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  • Entrevista do Observatório de Análise Política em Saúde com Ricardo Teixeira

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    Foto: Guilherme Perez

    Publicada pelo Observatório e disponível em PDF.

    1 – Um artigo publicado na Folha de S. Paulo (https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/incentivar-o-isolamento-social-significa-valorizar-a-vida-a-saude-e-o-respeito.shtml),escrito por você e pelo também docente da USP, Ivan França Júnior,destaca duas abordagens de enfrentamento da pandemia de Covid-19 que têm obtido resultados positivos, além de afirmar que o Brasil a presenta uma combinação dos dois modelos. Como você avalia as medidas adotadas pelo país até então?

    Identificamos basicamente dois tipos de estratégias preventivas no enfrentamento dessa epidemia: a que chamamos de “testagem agressiva e sustentada” e aquela baseada na adoção de diferentes graus de “distanciamento social”. A primeira, uma estratégia focada nos indivíduos de “alto risco” – aqui entendido como “alto risco de transmissão”, já que o que está em foco é a prevenção da propagação epidêmica. Nessa estratégia, são esses indivíduos que precisam ser detectados, isolados, monitorados, sendo uma estratégia de menor impacto na mobilidade geral da população. A segunda é uma estratégia propriamente populacional, que busca reduzir a mobilidade geral da população, podendo ser aplicada em diferentes intensidades.

    A primeira foi implementada em sua versão mais plena na Coréia do Sul, com os resultados que conhecemos. Lembrando que o resultado centralmente esperado dessas estratégias preventivas é o chamado “achatamento da curva de contágio”, a desaceleração da propagação epidêmica, com o intuito de preservar a capacidade de resposta dos sistemas de cuidado, reduzindo a letalidade do agravo e ganhando tempo para o desenvolvimento de vacina ou terapia. A Coréia do Sul é o país mais bem sucedido no uso dessa estratégia até aqui e, talvez, não seja superado. Além de possuir um sistema de saúde público e gratuito, o mais bem avaliado entre os países membros da OCDE, já dispunha de toda a infraestrutura logística necessária para a implementação dessa estratégia quando a epidemia eclodiu. Uma infraestrutura que integra os dispositivos tradicionais da vigilância epidemiológica a dispositivos de vigilância digital capazes de monitorar os movimentos e comportamentos individuais de cada cidadão. Essa infraestrutura representa uma articulação sem precedentes entre biotecnologias (como RT-PCR, sensores de temperatura corporal em pontos de fluxo etc.) e ferramentas de vigilância algorítmica. Possivelmente, a mais acabada infraestrutura de um biopoder jamais construída.

    A segunda estratégia (distanciamento social) foi fortemente adotada pela China. Importante destacar que, segundo o relatório conjunto OMS-China (https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/who-china-joint-mission-on-covid-19-final-report.pdf), a resposta chinesa se deu em 3 etapas: inicialmente, isolando a província de Hubei (onde se encontra Wuhan) para impedir a exportação de casos; numa segunda etapa, promovendo o distanciamento social intensivo para desacelerar a propagação epidêmica; e, por fim, com uma estratégia para reduzir os “clusters” de casos, em tudo semelhante à estratégia coreana, com ampla utilização de “big data” e inteligência artificial. Contudo, ainda que na etapa atual a estratégia principal também seja a testagem agressiva e sustentada com controle cerrado dos positivos e contactantes, a China chegou a zerar os casos novos por alguns dias, com medidas radicais de distanciamento social em níveis de “supressão”, recuperando sua capacidade de controle da epidemia por outros métodos. Um resultado que também parece difícil de ser igualado por outro país. Como no caso da Coréia do Sul, há condições “facilitadoras” da efetividade da resposta chinesa: um Estado autoritário que encontra poucos limites ao exercício do poder soberano; uma sociedade civil que, do ponto de vista ocidental, inexiste ou é muito fraca e subordinada ao Estado; um povo para quem a disciplina e obediência é um traço cultural milenar, em que impera o coletivismo e não está presente a noção ocidental de vida privada.

    No Brasil, como em quase todo mundo, o que temos visto no enfrentamento da epidemia são diferentes combinações dessas duas estratégias, com variações na intensidade de cada uma delas. Mesmo olhando para um único continente, como a Europa, há uma grande variedade de respostas sendo produzidas por cada nação. O que nos leva a fazer uma primeira grande observação sobre a resposta mundial: a despeito de estarmos diante de uma pandemia, de uma ameaça colocada em escala global, assistimos a um recrudescimento das soberanias nacionais, que se fecham dentro de suas fronteiras e passam a produzir respostas exclusivas para suas populações, com baixíssima solidariedade internacional, a ponto de haver uma corrida mundial para aquisição de insumos em relativa escassez no mercado global, como ventiladores, máscaras e testes (valendo atos de pirataria!), num cenário em que, obviamente, as nações mais ricas levarão larga vantagem. Não há um plano global de enfrentamento da pandemia. Desde que a emergência foi decretada, o G7 reuniu-se uma única vez, por videoconferência, e nada deliberou. As desigualdades se acentuam, em todos os níveis, na resposta à pandemia de coronavírus…

    Assim, o que percebemos, olhando para o mundo, é um mosaico de respostas, em que sempre se identifica algum grau de distanciamento social (do mais leve ao “lockdown”) combinado às estratégias de testagem (das mais restritas, fazendo apenas algumas confirmações diagnósticas, sem busca ativa e outras medidas de vigilância epidemiológica, às mais agressivas e sustentadas).

    Avaliando os relatórios de mobilidade para várias regiões do mundo que vêm sendo disponibilizados pela Google (https://www.google.com/covid19/mobility/), observamos países, como a Coréia do Sul, em que a redução da mobilidade é mínima e que, nos últimos dias, vem mesmo aumentando em determinados espaços, como parques, praias e jardins públicos. Embora a Google não tenha dados de mobilidade da China, sabemos que as medidas de distanciamento social também estão sendo relaxadas neste país (https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/07/acaba-o-confinamento-em-wuhan-primeiro-epicentro-da-covid-19.ghtml). Tanto na Coréia do Sul, quanto na China, a mobilidade social vem sendo reconquistada, na medida em que os dispositivos de vigilância digital, que permitem um monitoramento e controle individualizado de cada cidadão, vão sendo implantados. Observamos também que alguns países que vêm apostando na realização de testagem agressiva e sustentada, como a Alemanha e a Suíça, têm feito um distanciamento social mais leve. Outros países, como a Argentina e Portugal, mesmo também investindo na testagem, estão adotando um distanciamento social bastante intenso, em níveis de “supressão”. Cabe ainda mencionar, neste panorama mundial, os países que têm feito o distanciamento social máximo, como a Itália e a Espanha. Nesses países, os indicadores de queda da mobilidade em espaços públicos, comércios e locais de trabalho são impressionantes! E a impressão é de que quedas tão drásticas na mobilidade só são atingidas em países que não conseguiram achatar a curva de contágio e tiveram seus sistemas de saúde gravemente colapsados. Ainda que o distanciamento social adotado em qualquer etapa anterior à constituição da chamada “imunidade de rebanho” possa ter efeitos de desaceleração do contágio e evitar ainda mais sobrecargas ao sistema, a adesão massiva da população desses países a esse comportamento parece menos representar uma estratégia preventiva e mais o resultado do terror diante do caos sanitário instalado, secundado, evidentemente, por medidas de repressão da circulação de pessoas, características de um “estado de exceção”. É menos uma medida para tentar minimizar os efeitos da epidemia e mais um efeito da derrota para a epidemia. Como diria Camus, representa o triunfo da Peste sobre a Cidade.

    Avaliando os dados de testagem (que se alteram rapidamente: https://www.worldometers.info/coronavirus/), descobrimos que a Coréia do Sul, referência nessa estratégia, realizou até aqui (16/04) cerca de 10 mil testes/milhão de habitantes. Ou seja, já realizou uns 500 mil testes, conseguindo testar aproximadamente 1% da sua população. A Alemanha e a Suíça estão em patamares de testagem mais elevados, em torno de 20 mil testes/milhão de habitantes. Portugal, além do distanciamento social intenso, apresenta um índice de testagem na mesma faixa (18 mil). Entre os 15 países com o maior número de casos no mundo, os índices de testagem variam de 3,5 a 22 mil/milhão de habitantes, excetuando o Brasil (que se encontra na 11ª posição no número total de casos) e realizou apenas 296 testes/milhão de habitantes. Excessivamente atrás, não apenas das nações mais ricas do planeta, mas também do Irã (3.562 testes/milhão de habitantes) e da Turquia (5.664 testes/milhão de habitantes). Não nos parece, de modo algum, que o baixíssimo número de testes realizados no Brasil possa se dever a qualquer limitação de ordem econômica. A ausência de uma estratégia consistente de testagem, combinada a um distanciamento social pouco intenso, vacilante, errático e que, ainda por cima, vem sendo relaxado nas últimas semanas, não tem como não colocar nosso país entre aqueles de pior prognóstico. A despeito de estarmos adentrando uma violenta tempestade em “voo cego”, sem dados mínimos sobre as reais taxas de incidência neste momento, temos todos os elementos para saber que a curva de casos novos está em franca ascensão. Relaxar as medidas de distanciamento social, nesse momento, e continuar negligenciando a testagem, certamente acelerará a curva de contágio e a sua velocidade de disseminação entre as comunidades mais pobres, ainda imensamente despreparadas para o impacto. Além do colapso do sistema de saúde, é de se temer muitos outros colapsos no Brasil: dos serviços funerários ao colapso de qualquer coisa que se assemelhe a um “contrato social”…

    2 – No mesmo artigo, vocês chamam a atenção para o risco de se instalar um Estado judiciário-policial que force testagem e distanciamento social por meio de medidas autoritárias. No Brasil, há estados e municípios avaliando e colocando em prática medidas como multa a idosos que saírem “sem necessidade”(aqui:https://gauchazh.clicrbs.com.br/coronavirus-servico/noticia/2020/03/saida-de-idosos-e-flexibilizada-em-porto-alegre-veja-o-que-pode-e-o-que-nao-pode-ck88ud2mh082t01pq2kzcp7v7.html e aqui: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,sp-nao-descarta-impor-multa-ou-mais-restricoes-para-idosos-por-causa-do-coronavirus,70003247503). Quais os limites para as estratégias de combate à pandemia? Você acredita que medidas autoritárias podem ser adotadas de forma recorrente no Brasil?

    No artigo, procuramos fundar nossas análises nas melhores informações técnicas e científicas disponíveis, mas deixando claro que as grandes decisões que temos que tomar são políticas. De forma bem simples, identificamos uma grande bifurcação política nas possíveis respostas do Estado diante da crise: as respostas se darão garantindo e expandindo direitos ou se darão reduzindo e suprimindo direitos? Se darão no sentido do reconhecimento do direito universal à vida, acionando mecanismos de proteção social para garanti-lo com equidade, fomentando o espírito de solidariedade e uma forte cooperação social (o que cria e expande novos direitos, como, por exemplo, quando se suspendem patentes e propriedades intelectuais, quando se retiram pay-walls e “catracas”, evidenciando a existência de toda uma série de bens comuns – commons – que escaparam do controle público e foram submetidos ao controle e à exploração por grupos privados), ou as respostas se darão pela repetição da histórica omissão em relação aos mais vulneráveis, adotando linhas de ação que levam muito pouco em consideração a real desigualdade do “direito à vida”, o que pode, diante de uma situação extrema de ameaça à vida, levar a reações desesperadas e à convulsão social, abrindo terreno para a supressão de mais direitos e a imposição de mais medidas “de exceção”? Mesmo dispondo de todo aparato necessário para produzir o primeiro tipo de resposta (o que inclui esse gigantesco trunfo, que poucos países possuem, que é o SUS), é muito forte a impressão de que estamos cumprindo o enredo do segundo tipo de resposta.

    Faço uma rápida reflexão partindo da questão do distanciamento social. É uma questão muito delicada, não apenas de um ponto de vista econômico ou psicológico, mas, antes de tudo, de um ponto de vista antropológico. O que pode significar para um coletivo humano auto-impor-se um distanciamento social? Não é uma questão simples: envolve um enorme paradoxo! O distanciamento social ameaça objetivamente nossa existência social e não há outra existência para nós, humanos. Desse ponto de vista, a pergunta que se coloca é: em que condições nós poderíamos concordar que o melhor, para todos, seria mantermos um distanciamento social temporário? Entendo que seja necessário preencher alguns requisitos cognitivos e políticos para que um coletivo humano possa deliberar, coletivamente, que seus indivíduos se mantenham distanciados um dos outros por um certo tempo. É preciso que haja nesse coletivo, no mínimo, o domínio compartilhado de uma noção relativamente abstrata que é a de “população”, de que fazemos parte de uma população de humanos em convívio com incontáveis outras populações de seres vivos. De que fazemos parte de uma dimensão comum da vida que nos ultrapassa, que possui dinâmicas próprias, sobre as quais é possível intervir. E nesse último caso, quando deliberamos coletivamente intervir no nível da população, tal como se dá quando decidimos adotar medidas de distanciamento social, não estamos mais diante apenas de uma questão antropológica, mas política.

