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  • Relatos febris do trabalho em saúde

    Vidas indignas de imunização

    por Danilo Pescarmona

    Início este texto com uma pequena vinheta de minha prática como psicólogo em um serviço público de Saúde Mental, destinado a pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas.

    Em meados de março deste ano, nos dirigimos à residência de um usuário – localizada em uma comunidade da Zona Oeste de São Paulo – que, na noite anterior, havia ficado um pouco mais agitado e agressivo com os familiares, em função de um possível quadro de abstinência de drogas. Em tempos de pandemia, as visitas domiciliares se tornaram mais frequentes com o objetivo de tentar diminuir a circulação de pessoas que se deslocariam até o serviço.

    Após o atendimento, o pai deste usuário – que aqui chamarei de I. – nos acompanha até o transporte próprio do serviço. Era notório a presença de inúmeras pessoas nas ruas da comunidade e sem a utilização de máscaras, tal como se fosse em um dia corriqueiro e como se desconsiderassem a determinação das autoridades políticas e sanitárias em relação a obrigatoriedade do isolamento social. Ao ver tal panorama, orientei I. sobre a importância do uso de máscaras e de álcool em gel. Ele, então, me responde: “pobre não pode pegar isso aí não, essa doença é coisa de rico”.

    Agora, vamos colocar esta situação em suspensão para retornarmos a ela em breve.

    Diante do atual momento que estamos atravessando, referente a pandemia do coronavírus, muito tem se falado. Por exemplo, de um lado, uma série de pensadores tem afirmado que o vírus abre um leque de possibilidades que poderiam romper as bases do atual modelo de governo da vida entregue ao capital que, a cada momento que passa, é mais acumulador, segregatório e violento com a imensa maioria da população que está na base social. Para estes, inclusive, o vírus é um produto deste mesmo capitalismo que, com seu funcionamento, tem provocado uma série de disfuncionalidades nos diferentes ecossistemas e que coloca em risco a existência da vida no planeta. O vírus possibilitaria, então, a reflexão sobre o modo como a condução de nossa vida está equivocado, abrindo um campo para o esboço de um novo mundo.

    Há aqueles que, em contrapartida, inserem a pandemia no contexto das crises cíclicas do capital. Por esta razão, o atual sistema econômico se fortaleceria ainda mais, produzindo uma acumulação nunca vista antes e expondo uma quantidade gigantesca de pessoas a morte; indicando, acima de tudo, a lógica de plasticidade contínua do capitalismo atual. 

    Mais do que isso, o vírus delinearia um novo modelo de gestão de trabalho – com a comodidade do home oficce, ele poderia ser estendido por mais tempo e com menores salários. Além disso, a pandemia sofisticaria as formas de controle em função da condição ainda mais premente da utilização de aparatos tecnológicos, a fim de dar conta de diversas necessidades da vida, atualmente prejudicadas pelo isolamento social. Encontros de amigos, reuniões universitárias, entre outros eventos, virariam dados, no fim das contas, facilmente disponibilizados às grandes corporações tecnológicas.

    No contexto brasileiro, especificamente, a situação parece ainda mais agravante. A quarentena é posta em segundo plano entre os mais pobres devido à luta cotidiana pela sobrevivência. Entregadores de delivery, empregadas domésticas, porteiros, seguranças e outros trabalhadores de baixa renda não têm escolha. As suas dívidas mensais – aluguéis, boletos, carnês – não serão postos em quarentena em hipótese alguma.

    A saúde pública é também um caso à parte. Sucateada há muitos anos, principalmente pelo problema histórico de financiamento, agora ela está prestes a colapsar. Insuficiência de leitos e de equipamentos – dos básicos aos mais avançados – impõem aos que estão na linha de frente (inclusive eu) um contexto de medo e de adoecimento. Colocaria, acima de tudo, o dilema que diz respeito a quem deveria ter o direito de acesso aos serviços de saúde

    Neste contexto, é falsa a ideia de que o vírus pode causar os mesmos males a todos, ou mesmo que o vírus poderia infectar a todos independentemente de quem seja. É evidente que os mais pobres serão os mais atingidos. Negros, mulheres e outras minorias receberiam de modo mais severo as consequências ainda desconhecidas do vírus. Muitos deles estarão nas estatísticas oficiais; outros, em contraposição, sequer poderão ter esta informação em seus atestados de óbitos. Serão “subnotificados”, o novo termo para designar o silenciamento de violências historicamente praticadas a determinados grupos no interior da realidade brasileira. A morte por Covid-19, acima de tudo, é um acontecimento político e as dezenas de milhares de valas abertas não nos permitirão o esquecimento!

    O coronavírus poderia então levar a biopolítica brasileira as suas últimas consequências. Esta é a modalidade do poder, definida por Foucault, capaz tanto de permitir a proliferação e a defesa da vida, quanto pela possibilidade de dizimá-la em massa. Ou como disse recentemente o dono de uma cafona – metida a gourmet – rede de lanchonetes, cuja especialidade gastronômica é pão com carne moída, o impacto causado pela morte de milhares seria mínimo se, em troca, pudéssemos salvar outros milhares, a economia e os empregos.  

    O que faz de uma vida ter o direito de continuar vivendo em detrimento de uma outra que poderia ser abandonada a própria morte, indigna de ser vivida? Para Roberto Esposito (2017), o paradigma da imunização responderia a questão acima delineada. Em linhas gerais, a imunização diz respeito à indissociável relação entre política e vida, sendo a política toda ação disposta quando o que está em questão é a conservação da vida mediante aquisição de mecanismos de defesa. Tal como na lógica médica busca-se a imunização de um corpo a partir da inserção do agente patológico que pode ameaçá-lo para que desta forma seja viável a sua proteção com a aquisição de mecanismos de defesa, a fim de que seja evitado o seu desenvolvimento natural.

    Ainda para o filósofo italiano, este paradigma é concomitante ao momento histórico em que a vida precisou passar por processos de individuação em contraposição a uma vida comunitária exposta a uma diversidade de riscos. Um destes dispositivos de individuação é a propriedade[1]. Sumariamente, é pela posse – de seu corpo, de suas atividades, de seu trabalho, de seus bens – que o sujeito se constitui, necessitando, desse modo que sua vida e tudo aquilo que o cerca sejam passíveis de proteção, de imunização. Em outras palavras, a propriedade é a possibilidade do homem dispor das coisas que são necessárias para a preservação da sua vida.

    Por esta razão é que os não proprietários são aqueles que terão suas vidas mais expostas a morte. I., morador da periferia, sabe que não pode pegar a Covid-19, pois sua vida e a de seus vizinhos são indignas de imunização. Adquirir a doença é correr o risco da morte, mas também de criar anticorpos, de se defender. Mas “isso é coisa de rico”. Já I. sabe que não terá tempo nem meios de acesso aos serviços de saúde, medicamentos e seu corpo estará indefeso, entregue à morte.

    I. sabe o que é biopolítica.

    ESPOSITO, R.Bios: biopolítica e filosofia. Tradução de Wander Melo Miranda. 1ª edição, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.

    [1] Os outros são a soberania e a liberdade que, para este especificamente, não serão categorias de análise.


    tempestades no trabalho em saúde em tempos de covid-19

    por Henrique Ribeiro

    Me pego durante a noite no recolhimento de onde moro, agitado, pesquisando em meu smartphone o que seria uma \”citocina\”. Durante o dia enquanto estava na UBS ( unidade básica de saúde) onde trabalho assistia de relance o noticiário vespertino televisivo sobre o coronavírus quando um dos convidados do programa menciona a palavra citocina e a elenca como uma agente importante no processo da doença ocasionado pelo vírus. O convidado era um infectologista que buscou resumidamente explicar a motivação de falarmos sobre um grupo de risco. Existem diversos tipos de citocinas com funções variadas sendo papel delas atuar na regulação do mecanismo inflamatório infeccioso do organismo.

    Há um momento pró-inflamatório em que se busca destruir moléculas maléficas, no caso as do vírus, e com antiinflamatório busca-se controlar a resposta da defesa imunológica para que esta não acarrete mais malefícios do que benefícios ao corpo humano. Pois bem, não apenas em infecções se encontram as inflamações e as citocinas. Doenças como hipertensão, diabetes mellitus dentre outras de caráter crônico são influenciadas pelo mecanismo citocínico apresentando um desequilíbrio entre as respostas anti e pró. Na medida em que envelhecemos esse processo também ocorre levando a uma gradual deterioração imunológica.

