Este aumento de eficiência (ou ganho de poder) acontece também porque além de resolver partes do problema (diminuindo a força do seu oponente) ela modifica gradualmente o seu meio de ação (meio-associado), criando um ecossistema mais favorável à sua execução. Ou seja, um artefato recursivo é um dispositivo prático (material-simbólico) que executa um programa (uma ação normativamente orientada) cuja eficiência está na transformação do seu meio-associado e não apenas na realização de um objetivo final abstrato). Como efeito, a recursividade apoia-se na produção de uma “comunidade” ou de “públicos recursivos” que dão sustentação ao processo.
Reticulação: A reticulação é um processo de propagação não-linear e rizomático de uma estruturação emergente criando níveis subsequentes de estruturação de uma realidade. Quando uma prática, uma tecnologia, uma organização se reticulariza, significa que ela é capaz de tornar durável, de diferentes formas, o seu programa de ação, criando níveis crescentes de estruturação. Como efeito, ela amplia sua capacidade de determinação sobre um campo de possíveis. Ou seja, a reticulação dá maior consistência e força para seu programa de ação” (PARRA, 2018).
***
A título de contra-exemplo examinemos dois arranjos sociotécnicos que podem produzir fortes agenciamentos de orientação neoliberal.
Proliferam hoje diversas tecnologias digitais portáteis, tanto os APPs de smartphones como os novos wareables (relógios ou roupas) destinados a fazer a coleta permanente de informações produzidas por nossos corpos. Essas tecnologias são adotadas por milhares de pessoas e permitem a coleta, organização e disponibilização dessas informações em diferentes plataformas. São hardwares e sofwares frequentemente corporativos (mas há também versões em software livre) que criam novas possibilidades de análise, tanto para os indivíduos usuários como o bigdata realizado pelas grandes empresas que centralizam e comercializam esses dados. Aqui, há tanto a formação de uma experiência de individualização na produção e análise dos seus dados pessoais (que pode reforçar uma percepção mais individualizante da saúde), como também a formação de novas comunidades de usuários que compartilham dados e criam novas analíses e diagnósticos sobre problemas específicos. Em ambos os casos, vemos o fortalecimento de um conhecimento que se apoia numa concepção de corpo informático (sem “corpo”), pois os dados são vez mais descontextualizados quando a coleta é seletiva e não leva em conta elementos contextuais, mas também em alguns casos a constituição de novas comunidades que se constituem através da partilha de suas experiências. Hermínio Martins refere-se aquela primeira “forma de conhecer” descorporificada (baseada na metafísica informacional) como ciborgues epistêmicos (veja apresentação \”Algoritmos Encarnados\” realizada no Medialab-UFRJ).
Neste caso, a crescente adoção dessas tecnologias, ao mesmo tempo em que produz uma nova forma de conhecimento sobre o corpo, produz outro modo de relação com a saúde (percebida aqui cada vez mais numa chave individualizante). Ao mesmo tempo, ela participa de uma economia política informacional baseada na exploração dos dados pessoais (seja para os seguros médicos como para a indústria farmacêutica). A depender do caso, temos ainda a produção de novas formas de governo biopolítico: basta imaginar a utilização de mensuração glicêmica ou da análise da atividade física dos usuários associada à gameficação da vida (seja para o cidadão ou para o consumidor de planos de saúde).
Mas o contra-exemplo que melhor se encaixa nessa discussão talvez seja os dos novos sistemas de intermediação de consultas médica e exames laboratoriais: Dr.Consulta, Doutor123, CiadaConsulta. Desconheço o funcionamento em detalhes desses serviços, por isso destacarei apenas os elementos que dialogam com os problemas descritos acima (esses serviços merecem estudos minuciosos sobre sua forma de criação e expansão). Podemos ver aí como a recursividade e a reticulação vai acontecendo através da adoção das tecnologias móveis pelo usuário, combinadas ao georeferenciamento, à analise de dados pessoais, infraestrutura física e a gestão do trabalho (na forma de um capitalismo de plataforma).