    Para compreender melhor esse ponto, contribuem muito as análises de Foucault sobre os mecanismos de poder. Em especial, quando trata do biopoder, do nascimento de uma biopolítica, de uma nova racionalidade e tecnologia de governo que investe a vida não apenas enquanto corpo individual (como já faziam os mecanismos disciplinares), mas enquanto “corpo coletivo”, enquanto população, enquanto espécie. O biopoder é essa técnica de poder que destaca um plano dos fenômenos populacionais, sobre o qual se irá deliberadamente intervir, uma vez que são estes os fenômenos que se pretende regular, controlar, conduzir, governar, com o objetivo de mantê-los dentro de um “intervalo de confiança”, dentro de uma faixa de variação considerada segura. Foucault nos mostra que é o Estado que se constituiu historicamente como grande aparato capaz de governar fenômenos de população, seja pelo exercício do poder soberano incrementado por mecanismos de poder disciplinar (representados pelos aparatos jurídicos e policiais), seja através dos mecanismos biopolíticos de indução da conduta humana e do comportamento social (representados pelos múltiplos dispositivos pelos quais se faz política econômica e social). É o monopólio dessas “técnicas de poder”, o que faz com que apenas o Estado detenha os meios para produzir as respostas exigidas para se enfrentar uma trombada do tamanho dessa que estamos vivendo. E o que essa perspectiva foucaultiana, de modo oportuno, evidencia, é o fato de que o que chamamos de resposta técnica à pandemia é sempre uma resposta política, que se faz através de técnicas políticas, técnicas governamentais.

    Nesse ponto, cabe um comentário sobre a compreensível exaltação, em tempos de “anti-ciência”, da “soberania da ciência” nas tomadas de decisão política diante dos desafios maiores postos hoje para a sobrevivência da humanidade e de outras formas de vida no planeta, especialmente quando se busca a comunicação com uma “opinião pública desinformada”. Mas, entre os próprios cientistas, essa discussão sobre o papel da ciência poderia melhorar. A hegemonia de um dado paradigma de ciência é tamanha que é como se não existisse, de fato, uma “guerra das ciências”, conforme a expressão de Bruno Latour. No entanto, ela está aí, claramente colocada, como sempre esteve, jamais inteiramente sufocada, porque é a expressão de um embate real entre forças políticas presentes no campo social e não veleidades epistemológicas. O campo da Saúde Coletiva deveria ser especialmente sensível a essas questões, já que ele se funda num ato de disputa de paradigma científico no campo da saúde…

    Nesse sentido, a discussão atual em torno do que seria uma resposta técnica e cientificamente embasada à pandemia abre um amplo espaço para uma retomada das premissas político-epistemológicas da Medicina Social – que também estavam presentes nas origens da medicina científica no século XIX, disputando qual seria o verdadeiro “problema” posto para a medicina e as práticas de saúde de uma forma geral. É notável como essa antiga fórmula de Rudolph Virchow ganha especial eloquência no cenário atual: “os avanços na medicina podem eventualmente prolongar a vida humana, mas as melhorias das condições sociais podem alcançar esse mesmo resultado de maneira mais rápida e bem-sucedida”. Sabemos como são urgentes e fundamentais todo os esforços que vêm sendo feitos para ampliar a capacidade de resposta do sistema de saúde aos casos graves da doença, com ampliação emergencial dos leitos hospitalares e de terapia intensiva. Mas também são fartas as evidências de que sem medidas preventivas visando o achatamento da curva, mesmo com essa ampliação, não há cenário em que o sistema seja capaz de dar conta do número de casos. Do mesmo modo, é desejável e indispensável todo esforço que vem sendo feito na busca de um medicamento eficaz para a COVID-19, mas é importante lembrar que o acesso a qualquer tratamento ficará dificultado se o sistema de saúde colapsar. Assim, permanece sendo urgente a decisão técnica e cientificamente embasada de acelerar a combinação da testagem agressiva e sustentada e o distanciamento social intenso, medidas que precisam ser implementadas de modo orientado pelas singularidades da nossa estrutura econômica e social e pelos valores que estão na base de uma sociedade democrática e solidária.

    Para aumentar nossa capacidade de testagem, é indispensável que, para além dos hospitais, também haja um investimento emergencial significativo na atenção básica e na vigilância epidemiológica e sanitária do SUS, possibilidade aberta pela decretação do estado de calamidade pública que flexibilizou o cumprimento das regras fiscais. É preciso determinação técnica combinada a vontade política para se fazer esse urgente e necessário investimento massivo de recursos no SUS. Mas, em relação a isso, o que temos observado, até aqui, é um Estado passivo, com os representantes do Ministério da Saúde se restringindo a comemorar, nos últimos dias, o aporte de recursos, sobre os quais sequer terão controle, advindos da filantropia do alto empresariado e dos bancos.

    Para tornar efetivo o distanciamento social, precisamos ampliar a mobilização social para o autoconfinamento voluntário. E que ele seja voluntário, é um princípio ético-político fundamental! Princípio que assume que o papel principal do Estado não deve ser o de obrigar e coagir, mas o de educar e procurar convencer sobre a razoabilidade das medidas que se orientam para o bem comum, sobretudo, para o bem comum maior, que é a defesa da vida de todos e de cada um, provendo solidariamente os meios para que todos possam efetivar essas medidas. É preciso deixar bem claro, entretanto, que se trata de um princípio ético-político de atuação do Estado, um princípio de respeito à autonomia de agência dos indivíduos, não se confundindo com qualquer tipo de concepção ingênua a respeito do livre-arbítrio ou de um suposto “império da vontade” a reger nossas condutas. Não basta, para o autoconfinamento acontecer, uma deliberação da vontade. Não basta querer, é preciso poder praticar o distanciamento social. Por isso, é preciso acionar medidas de mitigação das consequências indesejáveis desse confinamento, em especial, para as populações mais vulneráveis. Medidas que são, de fato, pré-requisitos para que essas populações possam aderir voluntariamente ao distanciamento social. Em outras palavras, é preciso, primeiramente, uma orientação firme e inequívoca das autoridades sanitárias para que o distanciamento social massivo seja praticado. Mas, como sabemos, é na implementação dessa medida que se expressam as mais brutais desigualdades perante essa epidemia. Como afirmamos no artigo, “somos todos suscetíveis, mas a vulnerabilidade é profundamente desigual”. São milhões e milhões de brasileiros que vivem do ganho diário para sobreviver, seja como empresários de pequenos negócios, seja como trabalhadores precarizados, sem proteção social, vivendo sem condições adequadas de moradia e de saneamento urbano, quando não vivendo nas ruas. Fundamentalmente, são estes brasileiros que não poderão aderir às medidas de distanciamento social, não porque não queiram, mas porque não podem. Só o Estado dispõe dos instrumentos políticos capazes de fazer com que o distanciamento social voluntário se efetive e poucas vezes ficou tão agudamente evidente o quanto a política econômica e social pode ser a mais poderosa ferramenta de intervenção médico-sanitária.

    O Estado brasileiro, graças à atuação decisiva do poder legislativo, tomou algumas medidas importantes nessa direção, como a provação do “auxílio emergencial” e algumas outras medidas de mitigação das consequências econômicas e sociais nefastas do confinamento. Importantes, porque na direção correta, mas insuficientes. Insuficientes no tamanho do auxílio, considerando as reais necessidades vitais das famílias, e não apenas sua dimensão de “remédio econômico” para mitigar o tamanho da recessão. Essa questão do “auxílio econômico” é um ponto crucial no enfrentamento da pandemia, porque nele, a dicotomia entre as medidas de proteção da vida e de proteção da economia se desfaz. Uma economia cuja proteção se oponha à proteção da vida é uma economia de morte. Não merece ser salva. O debate sério sobre o assunto indica que a “estatização da renda das pessoas” (como dizem os economistas liberais) parece ser um componente inescapável da resposta econômica para se evitar uma depressão. Dessa vez, parece que não será suficiente salvar apenas os bancos, sem garantir um mínimo do poder de compra das famílias. Os recursos para financiar essa grande operação biopolítica de defesa da vida e da economia existem e sabemos onde estão. Levantá-los, contudo, exige a quebra de resistências políticas históricas na sociedade brasileira. Resistências tão duras de serem quebradas, que têm garantido, por exemplo, que nossa estrutura tributária absurdamente regressiva se mantenha inalterada, a despeito de ser uma flagrante máquina de aprofundamento da desigualdade social num país profundamente desigual. Além disso, as medidas tomadas também são insuficientes porque não conseguem vencer os entraves burocráticos e a ausência de mecanismos eficientes para que o auxílio chegue efetivamente até as pessoas. Daí que o objetivo visado por essa política (viabilizar um distanciamento social mais intenso) não venha sendo alcançado. E, sem a efetivação dessa política, atribuir a não adesão ao distanciamento social de amplos setores da população a uma suposta “falta de consciência” dos indivíduos, é uma análise bastante pobre da determinação do comportamento e uma “moralização” do problema.

    Na medida em que esse caminho político permanece, na prática, interditado, o campo das respostas técnicas à pandemia se vê restrito a um conjunto de medidas, igualmente científicas, mas de impacto muito mais limitado. Limitação que se medirá no número de mortes que ocorrerão e poderiam ter sido evitadas. E na medida em que determinadas políticas não se efetivam com a força exigida, o que se impõe, na prática, aos mais vulneráveis, é aquilo que a filósofa Isabelle Stengers chamou de “alternativas infernais”: a fome ou a peste. E para coroar o espetáculo dantesco, ainda descobrimos, estarrecidos, que essa opção de “deixar morrer” é uma opção consciente e deliberada de alguns atores de peso nas tomadas de decisão política no país, como o presidente do Banco Central, que numa fala a investidores, no início de abril, declarou que o colapso do sistema de saúde, obrigando os médicos a terem que decidir entre quem atender e quem deixar morrer, é um preço razoável para evitar uma recessão econômica maior (https://theintercept.com/2020/04/16/banco-central-presidente-coronavirus-economia/). A projeção futura do quadro que pode derivar desse tipo de escolha política, no momento em que o caos sanitário estiver instalado – uma projeção que não pode ser ignorada por esses atores políticos –, nos faz supor que eles contam com uma “fase 2” da estratégia, baseada na força do Estado judiciário-policial, que poderá atuar para impor um distanciamento social forçado, com suspensão de direitos e imposição de todos os danos colaterais dessa medida aos mais vulneráveis. Deveria ser desnecessário dizer – mas não é! – que se trata de uma abominação moral que a admissão de mortes evitáveis possa entrar nos cálculos que embasam decisões políticas. Em tempos de embrutecimento dos espíritos, também precisamos estar muito vigilantes em relação ao que enunciam coletivamente as decisões que estão sendo tomadas, sob pena de fazermos escolhas que podem trazer maior ameaça à nossa sobrevivência como “espécie” do que o próprio vírus. Perguntemo-nos, por exemplo, o que enuncia politicamente que 15 bilhões de reais tenham sido liberados para empresas de saúde privada que atendem, com grandes limitações de cobertura, apenas 25% da população, supostamente a menos vulnerável, enquanto para o restante 75% da população que depende apenas do SUS, foi repassado muito menos que isso (https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/04/a-insensatez-dos-planos-de-saude.shtml).

    Mas também nos perguntemos o que enuncia coletivamente o fato de dois bilhões de seres humanos estarem confinados em suas casas, num momento de grande crise da democracia em todo mundo. O que enuncia coletivamente o fato de que, nesse momento, várias das principais nações europeias se encontrem sob “estado de exceção”, com o exército nas ruas? A linguagem é um vírus (conforme a fórmula poética de William Burroughs). E não é muito animadora a “linguagem” que circula nesse momento! Esse discurso de mobilização de guerra, do vírus como inimigo, de exaltação da “cidadania sacrificial” dos trabalhadores de saúde, é muito preocupante! É o tipo de discurso político que se presta a justificar suspensão de direitos e adoção de medidas “de exceção”. Do mesmo modo que serve para justificar e banalizar as consequências da instauração de mecanismos permanentes de vigilância digital securitária e totalitária, como se fosse um preço razoável a se pagar pela “liberdade”. Há tantos ou mais perigos em algumas das respostas a esta pandemia, quanto na própria. Precisamos saber escapar das “alternativas infernais”, o que implica vencer o medo que nos paralisa e abrirmo-nos à emergência de novos modos de vida e de relação com os conhecimentos e as tecnologias…

    3 – O editorial da última edição da revista Saúde em Debate(http://revista.saudeemdebate.org.br/sed/issue/view/37/v.%2044%2C%20n.%20124%2C%20jan-mar%2C%202020),do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), ressalta o impacto de medidas neoliberais na saúde como origem do cenário da pandemia na Itália e chama a atenção para as medidas de austeridade brasileiras,como a Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos). De que forma as consequências da falta de prioridade da saúde pelos governos e do subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde (SUS) são sentidas no cenário atual?

    As relações entre as medidas de austeridade neoliberais e o impacto humano que terá essa pandemia são demais evidentes, já que essas políticas foram diretamente responsáveis pelo sucateamento do principal escudo de proteção que os países podem ter nessa crise, que é um sistema de saúde público, robusto e de qualidade. Nesse momento de crise aguda, fica palpável o quanto o sucateamento do nosso SUS representa diretamente o sucateamento da vida dos brasileiros. O quanto o desmanche desse e de outros sistemas de proteção social precariza a vida e amplia a vulnerabilidade social. Mas não é apenas por esses aspectos que os efeitos das políticas neoliberais são sentidos no cenário atual. Elas representam mais do que um receituário econômico e fiscal, elas definem todo um modo de vida cujo esgotamento, pela insustentabilidade ambiental, social e subjetiva, está cada vez mais patente. A pandemia feriu de morte esse modo de vida e precipitou um colapso econômico que já estava anunciado. Ela marca nossa entrada na era dos fenômenos naturais extremos previstos na “emergência climática” e coloca uma enorme pedra sobre o mito do crescimento ilimitado. O que não quer dizer, nem de longe, que o capitalismo acabou, foi derrotado e despertaremos agora para um mundo frugal e igualitário. Especula-se muito sobre um suposto mundo pós-viral, sobre um mundo transformado que emergirá dessa pandemia. O meu argumento é de que esse mundo pós-viral já começou ou, de qualquer forma, o mundo transformado por essa pandemia já se encontra em disputa nesse momento, já está sendo construído nas respostas concretas que estão sendo produzidas. O vírus não é capaz por si só de provocar uma mutação social; nenhuma nova ordem mundial emergirá “naturalmente” desse acontecimento. O mundo pós-viral já começou e está sendo disputado, antes de mais nada, nas respostas que estamos produzindo no próprio enfrentamento da pandemia. Por isso me estendi consideravelmente nas primeiras questões desta entrevista, por isso me pareceu importante procurar fazer uma análise (bio)política das respostas que estamos produzindo. São dimensões importantes da produção desse mundo pós-viral e não se pode dizer que, desse ponto de vista, estejamos indo bem em toda parte. Estamos especialmente mal posicionados nessa crise, uma vez que, do Brasil, temos dificuldades de ver pela frente um cenário menos que sombrio. Mas há questionamentos e movimentos importantes se dando em muitas partes, que vão na direção de uma transformação profunda na organização política e econômica de nossas vidas…


    4 – Como pensar comunicação e saúde nesse contexto de pandemia e disseminação de fake news? Quais elementos são importantes paradifusão de informações relacionadas (epidemiológicas, políticas,econômicas) ao Covid-19 de forma segura?