    Aprendi com a breve leitura de notícias e com a fala do infectologista que a COVID-19, ao que aponta os estudos iniciais, é uma doença provocadora, em casos graves, de uma “tempestade citocínica” na qual a ação pró-inflamatória do organismo é muito mais forte do que a fornece a anti-inflamatória levando o corpo a uma síndrome respiratória. Ou seja, a trama do agente viral é causar um adoecimento pela própria defesa de nossos corpos. Dessa forma, aqueles classificados como \”grupo de risco\” podem apresentar maior suscetibilidade ao agravamento da doença uma vez que já apresentam uma relação citocínica desequilibrada.

    Volto a mim analisando o que pesquisei. A noite me parece mais tranquila pós leitura. Sei bem que em meus pensamentos não compreender ou estranhar situações e coisas me causam um mal estar. Na UBS em que trabalho cada um procura ou já exercita seus procedimentos para atenuar os impactos da pandemia em sua sanidade. Ignorar ou manter no inconsciente é uma alternativa, mas nas conversas atuais se percebe uma inclinação generalizada a buscar terapias senão agora, para o pós crise. O abalo emocional existe e se demonstra mais nítido na possibilidade dos profissionais de saúde transmitirem a doença aos familiares.

    A culpa se instaura mesmo não havendo um contágio (será que sou um caso assintomático?) agindo como uma pré indicativo de doença. Então o não contaminado está/é doente? Essa classificação típica da biomedicina mantém uma relação estreita com o que os estudos de inspiração foucaultianos nos apresentam conceitualmente como biopolítica, biopoder e governamentalidade. Nesse sentido o poder biomédico agencia nossos hábitos mantendo uma relação estreita com a economia sendo também base para formas de se viver e sentir. Ocorreu com a pandemia uma intensificação na disseminação de vídeos e mensagens com fórmulas e ingredientes para se manter a higienização e dieta alimentar preventiva ao adoecimento. O coronavírus fornece novos contornos a um processo de assujeitamento e subjetivação do qual me atentarei aos efeitos para com os trabalhadores na área da saúde sendo também abordado a reestruturação produtiva em saúde ocasionada por ela, em particular, ao que ocorre na UBS em que trabalho.  

    No que se refere a tecnopolíticas, na distinção entre tecnologias duras e relacionais dentro do arranjo sociotécnico da UBS, a COVID-19 levou a uma reestruturação produtiva uma vez que parte da força de trabalho integrante se encontra no grupo de risco e puderam se afastar do ambiente de trabalho via decreto municipal. Àqueles que se mantiveram se depararam em uma situação em que as divisões e protocolos existentes foram modificados. As consultas eletivas foram canceladas, consultórios foram repassados à ala do Pronto Atendimento na tentativa de minimização de contágio interno, as visitas domiciliares ( de suma importância na vinculação entre usuário e UBS, assim como no acompanhamento do processo saúde/doença)  de agentes comunitários foram, via decreto municipal, canceladas (em outras cidades não foram) e a campanha vacinal de influenza antecipada para ajudar na identificação de casos de coronavírus.

    Aconteceu do gerente da UBS estar de férias, por conta disso, a assistente de gestão pública da unidade assumiu a função. Dois dos cinco enfermeiros chefes se afastaram via decreto. Somente um auxiliar de enfermagem permaneceu. Dada a situação, as divisões de equipes em microáreas dentro do território se tornaram disfuncionais, os compromissos com a secretaria de saúde temporariamente modificados. Compromissos, como por exemplo, a suspensão temporária dos grupos (de insulino dependentes, de gestantes, de apoio ao cuidador dentre outros) com reuniões mensais dos usuários da UBS em que se trabalha a educação em saúde. Revogou-se a obrigatoriedade de assinar as retiradas de materiais de insumo pelo usuário da UBS sendo agora somente necessário que o trabalhador escreva no espaço indicado \”COVID-19\”. Em consonância a esse movimento a descrição do mapa diário do ACS e a do enfermeiro da família estão sendo respaldadas através do código “COVID-19”. Dessa forma, uma resposta a um email advindo da regional de saúde cobrando dados sobre um determinado trabalho se justifica, no limite, com o termo “COVID-19”.

    Os protocolos, os referenciais técnicos e administrativos e de igual forma os usuários são os instrumentais que fazem funcionar a UBS, sem estes os trabalhadores em saúde não realizam a produção em saúde. No referencial macropolítico a OMS e os Estados nacionais seguem mantendo uma relação com momentos, ora conflituosos, ora consonantes. Aos profissionais de saúde e no caso observado também servidores públicos municipais, o referencial medicinal misturado às preferências políticas partidárias e político ideológicas intensificou um clima de tensão e atrito. A não conformidade entre o executivo estadual e federal só piora.

    Para alguns, a eminente desestabilização dos sistemas de saúde prenunciava o estado de calamidade pública, para outros a situação geraria apenas polêmicas em torno do poder executivo, contudo sem força pois agora a pátria amada \”descontaminada da corrupção\” aguentaria tranquilamente uma gripezinha. Somados a situação inicial em que não se encontravam na rede EPI suficientes aos funcionários, começamos a questionar não se estávamos preparados (a sensação é que não estávamos) e o que deveríamos fazer para minimizar os danos.

    A movimentação de prevenção em saúde se tornou prevenção em UTI (não há respiradores suficientes): a governamentalidade aceita determinada quantidade de mortes com o condicional de minimizar os impactos na economia e esse discurso está reverberando sendo a vontade de muitos que se retome a “normalidade” mesmo se a situação pandêmica não evidenciar melhora. Além disso a não adoção de parte da população ao distanciamento social voluntário coloca os trabalhadores em saúde, e os da UBS, a questionar sua função na estrutura. Do que adianta a energia e esforços dispensados se o pacto não está sendo cumprido por todos?

    Há ainda um sentimento extremamente perverso que faz com que os trabalhadores em saúde não afastados experimentem algo próximo de um sentimento de inveja em relação aos que estão afastados, pois estes últimos não vivenciam, pelo mesmo não da mesma forma, a situação pandêmica. Uma inveja que leva uma pessoa a desejar ter uma doença crônica para ser encaixando no grupo de risco e não ficar na linha de frente. Por outro lado, quando um servidor portador de doença crônica se afasta contribui para uma sobrecarga daqueles que permanecerão – então serei eu, nesse momento tão crítico, que “abandonará” o meu companheiro de profissão?

    Uma outra situação contribui ao caldeirão de emoções experimentados pelos trabalhadores em saúde e está ligada ao ministério da saúde. Uma convocatória para cadastramento em um banco de dados na qual os profissionais se alistam e se sujeitam a serem chamados, se necessários, a trabalhar diretamente ao órgão onde quer que seja dentro do território brasileiro. Há um misto de sensações entre os que estão contrariados e os que aceitam o chamamento. A responsabilidade pública ligada a solidariedade social está misturada ao identitarismo nacional. Considerações como se de fato vale a pena se separar dos familiares para ir trabalhar para este governo e, por outro lado, os que se sensibilizam com o nacionalismo sentem que negar um chamamento nessa situação seria negar a pátria.                              

    Por fim, observando a micropolítica e me atentando a UBS anteriormente referenciada, os referenciais em abalo e o afastamento de parte de corpo técnico e administrativo levou a uma situação em que a construção interna se efetivou com novos pactos. De certa forma a justificativa “COVID-19” possibilitou uma abertura a uma prática em saúde coletiva mais livre. Aos que adotam a estratégia saúde da família, a vinculação com a população está sendo maior assim como a perpetuação das novas regras e condicionalidades necessárias, respeitando evidentemente o princípio da universalidade e solidariedade social. Foi nítido também a dificuldade daqueles que não possuem acompanhamento via Saúde da Família em entenderam as modificações para a ala de emergência e da cobertura vacinal. Passada as primeiras semanas e a comprovação da efetividade das medidas, a sensação coletiva que fica (diferente da inicial) é a de que podemos lidar com a pandemia apesar dos referenciais técnicos e administrativos. Para além do que a governamentalidade possa assujeitar e, no limite da situação, aceitar muitas mortes, existem aqueles dentre os trabalhadores da saúde que recusam essa lógica e isso tende a se tornar mais nítido. A morte faz parte da nossa vivência. Tem lógica e significado sendo sentida de diversas formas por cada um, mas àquela justificada pela razão de “o país não pode parar”…essa não se justifica.       

  • O Devir Negro do Comum: reflexões a partir dos desafios do SUS

    Tadeu de Paula Souza é professor do Departamento de Saúde Coletiva da UFRGS e coordenador adjunto da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da ABRASCO. Autor do livro – Estado e Sujeito: a saúde entre a micro e macropolítica…de drogas

    Foto: Peter Ilicciev

    O XII Congresso da ABRASCO foi, certamente, um marco na história da saúde coletiva e expressou aspectos do que pretendo organizar nessa breve fala. O desafio que tomei como urgência para se problematizar alguns impasses do SUS foi o de pensar o comum a partir da perspectiva de lutas, em especial na perspectiva da negritude. Trata-se de um ensaio que embasou minha fala na mesa “Direito a saúde, direito a uma vida comum: novas formas de lutar em tempo de neoliberalismo” que reverberou com uma certa vibe do congresso. Mesa que tive o prazer de compartilhar com Henrique Parra, Henrique Sater e Alana Moraes.

