Tag: comum

  • Radio Terrana – está no ar o primeiro episódio

    A Rádio Terrana é um podcast do Pimentalab da Unifesp e do coletivo Tramadora,  um programa sobre ciências terranas, tecnopolíticas e experimentações em tempos de catástrofes. Encruzilhadas sonoras entre práticas científicas, ações de retomada e lutas pelo Comum.
    São Histórias de experimentações que nos convocam a pensar juntas sobre possíveis futuros de transição societal. O podcast ensaia diálogos com ativistas/lutadoras implicadas com problemas concretos em práticas políticas, territórios, corpos e pensamentos de retomada e também com cientistas/pesquisadores que realizam deslocamentos nos modos de produção de conhecimento, conectados com as urgências impostas pelo antropoceno.


    Episódio 1A Terra do Redor: o chamado Guarani para outras práticas de conhecimento


    Conversamos com Jerá Guarani, liderança Guarani Mbya da aldeia Kalepity, nas Terras Indígenas Tenondé Porã,  em Parelheiros, extremo sul da cidade Sao paulo; e com Lucas Keese, que é pesquisador, antropólogo, mas que há muito tempo é parceiro da luta Guarani, ajudando a articular ações no território, tecendo encontros e lutas. Vamos falar um pouco sobre os limites das formas de produção de conhecimento em nossas escolas e universidades a partir de uma perspectiva terrana que vem sendo elaborada e cultivada no território guarani mbya.
    Como a luta e os modos de existência guarani interpelam o colapso civilizacional produzido pelo mundo dos brancos? Há mundos por vir?

    Ficha Técnica:

    Equipe Pimentalab e Tramadora: Alana Moraes  Bru PereiraGustavo LemosHenrique ParraJessica Paifer
    Entrevistados: Jera Guarani, Lucas Keese
    Edição, mixagem, e trilha sonora: Gustavo Lemos
    Produção:Pimentalab (Laboratório de Tecnologia, Política e Conhecimento, UNIFESP): https://www.pimentalab.net Coletivo Tramadora: https://www.tramadora.net
    Apoio:Rede Lavits (Latinoamericana de Estudos em Vigilância, Tecnologia e Sociedade) e Fundação Ford: https://www.lavits.org

    Músicas:

    Abertura: Gustavo Lemos

    Katú – Aguyjevete: https://www.youtube.com/watch?v=M4czt2327vA

    Kunumi MC – xondaro Ka\’aguy Reguá: https://www.youtube.com/watch?v=cT7ZXxAMetY

    Memória Viva Guarani – Nande Reko Arandu – https://www.youtube.com/watch?v=3sJNTCYZyw4

    Memória Viva Guarani – Ñande Arandu Pygua – https://www.youtube.com/watch?v=3sJNTCYZyw4

  • Investig(ações) insurgentes: corpos-sensores por uma política experimental da presença

    Ciclo \”Habitar as Fronteiras\” no Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP. Dias 7 e 14 de abril de 2020.

    Diante da debilidade existencial intensificada por inúmeros dispositivos de produção de uma vida neoliberal, os encontros convidam ao diálogo pesquisadorxs-praticantes que tencionam as habituais fronteiras entre ciência e luta, vida e política. Assumir a nossa crise da presença como condição de uma vulnerabilidade compartilhada para investigar os diversos dispositivos que a produzem, mas também experimentar como reativar \”uma maior atenção ao devir da presença dos entes\” no mundo vivo; retomar nossa capacidade de \”co-pertencimento e co-produção a cada situação vivida\”.

    Partimos de experiências investigativas em que saberes e práticas de lutas emergem de corpos como sensores; formas de vida que sentem, percebem e enunciam, a partir de sua singularidade os diversos dispositivos de erosão do mundo Comum. São também essas experiências que resistem e inventam formas de vida não proprietárias, não securitárias e que intuem que é o movimento de abertura ao acontecimento o que pode sustentar práticas coletivas de insistência na vida como interdependência: tecnologias de aquilombamento, retomadas indígenas, ocupações, as experiências de travessia do corpo-trans, tecnologias de cuidado, territórios do comum e saberes ancestrais/tradicionais, laboratórios cidadãos.

    07/04, terça-feira, das 19h00 às 21h30 – Encontro com Bru Pereira – antropóloga e educadora, mestre em Ciências Sociais pela UNIFESP; Edson Teles – professor de filosofia na UNIFESP; Maria Fernanda Novo – doutora em filosofia pela UNICAMP. Mediação de Jean Tible – professor de Ciência Política (FFLCH/USP).

    14/04 (terça-feira), das 19h00 às 21h30 – Oficina com Alana Moraes – antropóloga, doutoranda pela UFRJ e Henrique Parra – professor de Ciências Sociais da UNIFESP. Pesquisadores do Pimentalab/LAVITS e do coletivo Tramadora.

    Oficina: ao adotar a gestão de crise como técnica de governo, o capital não se limitou apenas a substituir o culto ao progresso pela chantagem da catástrofe, ele quis reservar para si a inteligência estratégica do presente\” (C.I). A oficina é um convite para habitar por um pouco mais de tempo os problemas comuns que nos obrigam a pensar juntos. Inspirados na ideia de um \”parlamento de corpos\” queremos retomar a inteligência compartilhada e a potência da situação presente. O parlamento emergente de corpos afetados se instaura a partir de formas de conhecer que possam transformar (narrar/inventar/mediar) a experiencia de um corpo-sensor em um conhecimento de luta coletiva dos corpos vivos, que nada tem a ver com a produção de maiorias ou consensos. A oficina convida os participantes a investigar o problema da crise da presença diante da crescente mediação técnica da vida social e as consequentes alterações do regime de sensibilidade que sustentam ou destroem um mundo comum. Diante da multiplicidade de dispositivos tecnológicos que fazem da vida uma sequencia prevista de condutas, procedimentos e desempenhos funcionais, praticamos uma atenção àquilo que o corpo não aguenta mais, como ponto de partida da construção de formas de vida não fascistas.

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    corpo-como-sensor é uma proposição ético-política da vida em sua ontologia corpórea extremamente vulnerável, um terreno de travessias e cruzamentos no qual a representação dá lugar à experimentação, à variação e ao risco dos encontros. Em há um mundo por vir? (2015), Viveiros de Castro e Débora Danowski se perguntam quem seria o demos de Gaia, “o povo que se sente reunido e convocado por essa entidade, e quem é seu inimigo” (2015:120). Para os autores, não se trata mais de buscarmos um “sujeito revolucionário”, mas seguir uma etnopolítica que suspenda a própria noção de \”sujeito capaz de agir como um só povo\”.

    Diante da crise de presença alimentada por inúmeros dispositivos de produção de uma vida neoliberal, o seminário convida ao diálogo praticantes que tensionam as habituais fronteiras entre ciência e política, entre natureza e cultura. Nesse sentido, pensar a nossa crise de presença como condição epocal seria também investigar os diversos dispositivos que a produzem, mas, por outro lado, experimentar como reativar \”uma maior atenção ao devir da presença dos entes\” no mundo vivo; retomar nossa capacidade de \”co-pertencimento e co-produção a cada situação vivida\”. Partimos de investigações em que saberes e práticas emergem de corpos-como-sensores; formas de vida que sentem, percebem e enunciam, a partir de sua singularidade os diversos dispositivos de erosão do mundo Comum. São também essas experiências que resistem e inventam formas de vida não proprietárias, não securitárias, experiências que intuem que é o movimento de abertura e composição com o acontecimento de encontros o que pode sustentar práticas de insistência na vida em interdependência: tecnologias de aquilombamento, retomadas indígenas, ocupações, as experiências de travessia do corpo-trans, tecnologias de cuidado, territórios do comum e saberes ancestrais/tradicionais, laboratórios cidadãos.

    Habitar uma política do sintoma que não nos permite \”interpretar\” tendo em vista um lugar seguro do diagnóstico que contorne ou neutralize o mal-estar.. Nessa condição de precariedade de um mundo sem refúgio, a invenção de linguagens, sentidos compartilhados, infraestruturas e tecnologias de suporte à essas formas de vida é inseparável de uma prática experimental de composições de alianças e arranjos sociotécnicos que dão forma a outras individuações coletivas, a emergentes comunidades de afetados. Trata-se de escapar dos imperativos de resultado e impacto, reino da estratégia e da eficiência tecnocrática, para habitarmos um terreno de experimentações de composições sempre situadas, que funcionem como caixas de ressonância de formas de vida não-fascista.

  • O Devir Negro do Comum: reflexões a partir dos desafios do SUS

    Tadeu de Paula Souza é professor do Departamento de Saúde Coletiva da UFRGS e coordenador adjunto da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da ABRASCO. Autor do livro – Estado e Sujeito: a saúde entre a micro e macropolítica…de drogas

    Foto: Peter Ilicciev

    O XII Congresso da ABRASCO foi, certamente, um marco na história da saúde coletiva e expressou aspectos do que pretendo organizar nessa breve fala. O desafio que tomei como urgência para se problematizar alguns impasses do SUS foi o de pensar o comum a partir da perspectiva de lutas, em especial na perspectiva da negritude. Trata-se de um ensaio que embasou minha fala na mesa “Direito a saúde, direito a uma vida comum: novas formas de lutar em tempo de neoliberalismo” que reverberou com uma certa vibe do congresso. Mesa que tive o prazer de compartilhar com Henrique Parra, Henrique Sater e Alana Moraes.

    Do mesmo modo que o comunismo não foi um regime político do comum o seu fim não encerrou as lutas do comum. As lutas altermundialistas do final do século XX e início do século XXI apontam para um ciclo de lutas que se conectam em torno da defesa do comum: a revolta de Seattle contra o Fórum Econômico Mundial no final da década de 1990, a luta contra a privatização da água em Cochabamba no início do século XX na Bolívia, o Fórum Social Mundial de Porto Alegre em 2001 e mais recentemente os movimentos do Occupy, Primavera Árabe e as jornadas de junho de 2013 no Brasil. São movimentos em escala global que tem recolocado o conceito de comum como princípio político, por ser potencialmente um conector de lutas contra o neoliberalismo. Potencialmente, pois todos esses movimentos têm nuances que não necessariamente rumam a uma política do comum. Eis nosso desafio!