    O tema do meu mestrado, há quase 30 anos, foi justamente o das epidemias, trabalhado numa perspectiva semiótica e comunicacional. Procurei desenvolver um único esquema interpretativo para a análise, tanto de fenômenos epidêmicos (de doenças), quanto comunicacionais (de comunicação social), com o intuito de analisar a epidemia de HIV/AIDS em seus primeiros anos, considerando a relação entre a dinâmica de propagação viral e a dinâmica de propagação da informação. Identifiquei a existência de dois “esquemas epidêmicos”, que correspondem a duas dinâmicas comunicacionais distintas, observáveis tanto na propagação de agentes infecciosos, quanto de informação: o “contágio” e a “irradiação”. As epidemias de contágio, que se propagam ao sabor dos contatos sociais, são mais lentas (os casos se distribuem ao longo do tempo) do que as epidemias irradiadas, tipo fonte comum (em que muitos casos se apresentam simultaneamente). A ideia geral é que uma epidemia de contágio (de doença) pode ser combatida com uma contraepidemia irradiada (de informação). É uma questão “dromológica” (como diria Paul Virilio), uma questão de velocidade, de corrida entre “informações”: o objetivo é que determinadas “informações” consigam chegar nas pessoas antes do vírus (seja na forma de uma vacina, enquanto uma “informação imunobiológica”, ou na forma da informação necessária para se praticar a proteção individual e coletiva).

    Do ponto de vista da comunicação social, o grande modelo de comunicação irradiada que dispúnhamos, no início dos anos 1990, era o chamado “broadcasting”, o modelo fornecido pelas grandes mídias de massa que dominaram o século XX, como o rádio e a televisão. Ainda que se reconheça (e se preconize como estratégia) que os modelos de comunicação irradiada e por contágio estejam (e devam ser) quase sempre hibridizados, a lógica do “broadcasting” possui duas características fundamentais para as estratégias de comunicação em contexto de epidemia: a rapidez de difusão e o controle centralizado da informação pelo polo emissor. Ora, o cenário das tecnologias de comunicação e informação passaram por uma verdadeira revolução nos últimos 30 anos, capitaneada pelo crescimento e pela popularização da internet e o advento das mídias sociais. Produziram-se profundas alterações na “ecologia comunicacional” humana, que acabaram abalando alicerces importantes das estratégias comunicacionais em contexto de epidemia. O advento das mídias sociais produziu duas mudanças importantes na dinâmica comunicacional por “contágio”: primeiramente, imprimiram uma velocidade sem precedentes à “epidemia de contágio”, produzindo uma dinâmica apropriadamente chamada de “viral” na propagação da informação; além disso (e em função dessa lógica viral, que transforma cada um numa central de “broadcasting”, produzindo um dilúvio informacional), a dinâmica de propagação da informação por contágio passa a obedecer não apenas à lógica que governa, por exemplo, os encontros/contatos que se dão entre os corpos num território, mas a uma outra lógica que passa a governar os contatos/conexões que se dão na rede eletrônica. Essa outra lógica é introduzida pelos algoritmos que, nesse sentido, estruturam as “redes de contágio” (segundo interesses comerciais e estratégias de marketing) de um modo que acaba contribuindo para a constituição de uma socialidade em “bolhas”, com enormes repercussões subjetivas e políticas. Em síntese, as mídias sociais aumentaram desenfreadamente a difusão da informação, mas de qualquer informação, reduzindo as possibilidades de serem controladas centralmente por um polo emissor autorizado. Ao mesmo tempo, as “redes de contágio” não são aleatórias e, sim, estruturadas para promoverem a constituição de “clusters” que expressam, segundo uma lógica “mercadológica” que organiza o espaço social em “nichos”, a distribuição dos múltiplos novos centros irradiadores de autoridade. Essa nova “ecologia comunicacional” instaurada pelas mídias digitais é bastante crítica para as estratégias comunicacionais tradicionais de enfrentamento de epidemias…

    Em outubro do ano passado, o Johns Hopkins Center for Health Security (em parceria com o Fórum Econômico Mundial e a Fundação Bill & Melinda Gates) realizou um exercício de simulação de uma severa pandemia de coronavírus, com o objetivo de identificar os grandes problemas que teríamos hoje para produzir as respostas necessárias para minimizar seus graves efeitos sociais e econômicos, avaliando o quanto estaríamos ou não preparados para produzi-las (o tamanho do “preparedness gap”): o Event 201 (https://www.centerforhealthsecurity.org/event201/). Nesse exercício, um dos segmentos de discussão foi inteiramente dedicado às questões de comunicação (https://youtu.be/LBuP40H4Tko) e o principal ponto crítico levantado foi o problema da “epidemia de desinformação” ou o problema da “preservação da integridade da informação”. A nossa incapacidade de lidar com o fenômeno contemporâneo das chamadas “fake news”, na visão dos experts que participaram do exercício, foi, de longe, o maior “despreparo” identificado para o enfrentamento de uma pandemia, no que tange as questões de comunicação.

    Para os especialistas que participaram do Event 201, as respostas para uma situação de desinformação epidêmica desenfreada, num cenário de pandemia severa (a epidemia de coronavírus imaginada no exercício teria matado 65 milhões de pessoas), poderiam chegar ao “internet shutdown”. Nesse caso, teríamos a imposição de uma situação, de fato, de “isolamento social” e não apenas distanciamento. Uma situação em que a interrupção dos contatos físicos não seria suficiente, em que seria também preciso deter o espalhamento da “peste” através das mídias virtuais. Os especialistas ponderam o pânico e outros prejuízos colaterais que um “shutdown” causaria, mas o concebem como um cenário limite com mídia social desenfreada, governos em colapso e cidadãos se revoltando. Diante de um cenário menos severo (que, talvez, corresponda ao nosso), o que propõem? Fundamentalmente, propõem que, de algum modo, se reconstitua uma fonte confiável de informação. O diagnóstico que fazem da “crise comunicacional” (com o qual, em linhas gerais, concordo) é de que se trata, em última instância, de uma “crise de confiança”. Há uma desconfiança generalizada em relação às instituições (ao chamado “sistema”) como fonte confiável de informação. Principalmente, em relação à mídia tradicional e à ciência, mas também em relação aos governos. Os governos sempre suscitaram alguma desconfiança, mas a situação se agrava quando alguns governos passam a atuar abertamente no ramo das “fake news”, ampliando ainda mais a crise de credibilidade da instituição que representaria o poder público. Numa dimensão afetiva, instaura-se um problemático mundo social fundado em relações de desconfiança; numa dimensão cognitiva, abre-se o caminho para o chamado mundo da “pós-verdade”. Ainda não entendemos bem o que significa esse fenômeno, suas causas, seus sentidos, mas há pistas interessantes trazidas por alguns estudiosos de que não se trata tanto de uma oposição à “verdade”, quanto de uma oposição aos “sistemas de produção da verdade”, em geral, opacos nas suas “regras de produção da verdade” e, via de regra, arrogantes e autoritários na sua comunicação social. Esse entendimento é importante, porque nos sinaliza que há tentativas de se reconstituir o valor das “verdades”, há estratégias que buscam se opor ao mundo da “pós-verdade”, que podem, de fato, exacerbá-lo. Não seriam muito promissoras, por exemplo, as estratégias assentadas na ridicularização da ignorância ou na afirmação do poder absoluto e infalível de qualquer discurso de verdade. Se aceitamos a tese de que o problema não seria tanto uma “crise da verdade”, quanto uma “crise de confiança” nos “donos da verdade”, então, a questão primordial permanece sendo como restaurar um regime de socialidade fundado em relações de confiança. Nesse sentido, o que seria logicamente mais favorável a este restabelecimento: estratégias comunicacionais que buscam afirmar a superioridade indiscutível de determinadas fontes sobre outras ou estratégias comunicacionais mais dialógicas? De todo modo, a questão da crise de confiança nas instituições de saber-poder ainda precisa ser muito mais aprofundada, indo às origens fundamentalmente políticas dessa crise, para podermos realmente avançar nessa questão das “estratégias comunicacionais”…

    Elidindo completamente o problema da raiz política dessa crise, os experts recuperam velhas fórmulas das teorias da comunicação de massa, como o “two steps flow of information”, adaptadas ao mundo da comunicação em rede. Essa estratégia busca hibridizar os dois modelos comunicacionais/epidêmicos: a irradiação e o contágio. Por um lado, garantindo a centralidade de uma fonte de informação confiável, por outro, reconhecendo que as fontes efetivamente confiáveis para as pessoas são os sujeitos identificados como “líderes de opinião” para suas comunidades. Com esse intuito, fazem um exaustivo mapeamento de possíveis “lideranças”, que poderiam se constituir em fontes de informação confiáveis, mas não fica claro como elas poderiam efetivamente desempenhar esse papel em meio ao regime geral de desconfiança em relação a todas elas: organismos internacionais (OMS), governos, mídia tradicional, corporações, empresários, cientistas, médicos, trabalhadores da saúde etc. E diante da dificuldade em se resolver uma “crise de confiança” com estratégias meramente comunicacionais, voltam-se para as tentativas de controle dos meios, das plataformas tecnológicas de comunicação, e passam a depositar esperança nos algoritmos que permitiriam a identificação de campanhas ou “clusters” de desinformação, acionando mecanismos de “bloqueio epidêmico”, que poderiam variar de uma “advertência” de que a informação foi checada “falsa” (já em funcionamento em algumas plataformas sociais) à remoção automática do conteúdo da rede e/ou punição para os responsáveis.

    É interessante notar como o enfrentamento das duas epidemias (de coronavírus e de “fake news”) acaba recebendo abordagens inteiramente homólogas: nas situações extremas, pode-se apelar para o “shutdown” da rede; mas a tendência mais promissora, porque preserva o funcionamento da rede, é a instalação de mecanismos de vigilância algorítmica de todas as informações circulantes. As mesmas preocupações já levantadas em relação às estratégias de enfrentamento da pandemia se recolocam, com redobrada preocupação, nesse terreno, sobre o risco que há em se banalizar a instauração de mecanismos permanentes de vigilância algorítmica como se fosse um preço razoável a se pagar pela suposta garantia da “veracidade” do que circula na rede. Aqui também as grandes escolhas não são técnicas, mas políticas.


    5 – Qual a sua opinião sobre o desenvolvimento da área de Comunicação Social e Saúde no campo da Saúde Coletiva no Brasil nas últimas três décadas?

    Sem dúvida, nessas últimas décadas, houve um desenvolvimento importante dessa área no campo da Saúde Coletiva, expresso na maior presença da pesquisa específica em Comunicação e Saúde nos periódicos do campo (além da criação de uma revista especializada, com mais de 20 anos de existência), mas também na multiplicação de temas e focos de investigação envolvendo problemáticas “comunicacionais” ou passíveis de uma abordagem “comunicacional”, em outras áreas da Saúde Coletiva. A micropolítica do trabalho vivo em saúde e as “tecnologias leves”, o acolhimento como trabalho afetivo e técnica de conversa, as dimensões intersubjetivas do cuidado em saúde, a humanização do cuidado e da gestão, o desafio da cogestão, o desafio da interprofissionalidade, do trabalho em equipe, da articulação do trabalho em rede, a coordenação do cuidado, o apoio matricial, a educação permanente, a educação popular em saúde, são apenas alguns exemplos que dão testemunho desse crescimento das abordagens e temas envolvendo uma problemática “comunicacional” no campo da Saúde Coletiva. Todas pautas de pesquisa em estreita relação com desafios concretos postos no cotidiano dos serviços e nos processos de construção do SUS.

    Mas há outro modo de se compreender o desenvolvimento da área nas últimas décadas, que leva em consideração os deslocamentos de paradigmas que se deram nesse período. Uma análise mais fina e detida poderia identificar ainda outros deslocamentos, mas vou destacar, neste momento, dois principais, sintetizados em dois acontecimentos epocais marcantes e decisivos: a epidemia de HIV/AIDS e a internet.

    De novo, uma epidemia. Uma epidemia que, em meio à profusão de efeitos produzidos no mundo contemporâneo, veio colocar em xeque concepções arraigadas e estratégias tradicionais de comunicação em saúde. O enfrentamento de uma epidemia que, em seus primeiros anos, contava apenas com formas de prevenção baseadas em mudanças de comportamento (sobretudo, na esfera sexual), forçou uma revisão profunda das concepções a respeito da determinação do comportamento que, até então, orientavam as estratégias convencionais de comunicação em saúde. Pode-se dizer que a epidemia de HIV/AIDS colocou em crise os modelos de comunicação transmissionistas, fundados em esquemas “behavioristas” de compreensão da determinação do comportamento, convocando modelos mais dialógicos e esquemas de compreensão da determinação do comportamento que concebem uma forte influência de determinantes estruturais, coletivos e institucionais. Esse importante deslocamento de paradigma está bem representado em todos os desenvolvimentos teórico-práticos produzidos no campo pelo conceito-operante de vulnerabilidade, cuja operacionalidade tem sido exercitada nas análises e proposta de enfrentamento da epidemia atual…

    A importância do segundo acontecimento – o crescimento e a popularização da internet e das mídias sociais – também já foi, não casualmente, ressaltada nos comentários que fiz sobre as dimensões comunicacionais envolvidas na epidemia atual, sobre as profundas mudanças produzidas pelas tecnologias digitais de comunicação em rede em nossa “ecologia comunicacional” e seus impactos para a comunicação em saúde. No meu entendimento, o deslocamento de paradigma, nesse caso, também golpeia o “transmissionismo” tradicional, pois, cada vez menos, a experiência de comunicação coletiva se comporta como no modelo do “broadcasting” e, cada vez mais, como um fenômeno de “produção de comum”; cada vez menos, comunicação como transmissão “telefônica” ou “televisiva” de mensagem e, cada vez mais, como produção em “redes” de diferentes formas de “inteligência coletiva”.