    Do mesmo modo que o comunismo não foi um regime político do comum o seu fim não encerrou as lutas do comum. As lutas altermundialistas do final do século XX e início do século XXI apontam para um ciclo de lutas que se conectam em torno da defesa do comum: a revolta de Seattle contra o Fórum Econômico Mundial no final da década de 1990, a luta contra a privatização da água em Cochabamba no início do século XX na Bolívia, o Fórum Social Mundial de Porto Alegre em 2001 e mais recentemente os movimentos do Occupy, Primavera Árabe e as jornadas de junho de 2013 no Brasil. São movimentos em escala global que tem recolocado o conceito de comum como princípio político, por ser potencialmente um conector de lutas contra o neoliberalismo. Potencialmente, pois todos esses movimentos têm nuances que não necessariamente rumam a uma política do comum. Eis nosso desafio!

    Esse ciclo de lutas lança o comum como princípio político, mas também como critério que nos permite pensar as lutas e as políticas públicas a partir do comum. O esforço de pensar o público e, em especial o SUS a partir do comum, é uma estratégia política vital, pois como veremos nem sempre o público coincide com o comum. O ataque ao SUS, que com a EC 95 pretende ser fatal, vem dentro de um ciclo de ataques as nossas reservas de comum em escala global. Aquífero Guarani, terras indígenas e quilombolas, pré-sal, a biodiversidade das faunas e floras brasileiras, os direitos trabalhistas se tornaram alvo de uma política da rapinagem. Esse ciclo de ataque, que alguns autores enxergam como um novo ciclo mundial de acumulação primitiva em escala ostensiva, tem gerado a necessidade de revisitar o conceito de comum e lança-lo numa perspectiva revolucionária. Pensar o comum como um princípio político revolucionário porque recoloca a vida social fundada naquilo que não é passível de ser apropriável e desse modo refundar as relações sociais a partir do comum!

    Como critério para se pensar o público o comum traça uma perspectiva para analisar uma radicalidade possível ainda a ser exercida no SUS. Existem muitos problemas e insuficiências macroestruturais do SUS, como o eterno tema do financiamento, que tende a ser colocado como um problema que escapa a governabilidade de qualquer ator político constituído. Tendo a acreditar que este problema decorre de outro, de uma tarefa ainda a ser feita na esfera do comum. Uma tarefa não só do SUS, mas do próprio campo da esquerda institucional. Uma tarefa que nesses 30 anos de SUS ainda não foi exercida numa radicalidade possível. Tal tarefa ainda não realizada que só será possível se adotarmos um perspectivismo do sul do mundo para pensar o comum, criando assim um contra-ponto com a perspectiva eurocêntrica do comum. Mas de que comum falamos?

    O DEVIR DO CONCEITO

    A história do conceito do comum não constitui uma linearidade, nem mesmo uma história interconectada. Os diferentes sentidos que emergem de diferentes impulsos históricos, com bifurcações e meandros que não constituem uma totalidade: assim percorrem Dardot e Laval na arqueologia do conceito de comum. A etimologia da palavra comum (co-munus) dá uma pista: munus designa atividade de reciprocidade, de dádiva mútua. Comum estaria relacionado a um agir pautado num compromisso com uma coletividade. Além de sua origem etimológica os autores apontam quatro impulsos do conceito de comum.

    Um primeiro impulso moral e teológico provém do cristianismo: o “bem comum” ou utilidade comum (no singular) indica ao mesmo tempo uma finalidade última das instituições e um princípio moral do homem. As instituições e o homem estão destinados à procura do bem comum. Esse sentido de comum, embora não tenha hoje uma extensa penetração na vida social, não se dissolveu e segue sendo um lugar comum do comum, sua matriz moral-religiosa.

    Um segundo impulso que surge no direito romano emerge de um campo de disputa em torno da demarcação de bens apropriáveis e não apropriáveis. Os “bens comuns” (no plural) como a água, o ar, a terra são tratados como campos de disputa mediada pelo direito que demarca uma distinção entre a res publica, a res nullis. Enquanto a res publica indica o que “pertence a todos” e resguardado pela administração estatal a res nullis refere-se ao universo daquilo que não pertence a ninguém porque ninguém se apossou. Nesse ínterim estaria a res comunnis que indicaria aquilo que não é passível de ser apropriado, portanto difícil de ser situado, pelo menos no direito romano, na esfera do jogo institucional. A imprecisão do direito da res comunnis, ou bens comuns, deixou desde o império Romano, a possibilidade aberta da res comunnis ser considerada res nullis, uma vez que no direito Romano a res comunnis não formar exatamente uma categoria jurídica. O comum como “coisa” (res) se recoloca hoje nas lutas pelos direitos dos bens comuns, incluindo aí a linguagem, o conhecimento, o ciberespaço e o espaço extra-atmosférico.

    Aqui tem um problema central para o problema do comum colocado por Dardor e Laval, pois até hoje não existe uma jurisdição clara para aquilo que não é apropriável. Os bens comuns ocupam um lugar impreciso de quase não direito, uma vez que no ocidente e em especial na modernidade, o direito se ergueu em grande medida a partir da propriedade enquanto direito natural.

    Um terceiro impulso, filosófico, associa o comum ao universal, seja para depreciá-lo ou para equivalê-lo ao universal. A história moderna da filosofia ocidental, de Descartes a Kant, o comum ora expressa o que é ordinário e trivial ora designa o transcendental que iguala todos os seres humanos, uma faculdade ou uma essência.

    Um quarto impulso do comum vem de diferentes lutas e movimentos sociais da modernidade e funda o “comum” como princípio político ou como prefere Hardt e Negri, como carne da democracia. Um impulso que apresentaremos em quatro momentos de lutas contra a mega-máquina de captura do comum: os movimentos republicanos contra o absolutismo no século XVII, o movimento proletário do século XIX, os movimento contra culturais do século XX e os movimentos altermundialistas no início do século XXI. Esses quatro momentos de luta do comum estão relacionados a diferentes estágios de desenvolvimento do capitalismo que expressam quatro formas principais de apropriação do comum: a representação, a expropriação, a exploração e a normalização. Quatro impulsos do comum que emergem de estratégias de resistência à apropriação do comum pelo capital.

    A MEGA MAQUINA DE CAPTURA DO COMUM

    O primeiro problema, o da representação foi mais diretamente enfrentado pelo filósofo Espinosa, numa certa aliança entre o pensamento subversivo e as lutas republicanas do século XVII, as lutas da ‘multidão’. Positivando o conceito político de multidão o pensamento de Espinosa trava um confronto direto ao pensamento político e teológico dominante, em especial o Leviatã de Hobbes.

    Embora Hobbes considere a multidão como uma realidade política é sempre sob o signo da barbárie. A multidão existe como aquilo que deve ser governado, pois somente o que é uno pode governar. A heterogeneidade, as singularidades, em suma a carne da multidão é sempre irracional e estaria fadada ao caos e a guerra. A multidão comparece na condição daquilo que deve ser governada e unificada a partir de um governo que a representa, o soberano, o Estado. A possibilidade de paz, da ordem e do progresso depende de um contrato social entre pessoas livres que por decidem transferir seu poder para uma instância superior que as representam. A representação estabelece e estabiliza a relação multidão/governo através da forma povo/soberano.

    Em ‘Tratado Político’ Espinosa afirma que não é possível um indivíduo transferir seu poder a outrem, pois isso seria a própria morte. O poder individual será sempre exercido em alguma esfera da vida. O contrato social não se dá mediante uma decisão livre e espontânea de renúncia, mas a partir de mecanismos de coerção que tendem a homogeneizar a multidão. A representação como mecanismo política produz uma separação entre a potência da multidão e o Estado. Doravante o público se confunde a administração Estatal, situado numa esfera distante e separada do poder da multidão. Contrário a esse modelo Espinosa vai propor um governo que não separa povo e poder, poder e multidão. Sua obra inconclusa, Tratado Político, deixou em aberto justamente o ultimo capítulo em que traria uma forma de governo democrático. Após abordar as formas de governo monarca e aristocrático, Espinosa caminhava para apresentar uma forma de governo da multidão, quando ainda jovem morre após anos de perseguição. Seria a forma de governo democrático uma forma de encontro entre os conceitos de comum e multidão? Não seria justamente essa junção inacabada que Negri e Hardt, em “Multidão” e “Bem-estar Comum” vão buscar traçar já num contexto das lutas altermundialistas do século XXI? O comum como uma modalidade política da multidão, em que as diferentes singularidades possam ganhar expressão e institucionalidade política. Deixemos essa questão mais para adiante.