São tecnologias – entendidas aqui como ambientes dentro dos quais modos de vida são produzidos – que se efetivam através da criação e propagação de um arranjo sociotécnico que produz um tipo de experiência com a saúde. Alguns desses serviços já estão em operação há alguns anos, e é possível observar como vão expandindo pouco a pouco sua infraestrutura de atendimento fisico. Gradativamente, elas vão se reticulando na vida social, ampliando sua presença, e de forma recursiva vão modificando seu meio de maneira a torná-lo mais favorável ao seu funcionamento.
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Temos aí em operação (exemplo da articulação micro-meso-macro):
1. Os efeitos macropolíticos relativos à regulação jurídica das atividades da saúde, criação de dispositivos burocráticos e legais que ampliam os agenciamentos privatizantes, mudanças nos marcos regulatórios dos direitos sociais, a economia política informacional baseada na exploração dos dados pessoais. Mas também a dimensão cultural e discursiva propagada nos meios de comunicação (tanto nos meios corporativos como nas redes de autocomunicação de massas). Nesta camada ainda adicionaria a emergência de novos saberes populacionais que correspondem a novas forma de exércício do poder. Para além do saberes disciplinares e populacionais que dão forma ao modo de governo biopolítico, bem descritos por Foucault, participamos agora da emergência da governamentalidade algorítmica apoiada nos saberes simulacionais, no big data e na estatística preditiva (veja o trabalho de Antoinette Rouvroy).
2. No nível mesopolítico poderíamos identificar os diversos mecanismos de gestão e organização do trabalho, os regimes de visibilidade e sensibilidade que determinam o que conta e o que não conta numa organização, as formas de mensuração, quantificação, avaliação e tomada de decisão. Quais os limites entre o trabalho visível e o trabalho invisível do cuidado?
Novamente, é na organização do cotidiano, na produção e reprodução da vida que um amplo conjunto de técnicas, procedimentos e tecnologias utilizados irão constituir modos de vida específicos.
3. No nível micropolítico um modo de subjetivação baseada numa relação individualizada e mercantilizada com a saúde. Os modos de subjetivação, conforme analisa Suely Rolnik, apoiam-se em dois modos de conhecimento sensível. “A primeira é a experiência imediata, baseada na percepção que nos permite apreender as formas do mundo segundo seus contornos atuais…quando vejo, escuto ou toco algo, minha experiência já vem associada ao repertório de representações de que disponho e que, projetado sobre este algo, lhe atribui um sentido”. Mas há “um outro tipo de experiência que a subjetividade faz de seu entorno, é a que designo como “fora-do-sujeito”, é a experiência das forças que agitam o mundo enquanto corpo vivo e que produzem efeitos em nosso corpo em sua condição de vivente. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver e de sentir aquilo que acontece em cada momento (o que Gilles Deleuze e Félix Guattari denominaram, respectivamente, “perceptos” e “afectos”)” (ROLNIK, 2018).
Lembro-me aqui do filme Daniel Blake. Em diversos momentos, quando Blake vai ao posto do serviço público para solicitar uma licença médica ou o seguro desemprego ele vive um conflito entre duas ordens distintas: sua experiência, sua cultura, sua subjetividade de trabalhador formada durante os anos de Welfare State constituí-se a partir de uma contrato social. Ele se relaciona com o aparato público-estatal através dessas representações instituídas. Entretanto, nada mais funciona como antes: os funcionários tem que atende-lo sob determinados protocolos, ele tem que produzir resultados e passar por distintos testes para ter sua condição reconhecida. A situação cria um conflito intransponível para ele, a formação do Estado-Empresa. As reações seguem então por duas direções: as estratégias individualizantes que encontram apoio nos modos de subjetivação neoliberal (Você-S/A); as estratégias coletivas que buscam constituir um território comum de experiência e lutas, capaz de tecer a vida.
Acontece que, quando pensamos a micropolítica, atentamo-nos quase que exclusivamente à dimensão das representações, àquilo que podemos enunciar e disputar discursivamente. Negligenciamos, frequentemente essa dimensão dos afectos e perceptos que está além e aquém do sujeito: o pré-individual e o supra-individual. Por isso sem uma política de subjetivação, capaz de modificar o regime de sensibilidades, a relação com o público e o Comum são subtraídas.