    São deslocamentos importantes, com consequências profundas para os modos de se colocar problemas teórico-práticos no campo da Saúde Coletiva, cujos impactos na produção científico-tecnológica da área ainda estão se fazendo sentir, mas devem dar um grande salto no chamado mundo pós-coronavírus. De fato, as novas tecnologias de comunicação e informação fundem, no mais alto grau, suas potencialidades de emancipação e de controle dos coletivos humanos. Por um lado, a potência de produzir inteligência coletiva, enquanto expressão das dinâmicas multitudinárias imanentes a todo corpo coletivo, capazes de produzir potência de ação coletiva. Por outro lado, o sequestro dessa “inteligência” e de nossa potência de ação coletiva, não mais apenas pelo Estado (talvez, por isso, possamos perceber com maior nitidez a expressão de uma inteligência coletiva em resposta ao que se impõe como um desafio coletivo de proteção da vida, lá onde o Estado está mais ausente: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/04/11/favela-de-sao-paulo-vira-exemplo-em-acoes-contra-o-coronavirus.ghtml), mas também, cada vez mais, por determinadas aplicações de inteligência algorítmica que vêm construindo a infraestrutura do chamado “capitalismo de vigilância”. São questões que me parecem capitais na encruzilhada biopolítica em que nos encontramos e que devem assumir um lugar bem maior e bem mais central nas discussões da Saúde Coletiva nos próximos anos.

    Por fim, cabe ainda um comentário sobre a comunicação em saúde, para além das dimensões tecnológicas, lembrando que essa problemática é a que mais aproxima as questões de saúde das fronteiras da arte e da cultura. Trata-se de lembrar e reconhecer o quanto os principais fenômenos vitais de importância para a saúde humana no mundo contemporâneo dizem respeito a processos de comunicação e cultura. É nesse terreno, por exemplo, que poderíamos situar todas as investigações e experimentações práticas que têm buscado explorar as tensões e eventuais sinergias existentes entre a saúde e a grande mídia, em particular, entre o sistema público de saúde e a sua presença, a sua representação, na produção cultural brasileira. Há muitas formas possíveis de se argumentar sobre a relevância para o campo da Saúde Coletiva das intervenções e pesquisas que se realizam nessa fronteira com a arte e a cultura, mas podemos, mais uma vez, apoiarmo-nos na experiência presente da pandemia para ressaltar essa relevância. Em tempos em que se coloca uma ameaça à saúde individual e coletiva, em escala global, fortemente tendente a reforçar concepções mais reducionistas de saúde, mais focadas nos elementos biológicos e organicistas e nas ameaças portadas por um agente infeccioso; em tempos que nos induzem a uma visão de saúde mais reduzida, mais circunscrita à problemática da preservação da vida e da garantia de uma certa segurança de que nós sobreviveremos às ameaças biológicas que nos cercam; em tempos, enfim, em que se abre uma certa oposição entre a saúde e a qualidade de vida e o bem-estar, já que a preservação da primeira, neste momento, parece depender de abdicarmos destas últimas, já que a preservação da vida e da saúde, neste momento, parece mesmo nos obrigar a atravessar um processo de profundo mal-estar e de afastamento de tudo que configurava nossos ideais de qualidade de vida, incluindo a possibilidade do convívio social; é justamente neste momento que as riquezas maiores que encontramos nas fronteiras entre a saúde, a arte e a cultura, ganham ainda mais relevância. Vivemos tempos não apenas para serem padecidos, mas enfrentados. Tempos não apenas para enfrentamento do vírus e da epidemia, mas também de todas as tendências regressivas que esses tempos podem imprimir em nosso modo de vida e nossas concepções sobre a saúde. Enfrentar esses tempos exigirá, e muito, o exercício irrequieto da arte e da cultura, em sua função de abrir o campo de possibilidades, de excitar a imaginação de outros mundos possíveis e de nos permitir esperançar a sobrevivência de formas de vida que digam sim à vida! Trata-se do reconhecimento da arte e da cultura como produtoras de saúde enquanto potência de vida, mas também como produtoras de uma “cultura da saúde” em que a saúde não se reduza à mera sobrevivência de “vidas nuas”. É desse modo também que vejo as potencialidades da área da Comunicação e Saúde para o desenvolvimento do nosso campo e o tipo de contribuição que pode vir a dar para alguns de nossos maiores desafios atuais…

  • SUSCETIBILIDADE E VULNERABILIDADE À COVID-19: SOMOS TODOS IGUAIS?

    por: Ricardo Rodrigues Teixeira (Professor da Faculdade de Medicina da USP) e Ivan França Jr. (Professor da Faculdade de Saúde Pública da USP)

    uma versão bem reduzida desse artigo foi publicada na FSP em 26/03/2020

    Até o momento, sabemos que duas abordagens vêm, de algum modo, dando resultados no enfrentamento da epidemia de COVID-19.

    Chamaremos a primeira de testagem agressiva e sustentada. Ela busca ativamente pessoas que possam estar infectadas (testagem dos sintomáticos, busca e testagem dos contatos, visitação domiciliar, controle de temperatura, quarentena dos positivos). Esta tem sido basicamente a resposta na Coréia do Sul, Japão e em cidades-estados como Singapura e Hong Kong. Na Coréia do Sul, após testar 222 mil pessoas, houve um decréscimo dos casos novos, mas chegaram a quase 10 mil casos confirmados e 75 mortes. Os demais têm menos de mil casos.

    Esta resposta exige um sistema de vigilância epidemiológica forte com recursos para buscar, testar, tratar e isolar pessoas, combinado ao uso intensivo de controles por celular, monitoramento do uso de cartão de crédito e, inclusive, por satélites. Para que seja bem-sucedida, além de um sistema de saúde robusto, é preciso que as pessoas isoladas recebam apoio psicossocial, alimentar e de outras necessidades. Na Coréia do Sul, o sistema de saúde é de acesso universal e gratuito, e considerado o melhor entre os países membros da OCDE.

    Esta abordagem é conhecida como estratégia de alto risco, em que o foco está na procura, avaliação e cuidado dos já afetados. Trata-se de uma estratégia fundamentalmente focada nos indivíduos considerados de “alto risco” para a disseminação da doença. Neste caso, os já comprovadamente infectados. Temos razões para acreditar que esse “modelo coreano” tenderá a ser expandido a partir dessa pandemia. Não sem inúmeras implicações ético-políticas que merecem ser discutidas, já que ela envolve graves infrações do direito à privacidade e a implementação de mecanismos de controle individualizado dos cidadãos dignos de um episódio de “Black Mirror”.

    Chamaremos a segunda abordagem de distanciamento social. Trata-se de uma estratégia de saúde pública que busca reduzir drasticamente o contato entre pessoas, de tal modo a diminuírem ao máximo as chances de contato entre infectados e não-infectados. Ela envolve medidas de larga escala, como cancelamento de eventos e fechamentos de espaços públicos, bem como decisões individuais de evitar multidões e manter distância mínima entre pessoas. Em situações mais extremas, isso pode significar interromper a circulação de pessoas em regiões, cidades, estados ou até em um país inteiro, bem como promover grande mobilização social para que os cidadãos adotem oautoconfinamento voluntário e prolongado. Independentemente da situação clínica de cada um, o distanciamento social é adotado por todos os habitantes de um dado local e não apenas pelos afetados. Esta abordagem é conhecida como estratégia populacional.

    Esta foi a estratégia primordialmente adotada pela China, na cidade de Wuhan, província de Hubei. Foram adotadas várias medidas progressivamente mais restritivas à circulação de pessoas: numa primeira etapa, isolando Wuhan e outras áreas da província de Hubei, visando impedir a exportação de casos; numa segunda etapa, restringindo a circulação de pessoas dentro das cidades, construindo um verdadeiro cordão sanitário. Essas medidas foram o tempo todo mescladas à testagem agressiva e sustentada.

    Como na Coréia do Sul, o esforço também tem sido enorme. Segundo a OMS, “em Wuhan mais de 1800 equipes de epidemiologistas, com um mínimo de 5 pessoas/equipe, estão rastreando dezenas de milhares de contatos por dia. O acompanhamento dos contatos próximos dos casos suspeitos é meticuloso, com uma alta porcentagem destes completando a avaliação médica. Entre 1% e 5% dos contatos foram posteriormente casos confirmados em laboratório para COVID-19”. Há alguns dias, não há casos novos e, hoje, a China acumula 81.116 casos e 3231 mortes.

    As estratégias populacionais possuem, via de regra, muito maior potencial para obter resultados coletivos que a estratégia de alto risco, mas também possui suas desvantagens. Há consequências econômicas e psicossociais importantes. Afeta o cotidiano de vida e trabalho, ampliando a ocorrência de sofrimento psicossocial, da fome e da pobreza em vastos setores da população. A implementação também pode ser difícil, dada a necessidade de mobilização coletiva para o autoconfinamento prolongado. Exige do Estado uma alta capacidade de controlar centralmente a informação, de coordenar a gestão das ações para sustentar a vida das pessoas e de exercer poder coercitivo externo. Esse “modelo chinês” também possui inúmeras implicações ético-políticas, com outras violações de direitos civis e políticos, que podem impor limites à sua aplicação em sociedades democráticas e abertas.

    O “modelo chinês”, confirmando o maior impacto coletivo das estratégias populacionais, conseguiu, ao que tudo indica, interromper a transmissão e zerar o número de casos novos. O “modelo coreano” vem sendo bem-sucedido na estratégia de “achatamento da curva de contágio”, sem zerar totalmente a transmissão, mas conseguindo uma desaceleração considerável, que preserva a capacidade de resposta do sistema de saúde e faz com que a Coréia do Sul venha apresentando uma das menores letalidades. Ambas as estratégias não eliminam o problema do estoque de suscetíveis – daqueles que ainda não se infectaram e podem vir a se infectar se o vírus continuar em circulação –, colocando em dúvida a sustentabilidade do panorama atual nos dois “modelos”.

    O caso italiano, que vem sendo tratado como o mais dramático de descontrole no número de casos novos e de óbitos, não adotou efetivamente nenhum dos dois modelos acima. Inicialmente, adotou apenas a testagem dirigida aossintomáticos, sem medidas efetivas de vigilância e busca ativa de novos casos.
    Quando a situação saiu do controle, se viu obrigada a adotar o distanciamento social, mas de forma tardia e através de medidas radicais, baseadas em importantes restrições de direito e forte coerção policial. Importante dizer que, a despeito da generalização, houve diferenças de respostas entre várias regiões da Itália, sendo menos afetadas as regiões ou cidades onde se realizou testagem mais agressiva ou o “lockdown” foi instituído mais precocemente.

    No Brasil, num momento em já nos encontramos em um nível de resposta que é de “emergência de saúde pública”, estamos tendendo a uma combinação dos dois “modelos”, mas com limites. Segundo o Procedimento Operacional Padronizado estabelecido pelo Ministério de Saúde, a testagem permanece restrita à confirmação diagnóstica de casos suspeitos, com indicação de avaliação dos contatos próximos, encaminhando-se para testagem apenas os casos sintomáticos detectados. Também não houve, até aqui, a busca ativa de pacientes internados em hospitais privados, como ficou evidenciado pelos casos do Hospital Sancta Maggiore, que só foram descobertos quando vieram a óbito, caracterizando uma forma de vigilância “passiva”. Portanto, uma estratégia ainda bem distante da testagem agressiva e sustentada praticada pela Coréia do Sul.
    Por outro lado, também vem sendo adotada uma estratégia gradual de distanciamento social, mas com medidas menos drásticas do que a China e numa etapa posterior da epidemia. Sinteticamente, temos, até aqui, uma resposta ínfima na testagem se comparada à coreana e tímida de bloqueio na circulação se comparada à chinesa.

    Não se trata de escolher entre um e outro “modelo”, nem sugerir que poderíamos ou deveríamos aplicar qualquer um deles na íntegra e acriticamente. Trata-se, sim, de cotejar as evidências de sucesso e insucesso que dispomos, num contexto que exige respostas rápidas, para agirmos da maneira mais efetiva possível para preservar vidas, sem violação de direitosfundamentais ou a aceitação resignada do impacto brutal que a epidemia terá sobre os mais vulneráveis. Nesse sentido, considerando o estágio em que já nos encontramos da progressão epidêmica, parece-nos urgente acelerar a combinação da testagem agressiva e sustentada e o distanciamento social, mas orientadas pelas singularidades da nossa estrutura econômica e social e pelos valores que estão na base de uma sociedade democrática e solidária.

    O Brasil, em princípio, se encontraria entre as países que teriam potencialmente uma das melhores capacidades de resposta por contar com um sistema universal e gratuito de saúde. Mas sabemos que a história do SUS é marcada pelo subfinanciamento crônico, agravado, nos últimos anos, pelo desfinanciamento, com o comprometimento de áreas estratégicas. Para aumentarmos nossa capacidade de testagem, precisamos adotar medidas urgentes de reversão desse cenário e fortalecimento do SUS, em especial, da atenção básica e da vigilância epidemiológica e sanitária, além da assistência médica e multiprofissional necessária para o atendimento dos doentes.