    Os impasses da representação são retomados por Foucault quando este analisa a racionalidade liberal. Pois veremos como coube aos liberais completar a equação inacabada do sujeito moderno proposto por Hobbes. Com John Locke e Adam Smith surge não um sujeito do direito pautado no contrato social e na renúncia, mas o sujeito que se realiza na medida em que tem interesses, interesses egoístas em que o auto empreendimento se torna a verdadeira mola propulsora da vida social. O poder individual não foi transferido para o Estado, ele foi bloqueado pelos mecanismos políticos da representação para ser investido na esfera privada. O sujeito moderno se torna um sujeito bifaceado: um sujeito da renuncia na esfera pública e um sujeito egoísta e competitivo da esfera privada. O sujeito da renúncia da esfera pública, que passa a atuar de forma limitada a partir da representação política, encontra a possibilidade de realização e exercício de seu poder na esfera privado, no mercado. A moral do ‘bem comum’ como finalidade do homem se vê agora lançada a uma esfera bem específica da vida, a espiritual. O homem universal que a modernidade quer fundar a ferro, fogo e sangue é ao mesmo tempo o homem paranoico “lobo do próprio homem”, que necessita de uma mediação política transcendente e o homem essencialmente egoísta, que necessita da concorrência para se realizar na esfera social. Essa natureza humana que se imporá como universal, marca o momento inaugural da braquitude como estética, ética e política do capitalismo, derivando em um amplo e longo processo de expropriação e exploração do comum em escala global.

    A braquitude que funda um homem universalmente paranoide e egoísta constitui elemento indispensáveis para se compreender o Estado Moderno como mega-máquina capitalista de captura de toda forma de comum. A subjetividade paranoide e egoísta institui uma violenta barreira para se pensar um sujeito da solidariedade e do compromisso coletivo. Se somos essencialmente lobos de si e universalmente egoístas, o comum não tem qualquer serventia ou viabilidade política e institucional.

    COMUM E DESIGUALDADE

    Não é para menos que para Marx o direito do comum que se quer fundar é um que seja formulado a partir de outro universal, um universal que não se fundamenta numa suposta natureza humana, mas um universal historicamente constituído, o universal da pobreza. Das lutas contra a expropriação e exploração emerge um novo campo para o comum. Aqui Marx se opõe a toda uma tradição do direito inglês como direito comum (ComumLaw) como um direito consuetudinário, ou seja, que surge dos costumes e dos hábitos coletivos. Marx faz questão de diferenciar os costumes dos privilegiados e os costumes dos pobres. É toda uma reflexão que gira em torno do direito dos pobres colherem os galhos caídos das árvores no chão, fonte de grandes debates e reflexões do jovem Marx. Os cercamentos dos ‘comunners’ deixaria ainda em aberto a possibilidade do hábito de recolher galhos caídos nas florestas um direito do comum?

    Embora seja um costume secular, Marx vê na criminalização desse costume um Estado a serviço dos interesses dos grandes proprietários e um direito comum que se constitui sempre a partir dos costumes e hábitos dos privilegiados. Será, doravante, na constituição das lutas de classes que o comum se vê lançado para fora do direito consuetudinário dos privilegiados para se tornar um objetivo político dos explorados. Somente a partir das lutas contra a expropriação e a exploração que o comum pode se erguer contra um modo de vida que se funda na propriedade, na concorrência e no individualismo.

    Trata-se de um impulso que, com todos os meandros impossíveis de serem abordados aqui, levou a luta de classes rumo aos diferentes destinos do comum no início do século XX. Principalmente ao trágico regime comunista em que o Estado se confunde com o próprio partido que se volta contra todo modo de exercício coletivo e descentralizado de poder. Por outro lado, essas lutas produziram um grande legado e uma importante reserva de comum em torno de novos direitos do comum que emergiram das lutas, em especial na Europa ocidental. As lutas sociais como fonte de criação de direitos do comum refunda um sentido de público que não se confunde e não se encerra no Estado. Se no seio da Europa foi assim que a luta de classes situou o comum como um princípio político que não se nasce do seio do Estado, mas das lutas e mobilizações dos marginalizados, em escala mundial ele precisa ganhar uma perspectiva que não se separa do problema geral do racismo.

    O capitalismo movido pela racionalidade liberal controlou os movimentos da multidão a partir da repartição em dois eixos: um material e um imaterial – uma separação da multidão entre uma minoria que tem e uma minoria que não tem: uma separação desigual dos bens material, criando uma massa de desapropriados. Processo esse que sempre veio associado a uma segunda separação: entre quem é e quem não é, uma repartição desigual entre singularidades ditas normais e singularidades anormais. Agora é possível retomar as quatro formas de apropriação do comum e como elas se articulam. 1) a representação que separa o poder da multidão, como uma forma de organização política a partir do contrato social pautado na renuncia acabou por se tornar um modo de perpetuação de um mesmo tipo político: o homem branco hetero de classes privilegiadas. 2) A expropriação dos bens comuns a partir do processo que Marx chamou de acumulação primitiva que separa o trabalhador dos meios de produção comunais, em escala mundial instituiu o Negro como signo de anormalidade e destino da pobreza; 3) a exploração que se efetua com a alienação na medida em que separa os trabalhadores no interior da fábrica transformando a produção comum produzido em mais valida; 4) os processos de normalização analisadas por Canguilhem, Foucault que subdivide a multidão e separa o normal do anormal, tendo sempre um foco e um peso especifico para negros, mulheres e gays. As diferentes singularidades se encontram desse modo cindidas e barradas de caminhar em direção ao comum.

    A longa marcha do movimento operário europeus no antes e pós-grandes guerra foi um processo de constituição de reservas de comum: direitos sociais e humanos, políticas públicas, ampliação da participação e inclusão de grupos excluídos na esfera política. Esses acúmulos produziram algumas aberturas que foram desembocar em novos movimentos na década de 1960. Momento em que é possível perceber uma diferença entre os rumos dos questionamentos entre intelectuais europeus e os movimentos de intelectuais negros, especialmente nas Américas: uma revisão da história capitalista a partir da perspectiva de uma negritude, nos termos defendidos por Fanon. Se Negro é o nome dado ao europeu para determinar um lugar de não humano, negritude é o termo que demarca uma apropriação em torno das lutas por liberdade, justiça e direitos dos expropriados e descendentes dos escravizados de África.

    COMUM E DIFERENÇA

    No documentário sobre maio de 68 – “No intenso agora”- o diretor Moreira Sales é preciso ao atentar que nas cenas recuperadas das ruas de Paris se vê poucos negros e nas raras cenas aparecem sempre num segundo plano.

    Franz Fanon, Angela Davis e mais recentemente Achille Mbembe não deixam passar em branco que foi sempre sobre a denominação ‘NEGRO’ imposta pelos brancos que a pilhagem, o roubo de terras e riquezas e o trabalho forçado se legitimaram e assim criaram as condições para o desenvolvimento do capitalismo. Embora a acumulação primitiva e a exploração tenham ocorrido no interior da Europa foi sobre a África e as Américas que sua faceta genocida deixaram traumas profundos ainda não curados. O Negro se torna a um só tempo marcador de pobreza e de anormalidade. A raça como signo de anormalidade e a pobreza como signo racial geram um novo significante: da pobreza como fruto de uma anormalidade genética, a pobreza como origem e destino de uma raça inferior.

    Se no centro do capital as tecnologias de subjetivação operaram através de dispositivos sofisticados e sutis como bem analisa quase toda obra de Foucalt, na periferia do capital esse processo se deu a partir do extermínio de todo modo de vida que não seguia a regra da braquitude. A confirmação de que o humano é essencialmente egoísta e competitivo se deu através do extermínio de toda etnia que não confirmava essa regra.

    Junto a esses pensadores saltamos para uma terceira cena do comum, a partir de grupos que foram silenciados durante séculos, por não serem até então incluídos como humanos: as mulheres e os negros. A década de 1960 marca o momento em que se diz: não só existe desigualdade social como ela é ainda mais aguda entre negros e mulheres, e especialmente mais grave entre mulheres negras. As diferenças de gênero e de raça e seus processos de subjetivação são colocadas como estruturante das desigualdades sociais. Sobre a necessidade de afirmação das diferenças que foram sujeitadas, criminalizadas, anuladas e patologizadas que um novo grito do comum se faz ouvir. Será no pensamento interseccional emergente, especialmente de negros e feministas que novos territórios identitários traçam uma nova perspectiva política do comum e das lutas de classe.