    Esse ciclo de lutas lança o comum como princípio político, mas também como critério que nos permite pensar as lutas e as políticas públicas a partir do comum. O esforço de pensar o público e, em especial o SUS a partir do comum, é uma estratégia política vital, pois como veremos nem sempre o público coincide com o comum. O ataque ao SUS, que com a EC 95 pretende ser fatal, vem dentro de um ciclo de ataques as nossas reservas de comum em escala global. Aquífero Guarani, terras indígenas e quilombolas, pré-sal, a biodiversidade das faunas e floras brasileiras, os direitos trabalhistas se tornaram alvo de uma política da rapinagem. Esse ciclo de ataque, que alguns autores enxergam como um novo ciclo mundial de acumulação primitiva em escala ostensiva, tem gerado a necessidade de revisitar o conceito de comum e lança-lo numa perspectiva revolucionária. Pensar o comum como um princípio político revolucionário porque recoloca a vida social fundada naquilo que não é passível de ser apropriável e desse modo refundar as relações sociais a partir do comum!

    Como critério para se pensar o público o comum traça uma perspectiva para analisar uma radicalidade possível ainda a ser exercida no SUS. Existem muitos problemas e insuficiências macroestruturais do SUS, como o eterno tema do financiamento, que tende a ser colocado como um problema que escapa a governabilidade de qualquer ator político constituído. Tendo a acreditar que este problema decorre de outro, de uma tarefa ainda a ser feita na esfera do comum. Uma tarefa não só do SUS, mas do próprio campo da esquerda institucional. Uma tarefa que nesses 30 anos de SUS ainda não foi exercida numa radicalidade possível. Tal tarefa ainda não realizada que só será possível se adotarmos um perspectivismo do sul do mundo para pensar o comum, criando assim um contra-ponto com a perspectiva eurocêntrica do comum. Mas de que comum falamos?

    O DEVIR DO CONCEITO

    A história do conceito do comum não constitui uma linearidade, nem mesmo uma história interconectada. Os diferentes sentidos que emergem de diferentes impulsos históricos, com bifurcações e meandros que não constituem uma totalidade: assim percorrem Dardot e Laval na arqueologia do conceito de comum. A etimologia da palavra comum (co-munus) dá uma pista: munus designa atividade de reciprocidade, de dádiva mútua. Comum estaria relacionado a um agir pautado num compromisso com uma coletividade. Além de sua origem etimológica os autores apontam quatro impulsos do conceito de comum.

    Um primeiro impulso moral e teológico provém do cristianismo: o “bem comum” ou utilidade comum (no singular) indica ao mesmo tempo uma finalidade última das instituições e um princípio moral do homem. As instituições e o homem estão destinados à procura do bem comum. Esse sentido de comum, embora não tenha hoje uma extensa penetração na vida social, não se dissolveu e segue sendo um lugar comum do comum, sua matriz moral-religiosa.

    Um segundo impulso que surge no direito romano emerge de um campo de disputa em torno da demarcação de bens apropriáveis e não apropriáveis. Os “bens comuns” (no plural) como a água, o ar, a terra são tratados como campos de disputa mediada pelo direito que demarca uma distinção entre a res publica, a res nullis. Enquanto a res publica indica o que “pertence a todos” e resguardado pela administração estatal a res nullis refere-se ao universo daquilo que não pertence a ninguém porque ninguém se apossou. Nesse ínterim estaria a res comunnis que indicaria aquilo que não é passível de ser apropriado, portanto difícil de ser situado, pelo menos no direito romano, na esfera do jogo institucional. A imprecisão do direito da res comunnis, ou bens comuns, deixou desde o império Romano, a possibilidade aberta da res comunnis ser considerada res nullis, uma vez que no direito Romano a res comunnis não formar exatamente uma categoria jurídica. O comum como “coisa” (res) se recoloca hoje nas lutas pelos direitos dos bens comuns, incluindo aí a linguagem, o conhecimento, o ciberespaço e o espaço extra-atmosférico.

    Aqui tem um problema central para o problema do comum colocado por Dardor e Laval, pois até hoje não existe uma jurisdição clara para aquilo que não é apropriável. Os bens comuns ocupam um lugar impreciso de quase não direito, uma vez que no ocidente e em especial na modernidade, o direito se ergueu em grande medida a partir da propriedade enquanto direito natural.

    Um terceiro impulso, filosófico, associa o comum ao universal, seja para depreciá-lo ou para equivalê-lo ao universal. A história moderna da filosofia ocidental, de Descartes a Kant, o comum ora expressa o que é ordinário e trivial ora designa o transcendental que iguala todos os seres humanos, uma faculdade ou uma essência.

    Um quarto impulso do comum vem de diferentes lutas e movimentos sociais da modernidade e funda o “comum” como princípio político ou como prefere Hardt e Negri, como carne da democracia. Um impulso que apresentaremos em quatro momentos de lutas contra a mega-máquina de captura do comum: os movimentos republicanos contra o absolutismo no século XVII, o movimento proletário do século XIX, os movimento contra culturais do século XX e os movimentos altermundialistas no início do século XXI. Esses quatro momentos de luta do comum estão relacionados a diferentes estágios de desenvolvimento do capitalismo que expressam quatro formas principais de apropriação do comum: a representação, a expropriação, a exploração e a normalização. Quatro impulsos do comum que emergem de estratégias de resistência à apropriação do comum pelo capital.

    A MEGA MAQUINA DE CAPTURA DO COMUM

    O primeiro problema, o da representação foi mais diretamente enfrentado pelo filósofo Espinosa, numa certa aliança entre o pensamento subversivo e as lutas republicanas do século XVII, as lutas da ‘multidão’. Positivando o conceito político de multidão o pensamento de Espinosa trava um confronto direto ao pensamento político e teológico dominante, em especial o Leviatã de Hobbes.

    Embora Hobbes considere a multidão como uma realidade política é sempre sob o signo da barbárie. A multidão existe como aquilo que deve ser governado, pois somente o que é uno pode governar. A heterogeneidade, as singularidades, em suma a carne da multidão é sempre irracional e estaria fadada ao caos e a guerra. A multidão comparece na condição daquilo que deve ser governada e unificada a partir de um governo que a representa, o soberano, o Estado. A possibilidade de paz, da ordem e do progresso depende de um contrato social entre pessoas livres que por decidem transferir seu poder para uma instância superior que as representam. A representação estabelece e estabiliza a relação multidão/governo através da forma povo/soberano.

    Em ‘Tratado Político’ Espinosa afirma que não é possível um indivíduo transferir seu poder a outrem, pois isso seria a própria morte. O poder individual será sempre exercido em alguma esfera da vida. O contrato social não se dá mediante uma decisão livre e espontânea de renúncia, mas a partir de mecanismos de coerção que tendem a homogeneizar a multidão. A representação como mecanismo política produz uma separação entre a potência da multidão e o Estado. Doravante o público se confunde a administração Estatal, situado numa esfera distante e separada do poder da multidão. Contrário a esse modelo Espinosa vai propor um governo que não separa povo e poder, poder e multidão. Sua obra inconclusa, Tratado Político, deixou em aberto justamente o ultimo capítulo em que traria uma forma de governo democrático. Após abordar as formas de governo monarca e aristocrático, Espinosa caminhava para apresentar uma forma de governo da multidão, quando ainda jovem morre após anos de perseguição. Seria a forma de governo democrático uma forma de encontro entre os conceitos de comum e multidão? Não seria justamente essa junção inacabada que Negri e Hardt, em “Multidão” e “Bem-estar Comum” vão buscar traçar já num contexto das lutas altermundialistas do século XXI? O comum como uma modalidade política da multidão, em que as diferentes singularidades possam ganhar expressão e institucionalidade política. Deixemos essa questão mais para adiante.

    Os impasses da representação são retomados por Foucault quando este analisa a racionalidade liberal. Pois veremos como coube aos liberais completar a equação inacabada do sujeito moderno proposto por Hobbes. Com John Locke e Adam Smith surge não um sujeito do direito pautado no contrato social e na renúncia, mas o sujeito que se realiza na medida em que tem interesses, interesses egoístas em que o auto empreendimento se torna a verdadeira mola propulsora da vida social. O poder individual não foi transferido para o Estado, ele foi bloqueado pelos mecanismos políticos da representação para ser investido na esfera privada. O sujeito moderno se torna um sujeito bifaceado: um sujeito da renuncia na esfera pública e um sujeito egoísta e competitivo da esfera privada. O sujeito da renúncia da esfera pública, que passa a atuar de forma limitada a partir da representação política, encontra a possibilidade de realização e exercício de seu poder na esfera privado, no mercado. A moral do ‘bem comum’ como finalidade do homem se vê agora lançada a uma esfera bem específica da vida, a espiritual. O homem universal que a modernidade quer fundar a ferro, fogo e sangue é ao mesmo tempo o homem paranoico “lobo do próprio homem”, que necessita de uma mediação política transcendente e o homem essencialmente egoísta, que necessita da concorrência para se realizar na esfera social. Essa natureza humana que se imporá como universal, marca o momento inaugural da braquitude como estética, ética e política do capitalismo, derivando em um amplo e longo processo de expropriação e exploração do comum em escala global.

    A braquitude que funda um homem universalmente paranoide e egoísta constitui elemento indispensáveis para se compreender o Estado Moderno como mega-máquina capitalista de captura de toda forma de comum. A subjetividade paranoide e egoísta institui uma violenta barreira para se pensar um sujeito da solidariedade e do compromisso coletivo. Se somos essencialmente lobos de si e universalmente egoístas, o comum não tem qualquer serventia ou viabilidade política e institucional.

    COMUM E DESIGUALDADE

    Não é para menos que para Marx o direito do comum que se quer fundar é um que seja formulado a partir de outro universal, um universal que não se fundamenta numa suposta natureza humana, mas um universal historicamente constituído, o universal da pobreza. Das lutas contra a expropriação e exploração emerge um novo campo para o comum. Aqui Marx se opõe a toda uma tradição do direito inglês como direito comum (ComumLaw) como um direito consuetudinário, ou seja, que surge dos costumes e dos hábitos coletivos. Marx faz questão de diferenciar os costumes dos privilegiados e os costumes dos pobres. É toda uma reflexão que gira em torno do direito dos pobres colherem os galhos caídos das árvores no chão, fonte de grandes debates e reflexões do jovem Marx. Os cercamentos dos ‘comunners’ deixaria ainda em aberto a possibilidade do hábito de recolher galhos caídos nas florestas um direito do comum?

    Embora seja um costume secular, Marx vê na criminalização desse costume um Estado a serviço dos interesses dos grandes proprietários e um direito comum que se constitui sempre a partir dos costumes e hábitos dos privilegiados. Será, doravante, na constituição das lutas de classes que o comum se vê lançado para fora do direito consuetudinário dos privilegiados para se tornar um objetivo político dos explorados. Somente a partir das lutas contra a expropriação e a exploração que o comum pode se erguer contra um modo de vida que se funda na propriedade, na concorrência e no individualismo.