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Pensando agora nos aspectos mais “proximais”, no âmbito de uma micropolítica ou de uma mesopolítica, gostaria de perguntar e imaginar qual é nossa tecnopolítica? Quais são nossas tecnologias de produção do comum? Que dispositivos, artefatos, protocolos, infraestruturas já temos ou que podemos criar para promover e dar sustenção à saúde como um Comum?
A partir dos problemas descritos acima, imagino que uma tecnopolítica do comum seria portadora de algumas características.
Em primeiro lugar trata-se de tecnologias que produzem uma comunidade e que são apoiadas por essa comunidade. Neste sentido, uma tecnologia da comum é sempre uma tecnologia de produção de vínculos, é uma tecnologia de pertencimento (para usar uma expressão de Isabelle Stengers). Uma cozinha coletiva numa ocupação de sem-teto (como analisa Alana Moraes) é uma importante tecnologia de pertencimento que abriga processos terapêuticos. Uma certa metodologia de conversa e escuta pode ser pensada também como um tecnologia de produção do comum (como bem relata Antonio Lafuente sobre a experiência dos alcóolatras anônimos).
As tecnologias do comum também transitam da simples participação (relação usuário-serviço) para o reconhecimento da condição de co-produtores, onde tod@s estão co-implicados na produção. Que tecnologias temos no âmbito política nacional de Sáude que atendem a essa condição? Talvez as experiências dos conselhos de participação popular, os fóruns, possam ser pensadas como exemplos dessas tecnologias. Após mais de 20 anos de implementação das experiências dos conselhos (na educação, saúde…), já podemos reconhecer algumas estratégias que consideramos mais potentes e outras que convertem a participação em mecanismos de captura e gestão (governamental, partidária, corporativa).
Transitar de uma cultura participacionista para uma política orientada pelo “princípio do comum”, nos termos de Laval & Dardot, implicaria numa outra forma de composição da política, modificando o regime de subjetivação política e de produção dos sujeitos de direitos; e numa outra forma de composição entre o público-privado, econômico-social, reconhecendo, como o fazem as feministas, que toda a vida é política:
“a identidade do princípio (o comum) não suprime a distinção das esferas (social-econômica, público-privada, politica, e publica-publica), mas tem a função de organizar o social de tal maneira que seja possível uma deliberação na esfera pública que não fique prisioneira dos interesses de tal ou qual categoria socio-profissional. Isso só pode acontecer se a esfera da produção e dos intercâmbios se reorganize a fundo a partir do autogoverno do comum” (Laval & Dardot).
Imagino também que nas tecnologias de produção do comum o conhecimento é algo vivo, e portanto, sua forma de produção-circulação e seus regimes de uso devem ser vetores de resistência às diversas expressões do capitalismo cognitivo. Recentemente, a Fiocruz desenvolveu um conjunto de referências que darão forma a uma política de ciência aberta. No momento em que o conhecimento acadêmico e científico é cada vez mais colonizado pelas dinâmicas de fechamento, privatização e mercantilização (seja no ambito dos periódicos científicos e na expansão dos direitos de propriedade intelectual), defender a ciência, a cultura e o conhecimento enquanto um Comum é uma ação fundamental.
Para isso é necessário criar infraestruturas próprias, orientadas pela noção de “soberania tecnológica”, protocolos, formas de governança que permitam efetivar e lutar pela abertura da ciência. Importante destacar aqui que a noção de “livre e aberto” não se confunde com a noção de “grátis” (free as an freedom of speech, not free beer). Ou seja, promover a ciência enquanto um Comum exige a criação de formas de co-responsabilidade no uso, capazes também de dar sustentação à todo o ecossistema que produz esse Comum.