    Desde então tem havido um esforço com parciais sucessos, mas sempre violentamente paralisado, um esforço de não separar as estratégias de dominação das estratégias de subjetivação. Foi nesse momento da história de lutas que o neoliberal comparece como uma nova racionalidade e reação a nova produção do comum. O extermínio das principais lideranças do movimento negro nos EUA se agenciou gradativamente a uma nova racionalidade de governo. Em 1971 a fundação Rockefeller financia um encontro para discutir as razões das revoltas dos anos 60 e pensar caminhos para o futuro. O relatório indica que o problema dos anos 60 foi excesso de democracia, lê-se: participação de negros e mulheres na arena político-institucional. Com Reagan se inicia a política da “Economia Livre e Estado forte” que no âmbito da segurança interna se intensificam o extermínio das principais lideranças do movimento negro e criminalização dos negros. Na esfera mundial entra em cena o pacote neoliberal, que na América Latina se deu pelas portas arrombadas pelas ditaduras militares.

    O Brasil, de breve período democrático, não consolidou instituições democráticas capazes de se moldar e incluir as novas demandas da multidão expressas pelos movimentos do Cinema Novo, Tropicalismo, movimento feminista, movimento negro e intensificação dos ideais socialistas. A luta contra a ditadura tem seu mais radical expoente o negro baiano Mariguela, que assim como os negros norte-amaricanos morreram assassinados pelo Estado. Ditadura militar no Brasil, democracia nos EUA: regimes políticos distintos conectados por uma mesma racionalidade neoliberal que resultam em mesmo destino aos negros. O neoliberalismo encontrou na abertura lenta e gradual as possibilidades de manter um estado de exceção que através da Polícia Militar segue a exterminar negros pobres das periferias. A década de 90 marcaria mais um violento passo na destruição das proteções do comum.

    O devir negro do mundo e o devir negritude do comum

    O problema atual do neoliberalismo parece recolocar a dinâmica da acumulação primitiva do capital novamente na centralidade dos sistemas financeiro internacional. Ao contrário de Marx, Rosa Luxemburgo via a acumulação primitiva não como uma etapa do capitalismo, mas como um processo central e coextensivo ao capitalismo. O capitalismo vai sempre precisar expropriar, seja nas periferias do capital, seja criando zonas de instabilidade no interior dos estados capitalistas. Essa onda de expropriação generalizada que se intensifica nos anos 90 e que se intensificou ainda mais depois da crise de 2008, tem gerado um movimento que Mbembe denominou de um devir-negro do mundo. Se o negro foi o modo como os brancos nomearam os povos expropriados e escravizados, agora tal realidade se apresenta a toda humanidade numa divisão entre os 1% e o restante de toda a humanidade: uma necropolítica.

    Tal problema vital impõe o compromisso de pensar uma via do comum que seja ele mesmo restituidor e reparador, no sentido clinico-politico do qual falam Fanos e Mbembe. Contra um devir-negro do mundo existe também um devir negritude do comum, um devir provocado pelos movimentos negros que desponta uma potência produtora do comum que deve inexoravelmente passar pela questão da restituição e reparação.

    Aqui voltamos ao ponto de partida desse ensaio. Se existe uma tarefa a ser feita no SUS, como efetivação de uma política pública pautada no comum, é a tarefa de inclusão do comum pela expressão da negritude. Não será possível repensar um SUS universal que não passe pela produção do comum, assim como não é possível produzir um comum que não seja pela abertura a um protagonismo dos afrodescendentes. Aqui tem se colocado um certo impasse para a esquerda, tanto partidário-institucional quanto no campo intelectual.

    Esse impasse tem sido evidenciado pelo estranhamento e critica de parte dos intelectuais aos movimentos ‘identitários’ negros. Tem sido lugar comum os intelectuais brancos acusarem esses movimentos de se fecharem a composição sendo, portanto, uma barreira ao comum, um fechamento à diferença. Entretanto, a possibilidade de um negro se diferenciar da determinação subjetiva que o branco lhe impôs está muito mais acessível no encontro com outros negros do que com brancos. Trata-se de um devir negritude do comum nos termos colocados pela intelectual negra Neusa Santos Souza em ‘Torna-se Negro’. Do mesmo modo as mulheres entre si, e os gays entre si, e as trans entre si. Primeiro é necessário diferenciar-se da determinação heteronormativa, misógina e racista no encontro com o semelhante. A aliança constitutiva de um devir comum das diferenças sujeitadas pode produzir acumulação de potencia para equivocar o lugar do home branco hetero e criação de um si negro. Isoladas, essas diferenças não ganharão expressão institucional pois não será por livre e espontânea vontade que o branco vai ceder o seu lugar de poder. Logo, não se trata de esperar que esses grupos identitários se abram, mas que esses movimentos identitários produzam uma abertura no movimento identitário dos homens brancos heteros cis. O mundo branco deve se abrir rumo a dissolvência e não o contrário. O suposto lugar de neutralidade ou de universalidade do homem branco revela-se um lugar identitário hegemônico.

    De modo abstrato e generalizante os intelectuais europeus pensam na produção do comum como composição das diferenças sem definir claramente uma perspectiva. Fato que pode conduzir a um certo relativismo ou mesmo demarcar uma perspectiva transcendental do comum. Esse é tema que requereria mais tempo e dedicação para se analisar, mas existe uma apropriação desse discurso do comum que enxerga de modo abstrato uma potência política no encontro entre diferentes. Essa apropriação do encontro com a diferença enquanto uma aposta ético-política expressa um lugar de fala do homem branco. Pois é certo que o encontro com outros não brancos abre uma possibilidade do homem branco hetero se diferenciar do seu lugar de poder. Já para as subjetividades e modos de vida marginalizados, criminalizados e patologizados essa possibilidade está mais aberta no encontro com o seu semelhante. O mais importante da constituição do comum está no processo de diferenciação do que num encontro generalizado das diferenças. Nesse sentido há senso estratégico em curso dos movimentos identitários se fortalecerem, pois tem uma perspectiva bem situada. E pode haver aqui um equivoco de leitura de quem não se coloca numa perspectiva marginalizada, mas fala de um lugar de privilégio.

    Existe um objetivo dos movimentos identitários de se chegar a um estágio em que essas identidades não sejam mais necessárias, porém isso só irá acontecer quando o lugar identitário do branco, como medida e verdade, for dissolvido. Há, portanto, um desejo de comum, uma dissolução da raça como medida e critério que passa por um devir-negritude do comum. A identidade, o encontro com o semelhante como signo de potência se expressa aqui como território de luta, estratégia, meio de passagem, criação de abertura num mundo fechado.

    Se o SUS é uma política do comum, o é ainda de forma parcial. Nossas instituições do SUS ainda são de domínio de homens brancos, tanto das instituições acadêmicas quanto das instituições de saúde. Os negros seguem a compor o grupo que sofre mais violência institucional no SUS e são os negros que seguem morrendo mais e adoecendo mais apesar do SUS. Na sua dimensão de política de Estado, o SUS reproduz o modelo da representação em que o povo, de maioria negra, não se vê representado nas suas instituições. Nossa tarefa de democratizar as instituições de saúde implica numa atenção real a participação de negros e mulheres mais especialmente de mulheres negras, sem o qual o SUS se torna mais uma instituição em que o negro participa sempre na condição de passivo e assujeitado. Num país de maioria pobre negra como pode o SUS ter sustentação social que não seja por um projeto comum que passe centralmente pela negritude? Tarefa ainda não realizada que nos lança a um porvir do SUS pautado num comum efetivamente inclusivo.

    Um SUS que rume ao encontro do que bem aponta Djamila Ribeiro na aposta de uma nova humanidade que seja refundada desse “outro do outro”: a mulher negra. Que desse ventre originário e mítico, mas também ético e político, retornemos a uma ancestralidade para propor outro futuro possível que não separe o gesto político do gesto do amor! Ou como nos canta o rapper Rincon Sapiência: “os pretos e as pretas estão se amando”!

  • Saúde coletiva e tecnopolíticas do comum

    Henrique Z.M. Parra

     

    texto apresentado no 12° Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, no Rio de Janeiro, 27 de julho de 2018 (*)

     

    Foto: George Magaraia

     

    Recebi o convite para participar do Congresso da Abrasco como uma boa oportunidade para compartilhar com vocês alguns problemas que venho investigando no campo dos estudos sociais em ciência e tecnologia. Não sou da área da saúde e nem tenho a saúde como um tema/objeto específico de trabalho. No entanto, penso que este encontro é o início de um novo diálogo e de parcerias de trabalho. Em parte porque acredito que estamos enfrentando problemas semelhantes (na educação, na ciência e no desenvolvimento tecnológico), mas também porque na área da saúde muitos dos problemas que vamos tratar aqui adquirem uma convergência e interdependência muito densa.

    Mas também, outra razão que me aproxima das preocupações da Abrasco é a possibilidade de tomarmos a Saúde como um Comum e aí, problematizarmos quais poderiam ser as estratégias, ações, normas, protocolos, infraestruturas que dão forma à instituição (no sentido de ação instituinte) da Saúde como um Comum.