    Trata-se de um impulso que, com todos os meandros impossíveis de serem abordados aqui, levou a luta de classes rumo aos diferentes destinos do comum no início do século XX. Principalmente ao trágico regime comunista em que o Estado se confunde com o próprio partido que se volta contra todo modo de exercício coletivo e descentralizado de poder. Por outro lado, essas lutas produziram um grande legado e uma importante reserva de comum em torno de novos direitos do comum que emergiram das lutas, em especial na Europa ocidental. As lutas sociais como fonte de criação de direitos do comum refunda um sentido de público que não se confunde e não se encerra no Estado. Se no seio da Europa foi assim que a luta de classes situou o comum como um princípio político que não se nasce do seio do Estado, mas das lutas e mobilizações dos marginalizados, em escala mundial ele precisa ganhar uma perspectiva que não se separa do problema geral do racismo.

    O capitalismo movido pela racionalidade liberal controlou os movimentos da multidão a partir da repartição em dois eixos: um material e um imaterial – uma separação da multidão entre uma minoria que tem e uma minoria que não tem: uma separação desigual dos bens material, criando uma massa de desapropriados. Processo esse que sempre veio associado a uma segunda separação: entre quem é e quem não é, uma repartição desigual entre singularidades ditas normais e singularidades anormais. Agora é possível retomar as quatro formas de apropriação do comum e como elas se articulam. 1) a representação que separa o poder da multidão, como uma forma de organização política a partir do contrato social pautado na renuncia acabou por se tornar um modo de perpetuação de um mesmo tipo político: o homem branco hetero de classes privilegiadas. 2) A expropriação dos bens comuns a partir do processo que Marx chamou de acumulação primitiva que separa o trabalhador dos meios de produção comunais, em escala mundial instituiu o Negro como signo de anormalidade e destino da pobreza; 3) a exploração que se efetua com a alienação na medida em que separa os trabalhadores no interior da fábrica transformando a produção comum produzido em mais valida; 4) os processos de normalização analisadas por Canguilhem, Foucault que subdivide a multidão e separa o normal do anormal, tendo sempre um foco e um peso especifico para negros, mulheres e gays. As diferentes singularidades se encontram desse modo cindidas e barradas de caminhar em direção ao comum.

    A longa marcha do movimento operário europeus no antes e pós-grandes guerra foi um processo de constituição de reservas de comum: direitos sociais e humanos, políticas públicas, ampliação da participação e inclusão de grupos excluídos na esfera política. Esses acúmulos produziram algumas aberturas que foram desembocar em novos movimentos na década de 1960. Momento em que é possível perceber uma diferença entre os rumos dos questionamentos entre intelectuais europeus e os movimentos de intelectuais negros, especialmente nas Américas: uma revisão da história capitalista a partir da perspectiva de uma negritude, nos termos defendidos por Fanon. Se Negro é o nome dado ao europeu para determinar um lugar de não humano, negritude é o termo que demarca uma apropriação em torno das lutas por liberdade, justiça e direitos dos expropriados e descendentes dos escravizados de África.

    COMUM E DIFERENÇA

    No documentário sobre maio de 68 – “No intenso agora”- o diretor Moreira Sales é preciso ao atentar que nas cenas recuperadas das ruas de Paris se vê poucos negros e nas raras cenas aparecem sempre num segundo plano.

    Franz Fanon, Angela Davis e mais recentemente Achille Mbembe não deixam passar em branco que foi sempre sobre a denominação ‘NEGRO’ imposta pelos brancos que a pilhagem, o roubo de terras e riquezas e o trabalho forçado se legitimaram e assim criaram as condições para o desenvolvimento do capitalismo. Embora a acumulação primitiva e a exploração tenham ocorrido no interior da Europa foi sobre a África e as Américas que sua faceta genocida deixaram traumas profundos ainda não curados. O Negro se torna a um só tempo marcador de pobreza e de anormalidade. A raça como signo de anormalidade e a pobreza como signo racial geram um novo significante: da pobreza como fruto de uma anormalidade genética, a pobreza como origem e destino de uma raça inferior.

    Se no centro do capital as tecnologias de subjetivação operaram através de dispositivos sofisticados e sutis como bem analisa quase toda obra de Foucalt, na periferia do capital esse processo se deu a partir do extermínio de todo modo de vida que não seguia a regra da braquitude. A confirmação de que o humano é essencialmente egoísta e competitivo se deu através do extermínio de toda etnia que não confirmava essa regra.

    Junto a esses pensadores saltamos para uma terceira cena do comum, a partir de grupos que foram silenciados durante séculos, por não serem até então incluídos como humanos: as mulheres e os negros. A década de 1960 marca o momento em que se diz: não só existe desigualdade social como ela é ainda mais aguda entre negros e mulheres, e especialmente mais grave entre mulheres negras. As diferenças de gênero e de raça e seus processos de subjetivação são colocadas como estruturante das desigualdades sociais. Sobre a necessidade de afirmação das diferenças que foram sujeitadas, criminalizadas, anuladas e patologizadas que um novo grito do comum se faz ouvir. Será no pensamento interseccional emergente, especialmente de negros e feministas que novos territórios identitários traçam uma nova perspectiva política do comum e das lutas de classe.

    Desde então tem havido um esforço com parciais sucessos, mas sempre violentamente paralisado, um esforço de não separar as estratégias de dominação das estratégias de subjetivação. Foi nesse momento da história de lutas que o neoliberal comparece como uma nova racionalidade e reação a nova produção do comum. O extermínio das principais lideranças do movimento negro nos EUA se agenciou gradativamente a uma nova racionalidade de governo. Em 1971 a fundação Rockefeller financia um encontro para discutir as razões das revoltas dos anos 60 e pensar caminhos para o futuro. O relatório indica que o problema dos anos 60 foi excesso de democracia, lê-se: participação de negros e mulheres na arena político-institucional. Com Reagan se inicia a política da “Economia Livre e Estado forte” que no âmbito da segurança interna se intensificam o extermínio das principais lideranças do movimento negro e criminalização dos negros. Na esfera mundial entra em cena o pacote neoliberal, que na América Latina se deu pelas portas arrombadas pelas ditaduras militares.

    O Brasil, de breve período democrático, não consolidou instituições democráticas capazes de se moldar e incluir as novas demandas da multidão expressas pelos movimentos do Cinema Novo, Tropicalismo, movimento feminista, movimento negro e intensificação dos ideais socialistas. A luta contra a ditadura tem seu mais radical expoente o negro baiano Mariguela, que assim como os negros norte-amaricanos morreram assassinados pelo Estado. Ditadura militar no Brasil, democracia nos EUA: regimes políticos distintos conectados por uma mesma racionalidade neoliberal que resultam em mesmo destino aos negros. O neoliberalismo encontrou na abertura lenta e gradual as possibilidades de manter um estado de exceção que através da Polícia Militar segue a exterminar negros pobres das periferias. A década de 90 marcaria mais um violento passo na destruição das proteções do comum.

    O devir negro do mundo e o devir negritude do comum

    O problema atual do neoliberalismo parece recolocar a dinâmica da acumulação primitiva do capital novamente na centralidade dos sistemas financeiro internacional. Ao contrário de Marx, Rosa Luxemburgo via a acumulação primitiva não como uma etapa do capitalismo, mas como um processo central e coextensivo ao capitalismo. O capitalismo vai sempre precisar expropriar, seja nas periferias do capital, seja criando zonas de instabilidade no interior dos estados capitalistas. Essa onda de expropriação generalizada que se intensifica nos anos 90 e que se intensificou ainda mais depois da crise de 2008, tem gerado um movimento que Mbembe denominou de um devir-negro do mundo. Se o negro foi o modo como os brancos nomearam os povos expropriados e escravizados, agora tal realidade se apresenta a toda humanidade numa divisão entre os 1% e o restante de toda a humanidade: uma necropolítica.

    Tal problema vital impõe o compromisso de pensar uma via do comum que seja ele mesmo restituidor e reparador, no sentido clinico-politico do qual falam Fanos e Mbembe. Contra um devir-negro do mundo existe também um devir negritude do comum, um devir provocado pelos movimentos negros que desponta uma potência produtora do comum que deve inexoravelmente passar pela questão da restituição e reparação.

    Aqui voltamos ao ponto de partida desse ensaio. Se existe uma tarefa a ser feita no SUS, como efetivação de uma política pública pautada no comum, é a tarefa de inclusão do comum pela expressão da negritude. Não será possível repensar um SUS universal que não passe pela produção do comum, assim como não é possível produzir um comum que não seja pela abertura a um protagonismo dos afrodescendentes. Aqui tem se colocado um certo impasse para a esquerda, tanto partidário-institucional quanto no campo intelectual.

    Esse impasse tem sido evidenciado pelo estranhamento e critica de parte dos intelectuais aos movimentos ‘identitários’ negros. Tem sido lugar comum os intelectuais brancos acusarem esses movimentos de se fecharem a composição sendo, portanto, uma barreira ao comum, um fechamento à diferença. Entretanto, a possibilidade de um negro se diferenciar da determinação subjetiva que o branco lhe impôs está muito mais acessível no encontro com outros negros do que com brancos. Trata-se de um devir negritude do comum nos termos colocados pela intelectual negra Neusa Santos Souza em ‘Torna-se Negro’. Do mesmo modo as mulheres entre si, e os gays entre si, e as trans entre si. Primeiro é necessário diferenciar-se da determinação heteronormativa, misógina e racista no encontro com o semelhante. A aliança constitutiva de um devir comum das diferenças sujeitadas pode produzir acumulação de potencia para equivocar o lugar do home branco hetero e criação de um si negro. Isoladas, essas diferenças não ganharão expressão institucional pois não será por livre e espontânea vontade que o branco vai ceder o seu lugar de poder. Logo, não se trata de esperar que esses grupos identitários se abram, mas que esses movimentos identitários produzam uma abertura no movimento identitário dos homens brancos heteros cis. O mundo branco deve se abrir rumo a dissolvência e não o contrário. O suposto lugar de neutralidade ou de universalidade do homem branco revela-se um lugar identitário hegemônico.