As tecnologias de produção do comum também estão orientadas pelo reconhecimento e maior centralidade conferida à experiência do cidadão e d@s trabalhador@s da saúde. Como diz Lafuente: “todos somos expert em experiência”. As tecnologias cognitivas devem então estar alinhadas à capacidade de escuta de diferentes saberes. Isso significa também, que talvez essas tecnologias sejam dispositivos de desacelaração (modo slow). Passamos então de um regime de dominância dos experts para um regime de co-existência entre diferentes saberes da experiência. Ao darmos maior centralidade à experiência, ao saber vivo, interrogamos portanto a idéia dos corpos informáticos dos ciborgues epistêmicos. Novamente, não se trata de colocar-se contra as tecnologias. Ao contrário, penso em formas tecnológicas que dêem lugar aos ciborgues (no sentido de Haraway) encarnados. Ou seja, modos de conhecer e de composição que reconheçam nossa cultura técnica e nossa natureza híbrida.
São também arranjos sociotécnicos que reconhecem a agência dos objetos, substâncias e máquinas. Os elementos não-humanos devem “ter voz”. Do contrário, corre-se o risco de apagarmos os efeitos de que eles são portadores. O debate sobre os alimentos transgênicos e toda sua relação com a cadeia produtiva e alimentar é um ótimo exemplo desse problema. O mesmo se aplica às nanotecnologicas. Na somatória de algumas dessas características entramos em tensão com aqueles modos de conhecimento científico que estão apoiadas na convergência N.B.I.C. Novamente, defendo que não se trata aqui de confrontá-los, mas sim de criar formas de convivência entre esses diferentes regimes de conhecimento, buscando, todavia, alternativas que fortaleçam o Comum e impeçam a sua apropriação e expropriação.
Finalmente, nos termos da Isabelle Stengers, temos que pensar numa cosmopolítica que seja capaz de abarcar uma diversa ecologia de práticas. Por isso, uma tecnopolítica do comum implica numa outra política (de saberes e poderes): gosto de fabular em torno da transição de um “saber-poder governar” para um “saber-fazer habitar”. Portanto, são tecnologias que são concebidas e implementadas dentro de uma política do cuidado. O cuidado é um trabalho material, é um fazer do corpo. Em certo sentido, o Programa Sáude da Família em sua versões mais comunitárias, proximais, talvez possa ser pensado como um bom exemplo dessa tecnologia de vínculos, de pertencimento multiplos e de produção de sáude coletiva. Necessitamos de tecnologias de nos permitam co-habitar o mundo, que reconheçam nossa interdependência. Esse é um critério muito claro face à tecnopolítica neoliberal que produz isolamento travestida de liberdade; que produz hipertrofia do privado sob a ilusão do compartilhamento, corroendo a possibilidade de um mundo comum.
Enfim, como podemos fortalecer esses arranjos sociotécnicos que julgamos relevantes? Como podemos ativar um devir-comum da saúde pública? Como podemos criar mecanismos de recursividade e reticulação que ampliem as condições de produção e sustentação das formas de vida, cuidado e saúde que desejamos propagar?
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(*) Mesa Redonda 55 – Direito à saúde, direito a uma vida comum: novas formas de lutar em tempos de neoliberalismo.
Coordenador: Henrique Sater de Andrade – UNICAMP (SP)
Expositor: Tadeu de Paula Souza – UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO
SUL (RS)
Expositor: Henrique Zoqui Martins Parra – Universidade Federal de São Paulo (SP)
Expositora: Alana Moraes de Souza – Museu Nacional/UFRJ (SP)
Tomar as ruas, protestar e expressar nossa indignação é fundamental. Porém, pressionar os governos e as instituições já não parece ser suficiente para traduzir as reivindicações das ruas em novas políticas ou práticas institucionais. Essa crise não é exclusiva do Brasil, mas aqui a situação adquire formas e conteúdos específicos. E como em toda guerra, essa é também uma guerra de velocidades entre ecossistemas concorrentes. O assassinato da vereadora Marielle Franco não é apenas uma mensagem de ameaça a tod@s ativistas, é também uma tentativa de bloquear um caminho de ação política institucional (construção de mandatos populares, partidos e disputa eleitoral). É um crime racista, de gênero (feminicídio), de classe e contra todas as forças e pessoas que ela representava. Tudo parece indicar que o momento histórico exigirá uma multiplicidade de novas formas organizacionais, ferramentas, tecnologias e estratégias de luta. Não é esta ou aquela, mas a combinação de várias estratégias. Não se pode enfrentar o novo com velhas armas.