    Quais seriam as formas desses direitos e institucionalidades que dariam existência e sustentação à Saúde como um Comum? Como resistir, portanto, às dinâmicas neoliberais (micro, meso e macropolítica)? Essa é uma grande pergunta que dá forma a um exaustivo programa de pesquisa e de práticas.

    Mais especificamente, sob o guarda-chuva dessa ampla questão, tenho investigando algumas experiências (que denominamos de laboratórios cidadãos ou laboratórios de prototipado) onde este problema é enfrentado com recortes muito limitados. O que me interessa nessas experiências é a forma de enfrentamento dessas questões. Nos laboratórios constitui-se uma comunidade de afetados (ou uma comunidade de atores co-implicados) em torno de um problema que emerge diante da ameaça de destruição de um comum. Em seguida, o problema é investigado, adensado pelas distintas perspectivas (saberes incorporados e situados) dos atores, através de um esforço de criação de um protótipo, um artefato ou um dispositivo que contribua para dar um melhor entendimento e tangibilidade sobre os mecanismos de produção e sustentação deste Comum ameaçado.

    E no âmbito dessas iniciativas, o meu interesse é mais especificamente por aquelas experiências que estão envolvidas com a criação de arranjos sociotécnicos orientados para a produção do Comum. Dito de outra forma, “tecnopolíticas do comum”.

    Sinteticamente, o argumento da minha exposição será a seguinte:

    1. Caraterização de uma experiência política de assombro: não só no Brasil, mas em diversos países, experienciamos uma profunda crise institucional e das políticas sociais. Há um acelerado desmanche dos direitos sociais e o fortalecimento de um Estado-Empresa onde o público-estatal é cada vez mais indistinto do privado-corporativo. A lei, as instituições, os canais de representação parecem insuficientes para responder à atual configuração dos conflitos de uma perspectiva democrática (falamos agora em democracia autoritária, democracia securitária, normalização do estado de exceção, entre outros…).

    2. Dentro deste processo interesso-me por uma dinâmica de deslizamento nos mecanismos de exércicio do poder e nas formas de orientação da ação social, que se deslocam de uma orientação por valores, normas e leis, para uma forma de determinação/orientação que podemos denominar “tecnopolítica”. São as técnicas, protocolos, infraestruturas, procedimentos, tecnologias diversas através das quais conduzimos nosso cotidiano e se realizamos, de forma imanente, as formas de vida que elas propagam.

    3. Investigar a maneira como alguns arranjos sociotécnicos (dispositivos, aparatos e tecnologias utilizadas por humanos) participam da mudança social e abordam o problema da escalabilidade de outra forma. Um desafio que temos (na educação, saúde etc) quando pensamos numa política pública é o de encontrar formas de transpor uma iniciativa de pequena escala para uma outra escala. Todavia, ao invés de pensar em como transpor escalas (do micro para o macropolítico), assumo um caminho alternativo: como pequenos dispositivos através da recursividade e reticulação vão constituindo longos arranjos sociotécnicos.

    Ao pensar a produção do Comum por essa perspectiva, minha hipótese é que podemos encontrar estratégias complementares de luta e de instituição de novas formas de vida.

    ***

    O Comum, no sentido que estamos utilizando aqui (e inspiro-me sobretudo no trabalho de Antonio Lafuente), diz respeito à algo que é sempre produzido entre todos. Atualmente, são muitos os sentidos que podem ser atribuídos ao Comum e há uma vasta literatura sobre isso (link para uma apresentação onde discorro especificamente sobre este tema).

    O ar que respiramos, a cultura, a experiência de urbanidade, o cuidado na reprodução da vida, a escuridão da noite que permite ver as estrelas, o conhecimento, a saúde são possíveis exemplos desse Comum.

    Frequentemente este Comum só emerge, só aparece quando ele se encontra ameaçado. Quando o ar que respiramos se torna poluído, um Comum (a qualidade e portanto a participação do ar em nossa saúde) foi destruído por formas de uso que o degrada. Em termos econômicos, formas de uso e apropriação exclusiva que externalizam os efeitos de sua utilização. O Comum tem portanto uma dimensão não codificada, não formalizada, não essencialista, tácita e relacional, mas que é fundamental à produção e sustenção da vida. Essa paradoxal invisibilidade e presença constitutiva do Comum em nossas vidas é simultaneamente sua maior potência e ao mesmo tempo sua maior fragilidade.

    É neste sentido que o problema do “Comum” não pode ser separado (como bem descreveu Ricardo Teixeira) de um problema da “percepção do Comum”. Por isso, a forma do Comum transitar entre o intangível e o sensível depende de um regime de sensibilidades que dá forma a uma Política, onde as dimensões afetivas-culturais-cognitivas-econômicas são indissociáveis.

    Como percebemos que somos co-partícipes na produção do Comum? Quais as estratégias, práticas, tecnologias, infraestruturas que dão forma a essa experiência de co-implicação na produção do comum?

    Para a Abrasco é evidente que a saúde é um problema coletivo. Não há saúde individual sem saúde coletiva. Parte do conflito histórico e atual, em torno dos direitos à saúde, dá-se pelas dinâmicas que procuram submeter a Saúde a dinâmicas individualizantes (em termos dos modos de subjetivação, na forma como nos constituímos e nos relacionamos com nossa da saúde) e privatizantes (em termos das formas de codificação, mercantilização e regulação social). Mas falar em termos do “Comum” significa transbordar a dicotomia público-privado; humano-não-humano. Ele é uma terceira margem que não está em oposição nem ao público, nem ao privado. O Comum convive e apoia-se tanto no público como no privado, assim como ele se realiza com os humanos e não-humanos (objetos, recursos naturais, artefatos tecnológicos).

    ***

    Retorno então ao tema mais específico das “tecnopolíticas da produção do comum” para indicar 3 eixos de questões que me levam a eleger este recorte como forma de criação e resistência.

    1. Como explicar isso que reconhecemos como uma rápida erosão de conquistas duramente construídas? Como explicar essa intensificação, aceleração, austúcia nos processos de desmanche dos direitos sociais? Isso é sinal de uma fragilidade institucional ou baixa qualidade democrática de nossas instituições? É sinal da precariedade do nosso marco regulatório? Ou é algo que convive e integra desde muito tempo a produção do atual regime de governo, mas que agora adquire novos contornos? Quais são as continuidades e rupturas?

    Neste momento, é fundamental identificar quais são as práticas, as áreas da saúde que estão sendo capazes de resistir e persistir na produção da Saúde como um Comum. Ao longo da história, o Comum e as comunidades que o produzem tem aprendido a sobreviver a diversas investidas que procuram destruí-lo ou submetê-lo a regimes de apropriação e expropriação. Ao mesmo tempo é importante identificar quais os novos mecanismos, as estratégias, e as novas práticas que tornam possível a privatização da saúde. Em resumo, partilho da impressão de que o desenho institucional que temos disponível é importante, porém parece ser insuficiente para responder às ameaças atuais.

    2. Quais os limites, quais os modos de interação do público-estatal com o privado-corporativo? É possível encontrarmos outras composições para além da dicotomia Estado-Mercado? Aqui também a percepção ordinária (para não dizer senso comum) que se difunde em nossa sociedade é de uma crescente indistinção entre o público-estatal e o privado-corporativo. Como essa experiência se constituí? Quais as mediações entre os cidadãos, o acesso aos serviços de saúde, as relações entre os trabalhores da saúde e os demais cidadãos?

    Cada vez mais precisamos indagar como os diversos aparatos, equipamentos públicos servem e funcionam como infraestruturas para a expropriação e apropriação privada da Saúde?

    Ao mesmo tempo, qual é a percepção, a experiência que se constitui desde o cidadão, o usuário na ponta? Qual é a interface, a mediação que ele tem o sistema?

    Pensando desde a borda do sistema, a partir dos modos de uso e apropriação do cidadão, e do modo de relação e de subjetivação que ele constitui com o sistema de saúde, quais seriam as possíveis formas de ativar um devir-comum do público-estatal? Como o cidadão reconhece a produção do Comum e como ele experiencia as diferenças e conexões entre aquilo que é público-estatal e aquilo que é privado-corporativo?

    3-Cotidianamente nos confrontamos com práticas, procedimentos e tecnologias que se instalam em nossa vida como dispositivos que se apresentam como neutros (\”pós-ideológicos\”). Há evidentemente princípios e valores que constituem as relações tecnicamente mediadas. A capacidade de captura e adesão a um dispositivo depende de sua eficácia prática e de sua capacidade de tornar-se desejável. Sua adoção é quase “natural” (ela se aproveita das disposições emergentes num campo de possíveis). Ao prover a “melhor solução” para um determinado problema ela atualiza de forma imanente uma racionalidade específica. Assim, novas técnicas e tecnologias vão paulatinamente modificando o seu ambiente, criando recursivamente um contexto cada vez mais favorável à sua adoção, de forma que num momento posterior seja impossível não adota-las (veja artigo que publicamos sobre Google as Universidades brasileiras).