    De modo abstrato e generalizante os intelectuais europeus pensam na produção do comum como composição das diferenças sem definir claramente uma perspectiva. Fato que pode conduzir a um certo relativismo ou mesmo demarcar uma perspectiva transcendental do comum. Esse é tema que requereria mais tempo e dedicação para se analisar, mas existe uma apropriação desse discurso do comum que enxerga de modo abstrato uma potência política no encontro entre diferentes. Essa apropriação do encontro com a diferença enquanto uma aposta ético-política expressa um lugar de fala do homem branco. Pois é certo que o encontro com outros não brancos abre uma possibilidade do homem branco hetero se diferenciar do seu lugar de poder. Já para as subjetividades e modos de vida marginalizados, criminalizados e patologizados essa possibilidade está mais aberta no encontro com o seu semelhante. O mais importante da constituição do comum está no processo de diferenciação do que num encontro generalizado das diferenças. Nesse sentido há senso estratégico em curso dos movimentos identitários se fortalecerem, pois tem uma perspectiva bem situada. E pode haver aqui um equivoco de leitura de quem não se coloca numa perspectiva marginalizada, mas fala de um lugar de privilégio.

    Existe um objetivo dos movimentos identitários de se chegar a um estágio em que essas identidades não sejam mais necessárias, porém isso só irá acontecer quando o lugar identitário do branco, como medida e verdade, for dissolvido. Há, portanto, um desejo de comum, uma dissolução da raça como medida e critério que passa por um devir-negritude do comum. A identidade, o encontro com o semelhante como signo de potência se expressa aqui como território de luta, estratégia, meio de passagem, criação de abertura num mundo fechado.

    Se o SUS é uma política do comum, o é ainda de forma parcial. Nossas instituições do SUS ainda são de domínio de homens brancos, tanto das instituições acadêmicas quanto das instituições de saúde. Os negros seguem a compor o grupo que sofre mais violência institucional no SUS e são os negros que seguem morrendo mais e adoecendo mais apesar do SUS. Na sua dimensão de política de Estado, o SUS reproduz o modelo da representação em que o povo, de maioria negra, não se vê representado nas suas instituições. Nossa tarefa de democratizar as instituições de saúde implica numa atenção real a participação de negros e mulheres mais especialmente de mulheres negras, sem o qual o SUS se torna mais uma instituição em que o negro participa sempre na condição de passivo e assujeitado. Num país de maioria pobre negra como pode o SUS ter sustentação social que não seja por um projeto comum que passe centralmente pela negritude? Tarefa ainda não realizada que nos lança a um porvir do SUS pautado num comum efetivamente inclusivo.

    Um SUS que rume ao encontro do que bem aponta Djamila Ribeiro na aposta de uma nova humanidade que seja refundada desse “outro do outro”: a mulher negra. Que desse ventre originário e mítico, mas também ético e político, retornemos a uma ancestralidade para propor outro futuro possível que não separe o gesto político do gesto do amor! Ou como nos canta o rapper Rincon Sapiência: “os pretos e as pretas estão se amando”!

  • Saúde coletiva e tecnopolíticas do comum

    Henrique Z.M. Parra

     

    texto apresentado no 12° Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, no Rio de Janeiro, 27 de julho de 2018 (*)

     

    Foto: George Magaraia

     

    Recebi o convite para participar do Congresso da Abrasco como uma boa oportunidade para compartilhar com vocês alguns problemas que venho investigando no campo dos estudos sociais em ciência e tecnologia. Não sou da área da saúde e nem tenho a saúde como um tema/objeto específico de trabalho. No entanto, penso que este encontro é o início de um novo diálogo e de parcerias de trabalho. Em parte porque acredito que estamos enfrentando problemas semelhantes (na educação, na ciência e no desenvolvimento tecnológico), mas também porque na área da saúde muitos dos problemas que vamos tratar aqui adquirem uma convergência e interdependência muito densa.

    Mas também, outra razão que me aproxima das preocupações da Abrasco é a possibilidade de tomarmos a Saúde como um Comum e aí, problematizarmos quais poderiam ser as estratégias, ações, normas, protocolos, infraestruturas que dão forma à instituição (no sentido de ação instituinte) da Saúde como um Comum.

    Quais seriam as formas desses direitos e institucionalidades que dariam existência e sustentação à Saúde como um Comum? Como resistir, portanto, às dinâmicas neoliberais (micro, meso e macropolítica)? Essa é uma grande pergunta que dá forma a um exaustivo programa de pesquisa e de práticas.

    Mais especificamente, sob o guarda-chuva dessa ampla questão, tenho investigando algumas experiências (que denominamos de laboratórios cidadãos ou laboratórios de prototipado) onde este problema é enfrentado com recortes muito limitados. O que me interessa nessas experiências é a forma de enfrentamento dessas questões. Nos laboratórios constitui-se uma comunidade de afetados (ou uma comunidade de atores co-implicados) em torno de um problema que emerge diante da ameaça de destruição de um comum. Em seguida, o problema é investigado, adensado pelas distintas perspectivas (saberes incorporados e situados) dos atores, através de um esforço de criação de um protótipo, um artefato ou um dispositivo que contribua para dar um melhor entendimento e tangibilidade sobre os mecanismos de produção e sustentação deste Comum ameaçado.

    E no âmbito dessas iniciativas, o meu interesse é mais especificamente por aquelas experiências que estão envolvidas com a criação de arranjos sociotécnicos orientados para a produção do Comum. Dito de outra forma, “tecnopolíticas do comum”.

    Sinteticamente, o argumento da minha exposição será a seguinte:

    1. Caraterização de uma experiência política de assombro: não só no Brasil, mas em diversos países, experienciamos uma profunda crise institucional e das políticas sociais. Há um acelerado desmanche dos direitos sociais e o fortalecimento de um Estado-Empresa onde o público-estatal é cada vez mais indistinto do privado-corporativo. A lei, as instituições, os canais de representação parecem insuficientes para responder à atual configuração dos conflitos de uma perspectiva democrática (falamos agora em democracia autoritária, democracia securitária, normalização do estado de exceção, entre outros…).

    2. Dentro deste processo interesso-me por uma dinâmica de deslizamento nos mecanismos de exércicio do poder e nas formas de orientação da ação social, que se deslocam de uma orientação por valores, normas e leis, para uma forma de determinação/orientação que podemos denominar “tecnopolítica”. São as técnicas, protocolos, infraestruturas, procedimentos, tecnologias diversas através das quais conduzimos nosso cotidiano e se realizamos, de forma imanente, as formas de vida que elas propagam.

    3. Investigar a maneira como alguns arranjos sociotécnicos (dispositivos, aparatos e tecnologias utilizadas por humanos) participam da mudança social e abordam o problema da escalabilidade de outra forma. Um desafio que temos (na educação, saúde etc) quando pensamos numa política pública é o de encontrar formas de transpor uma iniciativa de pequena escala para uma outra escala. Todavia, ao invés de pensar em como transpor escalas (do micro para o macropolítico), assumo um caminho alternativo: como pequenos dispositivos através da recursividade e reticulação vão constituindo longos arranjos sociotécnicos.

    Ao pensar a produção do Comum por essa perspectiva, minha hipótese é que podemos encontrar estratégias complementares de luta e de instituição de novas formas de vida.

    ***

    O Comum, no sentido que estamos utilizando aqui (e inspiro-me sobretudo no trabalho de Antonio Lafuente), diz respeito à algo que é sempre produzido entre todos. Atualmente, são muitos os sentidos que podem ser atribuídos ao Comum e há uma vasta literatura sobre isso (link para uma apresentação onde discorro especificamente sobre este tema).

    O ar que respiramos, a cultura, a experiência de urbanidade, o cuidado na reprodução da vida, a escuridão da noite que permite ver as estrelas, o conhecimento, a saúde são possíveis exemplos desse Comum.

    Frequentemente este Comum só emerge, só aparece quando ele se encontra ameaçado. Quando o ar que respiramos se torna poluído, um Comum (a qualidade e portanto a participação do ar em nossa saúde) foi destruído por formas de uso que o degrada. Em termos econômicos, formas de uso e apropriação exclusiva que externalizam os efeitos de sua utilização. O Comum tem portanto uma dimensão não codificada, não formalizada, não essencialista, tácita e relacional, mas que é fundamental à produção e sustenção da vida. Essa paradoxal invisibilidade e presença constitutiva do Comum em nossas vidas é simultaneamente sua maior potência e ao mesmo tempo sua maior fragilidade.

    É neste sentido que o problema do “Comum” não pode ser separado (como bem descreveu Ricardo Teixeira) de um problema da “percepção do Comum”. Por isso, a forma do Comum transitar entre o intangível e o sensível depende de um regime de sensibilidades que dá forma a uma Política, onde as dimensões afetivas-culturais-cognitivas-econômicas são indissociáveis.

    Como percebemos que somos co-partícipes na produção do Comum? Quais as estratégias, práticas, tecnologias, infraestruturas que dão forma a essa experiência de co-implicação na produção do comum?

    Para a Abrasco é evidente que a saúde é um problema coletivo. Não há saúde individual sem saúde coletiva. Parte do conflito histórico e atual, em torno dos direitos à saúde, dá-se pelas dinâmicas que procuram submeter a Saúde a dinâmicas individualizantes (em termos dos modos de subjetivação, na forma como nos constituímos e nos relacionamos com nossa da saúde) e privatizantes (em termos das formas de codificação, mercantilização e regulação social). Mas falar em termos do “Comum” significa transbordar a dicotomia público-privado; humano-não-humano. Ele é uma terceira margem que não está em oposição nem ao público, nem ao privado. O Comum convive e apoia-se tanto no público como no privado, assim como ele se realiza com os humanos e não-humanos (objetos, recursos naturais, artefatos tecnológicos).

    ***

    Retorno então ao tema mais específico das “tecnopolíticas da produção do comum” para indicar 3 eixos de questões que me levam a eleger este recorte como forma de criação e resistência.

    1. Como explicar isso que reconhecemos como uma rápida erosão de conquistas duramente construídas? Como explicar essa intensificação, aceleração, austúcia nos processos de desmanche dos direitos sociais? Isso é sinal de uma fragilidade institucional ou baixa qualidade democrática de nossas instituições? É sinal da precariedade do nosso marco regulatório? Ou é algo que convive e integra desde muito tempo a produção do atual regime de governo, mas que agora adquire novos contornos? Quais são as continuidades e rupturas?

    Neste momento, é fundamental identificar quais são as práticas, as áreas da saúde que estão sendo capazes de resistir e persistir na produção da Saúde como um Comum. Ao longo da história, o Comum e as comunidades que o produzem tem aprendido a sobreviver a diversas investidas que procuram destruí-lo ou submetê-lo a regimes de apropriação e expropriação. Ao mesmo tempo é importante identificar quais os novos mecanismos, as estratégias, e as novas práticas que tornam possível a privatização da saúde. Em resumo, partilho da impressão de que o desenho institucional que temos disponível é importante, porém parece ser insuficiente para responder às ameaças atuais.