Como transformar a energia política das ruas em ganho organizacional e novas institucionalidades? Os limites de junho de 2013 e a forma de captura pelos poderes instituídos do potencial político da multidão deveria servir de lição. Diante das configurações políticas do pós-Golpe e dos protestos multitudinários contra a execução de Marielle essas questões retornam.
Entendo que seja muito importante disputar as eleições, as instituições etc. O assassinato de Marielle e de tantos outrx ativistas políticos no Brasil é uma clara resposta à ameaça que esta nova geração de lutadoras representa aos poderes instituídos. Ao mesmo tempo (e de forma complementar) é urgente imaginarmos e praticarmos outras formas de ação para além dessas que conhecemos e seguimos fazendo nos últimos 30 anos.
Acredita-se demasiadamente no poder discursivo e na capacidade da mobilização ideológica. Mas, o poder é sobretudo logístico, é maquínico, funcional, pragmático. Em nossas vidas o poder se inscreve e se realiza mediante dispositivos materiais-simbólicos, humanos e não-humanos. Nossas ações realizaram-se com técnicas e artefatos sociotécnicos. Militantes e ativistas poderiam conversar mais com xs arquitetxs, xs engenheirxs, xs físicxs, biólogxs, cientistas da computação, médicxs etc. É necessário investigar uma outra camada, transbordando do protesto em direção a experimentação prática (prototipagem). Isso não é novidade, muitos coletivos e comunidades já estão fazendo isso.
A criação da pílula anticoncepcional, o protocolo TCP/IP da internet e o telefone celular são exemplos de artefatos técnicos-científicos que produzem arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares. Sua forma de adoção e propagação vai gradativamente modificando as relações sociais através do seu uso, e os efeitos de sua adoção nas pontas (sujeito individual ou máquinas) cria mecanismos de reforço sistêmico. Também podemos citar algumas comunidades territoriais que desenvolvem formas de autogoverno sobre seus recursos e infraestruturas comuns (água, eletricidade ou da sua pequena horta). Certas ordens religiosas também são exemplos de tecnologias organizacionais capazes de criar economias de suporte e com infraestruturas (materiais e simbólicas) interdependentes. Não a toa, o controle de infraestruturas e serviços básicos pelo crime organizado em espaços da vida social coloca em funcionamento toda uma máquina social, com normas, modos de subjetivação e legitimação próprios. Em todos esses casos o problema de escala é atacado de outra forma, por reticulação.
Há duas noções que podem contribuir para a construção de novos arranjos sociotécnicos: recursividade e reticulação.
Recursividade: faço uma livre combinação desta propriedade da ciência da computação com a caracterização de Chris Kelty sobre as comunidades de software livre. Uma prática, uma tecnologia, uma organização que atue recursivamente está desenhada para a resolução prática de um problema, cujo modo de ação dá-se mediante a criação de sub-rotinas que atacam frações de um problema maior, e a cada movimento ela volta à sua função (missão) original, porém agregando um \”aprendizado\” que a torna mais eficiente. Este aumento de eficiência (ou ganho de poder) acontece também porque além de resolver partes do problema (diminuindo a força do seu oponente) ela modifica gradualmente o seu meio de ação (meio-associado), criando um ecossistema mais favorável à sua execução. Ou seja, um artefato recursivo é um dispositivo prático (material-simbólico) que executa um programa (uma ação normativamente orientada) cuja eficiência está na transformação do seu meio-associado e não apenas na realização de um objetivo final abstrato). Como efeito, a recursividade apoia-se na produção de uma \”comunidade\” ou de \”públicos recursivos\” que dão sustentação ao processo.