    Para tornar efetivo o distanciamento social, precisamos ampliar a mobilização social para o autoconfinamento voluntário prolongado, acionando medidas de mitigação das consequências indesejáveis desse confinamento, em especial,para as populações mais vulneráveis. Medidas que são, de fato, pré-condições para que essas populações possam aderir ao distanciamento social. Em outras palavras, é preciso uma orientação firme e inequívoca das autoridades sanitárias para que o distanciamento social massivo seja praticado. Mas, como sabemos, é na implementação dessa medida que vêm se expressando as mais brutais desigualdades perante essa epidemia. Somos todos suscetíveis, mas a vulnerabilidade é profundamente desigual. São milhões e milhões de brasileiros que vivem do ganho diário para sobreviver, trabalhadores precarizados, sem proteção social, vivendo sem condições adequadas de moradia e de saneamento urbano, quando não vivendo nas ruas. Fundamentalmente, são estes brasileiros que não poderão aderir às medidas de distanciamento social, não porque não queiram, mas porque não podem.

    Diante do imperativo desafio de desacelerar a epidemia e preservar tanto quanto possível nossa capacidade de cuidar dos casos mais graves sem o colapso do sistema de saúde (que, presumivelmente, aumentará o número de mortes e não apenas pelo coronavírus), precisamos acelerar e ampliar tanto a estratégia de alto risco, quanto a populacional. Sabemos, contudo, pela experiência de outros países, que as medidas de distanciamento social radical acabam se impondo de forma draconiana quando a epidemia progride para o descontrole. No ponto da curva ascendente de novos casos em que nos encontramos no Brasil, entendemos que o distanciamento social se apresenta como medida emergencial prioritária e mandatória, mas ainda temos a chance de decidir de que maneira iremos implementá-lo. Essa decisão, tecnicamente embasada, apresenta-se, contudo, como uma clara bifurcação política a respeito do papel esperado de um Estado na gestão de uma crise dessa magnitude e gravidade. De um Estado que, obviamente, não se resigna à passividade e a meramente contabilizar os casos e as mortes e narrar os próximos capítulos da catástrofe. Queremos um Estado judiciário-policial que atuará para impor um distanciamento social forçado, com suspensão de direitos e imposição de todos os danos colaterais dessa medida aos mais vulneráveis ou um Estado social e de defesa dos direitos fundamentais, que proverá os meios necessários para que todos, independentemente das condições de vida, possam efetivamente adotar o distanciamento social voluntário.

    Não podemos conceber em hipótese alguma que a admissão de mortes que poderiam ser evitadas entre nos cálculos que embasam nossas decisões. O princípio deve ser: ninguém será deixado para trás. Em tempos de embrutecimento dos espíritos, também precisamos estar muito vigilantes em relação ao que enuncia coletivamente nossas decisões, sob pena de fazermos escolhas que podem trazer maior ameaça à nossa sobrevivência como “espécie” do que o próprio vírus.

  • O Devir Negro do Comum: reflexões a partir dos desafios do SUS

    Tadeu de Paula Souza é professor do Departamento de Saúde Coletiva da UFRGS e coordenador adjunto da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da ABRASCO. Autor do livro – Estado e Sujeito: a saúde entre a micro e macropolítica…de drogas

    Foto: Peter Ilicciev

    O XII Congresso da ABRASCO foi, certamente, um marco na história da saúde coletiva e expressou aspectos do que pretendo organizar nessa breve fala. O desafio que tomei como urgência para se problematizar alguns impasses do SUS foi o de pensar o comum a partir da perspectiva de lutas, em especial na perspectiva da negritude. Trata-se de um ensaio que embasou minha fala na mesa “Direito a saúde, direito a uma vida comum: novas formas de lutar em tempo de neoliberalismo” que reverberou com uma certa vibe do congresso. Mesa que tive o prazer de compartilhar com Henrique Parra, Henrique Sater e Alana Moraes.

    Do mesmo modo que o comunismo não foi um regime político do comum o seu fim não encerrou as lutas do comum. As lutas altermundialistas do final do século XX e início do século XXI apontam para um ciclo de lutas que se conectam em torno da defesa do comum: a revolta de Seattle contra o Fórum Econômico Mundial no final da década de 1990, a luta contra a privatização da água em Cochabamba no início do século XX na Bolívia, o Fórum Social Mundial de Porto Alegre em 2001 e mais recentemente os movimentos do Occupy, Primavera Árabe e as jornadas de junho de 2013 no Brasil. São movimentos em escala global que tem recolocado o conceito de comum como princípio político, por ser potencialmente um conector de lutas contra o neoliberalismo. Potencialmente, pois todos esses movimentos têm nuances que não necessariamente rumam a uma política do comum. Eis nosso desafio!

    Esse ciclo de lutas lança o comum como princípio político, mas também como critério que nos permite pensar as lutas e as políticas públicas a partir do comum. O esforço de pensar o público e, em especial o SUS a partir do comum, é uma estratégia política vital, pois como veremos nem sempre o público coincide com o comum. O ataque ao SUS, que com a EC 95 pretende ser fatal, vem dentro de um ciclo de ataques as nossas reservas de comum em escala global. Aquífero Guarani, terras indígenas e quilombolas, pré-sal, a biodiversidade das faunas e floras brasileiras, os direitos trabalhistas se tornaram alvo de uma política da rapinagem. Esse ciclo de ataque, que alguns autores enxergam como um novo ciclo mundial de acumulação primitiva em escala ostensiva, tem gerado a necessidade de revisitar o conceito de comum e lança-lo numa perspectiva revolucionária. Pensar o comum como um princípio político revolucionário porque recoloca a vida social fundada naquilo que não é passível de ser apropriável e desse modo refundar as relações sociais a partir do comum!

    Como critério para se pensar o público o comum traça uma perspectiva para analisar uma radicalidade possível ainda a ser exercida no SUS. Existem muitos problemas e insuficiências macroestruturais do SUS, como o eterno tema do financiamento, que tende a ser colocado como um problema que escapa a governabilidade de qualquer ator político constituído. Tendo a acreditar que este problema decorre de outro, de uma tarefa ainda a ser feita na esfera do comum. Uma tarefa não só do SUS, mas do próprio campo da esquerda institucional. Uma tarefa que nesses 30 anos de SUS ainda não foi exercida numa radicalidade possível. Tal tarefa ainda não realizada que só será possível se adotarmos um perspectivismo do sul do mundo para pensar o comum, criando assim um contra-ponto com a perspectiva eurocêntrica do comum. Mas de que comum falamos?

    O DEVIR DO CONCEITO

    A história do conceito do comum não constitui uma linearidade, nem mesmo uma história interconectada. Os diferentes sentidos que emergem de diferentes impulsos históricos, com bifurcações e meandros que não constituem uma totalidade: assim percorrem Dardot e Laval na arqueologia do conceito de comum. A etimologia da palavra comum (co-munus) dá uma pista: munus designa atividade de reciprocidade, de dádiva mútua. Comum estaria relacionado a um agir pautado num compromisso com uma coletividade. Além de sua origem etimológica os autores apontam quatro impulsos do conceito de comum.

    Um primeiro impulso moral e teológico provém do cristianismo: o “bem comum” ou utilidade comum (no singular) indica ao mesmo tempo uma finalidade última das instituições e um princípio moral do homem. As instituições e o homem estão destinados à procura do bem comum. Esse sentido de comum, embora não tenha hoje uma extensa penetração na vida social, não se dissolveu e segue sendo um lugar comum do comum, sua matriz moral-religiosa.

    Um segundo impulso que surge no direito romano emerge de um campo de disputa em torno da demarcação de bens apropriáveis e não apropriáveis. Os “bens comuns” (no plural) como a água, o ar, a terra são tratados como campos de disputa mediada pelo direito que demarca uma distinção entre a res publica, a res nullis. Enquanto a res publica indica o que “pertence a todos” e resguardado pela administração estatal a res nullis refere-se ao universo daquilo que não pertence a ninguém porque ninguém se apossou. Nesse ínterim estaria a res comunnis que indicaria aquilo que não é passível de ser apropriado, portanto difícil de ser situado, pelo menos no direito romano, na esfera do jogo institucional. A imprecisão do direito da res comunnis, ou bens comuns, deixou desde o império Romano, a possibilidade aberta da res comunnis ser considerada res nullis, uma vez que no direito Romano a res comunnis não formar exatamente uma categoria jurídica. O comum como “coisa” (res) se recoloca hoje nas lutas pelos direitos dos bens comuns, incluindo aí a linguagem, o conhecimento, o ciberespaço e o espaço extra-atmosférico.

    Aqui tem um problema central para o problema do comum colocado por Dardor e Laval, pois até hoje não existe uma jurisdição clara para aquilo que não é apropriável. Os bens comuns ocupam um lugar impreciso de quase não direito, uma vez que no ocidente e em especial na modernidade, o direito se ergueu em grande medida a partir da propriedade enquanto direito natural.

    Um terceiro impulso, filosófico, associa o comum ao universal, seja para depreciá-lo ou para equivalê-lo ao universal. A história moderna da filosofia ocidental, de Descartes a Kant, o comum ora expressa o que é ordinário e trivial ora designa o transcendental que iguala todos os seres humanos, uma faculdade ou uma essência.

    Um quarto impulso do comum vem de diferentes lutas e movimentos sociais da modernidade e funda o “comum” como princípio político ou como prefere Hardt e Negri, como carne da democracia. Um impulso que apresentaremos em quatro momentos de lutas contra a mega-máquina de captura do comum: os movimentos republicanos contra o absolutismo no século XVII, o movimento proletário do século XIX, os movimento contra culturais do século XX e os movimentos altermundialistas no início do século XXI. Esses quatro momentos de luta do comum estão relacionados a diferentes estágios de desenvolvimento do capitalismo que expressam quatro formas principais de apropriação do comum: a representação, a expropriação, a exploração e a normalização. Quatro impulsos do comum que emergem de estratégias de resistência à apropriação do comum pelo capital.

    A MEGA MAQUINA DE CAPTURA DO COMUM

    O primeiro problema, o da representação foi mais diretamente enfrentado pelo filósofo Espinosa, numa certa aliança entre o pensamento subversivo e as lutas republicanas do século XVII, as lutas da ‘multidão’. Positivando o conceito político de multidão o pensamento de Espinosa trava um confronto direto ao pensamento político e teológico dominante, em especial o Leviatã de Hobbes.

    Embora Hobbes considere a multidão como uma realidade política é sempre sob o signo da barbárie. A multidão existe como aquilo que deve ser governado, pois somente o que é uno pode governar. A heterogeneidade, as singularidades, em suma a carne da multidão é sempre irracional e estaria fadada ao caos e a guerra. A multidão comparece na condição daquilo que deve ser governada e unificada a partir de um governo que a representa, o soberano, o Estado. A possibilidade de paz, da ordem e do progresso depende de um contrato social entre pessoas livres que por decidem transferir seu poder para uma instância superior que as representam. A representação estabelece e estabiliza a relação multidão/governo através da forma povo/soberano.

    Em ‘Tratado Político’ Espinosa afirma que não é possível um indivíduo transferir seu poder a outrem, pois isso seria a própria morte. O poder individual será sempre exercido em alguma esfera da vida. O contrato social não se dá mediante uma decisão livre e espontânea de renúncia, mas a partir de mecanismos de coerção que tendem a homogeneizar a multidão. A representação como mecanismo política produz uma separação entre a potência da multidão e o Estado. Doravante o público se confunde a administração Estatal, situado numa esfera distante e separada do poder da multidão. Contrário a esse modelo Espinosa vai propor um governo que não separa povo e poder, poder e multidão. Sua obra inconclusa, Tratado Político, deixou em aberto justamente o ultimo capítulo em que traria uma forma de governo democrático. Após abordar as formas de governo monarca e aristocrático, Espinosa caminhava para apresentar uma forma de governo da multidão, quando ainda jovem morre após anos de perseguição. Seria a forma de governo democrático uma forma de encontro entre os conceitos de comum e multidão? Não seria justamente essa junção inacabada que Negri e Hardt, em “Multidão” e “Bem-estar Comum” vão buscar traçar já num contexto das lutas altermundialistas do século XXI? O comum como uma modalidade política da multidão, em que as diferentes singularidades possam ganhar expressão e institucionalidade política. Deixemos essa questão mais para adiante.

    Os impasses da representação são retomados por Foucault quando este analisa a racionalidade liberal. Pois veremos como coube aos liberais completar a equação inacabada do sujeito moderno proposto por Hobbes. Com John Locke e Adam Smith surge não um sujeito do direito pautado no contrato social e na renúncia, mas o sujeito que se realiza na medida em que tem interesses, interesses egoístas em que o auto empreendimento se torna a verdadeira mola propulsora da vida social. O poder individual não foi transferido para o Estado, ele foi bloqueado pelos mecanismos políticos da representação para ser investido na esfera privada. O sujeito moderno se torna um sujeito bifaceado: um sujeito da renuncia na esfera pública e um sujeito egoísta e competitivo da esfera privada. O sujeito da renúncia da esfera pública, que passa a atuar de forma limitada a partir da representação política, encontra a possibilidade de realização e exercício de seu poder na esfera privado, no mercado. A moral do ‘bem comum’ como finalidade do homem se vê agora lançada a uma esfera bem específica da vida, a espiritual. O homem universal que a modernidade quer fundar a ferro, fogo e sangue é ao mesmo tempo o homem paranoico “lobo do próprio homem”, que necessita de uma mediação política transcendente e o homem essencialmente egoísta, que necessita da concorrência para se realizar na esfera social. Essa natureza humana que se imporá como universal, marca o momento inaugural da braquitude como estética, ética e política do capitalismo, derivando em um amplo e longo processo de expropriação e exploração do comum em escala global.

