Por Antonio Lafuente*, do Centro de Ciências Humanas e Sociais (CSIC), Madri | Tradução de Simone Paz Hernández
Publicado no Outras Palavras
O coronavírus tem nos ensinado muitas coisas — algumas delas, vamos
demorar para esquecer. Porém, poucas foram tão inesperadas como a
aproximação entre a cultura crítica e a cultura dos cuidados. Pareciam
pertencer a planetas diferentes: uma, ligada à busca de certeza,
metodologias conflitantes e gestos públicos; a outra, vizinha da dor,
inclinada pelo tácito e reclusa no âmbito privado. Ambas, muito seguras
de sua importância, mas muito diferentes em seus reconhecimentos. Para o
espírito crítico, sempre existiu um posto de honra entre os
inteligentes, os poderosos, os administradores. Os críticos possuem a
chave que abre as portas do mundo, desde a empresa e a academia, até o
conselho ou comitê. Ser crítico é uma qualidade característica dos que
conseguem enxergar além das aparências, dos que sabem ler as entrelinhas
e dos que não se deixam levar pelo refrão. Quem não é crítico está
sujeito a ser doutrinado, manipulado e menosprezado.
Nosso mundo sempre reservou lugares especiais para a crítica. O
espírito crítico nos protege dos farsantes, dos malandros e dos
vigaristas. E, como nunca faltam aqueles que querem tirar proveito de
nossa ingenuidade, desconhecimento ou incapacidade, fazemos bem em
confiar na nobreza daqueles que se dispõem por nós a depurar as ideias,
comparar informações e destrinchar propostas. Os debates públicos nos
são apresentados muitas vezes como um duelo de espadachins, como um
exercício de virtuosismo retórico, como uma amostra do dandismo
entre “filhos de alguém”, tão inúteis quando desprezíveis. Isso não tem
nada a ver com a crítica, está mais para um produto da vaidade
pretensiosa: um embuste entre bobos. Já a crítica, é necessária e
urgente. Uma das ferramentas mais valiosasas de que dispomos para
navegar entre as tormentas ou para nos guiar entre as brumas. Sem ela,
não existiria a civilização.
Os cuidados transitam em outro tipo de abundâncias invisíveis. Eles têm a ver com todas as práticas que levam à reparação ou à manutenção da vida. Possuem relação com o que há de mais simples e comum: dar comida, fornecer aconchego, produzir bem-estar, manter a conversa, ouvir o incabível ou inusitado, oferecer esmero, sentir o futuro, experimentar com os outros, fazer coisas juntos, desfrutar as nuances, acompanhar processos e criar espaços seguros. No mundo, não há nada mais abundante do que a dor, o desconsolo, o desabamento. Nada é mais necessário do que oferecer confiança, paz ou tempo. Seja para descobrir suas (novas) vulnerabilidades, seja ao se encontrar (novamente) estagnado, o que você vai querer por perto não é um cérebro privilegiado capaz de performar uma capacidade de análise impecável. Nesses momentos, precisamos de outro tipo de talento: o de alguém que saiba se colocar em sua situação, em seu lugar, conter a ansiedade de aconselhar, ficar em silêncio, saber ouvir, deixar fluir e acompanhar, enquanto, aos poucos, você se reencontra com a vida que merece ou a resposta que procura.
Não quero dizer que os que pensam não cuidam, nem que os que cuidam
não pensam. Isso seria uma simplificação inaceitável e ofensiva. Todos
nós podemos passear pelos dois mundos. Podemos utilizar a crítica para
reparar aquilo que ouvimos e fazê-lo crescer. Podemos renunciar a usar
nossas habilidades para ganhar vantagem e competir melhor. Nada nos
obriga a querer sempre ganhar. Não é necessário demonstrar que estamos
por cima dos outros, nem temos que tratar nossos adversários como
inimigos, traidores ou estúpidos. Na crítica, pode existir um quê de
sadismo. É normal que exista, e que toda vez que numa conversa alguém
cite um especialista, um fato ou uma prova, para nos dar um soco e calar
a boca. Esses críticos são pessoas perigosas das quais é bom se
proteger, porque costumam ser implacáveis.
A ciência é um dos terrenos da crítica. Não é o único, nem o mais
visível. Os que se gabam de ser críticos são aquelas pessoas da
literatura, das artes, das ciências humanas e também, portanto, das
ciências sociais. O que eles chamam de “espírito crítico” é muitas vezes
percebido como arrogância banal. E é por isso que nós desconfiamos
dessa forma de nos desenganarem, que, do outro lado do espelho, é
percebida como uma maneira de nos deixar nus. Justamente o oposto
daquilo que esperávamos: alguém que nos ajudasse a encontrar as roupas
para não nos deixar na intempérie. Abandonados ao acaso, novamente, sem
redenção.