Reticulação: da cristalografia e do pensamento de G.Simondon, mas também dos estudos de inovação em ciência e tecnologia. A reticulação é um processo de propagação não-linear e rizomático de uma estruturação emergente criando níveis subsequentes de estruturação de uma realidade. Quando uma prática, uma tecnologia, uma organização se reticulariza, significa que ela é capaz de tornar durável, de diferentes formas, o seu programa de ação, criando níveis crescentes de estruturação. Como efeito, ela amplia sua capacidade de determinação sobre um campo de possíveis. Ou seja, a reticulação dá maior consistência e força para seu programa de ação.
Passar do protesto à criação de arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares significa encontrar formas de organização, práticas e tecnologias adequadas ao novo contexto, capazes de traduzir, mediar e atualizar certos valores através desses dispositivos, para que sua adesão e utilização se propague através de crescente estruturação. Diante das novas formas de exercício do poder quais são as nossas tecnologias de contra-poder? Como nos organizamos, como criamos novas relações de suporte entre nossas práticas, qual é nosso economia, como cuidamos de nossa saúde coletiva, quais são as infraestruturas necessárias e como assumimos controle sobre elas? Investigar a fundo os problemas que enfrentamos, construir estratégias para a criação desses dispositivos e dos pontos-obrigatórios-de-passagem é um ótimo programa de pesquisa-ação.
Acho interessante a maneira como, aqui na Espanha, a palavra \”protótipo\” está muito presente em diferentes iniciativas de coletivos ativistas (ambientais, urbanistas, hackers, culturais etc) e como este termo é utilizado por instituições públicas e não-governamentais. Investigar e problematizar a genealogia desse termo daria uma ótima tese (lançada a sugestão). Gosto da idéia de protótipo por algumas razões, por isso comecei a utilizá-la há algum tempo para descrever algumas práticas em que estou envolvido.
Na minha experiência, se a memória estiver correta, comecei a escutar esse termo nos primeiros anos do século XXI (2003…2005?), em grupos da então chamada \”cultura digital\” (bons tempos com midiatática, submidialogia, metareciclagem, midiaindependente…). Naquele contexto, acho que a palavra vinha mesmo da turma que estava mais imersa na cultura de desenvolvedores de softwares (seja por experiência profissional ou de formação). Ali, a noção de protótipo trazia vínculos de origem com a criação de produtos ou serviços – empresarial, corporativa ou mesmo de programadores entusiastas do software livre – que deveriam ser colocados rapidamente em circulação para que pudessem ser testados e aperfeiçoados.
Ao invés de ficar desenvolvendo um produto até sua conclusão, a ideia do protótipo valorizava o inacabado e a importância da abertura para que se receber rapidamente novos inputs e melhorias, dando relevância aos modos de uso e apropriação para experimentar suas possíveis trajetórias e adequações. Em suma, ele reúne elementos que reconhecem o caráter contextual de qualquer criação. Ao mesmo tempo, a maneira como o ambiente, as infraestruturas e as relações sociais participam do arranjo que surge com o protótipo em uso é parte indissociável do próprio protótipo. Isso que parece um pequeno detalhe faz muita diferença quando exploramos algumas das implicações políticas desta concepção. Talvez por isso, o termo tenha deslizado tão facilmente para outros contextos. Farei um pequeno comentário sobre os possíveis sentidos da noção de protótipo em dois campos: (1) produção de conhecimento; (2) prática política.
(1) Prototipar como forma de conhecer
Quando a ideia de protótipo refere-se a uma prática de conhecer surgem coisas interessantes. Em primeiro lugar, significa levar a sério o fato de que todo processo de produção de conhecimento é também um ato de intervenção no mundo. Uma pesquisa que se realiza através da criação de um protótipo deve incorporar na sua análise os efeitos e as consequências do que ela está produzindo. É também uma forma de conhecer baseada na indissociabilidade teoria e prática. A noção de experiência ganha força: conheço algo que me acontece; sou partícipe e implicado com este processo de conhecer.
Ao prototipar colocamos em movimento o problema que está sob investigação. Ao fazer isso, criam-se novos problemas pelos quais somos responsáveis. Isso é interessante porque a dimensão ética de qualquer pesquisa torna-se ainda mais visível e urgente, obrigando os pesquisadores a serem mais humildes, cautelosos e lentos. Dessa forma, uma política do cuidado inscreve-se de maneira imanente ao processo de investigação e prototipagem.