    A braquitude que funda um homem universalmente paranoide e egoísta constitui elemento indispensáveis para se compreender o Estado Moderno como mega-máquina capitalista de captura de toda forma de comum. A subjetividade paranoide e egoísta institui uma violenta barreira para se pensar um sujeito da solidariedade e do compromisso coletivo. Se somos essencialmente lobos de si e universalmente egoístas, o comum não tem qualquer serventia ou viabilidade política e institucional.

    COMUM E DESIGUALDADE

    Não é para menos que para Marx o direito do comum que se quer fundar é um que seja formulado a partir de outro universal, um universal que não se fundamenta numa suposta natureza humana, mas um universal historicamente constituído, o universal da pobreza. Das lutas contra a expropriação e exploração emerge um novo campo para o comum. Aqui Marx se opõe a toda uma tradição do direito inglês como direito comum (ComumLaw) como um direito consuetudinário, ou seja, que surge dos costumes e dos hábitos coletivos. Marx faz questão de diferenciar os costumes dos privilegiados e os costumes dos pobres. É toda uma reflexão que gira em torno do direito dos pobres colherem os galhos caídos das árvores no chão, fonte de grandes debates e reflexões do jovem Marx. Os cercamentos dos ‘comunners’ deixaria ainda em aberto a possibilidade do hábito de recolher galhos caídos nas florestas um direito do comum?

    Embora seja um costume secular, Marx vê na criminalização desse costume um Estado a serviço dos interesses dos grandes proprietários e um direito comum que se constitui sempre a partir dos costumes e hábitos dos privilegiados. Será, doravante, na constituição das lutas de classes que o comum se vê lançado para fora do direito consuetudinário dos privilegiados para se tornar um objetivo político dos explorados. Somente a partir das lutas contra a expropriação e a exploração que o comum pode se erguer contra um modo de vida que se funda na propriedade, na concorrência e no individualismo.

    Trata-se de um impulso que, com todos os meandros impossíveis de serem abordados aqui, levou a luta de classes rumo aos diferentes destinos do comum no início do século XX. Principalmente ao trágico regime comunista em que o Estado se confunde com o próprio partido que se volta contra todo modo de exercício coletivo e descentralizado de poder. Por outro lado, essas lutas produziram um grande legado e uma importante reserva de comum em torno de novos direitos do comum que emergiram das lutas, em especial na Europa ocidental. As lutas sociais como fonte de criação de direitos do comum refunda um sentido de público que não se confunde e não se encerra no Estado. Se no seio da Europa foi assim que a luta de classes situou o comum como um princípio político que não se nasce do seio do Estado, mas das lutas e mobilizações dos marginalizados, em escala mundial ele precisa ganhar uma perspectiva que não se separa do problema geral do racismo.

    O capitalismo movido pela racionalidade liberal controlou os movimentos da multidão a partir da repartição em dois eixos: um material e um imaterial – uma separação da multidão entre uma minoria que tem e uma minoria que não tem: uma separação desigual dos bens material, criando uma massa de desapropriados. Processo esse que sempre veio associado a uma segunda separação: entre quem é e quem não é, uma repartição desigual entre singularidades ditas normais e singularidades anormais. Agora é possível retomar as quatro formas de apropriação do comum e como elas se articulam. 1) a representação que separa o poder da multidão, como uma forma de organização política a partir do contrato social pautado na renuncia acabou por se tornar um modo de perpetuação de um mesmo tipo político: o homem branco hetero de classes privilegiadas. 2) A expropriação dos bens comuns a partir do processo que Marx chamou de acumulação primitiva que separa o trabalhador dos meios de produção comunais, em escala mundial instituiu o Negro como signo de anormalidade e destino da pobreza; 3) a exploração que se efetua com a alienação na medida em que separa os trabalhadores no interior da fábrica transformando a produção comum produzido em mais valida; 4) os processos de normalização analisadas por Canguilhem, Foucault que subdivide a multidão e separa o normal do anormal, tendo sempre um foco e um peso especifico para negros, mulheres e gays. As diferentes singularidades se encontram desse modo cindidas e barradas de caminhar em direção ao comum.

    A longa marcha do movimento operário europeus no antes e pós-grandes guerra foi um processo de constituição de reservas de comum: direitos sociais e humanos, políticas públicas, ampliação da participação e inclusão de grupos excluídos na esfera política. Esses acúmulos produziram algumas aberturas que foram desembocar em novos movimentos na década de 1960. Momento em que é possível perceber uma diferença entre os rumos dos questionamentos entre intelectuais europeus e os movimentos de intelectuais negros, especialmente nas Américas: uma revisão da história capitalista a partir da perspectiva de uma negritude, nos termos defendidos por Fanon. Se Negro é o nome dado ao europeu para determinar um lugar de não humano, negritude é o termo que demarca uma apropriação em torno das lutas por liberdade, justiça e direitos dos expropriados e descendentes dos escravizados de África.

    COMUM E DIFERENÇA

    No documentário sobre maio de 68 – “No intenso agora”- o diretor Moreira Sales é preciso ao atentar que nas cenas recuperadas das ruas de Paris se vê poucos negros e nas raras cenas aparecem sempre num segundo plano.

    Franz Fanon, Angela Davis e mais recentemente Achille Mbembe não deixam passar em branco que foi sempre sobre a denominação ‘NEGRO’ imposta pelos brancos que a pilhagem, o roubo de terras e riquezas e o trabalho forçado se legitimaram e assim criaram as condições para o desenvolvimento do capitalismo. Embora a acumulação primitiva e a exploração tenham ocorrido no interior da Europa foi sobre a África e as Américas que sua faceta genocida deixaram traumas profundos ainda não curados. O Negro se torna a um só tempo marcador de pobreza e de anormalidade. A raça como signo de anormalidade e a pobreza como signo racial geram um novo significante: da pobreza como fruto de uma anormalidade genética, a pobreza como origem e destino de uma raça inferior.

    Se no centro do capital as tecnologias de subjetivação operaram através de dispositivos sofisticados e sutis como bem analisa quase toda obra de Foucalt, na periferia do capital esse processo se deu a partir do extermínio de todo modo de vida que não seguia a regra da braquitude. A confirmação de que o humano é essencialmente egoísta e competitivo se deu através do extermínio de toda etnia que não confirmava essa regra.

    Junto a esses pensadores saltamos para uma terceira cena do comum, a partir de grupos que foram silenciados durante séculos, por não serem até então incluídos como humanos: as mulheres e os negros. A década de 1960 marca o momento em que se diz: não só existe desigualdade social como ela é ainda mais aguda entre negros e mulheres, e especialmente mais grave entre mulheres negras. As diferenças de gênero e de raça e seus processos de subjetivação são colocadas como estruturante das desigualdades sociais. Sobre a necessidade de afirmação das diferenças que foram sujeitadas, criminalizadas, anuladas e patologizadas que um novo grito do comum se faz ouvir. Será no pensamento interseccional emergente, especialmente de negros e feministas que novos territórios identitários traçam uma nova perspectiva política do comum e das lutas de classe.

    Desde então tem havido um esforço com parciais sucessos, mas sempre violentamente paralisado, um esforço de não separar as estratégias de dominação das estratégias de subjetivação. Foi nesse momento da história de lutas que o neoliberal comparece como uma nova racionalidade e reação a nova produção do comum. O extermínio das principais lideranças do movimento negro nos EUA se agenciou gradativamente a uma nova racionalidade de governo. Em 1971 a fundação Rockefeller financia um encontro para discutir as razões das revoltas dos anos 60 e pensar caminhos para o futuro. O relatório indica que o problema dos anos 60 foi excesso de democracia, lê-se: participação de negros e mulheres na arena político-institucional. Com Reagan se inicia a política da “Economia Livre e Estado forte” que no âmbito da segurança interna se intensificam o extermínio das principais lideranças do movimento negro e criminalização dos negros. Na esfera mundial entra em cena o pacote neoliberal, que na América Latina se deu pelas portas arrombadas pelas ditaduras militares.

    O Brasil, de breve período democrático, não consolidou instituições democráticas capazes de se moldar e incluir as novas demandas da multidão expressas pelos movimentos do Cinema Novo, Tropicalismo, movimento feminista, movimento negro e intensificação dos ideais socialistas. A luta contra a ditadura tem seu mais radical expoente o negro baiano Mariguela, que assim como os negros norte-amaricanos morreram assassinados pelo Estado. Ditadura militar no Brasil, democracia nos EUA: regimes políticos distintos conectados por uma mesma racionalidade neoliberal que resultam em mesmo destino aos negros. O neoliberalismo encontrou na abertura lenta e gradual as possibilidades de manter um estado de exceção que através da Polícia Militar segue a exterminar negros pobres das periferias. A década de 90 marcaria mais um violento passo na destruição das proteções do comum.

    O devir negro do mundo e o devir negritude do comum

    O problema atual do neoliberalismo parece recolocar a dinâmica da acumulação primitiva do capital novamente na centralidade dos sistemas financeiro internacional. Ao contrário de Marx, Rosa Luxemburgo via a acumulação primitiva não como uma etapa do capitalismo, mas como um processo central e coextensivo ao capitalismo. O capitalismo vai sempre precisar expropriar, seja nas periferias do capital, seja criando zonas de instabilidade no interior dos estados capitalistas. Essa onda de expropriação generalizada que se intensifica nos anos 90 e que se intensificou ainda mais depois da crise de 2008, tem gerado um movimento que Mbembe denominou de um devir-negro do mundo. Se o negro foi o modo como os brancos nomearam os povos expropriados e escravizados, agora tal realidade se apresenta a toda humanidade numa divisão entre os 1% e o restante de toda a humanidade: uma necropolítica.

    Tal problema vital impõe o compromisso de pensar uma via do comum que seja ele mesmo restituidor e reparador, no sentido clinico-politico do qual falam Fanos e Mbembe. Contra um devir-negro do mundo existe também um devir negritude do comum, um devir provocado pelos movimentos negros que desponta uma potência produtora do comum que deve inexoravelmente passar pela questão da restituição e reparação.

    Aqui voltamos ao ponto de partida desse ensaio. Se existe uma tarefa a ser feita no SUS, como efetivação de uma política pública pautada no comum, é a tarefa de inclusão do comum pela expressão da negritude. Não será possível repensar um SUS universal que não passe pela produção do comum, assim como não é possível produzir um comum que não seja pela abertura a um protagonismo dos afrodescendentes. Aqui tem se colocado um certo impasse para a esquerda, tanto partidário-institucional quanto no campo intelectual.

    Esse impasse tem sido evidenciado pelo estranhamento e critica de parte dos intelectuais aos movimentos ‘identitários’ negros. Tem sido lugar comum os intelectuais brancos acusarem esses movimentos de se fecharem a composição sendo, portanto, uma barreira ao comum, um fechamento à diferença. Entretanto, a possibilidade de um negro se diferenciar da determinação subjetiva que o branco lhe impôs está muito mais acessível no encontro com outros negros do que com brancos. Trata-se de um devir negritude do comum nos termos colocados pela intelectual negra Neusa Santos Souza em ‘Torna-se Negro’. Do mesmo modo as mulheres entre si, e os gays entre si, e as trans entre si. Primeiro é necessário diferenciar-se da determinação heteronormativa, misógina e racista no encontro com o semelhante. A aliança constitutiva de um devir comum das diferenças sujeitadas pode produzir acumulação de potencia para equivocar o lugar do home branco hetero e criação de um si negro. Isoladas, essas diferenças não ganharão expressão institucional pois não será por livre e espontânea vontade que o branco vai ceder o seu lugar de poder. Logo, não se trata de esperar que esses grupos identitários se abram, mas que esses movimentos identitários produzam uma abertura no movimento identitário dos homens brancos heteros cis. O mundo branco deve se abrir rumo a dissolvência e não o contrário. O suposto lugar de neutralidade ou de universalidade do homem branco revela-se um lugar identitário hegemônico.

    De modo abstrato e generalizante os intelectuais europeus pensam na produção do comum como composição das diferenças sem definir claramente uma perspectiva. Fato que pode conduzir a um certo relativismo ou mesmo demarcar uma perspectiva transcendental do comum. Esse é tema que requereria mais tempo e dedicação para se analisar, mas existe uma apropriação desse discurso do comum que enxerga de modo abstrato uma potência política no encontro entre diferentes. Essa apropriação do encontro com a diferença enquanto uma aposta ético-política expressa um lugar de fala do homem branco. Pois é certo que o encontro com outros não brancos abre uma possibilidade do homem branco hetero se diferenciar do seu lugar de poder. Já para as subjetividades e modos de vida marginalizados, criminalizados e patologizados essa possibilidade está mais aberta no encontro com o seu semelhante. O mais importante da constituição do comum está no processo de diferenciação do que num encontro generalizado das diferenças. Nesse sentido há senso estratégico em curso dos movimentos identitários se fortalecerem, pois tem uma perspectiva bem situada. E pode haver aqui um equivoco de leitura de quem não se coloca numa perspectiva marginalizada, mas fala de um lugar de privilégio.

    Existe um objetivo dos movimentos identitários de se chegar a um estágio em que essas identidades não sejam mais necessárias, porém isso só irá acontecer quando o lugar identitário do branco, como medida e verdade, for dissolvido. Há, portanto, um desejo de comum, uma dissolução da raça como medida e critério que passa por um devir-negritude do comum. A identidade, o encontro com o semelhante como signo de potência se expressa aqui como território de luta, estratégia, meio de passagem, criação de abertura num mundo fechado.

    Se o SUS é uma política do comum, o é ainda de forma parcial. Nossas instituições do SUS ainda são de domínio de homens brancos, tanto das instituições acadêmicas quanto das instituições de saúde. Os negros seguem a compor o grupo que sofre mais violência institucional no SUS e são os negros que seguem morrendo mais e adoecendo mais apesar do SUS. Na sua dimensão de política de Estado, o SUS reproduz o modelo da representação em que o povo, de maioria negra, não se vê representado nas suas instituições. Nossa tarefa de democratizar as instituições de saúde implica numa atenção real a participação de negros e mulheres mais especialmente de mulheres negras, sem o qual o SUS se torna mais uma instituição em que o negro participa sempre na condição de passivo e assujeitado. Num país de maioria pobre negra como pode o SUS ter sustentação social que não seja por um projeto comum que passe centralmente pela negritude? Tarefa ainda não realizada que nos lança a um porvir do SUS pautado num comum efetivamente inclusivo.