    2. Quais os limites, quais os modos de interação do público-estatal com o privado-corporativo? É possível encontrarmos outras composições para além da dicotomia Estado-Mercado? Aqui também a percepção ordinária (para não dizer senso comum) que se difunde em nossa sociedade é de uma crescente indistinção entre o público-estatal e o privado-corporativo. Como essa experiência se constituí? Quais as mediações entre os cidadãos, o acesso aos serviços de saúde, as relações entre os trabalhores da saúde e os demais cidadãos?

    Cada vez mais precisamos indagar como os diversos aparatos, equipamentos públicos servem e funcionam como infraestruturas para a expropriação e apropriação privada da Saúde?

    Ao mesmo tempo, qual é a percepção, a experiência que se constitui desde o cidadão, o usuário na ponta? Qual é a interface, a mediação que ele tem o sistema?

    Pensando desde a borda do sistema, a partir dos modos de uso e apropriação do cidadão, e do modo de relação e de subjetivação que ele constitui com o sistema de saúde, quais seriam as possíveis formas de ativar um devir-comum do público-estatal? Como o cidadão reconhece a produção do Comum e como ele experiencia as diferenças e conexões entre aquilo que é público-estatal e aquilo que é privado-corporativo?

    3-Cotidianamente nos confrontamos com práticas, procedimentos e tecnologias que se instalam em nossa vida como dispositivos que se apresentam como neutros (\”pós-ideológicos\”). Há evidentemente princípios e valores que constituem as relações tecnicamente mediadas. A capacidade de captura e adesão a um dispositivo depende de sua eficácia prática e de sua capacidade de tornar-se desejável. Sua adoção é quase “natural” (ela se aproveita das disposições emergentes num campo de possíveis). Ao prover a “melhor solução” para um determinado problema ela atualiza de forma imanente uma racionalidade específica. Assim, novas técnicas e tecnologias vão paulatinamente modificando o seu ambiente, criando recursivamente um contexto cada vez mais favorável à sua adoção, de forma que num momento posterior seja impossível não adota-las (veja artigo que publicamos sobre Google as Universidades brasileiras).

    Simetricamente, quais seriam nossas técnicas, nossas tecnologias que poderiam promover as formas de vida e cuidado que desejamos propagar?

    ***

    Em resumo: se nossas instituições e os canais de mediação política são importantes, porém insuficientes; se a ciência e tecnologia, participam cada vez mais da criação de artefatos que influenciam nossas vidas; e se há um crescente processo de delegação da agência à mediação técnica, neste cenário talvez a criação e a resistência tecnopolítica seja um importante campo de lutas.

    Certos arranjos sociotécnicos são capazes de informar e produzir efeitos sobre seu entorno de maneira a produzir certas configurações de mundo. Destaco duas propriedades neste processo de propagação e estabilização: a recursividade e a reticulação. Juntas elas abordam o problema de escala (micro, meso, macro) de uma outra maneira. Nós, cientistas sociais, poderíamos trabalhar mais com os engenheiros, cientistas da computação, arquitetos, médicos e sanitaristas para aprender juntos a “construir coisas”.

    Um exemplo (veja ensaio \”Do protesto aos arranjos tecnopolíticos\”): “a criação da pílula anticoncepcional, o protocolo TCP/IP da internet e o telefone celular são exemplos de artefatos técnicos-científicos que produzem arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares. Sua forma de adoção e propagação vai gradativamente modificando as relações sociais através do seu uso, e os efeitos de sua adoção nas pontas (sujeito individual ou máquinas) cria mecanismos de reforço sistêmico. […]

    Recursividade: Uma prática, uma tecnologia, uma organização que atue recursivamente está desenhada para a resolução prática de um problema, cujo modo de ação dá-se mediante a criação de sub-rotinas que atacam frações de um problema maior, e a cada movimento ela volta à sua função (missão) original, porém agregando um “aprendizado” que a torna mais eficiente. Este aumento de eficiência (ou ganho de poder) acontece também porque além de resolver partes do problema (diminuindo a força do seu oponente) ela modifica gradualmente o seu meio de ação (meio-associado), criando um ecossistema mais favorável à sua execução. Ou seja, um artefato recursivo é um dispositivo prático (material-simbólico) que executa um programa (uma ação normativamente orientada) cuja eficiência está na transformação do seu meio-associado e não apenas na realização de um objetivo final abstrato). Como efeito, a recursividade apoia-se na produção de uma “comunidade” ou de “públicos recursivos” que dão sustentação ao processo.

    Reticulação: A reticulação é um processo de propagação não-linear e rizomático de uma estruturação emergente criando níveis subsequentes de estruturação de uma realidade. Quando uma prática, uma tecnologia, uma organização se reticulariza, significa que ela é capaz de tornar durável, de diferentes formas, o seu programa de ação, criando níveis crescentes de estruturação. Como efeito, ela amplia sua capacidade de determinação sobre um campo de possíveis. Ou seja, a reticulação dá maior consistência e força para seu programa de ação (PARRA, 2018).

    ***

    A título de contra-exemplo examinemos dois arranjos sociotécnicos que podem produzir fortes agenciamentos de orientação neoliberal.

    Proliferam hoje diversas tecnologias digitais portáteis, tanto os APPs de smartphones como os novos wareables (relógios ou roupas) destinados a fazer a coleta permanente de informações produzidas por nossos corpos. Essas tecnologias são adotadas por milhares de pessoas e permitem a coleta, organização e disponibilização dessas informações em diferentes plataformas. São hardwares e sofwares frequentemente corporativos (mas há também versões em software livre) que criam novas possibilidades de análise, tanto para os indivíduos usuários como o bigdata realizado pelas grandes empresas que centralizam e comercializam esses dados. Aqui, há tanto a formação de uma experiência de individualização na produção e análise dos seus dados pessoais (que pode reforçar uma percepção mais individualizante da saúde), como também a formação de novas comunidades de usuários que compartilham dados e criam novas analíses e diagnósticos sobre problemas específicos. Em ambos os casos, vemos o fortalecimento de um conhecimento que se apoia numa concepção de corpo informático (sem “corpo”), pois os dados são vez mais descontextualizados quando a coleta é seletiva e não leva em conta elementos contextuais, mas também em alguns casos a constituição de novas comunidades que se constituem através da partilha de suas experiências. Hermínio Martins refere-se aquela primeira “forma de conhecer” descorporificada (baseada na metafísica informacional) como ciborgues epistêmicos (veja apresentação \”Algoritmos Encarnados\” realizada no Medialab-UFRJ).

    Neste caso, a crescente adoção dessas tecnologias, ao mesmo tempo em que produz uma nova forma de conhecimento sobre o corpo, produz outro modo de relação com a saúde (percebida aqui cada vez mais numa chave individualizante). Ao mesmo tempo, ela participa de uma economia política informacional baseada na exploração dos dados pessoais (seja para os seguros médicos como para a indústria farmacêutica). A depender do caso, temos ainda a produção de novas formas de governo biopolítico: basta imaginar a utilização de mensuração glicêmica ou da análise da atividade física dos usuários associada à gameficação da vida (seja para o cidadão ou para o consumidor de planos de saúde).

    Mas o contra-exemplo que melhor se encaixa nessa discussão talvez seja os dos novos sistemas de intermediação de consultas médica e exames laboratoriais: Dr.Consulta, Doutor123, CiadaConsulta. Desconheço o funcionamento em detalhes desses serviços, por isso destacarei apenas os elementos que dialogam com os problemas descritos acima (esses serviços merecem estudos minuciosos sobre sua forma de criação e expansão). Podemos ver aí como a recursividade e a reticulação vai acontecendo através da adoção das tecnologias móveis pelo usuário, combinadas ao georeferenciamento, à analise de dados pessoais, infraestrutura física e a gestão do trabalho (na forma de um capitalismo de plataforma).

    São tecnologias – entendidas aqui como ambientes dentro dos quais modos de vida são produzidos – que se efetivam através da criação e propagação de um arranjo sociotécnico que produz um tipo de experiência com a saúde. Alguns desses serviços já estão em operação há alguns anos, e é possível observar como vão expandindo pouco a pouco sua infraestrutura de atendimento fisico. Gradativamente, elas vão se reticulando na vida social, ampliando sua presença, e de forma recursiva vão modificando seu meio de maneira a torná-lo mais favorável ao seu funcionamento.

    ***

    Temos aí em operação (exemplo da articulação micro-meso-macro):

    1. Os efeitos macropolíticos relativos à regulação jurídica das atividades da saúde, criação de dispositivos burocráticos e legais que ampliam os agenciamentos privatizantes, mudanças nos marcos regulatórios dos direitos sociais, a economia política informacional baseada na exploração dos dados pessoais. Mas também a dimensão cultural e discursiva propagada nos meios de comunicação (tanto nos meios corporativos como nas redes de autocomunicação de massas). Nesta camada ainda adicionaria a emergência de novos saberes populacionais que correspondem a novas forma de exércício do poder. Para além do saberes disciplinares e populacionais que dão forma ao modo de governo biopolítico, bem descritos por Foucault, participamos agora da emergência da governamentalidade algorítmica apoiada nos saberes simulacionais, no big data e na estatística preditiva (veja o trabalho de Antoinette Rouvroy).

    2. No nível mesopolítico poderíamos identificar os diversos mecanismos de gestão e organização do trabalho, os regimes de visibilidade e sensibilidade que determinam o que conta e o que não conta numa organização, as formas de mensuração, quantificação, avaliação e tomada de decisão. Quais os limites entre o trabalho visível e o trabalho invisível do cuidado?

    Novamente, é na organização do cotidiano, na produção e reprodução da vida que um amplo conjunto de técnicas, procedimentos e tecnologias utilizados irão constituir modos de vida específicos.

    3. No nível micropolítico um modo de subjetivação baseada numa relação individualizada e mercantilizada com a saúde. Os modos de subjetivação, conforme analisa Suely Rolnik, apoiam-se em dois modos de conhecimento sensível. “A primeira é a experiência imediata, baseada na percepção que nos permite apreender as formas do mundo segundo seus contornos atuais…quando vejo, escuto ou toco algo, minha experiência já vem associada ao repertório de representações de que disponho e que, projetado sobre este algo, lhe atribui um sentido”. Mas há “um outro tipo de experiência que a subjetividade faz de seu entorno, é a que designo como “fora-do-sujeito”, é a experiência das forças que agitam o mundo enquanto corpo vivo e que produzem efeitos em nosso corpo em sua condição de vivente. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver e de sentir aquilo que acontece em cada momento (o que Gilles Deleuze e Félix Guattari denominaram, respectivamente, “perceptos” e “afectos”)” (ROLNIK, 2018).