    Simetricamente, quais seriam nossas técnicas, nossas tecnologias que poderiam promover as formas de vida e cuidado que desejamos propagar?

    ***

    Em resumo: se nossas instituições e os canais de mediação política são importantes, porém insuficientes; se a ciência e tecnologia, participam cada vez mais da criação de artefatos que influenciam nossas vidas; e se há um crescente processo de delegação da agência à mediação técnica, neste cenário talvez a criação e a resistência tecnopolítica seja um importante campo de lutas.

    Certos arranjos sociotécnicos são capazes de informar e produzir efeitos sobre seu entorno de maneira a produzir certas configurações de mundo. Destaco duas propriedades neste processo de propagação e estabilização: a recursividade e a reticulação. Juntas elas abordam o problema de escala (micro, meso, macro) de uma outra maneira. Nós, cientistas sociais, poderíamos trabalhar mais com os engenheiros, cientistas da computação, arquitetos, médicos e sanitaristas para aprender juntos a “construir coisas”.

    Um exemplo (veja ensaio \”Do protesto aos arranjos tecnopolíticos\”): “a criação da pílula anticoncepcional, o protocolo TCP/IP da internet e o telefone celular são exemplos de artefatos técnicos-científicos que produzem arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares. Sua forma de adoção e propagação vai gradativamente modificando as relações sociais através do seu uso, e os efeitos de sua adoção nas pontas (sujeito individual ou máquinas) cria mecanismos de reforço sistêmico. […]

    Recursividade: Uma prática, uma tecnologia, uma organização que atue recursivamente está desenhada para a resolução prática de um problema, cujo modo de ação dá-se mediante a criação de sub-rotinas que atacam frações de um problema maior, e a cada movimento ela volta à sua função (missão) original, porém agregando um “aprendizado” que a torna mais eficiente. Este aumento de eficiência (ou ganho de poder) acontece também porque além de resolver partes do problema (diminuindo a força do seu oponente) ela modifica gradualmente o seu meio de ação (meio-associado), criando um ecossistema mais favorável à sua execução. Ou seja, um artefato recursivo é um dispositivo prático (material-simbólico) que executa um programa (uma ação normativamente orientada) cuja eficiência está na transformação do seu meio-associado e não apenas na realização de um objetivo final abstrato). Como efeito, a recursividade apoia-se na produção de uma “comunidade” ou de “públicos recursivos” que dão sustentação ao processo.

    Reticulação: A reticulação é um processo de propagação não-linear e rizomático de uma estruturação emergente criando níveis subsequentes de estruturação de uma realidade. Quando uma prática, uma tecnologia, uma organização se reticulariza, significa que ela é capaz de tornar durável, de diferentes formas, o seu programa de ação, criando níveis crescentes de estruturação. Como efeito, ela amplia sua capacidade de determinação sobre um campo de possíveis. Ou seja, a reticulação dá maior consistência e força para seu programa de ação (PARRA, 2018).

    ***

    A título de contra-exemplo examinemos dois arranjos sociotécnicos que podem produzir fortes agenciamentos de orientação neoliberal.

    Proliferam hoje diversas tecnologias digitais portáteis, tanto os APPs de smartphones como os novos wareables (relógios ou roupas) destinados a fazer a coleta permanente de informações produzidas por nossos corpos. Essas tecnologias são adotadas por milhares de pessoas e permitem a coleta, organização e disponibilização dessas informações em diferentes plataformas. São hardwares e sofwares frequentemente corporativos (mas há também versões em software livre) que criam novas possibilidades de análise, tanto para os indivíduos usuários como o bigdata realizado pelas grandes empresas que centralizam e comercializam esses dados. Aqui, há tanto a formação de uma experiência de individualização na produção e análise dos seus dados pessoais (que pode reforçar uma percepção mais individualizante da saúde), como também a formação de novas comunidades de usuários que compartilham dados e criam novas analíses e diagnósticos sobre problemas específicos. Em ambos os casos, vemos o fortalecimento de um conhecimento que se apoia numa concepção de corpo informático (sem “corpo”), pois os dados são vez mais descontextualizados quando a coleta é seletiva e não leva em conta elementos contextuais, mas também em alguns casos a constituição de novas comunidades que se constituem através da partilha de suas experiências. Hermínio Martins refere-se aquela primeira “forma de conhecer” descorporificada (baseada na metafísica informacional) como ciborgues epistêmicos (veja apresentação \”Algoritmos Encarnados\” realizada no Medialab-UFRJ).

    Neste caso, a crescente adoção dessas tecnologias, ao mesmo tempo em que produz uma nova forma de conhecimento sobre o corpo, produz outro modo de relação com a saúde (percebida aqui cada vez mais numa chave individualizante). Ao mesmo tempo, ela participa de uma economia política informacional baseada na exploração dos dados pessoais (seja para os seguros médicos como para a indústria farmacêutica). A depender do caso, temos ainda a produção de novas formas de governo biopolítico: basta imaginar a utilização de mensuração glicêmica ou da análise da atividade física dos usuários associada à gameficação da vida (seja para o cidadão ou para o consumidor de planos de saúde).

    Mas o contra-exemplo que melhor se encaixa nessa discussão talvez seja os dos novos sistemas de intermediação de consultas médica e exames laboratoriais: Dr.Consulta, Doutor123, CiadaConsulta. Desconheço o funcionamento em detalhes desses serviços, por isso destacarei apenas os elementos que dialogam com os problemas descritos acima (esses serviços merecem estudos minuciosos sobre sua forma de criação e expansão). Podemos ver aí como a recursividade e a reticulação vai acontecendo através da adoção das tecnologias móveis pelo usuário, combinadas ao georeferenciamento, à analise de dados pessoais, infraestrutura física e a gestão do trabalho (na forma de um capitalismo de plataforma).

    São tecnologias – entendidas aqui como ambientes dentro dos quais modos de vida são produzidos – que se efetivam através da criação e propagação de um arranjo sociotécnico que produz um tipo de experiência com a saúde. Alguns desses serviços já estão em operação há alguns anos, e é possível observar como vão expandindo pouco a pouco sua infraestrutura de atendimento fisico. Gradativamente, elas vão se reticulando na vida social, ampliando sua presença, e de forma recursiva vão modificando seu meio de maneira a torná-lo mais favorável ao seu funcionamento.

    ***

    Temos aí em operação (exemplo da articulação micro-meso-macro):

    1. Os efeitos macropolíticos relativos à regulação jurídica das atividades da saúde, criação de dispositivos burocráticos e legais que ampliam os agenciamentos privatizantes, mudanças nos marcos regulatórios dos direitos sociais, a economia política informacional baseada na exploração dos dados pessoais. Mas também a dimensão cultural e discursiva propagada nos meios de comunicação (tanto nos meios corporativos como nas redes de autocomunicação de massas). Nesta camada ainda adicionaria a emergência de novos saberes populacionais que correspondem a novas forma de exércício do poder. Para além do saberes disciplinares e populacionais que dão forma ao modo de governo biopolítico, bem descritos por Foucault, participamos agora da emergência da governamentalidade algorítmica apoiada nos saberes simulacionais, no big data e na estatística preditiva (veja o trabalho de Antoinette Rouvroy).

    2. No nível mesopolítico poderíamos identificar os diversos mecanismos de gestão e organização do trabalho, os regimes de visibilidade e sensibilidade que determinam o que conta e o que não conta numa organização, as formas de mensuração, quantificação, avaliação e tomada de decisão. Quais os limites entre o trabalho visível e o trabalho invisível do cuidado?

    Novamente, é na organização do cotidiano, na produção e reprodução da vida que um amplo conjunto de técnicas, procedimentos e tecnologias utilizados irão constituir modos de vida específicos.

    3. No nível micropolítico um modo de subjetivação baseada numa relação individualizada e mercantilizada com a saúde. Os modos de subjetivação, conforme analisa Suely Rolnik, apoiam-se em dois modos de conhecimento sensível. “A primeira é a experiência imediata, baseada na percepção que nos permite apreender as formas do mundo segundo seus contornos atuais…quando vejo, escuto ou toco algo, minha experiência já vem associada ao repertório de representações de que disponho e que, projetado sobre este algo, lhe atribui um sentido”. Mas há “um outro tipo de experiência que a subjetividade faz de seu entorno, é a que designo como “fora-do-sujeito”, é a experiência das forças que agitam o mundo enquanto corpo vivo e que produzem efeitos em nosso corpo em sua condição de vivente. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver e de sentir aquilo que acontece em cada momento (o que Gilles Deleuze e Félix Guattari denominaram, respectivamente, “perceptos” e “afectos”)” (ROLNIK, 2018).