    Um SUS que rume ao encontro do que bem aponta Djamila Ribeiro na aposta de uma nova humanidade que seja refundada desse “outro do outro”: a mulher negra. Que desse ventre originário e mítico, mas também ético e político, retornemos a uma ancestralidade para propor outro futuro possível que não separe o gesto político do gesto do amor! Ou como nos canta o rapper Rincon Sapiência: “os pretos e as pretas estão se amando”!

  • Saúde coletiva e tecnopolíticas do comum

    Henrique Z.M. Parra

     

    texto apresentado no 12° Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, no Rio de Janeiro, 27 de julho de 2018 (*)

     

    Foto: George Magaraia

     

    Recebi o convite para participar do Congresso da Abrasco como uma boa oportunidade para compartilhar com vocês alguns problemas que venho investigando no campo dos estudos sociais em ciência e tecnologia. Não sou da área da saúde e nem tenho a saúde como um tema/objeto específico de trabalho. No entanto, penso que este encontro é o início de um novo diálogo e de parcerias de trabalho. Em parte porque acredito que estamos enfrentando problemas semelhantes (na educação, na ciência e no desenvolvimento tecnológico), mas também porque na área da saúde muitos dos problemas que vamos tratar aqui adquirem uma convergência e interdependência muito densa.

    Mas também, outra razão que me aproxima das preocupações da Abrasco é a possibilidade de tomarmos a Saúde como um Comum e aí, problematizarmos quais poderiam ser as estratégias, ações, normas, protocolos, infraestruturas que dão forma à instituição (no sentido de ação instituinte) da Saúde como um Comum.

    Quais seriam as formas desses direitos e institucionalidades que dariam existência e sustentação à Saúde como um Comum? Como resistir, portanto, às dinâmicas neoliberais (micro, meso e macropolítica)? Essa é uma grande pergunta que dá forma a um exaustivo programa de pesquisa e de práticas.

    Mais especificamente, sob o guarda-chuva dessa ampla questão, tenho investigando algumas experiências (que denominamos de laboratórios cidadãos ou laboratórios de prototipado) onde este problema é enfrentado com recortes muito limitados. O que me interessa nessas experiências é a forma de enfrentamento dessas questões. Nos laboratórios constitui-se uma comunidade de afetados (ou uma comunidade de atores co-implicados) em torno de um problema que emerge diante da ameaça de destruição de um comum. Em seguida, o problema é investigado, adensado pelas distintas perspectivas (saberes incorporados e situados) dos atores, através de um esforço de criação de um protótipo, um artefato ou um dispositivo que contribua para dar um melhor entendimento e tangibilidade sobre os mecanismos de produção e sustentação deste Comum ameaçado.

    E no âmbito dessas iniciativas, o meu interesse é mais especificamente por aquelas experiências que estão envolvidas com a criação de arranjos sociotécnicos orientados para a produção do Comum. Dito de outra forma, “tecnopolíticas do comum”.

    Sinteticamente, o argumento da minha exposição será a seguinte:

    1. Caraterização de uma experiência política de assombro: não só no Brasil, mas em diversos países, experienciamos uma profunda crise institucional e das políticas sociais. Há um acelerado desmanche dos direitos sociais e o fortalecimento de um Estado-Empresa onde o público-estatal é cada vez mais indistinto do privado-corporativo. A lei, as instituições, os canais de representação parecem insuficientes para responder à atual configuração dos conflitos de uma perspectiva democrática (falamos agora em democracia autoritária, democracia securitária, normalização do estado de exceção, entre outros…).

    2. Dentro deste processo interesso-me por uma dinâmica de deslizamento nos mecanismos de exércicio do poder e nas formas de orientação da ação social, que se deslocam de uma orientação por valores, normas e leis, para uma forma de determinação/orientação que podemos denominar “tecnopolítica”. São as técnicas, protocolos, infraestruturas, procedimentos, tecnologias diversas através das quais conduzimos nosso cotidiano e se realizamos, de forma imanente, as formas de vida que elas propagam.

    3. Investigar a maneira como alguns arranjos sociotécnicos (dispositivos, aparatos e tecnologias utilizadas por humanos) participam da mudança social e abordam o problema da escalabilidade de outra forma. Um desafio que temos (na educação, saúde etc) quando pensamos numa política pública é o de encontrar formas de transpor uma iniciativa de pequena escala para uma outra escala. Todavia, ao invés de pensar em como transpor escalas (do micro para o macropolítico), assumo um caminho alternativo: como pequenos dispositivos através da recursividade e reticulação vão constituindo longos arranjos sociotécnicos.

    Ao pensar a produção do Comum por essa perspectiva, minha hipótese é que podemos encontrar estratégias complementares de luta e de instituição de novas formas de vida.

    ***

    O Comum, no sentido que estamos utilizando aqui (e inspiro-me sobretudo no trabalho de Antonio Lafuente), diz respeito à algo que é sempre produzido entre todos. Atualmente, são muitos os sentidos que podem ser atribuídos ao Comum e há uma vasta literatura sobre isso (link para uma apresentação onde discorro especificamente sobre este tema).

    O ar que respiramos, a cultura, a experiência de urbanidade, o cuidado na reprodução da vida, a escuridão da noite que permite ver as estrelas, o conhecimento, a saúde são possíveis exemplos desse Comum.

    Frequentemente este Comum só emerge, só aparece quando ele se encontra ameaçado. Quando o ar que respiramos se torna poluído, um Comum (a qualidade e portanto a participação do ar em nossa saúde) foi destruído por formas de uso que o degrada. Em termos econômicos, formas de uso e apropriação exclusiva que externalizam os efeitos de sua utilização. O Comum tem portanto uma dimensão não codificada, não formalizada, não essencialista, tácita e relacional, mas que é fundamental à produção e sustenção da vida. Essa paradoxal invisibilidade e presença constitutiva do Comum em nossas vidas é simultaneamente sua maior potência e ao mesmo tempo sua maior fragilidade.

    É neste sentido que o problema do “Comum” não pode ser separado (como bem descreveu Ricardo Teixeira) de um problema da “percepção do Comum”. Por isso, a forma do Comum transitar entre o intangível e o sensível depende de um regime de sensibilidades que dá forma a uma Política, onde as dimensões afetivas-culturais-cognitivas-econômicas são indissociáveis.

    Como percebemos que somos co-partícipes na produção do Comum? Quais as estratégias, práticas, tecnologias, infraestruturas que dão forma a essa experiência de co-implicação na produção do comum?

    Para a Abrasco é evidente que a saúde é um problema coletivo. Não há saúde individual sem saúde coletiva. Parte do conflito histórico e atual, em torno dos direitos à saúde, dá-se pelas dinâmicas que procuram submeter a Saúde a dinâmicas individualizantes (em termos dos modos de subjetivação, na forma como nos constituímos e nos relacionamos com nossa da saúde) e privatizantes (em termos das formas de codificação, mercantilização e regulação social). Mas falar em termos do “Comum” significa transbordar a dicotomia público-privado; humano-não-humano. Ele é uma terceira margem que não está em oposição nem ao público, nem ao privado. O Comum convive e apoia-se tanto no público como no privado, assim como ele se realiza com os humanos e não-humanos (objetos, recursos naturais, artefatos tecnológicos).

    ***

    Retorno então ao tema mais específico das “tecnopolíticas da produção do comum” para indicar 3 eixos de questões que me levam a eleger este recorte como forma de criação e resistência.

    1. Como explicar isso que reconhecemos como uma rápida erosão de conquistas duramente construídas? Como explicar essa intensificação, aceleração, austúcia nos processos de desmanche dos direitos sociais? Isso é sinal de uma fragilidade institucional ou baixa qualidade democrática de nossas instituições? É sinal da precariedade do nosso marco regulatório? Ou é algo que convive e integra desde muito tempo a produção do atual regime de governo, mas que agora adquire novos contornos? Quais são as continuidades e rupturas?

    Neste momento, é fundamental identificar quais são as práticas, as áreas da saúde que estão sendo capazes de resistir e persistir na produção da Saúde como um Comum. Ao longo da história, o Comum e as comunidades que o produzem tem aprendido a sobreviver a diversas investidas que procuram destruí-lo ou submetê-lo a regimes de apropriação e expropriação. Ao mesmo tempo é importante identificar quais os novos mecanismos, as estratégias, e as novas práticas que tornam possível a privatização da saúde. Em resumo, partilho da impressão de que o desenho institucional que temos disponível é importante, porém parece ser insuficiente para responder às ameaças atuais.

    2. Quais os limites, quais os modos de interação do público-estatal com o privado-corporativo? É possível encontrarmos outras composições para além da dicotomia Estado-Mercado? Aqui também a percepção ordinária (para não dizer senso comum) que se difunde em nossa sociedade é de uma crescente indistinção entre o público-estatal e o privado-corporativo. Como essa experiência se constituí? Quais as mediações entre os cidadãos, o acesso aos serviços de saúde, as relações entre os trabalhores da saúde e os demais cidadãos?

    Cada vez mais precisamos indagar como os diversos aparatos, equipamentos públicos servem e funcionam como infraestruturas para a expropriação e apropriação privada da Saúde?

    Ao mesmo tempo, qual é a percepção, a experiência que se constitui desde o cidadão, o usuário na ponta? Qual é a interface, a mediação que ele tem o sistema?

    Pensando desde a borda do sistema, a partir dos modos de uso e apropriação do cidadão, e do modo de relação e de subjetivação que ele constitui com o sistema de saúde, quais seriam as possíveis formas de ativar um devir-comum do público-estatal? Como o cidadão reconhece a produção do Comum e como ele experiencia as diferenças e conexões entre aquilo que é público-estatal e aquilo que é privado-corporativo?

    3-Cotidianamente nos confrontamos com práticas, procedimentos e tecnologias que se instalam em nossa vida como dispositivos que se apresentam como neutros (\”pós-ideológicos\”). Há evidentemente princípios e valores que constituem as relações tecnicamente mediadas. A capacidade de captura e adesão a um dispositivo depende de sua eficácia prática e de sua capacidade de tornar-se desejável. Sua adoção é quase “natural” (ela se aproveita das disposições emergentes num campo de possíveis). Ao prover a “melhor solução” para um determinado problema ela atualiza de forma imanente uma racionalidade específica. Assim, novas técnicas e tecnologias vão paulatinamente modificando o seu ambiente, criando recursivamente um contexto cada vez mais favorável à sua adoção, de forma que num momento posterior seja impossível não adota-las (veja artigo que publicamos sobre Google as Universidades brasileiras).

    Simetricamente, quais seriam nossas técnicas, nossas tecnologias que poderiam promover as formas de vida e cuidado que desejamos propagar?

    ***

    Em resumo: se nossas instituições e os canais de mediação política são importantes, porém insuficientes; se a ciência e tecnologia, participam cada vez mais da criação de artefatos que influenciam nossas vidas; e se há um crescente processo de delegação da agência à mediação técnica, neste cenário talvez a criação e a resistência tecnopolítica seja um importante campo de lutas.

    Certos arranjos sociotécnicos são capazes de informar e produzir efeitos sobre seu entorno de maneira a produzir certas configurações de mundo. Destaco duas propriedades neste processo de propagação e estabilização: a recursividade e a reticulação. Juntas elas abordam o problema de escala (micro, meso, macro) de uma outra maneira. Nós, cientistas sociais, poderíamos trabalhar mais com os engenheiros, cientistas da computação, arquitetos, médicos e sanitaristas para aprender juntos a “construir coisas”.

    Um exemplo (veja ensaio \”Do protesto aos arranjos tecnopolíticos\”): “a criação da pílula anticoncepcional, o protocolo TCP/IP da internet e o telefone celular são exemplos de artefatos técnicos-científicos que produzem arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares. Sua forma de adoção e propagação vai gradativamente modificando as relações sociais através do seu uso, e os efeitos de sua adoção nas pontas (sujeito individual ou máquinas) cria mecanismos de reforço sistêmico. […]

    Recursividade: Uma prática, uma tecnologia, uma organização que atue recursivamente está desenhada para a resolução prática de um problema, cujo modo de ação dá-se mediante a criação de sub-rotinas que atacam frações de um problema maior, e a cada movimento ela volta à sua função (missão) original, porém agregando um “aprendizado” que a torna mais eficiente. Este aumento de eficiência (ou ganho de poder) acontece também porque além de resolver partes do problema (diminuindo a força do seu oponente) ela modifica gradualmente o seu meio de ação (meio-associado), criando um ecossistema mais favorável à sua execução. Ou seja, um artefato recursivo é um dispositivo prático (material-simbólico) que executa um programa (uma ação normativamente orientada) cuja eficiência está na transformação do seu meio-associado e não apenas na realização de um objetivo final abstrato). Como efeito, a recursividade apoia-se na produção de uma “comunidade” ou de “públicos recursivos” que dão sustentação ao processo.

    Reticulação: A reticulação é um processo de propagação não-linear e rizomático de uma estruturação emergente criando níveis subsequentes de estruturação de uma realidade. Quando uma prática, uma tecnologia, uma organização se reticulariza, significa que ela é capaz de tornar durável, de diferentes formas, o seu programa de ação, criando níveis crescentes de estruturação. Como efeito, ela amplia sua capacidade de determinação sobre um campo de possíveis. Ou seja, a reticulação dá maior consistência e força para seu programa de ação (PARRA, 2018).

    ***

    A título de contra-exemplo examinemos dois arranjos sociotécnicos que podem produzir fortes agenciamentos de orientação neoliberal.