A cultura do cuidado não é só compaixão. Precisamos dela, também,
para criar outros mundos possíveis e dar espaço às diferentes práticas
cognitivas de que precisamos aprender a apreciar. Se o crítico é quem vê
mais e melhor, quem cuida possui como ferramenta fundamental de
trabalho o tato. Se a simbologia reservou para os inteligentes a figura
da coruja, do livro e dos óculos de armação grossa, aqueles que cuidam
são representados como pessoas que acariciam com os olhos, com os gestos
e com as mãos. As mãos alcançam lugares que os olhos nem conseguem
imaginar. O tato é a chave que abre a porta que nos permite imaginar
outros mundos possíveis, baseados em cumplicidade, empatia e
vulnerabilidade. Nos cuidados, explora-se sem propósitos e sem
condicionantes, se avança entre suspeitas e desconfianças, até chegarmos
ao lugar onde experimentaremos a companhia como uma bênção. Ou uma
epifania.
Se a visão gera a distância entre o sujeito e o objeto, o tato
mistura esses dois mundos. A visão cria outros espaços, enquanto o tato
inventa a complexidade. Tudo fica interligado e se torna próximo,
entrelaçado. A visão quer fazer do mundo um objeto, enquanto o tato
torna mundano o objeto. Mundano quer dizer comum, cotidiano, semelhante.
Quiçá, também, barato, jovial e compartilhado.
A crise do coronavírus aproximou esses dois mundos para nos ajudar a
entendê-los melhor, para descobrirmos que ambos são imprescindíveis e
que os dois são deste planeta. Que ambos pertencem ao âmbito público e
são duas potências cognitivas que deveriam parar de brigar e se unir num
longo abraço. Sim, isso mesmo: um abraço em tempos de coronavírus pode
parecer uma transgressão, mas não é, não, não se trata de uma pegadinha:
esperamos muito desse atrito, pois não nos conformamos com apenas
sobreviver — que é o que nos prometem os cientistas e seus porta-vozes.
Não nos conformamos com apenas continuar vivos, pois queremos imaginar
mundos mais ousados. A pandemia demonstrou que, em termos cognitivos, é
imprescindível que se estruturem adequadamente três epistemes que se
destacam: o mundo dos dados, dos modelos de previsão e da inteligência
artificial; o mundo da virologia, da epidemiologia, das vacinas e do
laboratório; e, por último, mas não menos importante, os territórios da
clínica, dos profissionais da saúde e das práticas de cuidados.
Curar corpos nos forçou a cuidar de mundos. De repente, descobrimos
que inconsistências estatísticas, causadas por uma coleta de dados ruim,
poderiam levar a medidas que nos ameaçariam a todos. Dados não são
números, mas coisas que precisam ser produzidas do mesmo jeito que são
produzidas as bolas de sinuca: se elas não possuírem as características
necessárias, não funcionam, não servem pra nada, não deslizam
corretamente e não transmitem os efeitos esperados. Os dados precisam
ser interoperáveis. Você precisa projetá-los com precisão, coletá-los
com cuidado e transmiti-los a tempo. Podemos ter os melhores
matemáticos, construindo os modelos mais sofisticados, porém, fazendo
propostas mal-sucedidas porque os coletores de dados se desentenderam ou
ficaram desmotivados ou deprimidos. Porque eles pararam de se projetar
em seu trabalho com amor e orgulho. Não estavam atentos o suficiente
para detectar algo suspeito, uma variação imprópria, um viés inesperado
ou, finalmente, uma prática inconsistente. Talvez ninguém os fez
acreditar na importância do que estavam fazendo. Talvez eles tenham se
cansado de ser invisíveis, ou talvez se convenceram de que eram seres
descartáveis, secundários ou irrelevantes.
Fazer vacinas ou, em termos mais gerais, projetar e realizar
experimentos não é uma tarefa mecânica. Quem faz experimentos precisa
improvisar o tempo todo — ou seja, precisa enfrentar um montão de
imprevistos que exigem habilidades que não são ensinadas nos livros, mas
que, entretanto, foram aprendidas com os colegas. Experimentar é uma
atividade que possui muitas semelhanças com o trabalho dos artesãos.