    Lembro-me aqui do filme Daniel Blake. Em diversos momentos, quando Blake vai ao posto do serviço público para solicitar uma licença médica ou o seguro desemprego ele vive um conflito entre duas ordens distintas: sua experiência, sua cultura, sua subjetividade de trabalhador formada durante os anos de Welfare State constituí-se a partir de uma contrato social. Ele se relaciona com o aparato público-estatal através dessas representações instituídas. Entretanto, nada mais funciona como antes: os funcionários tem que atende-lo sob determinados protocolos, ele tem que produzir resultados e passar por distintos testes para ter sua condição reconhecida. A situação cria um conflito intransponível para ele, a formação do Estado-Empresa. As reações seguem então por duas direções: as estratégias individualizantes que encontram apoio nos modos de subjetivação neoliberal (Você-S/A); as estratégias coletivas que buscam constituir um território comum de experiência e lutas, capaz de tecer a vida.

    Acontece que, quando pensamos a micropolítica, atentamo-nos quase que exclusivamente à dimensão das representações, àquilo que podemos enunciar e disputar discursivamente. Negligenciamos, frequentemente essa dimensão dos afectos e perceptos que está além e aquém do sujeito: o pré-individual e o supra-individual. Por isso sem uma política de subjetivação, capaz de modificar o regime de sensibilidades, a relação com o público e o Comum são subtraídas.

    ***

    Pensando agora nos aspectos mais “proximais”, no âmbito de uma micropolítica ou de uma mesopolítica, gostaria de perguntar e imaginar qual é nossa tecnopolítica? Quais são nossas tecnologias de produção do comum? Que dispositivos, artefatos, protocolos, infraestruturas já temos ou que podemos criar para promover e dar sustenção à saúde como um Comum?

    A partir dos problemas descritos acima, imagino que uma tecnopolítica do comum seria portadora de algumas características.

    Em primeiro lugar trata-se de tecnologias que produzem uma comunidade e que são apoiadas por essa comunidade. Neste sentido, uma tecnologia da comum é sempre uma tecnologia de produção de vínculos, é uma tecnologia de pertencimento (para usar uma expressão de Isabelle Stengers). Uma cozinha coletiva numa ocupação de sem-teto (como analisa Alana Moraes) é uma importante tecnologia de pertencimento que abriga processos terapêuticos. Uma certa metodologia de conversa e escuta pode ser pensada também como um tecnologia de produção do comum (como bem relata Antonio Lafuente sobre a experiência dos alcóolatras anônimos).

    As tecnologias do comum também transitam da simples participação (relação usuário-serviço) para o reconhecimento da condição de co-produtores, onde tod@s estão co-implicados na produção. Que tecnologias temos no âmbito política nacional de Sáude que atendem a essa condição? Talvez as experiências dos conselhos de participação popular, os fóruns, possam ser pensadas como exemplos dessas tecnologias. Após mais de 20 anos de implementação das experiências dos conselhos (na educação, saúde…), já podemos reconhecer algumas estratégias que consideramos mais potentes e outras que convertem a participação em mecanismos de captura e gestão (governamental, partidária, corporativa).

    Transitar de uma cultura participacionista para uma política orientada pelo “princípio do comum”, nos termos de Laval & Dardot, implicaria numa outra forma de composição da política, modificando o regime de subjetivação política e de produção dos sujeitos de direitos; e numa outra forma de composição entre o público-privado, econômico-social, reconhecendo, como o fazem as feministas, que toda a vida é política:

    “a identidade do princípio (o comum) não suprime a distinção das esferas (social-econômica, público-privada, politica, e publica-publica), mas tem a função de organizar o social de tal maneira que seja possível uma deliberação na esfera pública que não fique prisioneira dos interesses de tal ou qual categoria socio-profissional. Isso só pode acontecer se a esfera da produção e dos intercâmbios se reorganize a fundo a partir do autogoverno do comum” (Laval & Dardot).

    Imagino também que nas tecnologias de produção do comum o conhecimento é algo vivo, e portanto, sua forma de produção-circulação e seus regimes de uso devem ser vetores de resistência às diversas expressões do capitalismo cognitivo. Recentemente, a Fiocruz desenvolveu um conjunto de referências que darão forma a uma política de ciência aberta. No momento em que o conhecimento acadêmico e científico é cada vez mais colonizado pelas dinâmicas de fechamento, privatização e mercantilização (seja no ambito dos periódicos científicos e na expansão dos direitos de propriedade intelectual), defender a ciência, a cultura e o conhecimento enquanto um Comum é uma ação fundamental.

    Para isso é necessário criar infraestruturas próprias, orientadas pela noção de “soberania tecnológica”, protocolos, formas de governança que permitam efetivar e lutar pela abertura da ciência. Importante destacar aqui que a noção de “livre e aberto” não se confunde com a noção de “grátis” (free as an freedom of speech, not free beer). Ou seja, promover a ciência enquanto um Comum exige a criação de formas de co-responsabilidade no uso, capazes também de dar sustentação à todo o ecossistema que produz esse Comum.

    As tecnologias de produção do comum também estão orientadas pelo reconhecimento e maior centralidade conferida à experiência do cidadão e d@s trabalhador@s da saúde. Como diz Lafuente: “todos somos expert em experiência”. As tecnologias cognitivas devem então estar alinhadas à capacidade de escuta de diferentes saberes. Isso significa também, que talvez essas tecnologias sejam dispositivos de desacelaração (modo slow). Passamos então de um regime de dominância dos experts para um regime de co-existência entre diferentes saberes da experiência. Ao darmos maior centralidade à experiência, ao saber vivo, interrogamos portanto a idéia dos corpos informáticos dos ciborgues epistêmicos. Novamente, não se trata de colocar-se contra as tecnologias. Ao contrário, penso em formas tecnológicas que dêem lugar aos ciborgues (no sentido de Haraway) encarnados. Ou seja, modos de conhecer e de composição que reconheçam nossa cultura técnica e nossa natureza híbrida.

    São também arranjos sociotécnicos que reconhecem a agência dos objetos, substâncias e máquinas. Os elementos não-humanos devem “ter voz”. Do contrário, corre-se o risco de apagarmos os efeitos de que eles são portadores. O debate sobre os alimentos transgênicos e toda sua relação com a cadeia produtiva e alimentar é um ótimo exemplo desse problema. O mesmo se aplica às nanotecnologicas. Na somatória de algumas dessas características entramos em tensão com aqueles modos de conhecimento científico que estão apoiadas na convergência N.B.I.C. Novamente, defendo que não se trata aqui de confrontá-los, mas sim de criar formas de convivência entre esses diferentes regimes de conhecimento, buscando, todavia, alternativas que fortaleçam o Comum e impeçam a sua apropriação e expropriação.

    Finalmente, nos termos da Isabelle Stengers, temos que pensar numa cosmopolítica que seja capaz de abarcar uma diversa ecologia de práticas. Por isso, uma tecnopolítica do comum implica numa outra política (de saberes e poderes): gosto de fabular em torno da transição de um “saber-poder governar” para um “saber-fazer habitar”. Portanto, são tecnologias que são concebidas e implementadas dentro de uma política do cuidado. O cuidado é um trabalho material, é um fazer do corpo. Em certo sentido, o Programa Sáude da Família em sua versões mais comunitárias, proximais, talvez possa ser pensado como um bom exemplo dessa tecnologia de vínculos, de pertencimento multiplos e de produção de sáude coletiva. Necessitamos de tecnologias de nos permitam co-habitar o mundo, que reconheçam nossa interdependência. Esse é um critério muito claro face à tecnopolítica neoliberal que produz isolamento travestida de liberdade; que produz hipertrofia do privado sob a ilusão do compartilhamento, corroendo a possibilidade de um mundo comum.

    Enfim, como podemos fortalecer esses arranjos sociotécnicos que julgamos relevantes? Como podemos ativar um devir-comum da saúde pública? Como podemos criar mecanismos de recursividade e reticulação que ampliem as condições de produção e sustentação das formas de vida, cuidado e saúde que desejamos propagar?

    (*) Mesa Redonda 55 – Direito à saúde, direito a uma vida comum: novas formas de lutar em tempos de neoliberalismo.

    Coordenador: Henrique Sater de Andrade – UNICAMP (SP)
    Expositor: Tadeu de Paula Souza – UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO
    SUL (RS)
    Expositor: Henrique Zoqui Martins Parra – Universidade Federal de São Paulo (SP)
    Expositora: Alana Moraes de Souza – Museu Nacional/UFRJ (SP)

     

  • A destruição da empatia (e as lágrimas felizes)

    por Amador Fernández-Salvater

    Originalmente publicado em espanhol em: https://www.eldiario.es/interferencias/8M-Patricia_Ramirez-Mame_Mbaye_6_753184690.html

    Tradução Tática: Alana Moraes, Anne Clio, Graciela Foglia, Henrique Parra

    É possível ler a conjuntura política não simplesmente como uma disputa entre diferentes grupos pelo poder, mas como um choque entre diferentes percepções da vida social, entre diferentes sensibilidades da vida em comum?

    Vamos experimentar responder a essa pergunta apoiados no sugestivo conceito de \”pedagogia da crueldade\” proposto pela antropóloga Rita Segato. Explico muito brevemente esse conceito abaixo.

    Em nossas sociedades a vida se torna cada vez mais precária: o desamparo e a falta de proteção são tendências gerais e transversais.

    O capitalismo de hoje não procura simplesmente a sua reprodução regulada, mas busca incessantemente a conquista de novos territórios objetivos e subjetivos: novas terras e novas camadas do ser para explorar. É um capitalismo de rapina.

    Essa conquista permanente exige, não apenas a abolição das antigas regulações e proteções (muitas vezes fruto das lutas dos debaixo), mas de uma dessensibilização radical.

    Na guerra de todos contra todos, a competição geral e o salve-se quem puder, o outro deve ser percebido acima de tudo como um obstáculo, uma ameaça: como inimigo.

    O princípio da crueldade se realiza como redução da empatia: o outro é descartável e dispensável, nenhum fio me liga a ele, nossos destinos não têm nada em comum.

    Existe toda uma \”programação neurobélica de baixa empatia\” em nossas sociedades. E a violência aqui é a ferramenta chave: lança a mensagem instrutiva de que o outro (mulher, velho, migrante, pobre, negro, dissidente) é supérfluo, pode ser eliminado.

    O que sustenta as políticas de precarização da vida é uma certa configuração (ou desconfiguração) da percepção e da sensibilidade. Estas são questões políticas de primeira ordem, mas as análises de conjuntura as ignoram, concentrando-se em vez disso nas manobras partidárias, nas intrigas palacianas, nas relações de força entre organizações e facções, nas sondagens e na \”opinião pública \”. É necessário e urgente equipar-se com uma sensibilidade poética sismográfica para entrar e descrever este plano de realidade.