Mas a noção de protótipo também pode indicar uma outra topografia entre diferentes atores envolvidos num processo de investigação. O protótipo, nos casos que acompanhamos, baseiam-se em princípios de abertura e colaboração. Isso significa que distintos saberes (indivíduos/grupos) podem ser incorporados na produção e apropriação do protótipo. Produtores, pesquisadores, usuários, leigos e experts participam de formas distintas da trajetória do protótipo. A depender das condições de participação dos distintos públicos o protótipo terá características muito diferentes.
Promover as condições de sua contínua apropriação e modificações implica portanto num outro regime de propriedade sobre o conhecimento produzido e sobre o processo: deve-se tratá-lo como um comum (commons). Por fim, essa abertura implica no reconhecimento do caráter sempre inacabado e transitório de todo processo de investigação e aprendizado.
(2) Protótipo e ação política
Quando a noção de protótipo é mobilizada por coletivos ativistas ela pode indicar outras formas de ação política, que também encontramos no repertório de alguns movimentos sociais. A realização de um protótipo envolve, primeiramente, a decisão de substituir a adesão a um projeto idealizado e acabado de um modo de vida ou sociedade futura, pela decisão de experimentar construir no aqui-agora, sempre parcialmente, aquela mudança que se deseja. Pode-se estabelecer aí uma relação com o conceito de política \”pré-figurativa\” tão presente em alguns movimentos contra-culturais (anos 60-70s) e nos movimentos alter-anti-globalização (2000\’s).
É portanto uma política do cotidiano que busca introduzir modificações nas formas de vida existentes. Quando ativistas ambientais criam, por exemplo, uma ação prototípica de uma alternativa de transporte nas cidades, ela deve ser minimamente capaz de se efetivar no mundo atual. Ou seja, trata-se de uma ação que reconhece as forças em jogo e objetiva criar uma diferença capaz de resistir e persistir. Em alguns casos, a mera percepção da possibilidade de sua efetivação gera efeitos de modificação no horizonte de expectativas. Noutros casos, a construção de um protótipo pode estar orientada para modificar as condições do ambiente em que sua produção/reprodução ocorre. Novamente, essas condições \”ambientais\” ou contextuais, são consideradas parte deste protótipo político, indicando portanto a substituição da oposição meios X fins, pela necessária combinação dos meios e fins. Por isso, essa noção de protótipo pode ser portadora de uma política imanente ou de uma política pelo \”meio\” (pelo meio, par le millieu, mesopolítica, entre outros termos).
A criação de protótipos nos \”laboratórios cidadãos\” é traduzida por Antonio Lafuente numa boa expressão: do protesto à proposta. Ou seja, ao se engajarem na produção de protótipos esses coletivos afirmam e experimentam positivamente a possibilidade de construção situada (contextualizada, implicada, parcial) de alternativas concretas para aquilo que reivindicam. Ao fazerem isso dão a ver de maneira mais clara o comum ameaçado, apropriado, e os mecanismos de reprodução social em sua micro e macro-política.
A criação de um protótipo, no contexto de uma intervenção ativista, também indica a valorização de ações práticas, em detrimento das armadilhas das escolhas excessivamente ideologizados que se descolam das condições de ação no presente. Evidentemente, toda prática é portadora de princípios e valores, mas quando deslocamos o foco para a construção de uma ação prática somos obrigados a criar soluções que tornem aquela ação possível. É portanto, um outro estado de presença corporal, onde aprendemos a pensar e praticar uma política sensível com o corpo que temos no mundo que habitamos. Em suma, indica-se uma outra concepção de mudança social.
Veja o artigo: 2016. Corsín Jiménez, Alberto & Adolfo Estalella. ‘Ethnography: a prototype.’ Ethnos, online first, DOI: 10.1080/00141844.2015.1133688. Special Issue, Obstruction and Intervention, edited by Rane Willerslev, Lotte Meinert and George Marcus. Pre-print available here