Todos os cientistas experimentais são uma espécie de faz-tudo, pessoas
que sabem consertar coisas, que encontram soluções: são próprios bricoleurs.
Ou, em outras palavras, pessoas que conseguem trabalhar sem um manual
de instruções, e que, principalmente, tornaram-se muito tolerantes à
incerteza. Sabem andar às cegas, guiando-se pelas paredes para não bater
e mantendo-se conectados a tudo o que acontece para poder ser sensíveis
às pequenas diferenças, às nuances esquecidas ou aos tons
imperceptíveis.
Não é ficar observando o seu objeto, mas sim estar abertos a se
deixar afetar por qualquer sinal que vier de seu universo ou do ambiente
que os cerca para decidir, em tempo real, se essa coisa, ainda não
identificada, possui algum significado ou contém alguma mensagem. A
relação que os cientistas mantêm com seus objetos, aquilo que não deixa
de interpelá-los e que não conseguem parar de olhar, é muito menos
objetiva, distante ou abstrata do que nos contaram. É uma relação muito
menos crítica do que afetiva, e tem muito mais a ver com as virtudes de
quem cuida de alguém ou de algo, do que com os estereótipos de quem
observa, aponta e dispara — quero dizer, com as qualidades de um bom
crítico.
Ao falarmos da clínica tudo parece mais fácil, porque pouquíssimas
pessoas já visitaram um laboratório na vida e a maioria nunca ouviu
falar da nova profissão de curador de dados. Mas todos ou já cuidamos,
ou já fomos cuidados. Entretanto, reside nessa simplicidade a maior
dificuldade — porque corremos o risco de psicologizar os cuidados e de
transformá-los em habilidades mentais livres de materialidade. Não será
preciso insistir, agora, na importância das máscaras, dos testes, dos
termômetros, dos sabonetes, da história clínica e dos aplausos. A maior
parte do trabalho possui maior relação com gerir espaços, decidir
dosagens, administrar alimentos, conhecer lamentos, identificar sinais,
comparar respostas, contrastar experiências, aprender de erros,
retificar protocolos, pular algumas normas, enfim: improvisar, corrigir,
deixar-se afetar, escutar — tudo isso sem um manual.
Cada quarto de hospital carrega um universo: todos os dias são
percorridos todos os climas: o dos bacanas, o dos espertos, o dos
exigentes, o dos egoístas, o dos intrigantes, o dos desconfiados, o dos
pessimistas, o dos amorosos… todos os universos cabem num só dia. Não é
preciso viajar, basta mudar de quarto. Existe um forte desgaste
emocional, cuja origem varia. A televisão, sempre apressada e sempre
resumindo e generalizando, fala do impacto que a dor do ambiente causa
aos profissionais da saúde. É verdade, mas não se resume a isso: essa é
só a parte mais midiática. Há muito mais. Existe a vontade de aprender, o
desejo de entender, a necessidade de corrigir e a obrigação de curar;
tudo isso, ao mesmo tempo e de forma rápida, representa um esforço de
intelecção cansativo e infinito, porque os corpos são todos diferentes e
o que vale para um pode ser contraproducente para outro.
Assim funciona o saber experiencial: está nos corpos e não nos
livros. Pode-se aprender, mas não numa aula. É um saber contrastado,
eficiente, tácito e imprescindível. A clínica é a interface entre esses
dois mundos, que com tanta frequência negam-se a chegar a um
entendimento: o mundo da crítica e o mundo dos cuidados. É tanto uma
interface como uma fronteira que precisamos aprender a contrabandear
todo dia. Nessa fronteira, somos todos iguais, não há regras claras, não
há normas específicas — e nem podem existir. Esse é o interesse das
fronteiras que servem para experimentarmos outros mundos possíveis e
necessários. Nas fronteiras, há sempre conflitos que, quando são de
curto prazo, resolvemos com astúcia, dando um jeito; mas, se pensarmos
em formas de convivência relativamente estáveis, precisaremos das
ferramentas da diplomacia.
Às vezes, não precisamos de uma demonstração, e sim de uma conversa.
Os diplomatas sabem disso melhor do que ninguém, como costumam saber
aqueles que fazem parte do mundo dos cuidados. O diplomata compreende
que não pode convencer seu interlocutor. E, portanto, precisa renunciar
às ferramentas da crítica e admitir que a solução não vai ser imposta
por um exercício de depuração de dados, de citação de fontes ou de
ampliação dos fatos comprobatórios. Entre os diplomatas, a conversa tem a
finalidade de encontrar um relato, um acordo, um espaço de convivência
mais complexo que o anterior, onde caibam igualmente os dois pontos de
vista, mesmo quando enfrentados. A questão é evitar a guerra, e
reiniciar a convivência. E é disso que precisamos agora: uma negociação
que torne possível não só a convivência de epistemes. Os mundos dos
dados, dos fatos e das experiências precisam um do outro e têm de
aprender a conviver sem se censurarem. Nenhum deles é mais coerente ou
necessário do que os outros.