    Direitização afetiva

    Muitas vezes já foi dito. O 15M (movimento dos Indignados) funcionou na Espanha como um \”firewall\” contra a ascensão do populismo de direita que se estende nos níveis micro e macro em toda a Europa: Frente Nacional, Brexit, Alternativa para a Alemanha, Pegida, Liga do Norte, Casa Pound, Amanhecer Dourado.

    Mas que tipo de \”firewall\” foi aquele? De nossa parte, ainda insistimos em pensar e descrever o 15M como um efeito de sensibilidade. Um fenômeno de sensibilização coletiva. A partir de maio de 2011, uma espécie de \”segunda pele\” foi implantada por toda a sociedade, através da qual se sentia como algo próprio e próximo o que acontecia a outros desconhecidos.

    Isso não significa que todos estavam presentes em cada despejo nos bairros, em cada acompanhamento de um migrante sem cartão de saúde, em cada confinamento em uma escola ameaçada de cortes, mas sim que havia um clima social geral que envolvia, conectava e amplificava cada ação, cada iniciativa. O 15M criou um comum sensível no qual era possível sentir os outros e com os outros, como semelhantes.

    Essa pele foi arrancada ou adormeceu, enfraquecida em grande parte por uma \”verticalização\” da atenção e do desejo, depositada e delegada durante o \”ataque institucional\” da promessa eleitoral da nova política (Podemos, confluências, etc). Cativados pelos estímulos que vinham de cima (TV, líderes, partidos), negligenciando o que acontecia ao nosso redor, a pele rachou.

    Na realidade, não saímos de nenhuma crise: simplesmente perdeu-se o contato sensível entre os \”afundados\” e os \”salvos\” (ou aqueles que pensam que estão salvos por enquanto). A retirada do \”firewall\” 15M deixa o caminho livre para as forças que estão sempre aí: o aprofundamento e a consolidação da precariedade existencial geral, a guerra de todos contra todos, o salve-se quem puder.

    O veneno de amargura que reside em cada um por tantas humilhações sofridas no cotidiano, sejam grandes ou pequenas, reais ou imaginárias, torna-se o ferrão de um ressentimento vitimista, circulando hoje com prazer pelas redes sociais.

    A \”direitização\” da qual se fala ultimamente, especialmente como a raíz do que \”despertou\” em toda Espanha no conflito da Catalunha, não é, em primeiro lugar, uma questão ideológica, identitária ou política, mas uma tensão social e afetiva. Um endurecimento da percepção e sensibilidade.

    O fundo do conteúdo das bandeiras espanholas que ainda podem ser vistas em tantas varandas (já valem para a copa do mundo …) é o medo, a amargura, a solidão, o desejo reativo de ordem, consumo e punhos cerrados contra tudo que desestabilize ou desvie a ficção da normalidade, com o anti-catalanismo como o primeiro elemento aglutinante.

    Ciudadanos (com fortes ressonâncias de Macron) é certamente o partido que, de maneira mais desenvolta, agita hoje essa \”paixão obscura\” (Diego Sztulwark) a fim de capturá-la mais tarde eleitoralmente, fazendo dela a base do projeto político de transformar a sociedade em uma empresa total. Onde só há lugar para os vencedores, onde não há espaço para os adversários (destituídos como interlocutores mediante a repressão, a censura e a criminalização), nem tampouco para as \”anomalias\” (como os comuns urbanos, as ocupações, os ambulantes).

    Nesse fundo obscuro e tenso também aparecem vozes e movimentos que convocam outra sensibilidade, ativam outra percepção e abrem outra pele. Sem nenhum espírito exaustivo ou totalizante, vou me concentrar em três exemplos (há mais). O 8 de março e as mobilizações em torno das mortes de Gabriel Cruz e Mame Mbaye.

    O mandato de masculinidade

    Segundo Rita Segato, a primeira expressão da pedagogia da crueldade é a violência machista. O capitalismo do roubo instaura um campo de batalha no corpo das mulheres.

    Na condição de precariedade geral, a posição do homem está fragilizada: ele não pode prover, ele não pode ter, ele não pode ser. Mas ao mesmo tempo ele tem que provar que ele é um homem. Os machos estamos submetidos a um \”mandato de masculinidade\” que nos obriga a demonstrar força e poder: físico, intelectual, econômico, moral, bélico etc. O mandato da masculinidade hoje se traduz assim em um mandato de violência.

    O estupro não é erótico ou prazeroso, mas uma demonstração de poder. O poder do impotente, ansioso para provar que ele é, que segue sendo um homem. É uma mensagem que um homem envia a outros homens: eu posso, sou capaz, sou dono das vidas. Não é um fato excepcional, algo feito por machos monstruosos ou \”psicopatas\”. Se assenta em uma base composta de mil violências cotidianas e transversais: no espaço público e no íntimo, na rua e na casa, no trabalho e nos relacionamentos.

    A mulher não é simplesmente um corpo-vítima da violência. O que se agride nas mulheres é precisamente sua força insubmissa ao mandato de masculinidade, a capacidade de criação de vínculos, de laços, de redes, de cumplicidades, de empatia e comunidade.

    O 8M visibilizou milhares de mulheres em toda a Espanha dizendo basta, em uma jornada inaudita de greve e manifestações massivas. Seus cantos e cartazes podem ser lidos como um registro detalhado das milhares de violências diárias que habitam a \”normalidade\”. As mulheres não voltam iguais depois de terem vivido uma jornada tão excepcional, mas voltam mais unidas e mais fortes. O 8M é apenas a crista de uma onda grande que impulsiona a transformação completa da vida cotidiana, um \”viveiro\” da violência mais espetacular que vemos no noticiário.

    E também pode ser assumido como uma ocasião para os homens que querem desobedecer o mandato da masculinidade e sair desse circuito funesto entre a indigência existencial extrema e a obrigação de demonstrar poder. Como um convite à metamorfose.

     

    As ações bonitas

    O desaparecimento e a busca de Gabriel Cruz, o \”peixinho\”, tem sido um fenômeno altamente midiatizado. .

    A mídia e as redes sociais são hoje, especialmente de um tempo pra cá, os veículos privilegiados da pedagogia da crueldade. As tendências a espetacularização (o mórbido), a simplificação da realidade (o juízo e não o pensamento) e a polarização social (a lógica de bandos, bons e maus), os atravessam transversalmente. Mas não importa se a realidade é instrumentalizada à favor da direita ou da esquerda: se contribui, em qualquer caso, para a destruição da sensibilidade, do pensamento e da autonomia.

    Apesar de tudo, a mídia e as redes facilitaram por vários dias a ativação de muitas pessoas que ajudaram na busca de Gabriel ou queriam fazer com que sua família sentisse calor e solidariedade. O apoio se transformou em ódio quando se encontrou o corpo do menino e se conheceu a identidade do assassino: mulher, estrangeira, negra. Neste contexto, a voz de Patricia Ramirez, mãe de Gabriel, ressoou como vinda de outro mundo, quando na verdade vinha do amor mais comum que existe: o amor de mãe.

    Sua mensagem principal: não se concentrar na raiva e no inimigo, mas na solidariedade e \” nas ações bonitas\”. Deslocar a atenção para os gestos de apoio que \”traziam o melhor das pessoas\” durante esses dias. Que o que permaneça, no absoluto absurdo da morte de Gabriel, é a memória calorosa do abraço social. \”Porque outras pessoas vão precisar disso no futuro.\”

    De onde Patrícia conseguiu forças para não ser envenenada pelo desejo de vingança? É a questão que os jornalistas perguntavam repetidas vezes, perplexos e impressionados. E ela sempre respondeu da mesma forma: \”Em homenagem ao peixinho, ele não era assim e eu também não\”. Ou seja, não é que Patrícia tenha conservado o \”bom senso\” e a \”cabeça fria\”, como se os afetos levassem diretamente ao ódio e à raiva e apenas a \”razão\” pudesse contê-los. Essa é a visão masculina típica. Na verdade, é exatamente o contrário: a voz de Patricia veio do amor por seu filho, de gratidão para com aqueles que se moviam por ele e do desejo de que sua memória não estivesse associada à raiva vingativa. Dos afetos.

    Precisa e preciosa palavra, cheia de humanidade e ternura, rica em metáforas muito físicas (relacionadas frequentemente à água: o rio aberto, a onda de solidariedade, a ressaca da dor…), a voz de Patricia conseguiu desarmar a voracidade da mídia e redes sociais, baseada na lógica da espetacularização, simplificação e polarização social.

    E nos trouxe, indiretamente e como um presente, algumas indicações de que todos podemos converter em modos de resistência a destruição da empatia e o cultivo de outra sensibilidade: implicar-nos em vínculos de cuidado, buscar a intimidade e o silêncio, agradecer o carinho, transformar os afetos reativos em afetos ativos, evitar a instrumentalização, não deixar que outros falem em nosso nome, não buscar excessivo protagonismo, \”olhar sempre dentro do coração\”.

     

    Guerra entre os pobres

    Mame Mbaye, de origem senegalesa, vizinho de Madrid e trabalhador ambulante, morreu no dia 15 de março no contexto de uma perseguição policial no bairro de Lavapiés. Sem dúvida, quem o matou foi um sistema de maltrato cotidiano que injeta todos os dias o medo, cerceia a felicidade e adoece, destruindo o direito humano à despreocupação, ao descanso e à serenidade, como explica Sarah Babiker.

    Esse sistema de maltrato cotidiano – a lei dos estrangeiros, a desigualdade econômica, as batidas policiais etc. – é precisamente a \”pedagogia da crueldade\”. Mais do que perseguir objetivos específicos, como a erradicação do comércio ambulante, o que se busca é produzir insensibilidade: marcar e nos fazer ver o outro como outro, distinguir entre os afogados e os que estão salvos, entre os que estão dentro e os que estão fora, nos fazem cortar a empatia e toda a solidariedade possível.

    Provocar uma guerra entre pobres, quando na verdade o coletivo de trabalhadores ambulantes é apenas o ponto mais extremo das tendências gerais de que hoje ninguém está a salvo: insegurança, vulnerabilidade e desamparo da vida.

    Um dia depois da morte de Mame Mbeye, os discursos que foram improvisados ​​na concentração da praça Nelson Mandela de Lavapiés misturava a raiva digna (de uma morte intolerável) e as palavras que apelavam novamente à igualdade, à humanidade comum, à empatia. Contra o mandato da crueldade: não sentir, não sentir com os outros, não co-moverse.