    Proliferam hoje diversas tecnologias digitais portáteis, tanto os APPs de smartphones como os novos wareables (relógios ou roupas) destinados a fazer a coleta permanente de informações produzidas por nossos corpos. Essas tecnologias são adotadas por milhares de pessoas e permitem a coleta, organização e disponibilização dessas informações em diferentes plataformas. São hardwares e sofwares frequentemente corporativos (mas há também versões em software livre) que criam novas possibilidades de análise, tanto para os indivíduos usuários como o bigdata realizado pelas grandes empresas que centralizam e comercializam esses dados. Aqui, há tanto a formação de uma experiência de individualização na produção e análise dos seus dados pessoais (que pode reforçar uma percepção mais individualizante da saúde), como também a formação de novas comunidades de usuários que compartilham dados e criam novas analíses e diagnósticos sobre problemas específicos. Em ambos os casos, vemos o fortalecimento de um conhecimento que se apoia numa concepção de corpo informático (sem “corpo”), pois os dados são vez mais descontextualizados quando a coleta é seletiva e não leva em conta elementos contextuais, mas também em alguns casos a constituição de novas comunidades que se constituem através da partilha de suas experiências. Hermínio Martins refere-se aquela primeira “forma de conhecer” descorporificada (baseada na metafísica informacional) como ciborgues epistêmicos (veja apresentação \”Algoritmos Encarnados\” realizada no Medialab-UFRJ).

    Neste caso, a crescente adoção dessas tecnologias, ao mesmo tempo em que produz uma nova forma de conhecimento sobre o corpo, produz outro modo de relação com a saúde (percebida aqui cada vez mais numa chave individualizante). Ao mesmo tempo, ela participa de uma economia política informacional baseada na exploração dos dados pessoais (seja para os seguros médicos como para a indústria farmacêutica). A depender do caso, temos ainda a produção de novas formas de governo biopolítico: basta imaginar a utilização de mensuração glicêmica ou da análise da atividade física dos usuários associada à gameficação da vida (seja para o cidadão ou para o consumidor de planos de saúde).

    Mas o contra-exemplo que melhor se encaixa nessa discussão talvez seja os dos novos sistemas de intermediação de consultas médica e exames laboratoriais: Dr.Consulta, Doutor123, CiadaConsulta. Desconheço o funcionamento em detalhes desses serviços, por isso destacarei apenas os elementos que dialogam com os problemas descritos acima (esses serviços merecem estudos minuciosos sobre sua forma de criação e expansão). Podemos ver aí como a recursividade e a reticulação vai acontecendo através da adoção das tecnologias móveis pelo usuário, combinadas ao georeferenciamento, à analise de dados pessoais, infraestrutura física e a gestão do trabalho (na forma de um capitalismo de plataforma).

    São tecnologias – entendidas aqui como ambientes dentro dos quais modos de vida são produzidos – que se efetivam através da criação e propagação de um arranjo sociotécnico que produz um tipo de experiência com a saúde. Alguns desses serviços já estão em operação há alguns anos, e é possível observar como vão expandindo pouco a pouco sua infraestrutura de atendimento fisico. Gradativamente, elas vão se reticulando na vida social, ampliando sua presença, e de forma recursiva vão modificando seu meio de maneira a torná-lo mais favorável ao seu funcionamento.

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    Temos aí em operação (exemplo da articulação micro-meso-macro):

    1. Os efeitos macropolíticos relativos à regulação jurídica das atividades da saúde, criação de dispositivos burocráticos e legais que ampliam os agenciamentos privatizantes, mudanças nos marcos regulatórios dos direitos sociais, a economia política informacional baseada na exploração dos dados pessoais. Mas também a dimensão cultural e discursiva propagada nos meios de comunicação (tanto nos meios corporativos como nas redes de autocomunicação de massas). Nesta camada ainda adicionaria a emergência de novos saberes populacionais que correspondem a novas forma de exércício do poder. Para além do saberes disciplinares e populacionais que dão forma ao modo de governo biopolítico, bem descritos por Foucault, participamos agora da emergência da governamentalidade algorítmica apoiada nos saberes simulacionais, no big data e na estatística preditiva (veja o trabalho de Antoinette Rouvroy).

    2. No nível mesopolítico poderíamos identificar os diversos mecanismos de gestão e organização do trabalho, os regimes de visibilidade e sensibilidade que determinam o que conta e o que não conta numa organização, as formas de mensuração, quantificação, avaliação e tomada de decisão. Quais os limites entre o trabalho visível e o trabalho invisível do cuidado?

    Novamente, é na organização do cotidiano, na produção e reprodução da vida que um amplo conjunto de técnicas, procedimentos e tecnologias utilizados irão constituir modos de vida específicos.

    3. No nível micropolítico um modo de subjetivação baseada numa relação individualizada e mercantilizada com a saúde. Os modos de subjetivação, conforme analisa Suely Rolnik, apoiam-se em dois modos de conhecimento sensível. “A primeira é a experiência imediata, baseada na percepção que nos permite apreender as formas do mundo segundo seus contornos atuais…quando vejo, escuto ou toco algo, minha experiência já vem associada ao repertório de representações de que disponho e que, projetado sobre este algo, lhe atribui um sentido”. Mas há “um outro tipo de experiência que a subjetividade faz de seu entorno, é a que designo como “fora-do-sujeito”, é a experiência das forças que agitam o mundo enquanto corpo vivo e que produzem efeitos em nosso corpo em sua condição de vivente. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver e de sentir aquilo que acontece em cada momento (o que Gilles Deleuze e Félix Guattari denominaram, respectivamente, “perceptos” e “afectos”)” (ROLNIK, 2018).

    Lembro-me aqui do filme Daniel Blake. Em diversos momentos, quando Blake vai ao posto do serviço público para solicitar uma licença médica ou o seguro desemprego ele vive um conflito entre duas ordens distintas: sua experiência, sua cultura, sua subjetividade de trabalhador formada durante os anos de Welfare State constituí-se a partir de uma contrato social. Ele se relaciona com o aparato público-estatal através dessas representações instituídas. Entretanto, nada mais funciona como antes: os funcionários tem que atende-lo sob determinados protocolos, ele tem que produzir resultados e passar por distintos testes para ter sua condição reconhecida. A situação cria um conflito intransponível para ele, a formação do Estado-Empresa. As reações seguem então por duas direções: as estratégias individualizantes que encontram apoio nos modos de subjetivação neoliberal (Você-S/A); as estratégias coletivas que buscam constituir um território comum de experiência e lutas, capaz de tecer a vida.

    Acontece que, quando pensamos a micropolítica, atentamo-nos quase que exclusivamente à dimensão das representações, àquilo que podemos enunciar e disputar discursivamente. Negligenciamos, frequentemente essa dimensão dos afectos e perceptos que está além e aquém do sujeito: o pré-individual e o supra-individual. Por isso sem uma política de subjetivação, capaz de modificar o regime de sensibilidades, a relação com o público e o Comum são subtraídas.

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    Pensando agora nos aspectos mais “proximais”, no âmbito de uma micropolítica ou de uma mesopolítica, gostaria de perguntar e imaginar qual é nossa tecnopolítica? Quais são nossas tecnologias de produção do comum? Que dispositivos, artefatos, protocolos, infraestruturas já temos ou que podemos criar para promover e dar sustenção à saúde como um Comum?

    A partir dos problemas descritos acima, imagino que uma tecnopolítica do comum seria portadora de algumas características.

    Em primeiro lugar trata-se de tecnologias que produzem uma comunidade e que são apoiadas por essa comunidade. Neste sentido, uma tecnologia da comum é sempre uma tecnologia de produção de vínculos, é uma tecnologia de pertencimento (para usar uma expressão de Isabelle Stengers). Uma cozinha coletiva numa ocupação de sem-teto (como analisa Alana Moraes) é uma importante tecnologia de pertencimento que abriga processos terapêuticos. Uma certa metodologia de conversa e escuta pode ser pensada também como um tecnologia de produção do comum (como bem relata Antonio Lafuente sobre a experiência dos alcóolatras anônimos).

    As tecnologias do comum também transitam da simples participação (relação usuário-serviço) para o reconhecimento da condição de co-produtores, onde tod@s estão co-implicados na produção. Que tecnologias temos no âmbito política nacional de Sáude que atendem a essa condição? Talvez as experiências dos conselhos de participação popular, os fóruns, possam ser pensadas como exemplos dessas tecnologias. Após mais de 20 anos de implementação das experiências dos conselhos (na educação, saúde…), já podemos reconhecer algumas estratégias que consideramos mais potentes e outras que convertem a participação em mecanismos de captura e gestão (governamental, partidária, corporativa).

    Transitar de uma cultura participacionista para uma política orientada pelo “princípio do comum”, nos termos de Laval & Dardot, implicaria numa outra forma de composição da política, modificando o regime de subjetivação política e de produção dos sujeitos de direitos; e numa outra forma de composição entre o público-privado, econômico-social, reconhecendo, como o fazem as feministas, que toda a vida é política:

    “a identidade do princípio (o comum) não suprime a distinção das esferas (social-econômica, público-privada, politica, e publica-publica), mas tem a função de organizar o social de tal maneira que seja possível uma deliberação na esfera pública que não fique prisioneira dos interesses de tal ou qual categoria socio-profissional. Isso só pode acontecer se a esfera da produção e dos intercâmbios se reorganize a fundo a partir do autogoverno do comum” (Laval & Dardot).

    Imagino também que nas tecnologias de produção do comum o conhecimento é algo vivo, e portanto, sua forma de produção-circulação e seus regimes de uso devem ser vetores de resistência às diversas expressões do capitalismo cognitivo. Recentemente, a Fiocruz desenvolveu um conjunto de referências que darão forma a uma política de ciência aberta. No momento em que o conhecimento acadêmico e científico é cada vez mais colonizado pelas dinâmicas de fechamento, privatização e mercantilização (seja no ambito dos periódicos científicos e na expansão dos direitos de propriedade intelectual), defender a ciência, a cultura e o conhecimento enquanto um Comum é uma ação fundamental.

    Para isso é necessário criar infraestruturas próprias, orientadas pela noção de “soberania tecnológica”, protocolos, formas de governança que permitam efetivar e lutar pela abertura da ciência. Importante destacar aqui que a noção de “livre e aberto” não se confunde com a noção de “grátis” (free as an freedom of speech, not free beer). Ou seja, promover a ciência enquanto um Comum exige a criação de formas de co-responsabilidade no uso, capazes também de dar sustentação à todo o ecossistema que produz esse Comum.

    As tecnologias de produção do comum também estão orientadas pelo reconhecimento e maior centralidade conferida à experiência do cidadão e d@s trabalhador@s da saúde. Como diz Lafuente: “todos somos expert em experiência”. As tecnologias cognitivas devem então estar alinhadas à capacidade de escuta de diferentes saberes. Isso significa também, que talvez essas tecnologias sejam dispositivos de desacelaração (modo slow). Passamos então de um regime de dominância dos experts para um regime de co-existência entre diferentes saberes da experiência. Ao darmos maior centralidade à experiência, ao saber vivo, interrogamos portanto a idéia dos corpos informáticos dos ciborgues epistêmicos. Novamente, não se trata de colocar-se contra as tecnologias. Ao contrário, penso em formas tecnológicas que dêem lugar aos ciborgues (no sentido de Haraway) encarnados. Ou seja, modos de conhecer e de composição que reconheçam nossa cultura técnica e nossa natureza híbrida.

    São também arranjos sociotécnicos que reconhecem a agência dos objetos, substâncias e máquinas. Os elementos não-humanos devem “ter voz”. Do contrário, corre-se o risco de apagarmos os efeitos de que eles são portadores. O debate sobre os alimentos transgênicos e toda sua relação com a cadeia produtiva e alimentar é um ótimo exemplo desse problema. O mesmo se aplica às nanotecnologicas. Na somatória de algumas dessas características entramos em tensão com aqueles modos de conhecimento científico que estão apoiadas na convergência N.B.I.C. Novamente, defendo que não se trata aqui de confrontá-los, mas sim de criar formas de convivência entre esses diferentes regimes de conhecimento, buscando, todavia, alternativas que fortaleçam o Comum e impeçam a sua apropriação e expropriação.

    Finalmente, nos termos da Isabelle Stengers, temos que pensar numa cosmopolítica que seja capaz de abarcar uma diversa ecologia de práticas. Por isso, uma tecnopolítica do comum implica numa outra política (de saberes e poderes): gosto de fabular em torno da transição de um “saber-poder governar” para um “saber-fazer habitar”. Portanto, são tecnologias que são concebidas e implementadas dentro de uma política do cuidado. O cuidado é um trabalho material, é um fazer do corpo. Em certo sentido, o Programa Sáude da Família em sua versões mais comunitárias, proximais, talvez possa ser pensado como um bom exemplo dessa tecnologia de vínculos, de pertencimento multiplos e de produção de sáude coletiva. Necessitamos de tecnologias de nos permitam co-habitar o mundo, que reconheçam nossa interdependência. Esse é um critério muito claro face à tecnopolítica neoliberal que produz isolamento travestida de liberdade; que produz hipertrofia do privado sob a ilusão do compartilhamento, corroendo a possibilidade de um mundo comum.

    Enfim, como podemos fortalecer esses arranjos sociotécnicos que julgamos relevantes? Como podemos ativar um devir-comum da saúde pública? Como podemos criar mecanismos de recursividade e reticulação que ampliem as condições de produção e sustentação das formas de vida, cuidado e saúde que desejamos propagar?

    (*) Mesa Redonda 55 – Direito à saúde, direito a uma vida comum: novas formas de lutar em tempos de neoliberalismo.

    Coordenador: Henrique Sater de Andrade – UNICAMP (SP)
    Expositor: Tadeu de Paula Souza – UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO
    SUL (RS)
    Expositor: Henrique Zoqui Martins Parra – Universidade Federal de São Paulo (SP)
    Expositora: Alana Moraes de Souza – Museu Nacional/UFRJ (SP)