    Lembro-me aqui do filme Daniel Blake. Em diversos momentos, quando Blake vai ao posto do serviço público para solicitar uma licença médica ou o seguro desemprego ele vive um conflito entre duas ordens distintas: sua experiência, sua cultura, sua subjetividade de trabalhador formada durante os anos de Welfare State constituí-se a partir de uma contrato social. Ele se relaciona com o aparato público-estatal através dessas representações instituídas. Entretanto, nada mais funciona como antes: os funcionários tem que atende-lo sob determinados protocolos, ele tem que produzir resultados e passar por distintos testes para ter sua condição reconhecida. A situação cria um conflito intransponível para ele, a formação do Estado-Empresa. As reações seguem então por duas direções: as estratégias individualizantes que encontram apoio nos modos de subjetivação neoliberal (Você-S/A); as estratégias coletivas que buscam constituir um território comum de experiência e lutas, capaz de tecer a vida.

    Acontece que, quando pensamos a micropolítica, atentamo-nos quase que exclusivamente à dimensão das representações, àquilo que podemos enunciar e disputar discursivamente. Negligenciamos, frequentemente essa dimensão dos afectos e perceptos que está além e aquém do sujeito: o pré-individual e o supra-individual. Por isso sem uma política de subjetivação, capaz de modificar o regime de sensibilidades, a relação com o público e o Comum são subtraídas.

    ***

    Pensando agora nos aspectos mais “proximais”, no âmbito de uma micropolítica ou de uma mesopolítica, gostaria de perguntar e imaginar qual é nossa tecnopolítica? Quais são nossas tecnologias de produção do comum? Que dispositivos, artefatos, protocolos, infraestruturas já temos ou que podemos criar para promover e dar sustenção à saúde como um Comum?

    A partir dos problemas descritos acima, imagino que uma tecnopolítica do comum seria portadora de algumas características.

    Em primeiro lugar trata-se de tecnologias que produzem uma comunidade e que são apoiadas por essa comunidade. Neste sentido, uma tecnologia da comum é sempre uma tecnologia de produção de vínculos, é uma tecnologia de pertencimento (para usar uma expressão de Isabelle Stengers). Uma cozinha coletiva numa ocupação de sem-teto (como analisa Alana Moraes) é uma importante tecnologia de pertencimento que abriga processos terapêuticos. Uma certa metodologia de conversa e escuta pode ser pensada também como um tecnologia de produção do comum (como bem relata Antonio Lafuente sobre a experiência dos alcóolatras anônimos).

    As tecnologias do comum também transitam da simples participação (relação usuário-serviço) para o reconhecimento da condição de co-produtores, onde tod@s estão co-implicados na produção. Que tecnologias temos no âmbito política nacional de Sáude que atendem a essa condição? Talvez as experiências dos conselhos de participação popular, os fóruns, possam ser pensadas como exemplos dessas tecnologias. Após mais de 20 anos de implementação das experiências dos conselhos (na educação, saúde…), já podemos reconhecer algumas estratégias que consideramos mais potentes e outras que convertem a participação em mecanismos de captura e gestão (governamental, partidária, corporativa).

    Transitar de uma cultura participacionista para uma política orientada pelo “princípio do comum”, nos termos de Laval & Dardot, implicaria numa outra forma de composição da política, modificando o regime de subjetivação política e de produção dos sujeitos de direitos; e numa outra forma de composição entre o público-privado, econômico-social, reconhecendo, como o fazem as feministas, que toda a vida é política:

    “a identidade do princípio (o comum) não suprime a distinção das esferas (social-econômica, público-privada, politica, e publica-publica), mas tem a função de organizar o social de tal maneira que seja possível uma deliberação na esfera pública que não fique prisioneira dos interesses de tal ou qual categoria socio-profissional. Isso só pode acontecer se a esfera da produção e dos intercâmbios se reorganize a fundo a partir do autogoverno do comum” (Laval & Dardot).

    Imagino também que nas tecnologias de produção do comum o conhecimento é algo vivo, e portanto, sua forma de produção-circulação e seus regimes de uso devem ser vetores de resistência às diversas expressões do capitalismo cognitivo. Recentemente, a Fiocruz desenvolveu um conjunto de referências que darão forma a uma política de ciência aberta. No momento em que o conhecimento acadêmico e científico é cada vez mais colonizado pelas dinâmicas de fechamento, privatização e mercantilização (seja no ambito dos periódicos científicos e na expansão dos direitos de propriedade intelectual), defender a ciência, a cultura e o conhecimento enquanto um Comum é uma ação fundamental.

    Para isso é necessário criar infraestruturas próprias, orientadas pela noção de “soberania tecnológica”, protocolos, formas de governança que permitam efetivar e lutar pela abertura da ciência. Importante destacar aqui que a noção de “livre e aberto” não se confunde com a noção de “grátis” (free as an freedom of speech, not free beer). Ou seja, promover a ciência enquanto um Comum exige a criação de formas de co-responsabilidade no uso, capazes também de dar sustentação à todo o ecossistema que produz esse Comum.

    As tecnologias de produção do comum também estão orientadas pelo reconhecimento e maior centralidade conferida à experiência do cidadão e d@s trabalhador@s da saúde. Como diz Lafuente: “todos somos expert em experiência”. As tecnologias cognitivas devem então estar alinhadas à capacidade de escuta de diferentes saberes. Isso significa também, que talvez essas tecnologias sejam dispositivos de desacelaração (modo slow). Passamos então de um regime de dominância dos experts para um regime de co-existência entre diferentes saberes da experiência. Ao darmos maior centralidade à experiência, ao saber vivo, interrogamos portanto a idéia dos corpos informáticos dos ciborgues epistêmicos. Novamente, não se trata de colocar-se contra as tecnologias. Ao contrário, penso em formas tecnológicas que dêem lugar aos ciborgues (no sentido de Haraway) encarnados. Ou seja, modos de conhecer e de composição que reconheçam nossa cultura técnica e nossa natureza híbrida.

    São também arranjos sociotécnicos que reconhecem a agência dos objetos, substâncias e máquinas. Os elementos não-humanos devem “ter voz”. Do contrário, corre-se o risco de apagarmos os efeitos de que eles são portadores. O debate sobre os alimentos transgênicos e toda sua relação com a cadeia produtiva e alimentar é um ótimo exemplo desse problema. O mesmo se aplica às nanotecnologicas. Na somatória de algumas dessas características entramos em tensão com aqueles modos de conhecimento científico que estão apoiadas na convergência N.B.I.C. Novamente, defendo que não se trata aqui de confrontá-los, mas sim de criar formas de convivência entre esses diferentes regimes de conhecimento, buscando, todavia, alternativas que fortaleçam o Comum e impeçam a sua apropriação e expropriação.

    Finalmente, nos termos da Isabelle Stengers, temos que pensar numa cosmopolítica que seja capaz de abarcar uma diversa ecologia de práticas. Por isso, uma tecnopolítica do comum implica numa outra política (de saberes e poderes): gosto de fabular em torno da transição de um “saber-poder governar” para um “saber-fazer habitar”. Portanto, são tecnologias que são concebidas e implementadas dentro de uma política do cuidado. O cuidado é um trabalho material, é um fazer do corpo. Em certo sentido, o Programa Sáude da Família em sua versões mais comunitárias, proximais, talvez possa ser pensado como um bom exemplo dessa tecnologia de vínculos, de pertencimento multiplos e de produção de sáude coletiva. Necessitamos de tecnologias de nos permitam co-habitar o mundo, que reconheçam nossa interdependência. Esse é um critério muito claro face à tecnopolítica neoliberal que produz isolamento travestida de liberdade; que produz hipertrofia do privado sob a ilusão do compartilhamento, corroendo a possibilidade de um mundo comum.

    Enfim, como podemos fortalecer esses arranjos sociotécnicos que julgamos relevantes? Como podemos ativar um devir-comum da saúde pública? Como podemos criar mecanismos de recursividade e reticulação que ampliem as condições de produção e sustentação das formas de vida, cuidado e saúde que desejamos propagar?

    (*) Mesa Redonda 55 – Direito à saúde, direito a uma vida comum: novas formas de lutar em tempos de neoliberalismo.

    Coordenador: Henrique Sater de Andrade – UNICAMP (SP)
    Expositor: Tadeu de Paula Souza – UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO
    SUL (RS)
    Expositor: Henrique Zoqui Martins Parra – Universidade Federal de São Paulo (SP)
    Expositora: Alana Moraes de Souza – Museu Nacional/UFRJ (SP)