Atualmente, fala-se muito em abrir a ciência. Mas não ficou claro o
que queremos dizer com isso. Evidentemente, abrir a ciência significa
abrir os conteúdos e os dados: dar acesso ao conhecimento disponível,
mais ainda quando a maior parte dele é produzida com dinheiro público.
Também parece lógico que as infraestruturas que suportam e fazem com que
esses dados se tornem operacionais deveriam estar nas mãos dos próprios
cientistas, o que equivale a reivindicar soberania para os hardwares e
softwares que suportam todo o acervo da ciência aberta. Se a prática da
ciência depende de decisões políticas arquitetadas em comitês que
definem prioridades, destinam recursos, validam méritos e constroem
reputações, parece imprescindível que, também, todas essas operações
tenham muita transparência e disponibilização. Tudo isso já foi dito e
está na agenda de muitas organizações nacionais e internacionais, não é
novidade. Tomara que o coronavírus acelere esses processos em curso.
Além disso, porém, abrir a ciência requer abrir suas ontologias. Não
tem a ver apenas com transformar as práticas para que sejam mais
operativas, ou, em outras palavras, os “como”, as epistemes. Temos de
aprender a escutar aqueles que falam desde outras formas de se aproximar
da realidade. É evidente que o respeito às metodologias acreditadas
continua de pé. Ninguém aqui falou em fazer tábula rasa. Pelo contrário:
os tempos de coronavírus exigem que nenhum conhecimento seja
desperdiçado e que demos a todos eles a visibilidade e o mérito que
merecem e que precisamos. Cuidar é uma forma de conhecer, envolve outra
maneira de se aproximar dos problemas e de encontrar respostas adaptadas
para eles. Envolve mobilizar saberes tácitos e afetivos: saberes que,
consequentemente, não podem ser codificados. Saberes que não podem ser
desvinculados e que são estreitamente ligados às circunstâncias
concretas nas quais foram gerados. São saberes dos quais a Modernidade
nos ensinou (e até forçou) a desconfiar. Saberes que desde Descartes
consideramos contaminados pelas emoções, pelos preconceitos, pelos
contextos, ideologias e fragilidades dos corpos envolvidos, já que nem
sempre eles enxergam bem, estão atentos ou com as faculdades plenas.
O conhecimento experiencial era desprezado pela sua alta contaminação por todo tipo de aderência local, corporal e cultural. Não foi sequer considerado um ativo a valorizar. Temos museus de etnografia, onde as realidades locais são mostradas como parte de um exotismo turistificável — e, agora, identitário. Justamente o oposto do que consideramos necessário por aqui. Nos interessa o comum e interdisciplinar, como forma de conhecimentos opositores — e não como curiosidades excêntricas e arbitrárias. Não são fruto do capricho, são consequência de uma adaptação secular. O fato de terem sido desvalorizadas fala muito sobre a nossa insensibilidade e, assim, da nossa facilidade em desprezar aquilo que ignoramos. O fato de serem não-codificáveis, tácitos, quer dizer que estamos frente a um saberes que não podem ser coisificados, alienados e mercantilizados. Mas isso não significa que sejam inúteis. Talvez por isso a imensa maioria das pessoas que trabalham com enfermagem e serviços sociais são mulheres. Nada a ver com falta de talento, mas sim com utilizá-lo em outras coisas. As quais, como sabemos, às vezes são as mais importantes. Mas nossa intenção não era fazer uma competição entre a cultura crítica e a cultura dos cuidados, e sim tentar suscitar uma conversa, mais ontológica do que epistêmica, que abrisse o mundo do conhecimento a novas perguntas, diversas soluções e novas formas de convivência. Não é que a gente precise de menos ciência, mas de mais atores: abrir a ciência a conversas difíceis, porém, urgentes. O coronavírus nos pede também uma cura de humildade.
*Antonio Lafuente
Físico, pesquisador do Centro de Ciências Humanas e Sociais do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) da Espanha, na área de estudos da ciência. Seu interesse pela relação entre tecnologia, patrimônio e bens comuns desembocou nos laboratórios cidadãos, na inovação social e na cultura do prototipado.