    Os oradores não falavam menos do que três idiomas (inglês, francês, espanhol), mostrando assim a potência que existe na vida migrante: a energia, as capacidades e os saberes que habitam aqueles corpos acostumados aos trajetos mais difíceis, à aprendizagem e à realfabetização constantes, à criação de redes de apoio e cumplicidade.

    Eles não são apenas pobres ou vítimas que merecem nossa compaixão, mas neles habita uma grande riqueza, um grande potencial que nossa sociedade não conhece nem deseja acolher. Como lembrou Malick Gueye, porta-voz do sindicato dos trabalhadores ambulantes, Mame não era apenas um \”camelô\”, mas uma pessoa envolvida na luta pelos direitos sociais e um artista, à quem não foi autorizado praticar sua profissão na Espanha.

    Lágrimas felizes

    Confesso:

    Me caíram lágrimas no 8M vendo logo no início da manhã um \”piquete\” de meninas menores de 16 anos (e meninos, na retaguarda) andando no meu bairro com jatos de energia e lucidez infinita em seus slogans.

    Me caíram lágrimas ouvindo Patricia Ramírez pedindo às pessoas para que \”tirassem a bruxa da cabeça\” e lembrassem das \”ações bonitas\” que ocorreram durante a busca por Gabriel.

    Me caíram lágrimas escutando os oradores da praça Nelson Mandela de Lavapiés apelarem, logo um dia depois da morte (morte política) de Mame, à humanidade compartilhada, à igualdade de todas as pessoas.

    O filósofo e escritor George Bataille dizia que há \”lágrimas felizes\”. Não são exatamente lágrimas de alegria, mas de emoção por ver algo \”milagroso\” acontecer: imprevisível, inesperado, impensável, impossível mas verdadeiro.

    É \”milagroso\” ouvir aqueles que sofreram um imenso dano falar em lutar por mais vida e não por mais morte, por mais humanidade e não por menos, por mais empatia e não por mais guerra de todos contra todos.

    Que molhemos mais os olhos dessas lágrimas para despertar e reativar nossa pele endurecida pelo princípio da crueldade.

     

    Obrigada Marga, Marta, Diego, Ema, Guille, Jabuti, Miriam, Juan, Leo pelas conversas.

    Foto: Luis Gene (AFP)

  • Soberania e interdependência: polarização política e o comum

    por Henrique Parra @ Pimentalab 

    Há dois meses vivendo em Madrid, tenho procurado conversar com muitas pessoas, acompanhando movimentos e lendo o que posso para buscar diferentes perspectivas sobre a atual crise política. Com a crescente polarização, a cada dia fica mais difícil escrever algo que não seja tomado como mais uma opinião a inundir os feeds efêmeros. Com todos que conversei pude sentir muita dor, tristeza e indignação. E todas essas dores são legítimas; solidarizo-me com \”nosotros\”.

    ***

    Com todas as diferenças, há algo partilhado entre a crise política vivida na Espanha, em torno do referendo sobre a independência da Catalunia e o atual processo político brasileiro. Arriscaria dizer que este problema está presente em muitos regimes democráticos.

    Refiro-me ao fato de que estamos enredados em diversos mecanismos que intensificam as dinâmicas de polarização, que sequestram o mundo comum e bloqueiam a própria Política. Diante da concentração de poder nas mãos da classe política, dos meios corporativos de comunicação e de uma elite econômica (finanças e industrial), nossas instituições já não capazes de criar canais de mediação das vontades, demandas e conflitos à altura dos problemas que enfrentamos. O sistema está fazendo água por todos os lados em todos os lugares.

    Também constatamos que os próprios mecanismos de produção de maioria produzem \”minorias\” de igual dimensão. Em seus extremos, cada pólo é fabricado através de diversos artifícios de simplificação e redução de sua diversidade. A todo momento uma imagem ou discurso parcial desloca-se e se transforma numa representação do todo, silenciando a multiplicidade. Ninguém se sente exatamente representado e, ainda assim, todos participam da retro-alimentação dessas imagens homogêneas.

    Neste processo, a possibilidade de construção de novos sentidos comuns são destruídos em nome do cálculo para obtenção de regimes de maioria. É sempre um jogo de tudo ou nada, intensificação dos conflitos, esgarçamento do tecido social, ruptura de relações interpessoais, produção de estereótipos, moralização das condutas e discursos. No final, todos são empurrados a tomar partido diante da ameaça do \”mal\” que o outro representa, ainda que não se sintam plenamente representados por cada um dos polos.

    No Brasil este processo é bem conhecido desde que se iniciou o golpe parlamentar-jurídico-midiático. A destruição de outros devires políticos pela esquerda e pela direita é continuamente operada pela exigência de se partidarizar a favor ou contra qualquer coisa. Qualquer argumento que escape ao jogo amigo-inimigo será atacado. As disputas sobre Junho de 2013 ainda são um bom exemplo deste fenômeno.

    O processo em torno do referendo da Catalunia é desafiador porque é também revelador dos limites das formas atuais de nossas instituições políticas. O mais dramático, a meu ver, foi a maneira como um conflito muito complexo foi gradualmente reduzido a um jogo binário, em parte conduzido pela disputa política-partidária que forçou uma polarização na população e, com apoio dos meios de comunicação, sequestrou o campo político.

    Nos últimos dias vem surgindo tentativas de romper esta dicotomização, como a campanha #Hablemos #Parlem (veja artigo Bernardo Gutierrez) e outras mobilizações de base que se formaram no processo de organização comunitária para viabilizar a realização do referendo na Catalunia, criando uma certa hipótese de transbordamento (veja artigo de Emmanuel Rodriguez).

    O paradoxo democrático que aí se instalou é também exemplar: o referendo, conforme as regras constitucionais é ilegal; ao mesmo tempo, a mobilização popular manifesta no processo é legítima, tornando a realização do referendo uma reivindicação democrática (veja artigo do Boaventura Souza Santos). Mas quando o jogo se transforma num campo de força real, como na repressão policial do estado Espanhol à realização do referendo, aprende-se rapidamente que o Estado (democrático ou não) é isso aí, força bruta e, no limite, estado de exceção (veja Imagens).

    Porém, o problema não se resolve com o referendo. O que fazer com a outra metade da população da Catalunia que é contra a separação? Ou ainda com todo o restante da população fora da Catalunia que não deseja a separação? Velhos problemas sobre a relação território, nação, unidade, identidade entram em cena. E neste tipo de situação as máquinas identitária e securitária (o desejo de unidade e segurança) produzem os piores monstros em todos os lados. Além do esgarçamento do tecido social, é muito mais fácil produzir um intolerante do que alguém que seja tolerante e sensível ao outro.

    Assim, nos damos conta que mais importante e desafiador que o dia em que nos tornamos independentes, é o dia seguinte e todos os outros que virão na sequência. Da maneira como a produção e reprodução da vida está hoje organizada em nosso planeta, o problema desloca-se da independência para os modos de interdependência que construímos.

    Pensemos, por exemplo, no que fora concebido como a vontade do indivíduo soberano num sistema político democrático. Nos dias de hoje, quais são as alternativas disponíveis quando a manutenção da vida cotidiana está delegada a arranjos estatais-corporativos (das finanças às redes elétricas) complexos? 

    Alternativamente, como podemos partir do comum e ordinário, daquilo que diz respeito a todos, daquilo que nos implica mutuamente? A produção e manutenção da vida em comum (compartilhada e implicada) nos obriga a pensar nos vínculos que tecem o cotidiano. Como irei conviver com este outro? Deslocamo-nos, portanto, do campo discursivo mais ideológico para construir práticas de outros modos de vida. Como desmontar as máquinas opressoras de produção de maiorias, os sistemas de vanguarda e de condução das populações? Como partir de um plano imanente à vida e aí mesmo no mais ordinário ir constituindo e ampliando as infraestruturas e instituições de suporte a outros modos de vida, mais solidários e emancipadores?

    Eu arriscaria dizer que a imagem da soberania de territórios-independentes-autosuficientes se esgotou. Mas ela ainda seguirá operando por muito tempo. A construção de uma Política do Comum exige outras instituições para as quais já temos muitas experiências inspiradoras na história, onde se praticaram outros marcos jurídicos, códigos e instituições de regulação da vida em comum. Há muito o que se investigar e experimentar.

    O que está em jogo em nosso planeta são as condições de produção e reprodução da vida em comum, em direção à modos de vida mais emancipatórios e solidários num mundo de relações interdependentes. Falar de uma política do comum me faz pensar numa política do/pelo meio. Meio como ambiente e também como \”entremundos\”. Ir aos poucos modificando o próprio meio em que estamos imersos de maneira a torná-lo mais favorável às relações que estamos constituindo. Evidentemente, isso não significa negligenciar a importância das atuais instituições e as disputas sobre seu governo. Trata-se, talvez, de uma outra noção de estratégia, uma outra forma de reticulação e propagação de novas estruturações em níveis subsequentes, numa relação imanente ao mundo existente (incluso estado, mercado etc).

    A impressão que tenho é que este impasse político está utilizado como um verdadeiro teste para as recentes experimentações municipalistas da Espanha. A depender da maneira como o conflito evoluir, e de qual será o papel dos governos municipalistas no seu interior, é possível que algo de inesperado surja como alternativa à atual polarização e fortalecimento dos nacionalismos identitários. Ou então, o que surgiu como novas experimentações institucionais pós-15M corre o risco de ser   tragado para dentro desta armadilha, perdendo seu atual protagonismo político. Fico pensando o que significa levar a sério a proposta #RefugeeWelcome do ponto de vista de uma política do comum?

     

    PS 1: Atualização: Ontem a noite (10/10) o governador da Catalunia, conforme previsto no referendo, declarou o resultado da votação ratificando a independência da Catalunia, para em seguida propor a suspensão dos seus efeitos visando o estabelecimento de um diálogo com o governo Espanhol. As vezes a política está no detalhe e no simbólico, é puro dissenso: declarou ou não a independência? Hoje o governo Espanhol solicita esclarecimentos e ativa o dispositivo jurídico (art.155) para preparar uma intervenção na Catalunia. Poderíamos dizer que o governo Catalão fez um movimento de recuo e destencionamento, mas alguns interpretaram essa ação como reiteração de polarização com o Governo espanhol, que responde reafirmando sua posição inicial. Em suma, a tensão segue inalterada.

    PS 2: este post é parte da série de relatos que irei realizar durante o período de pós-doc em Madrid. Mais informações sobre o projeto atual: http://wiki.pimentalab.net/index.php?title=Projetos_Pesquisa

  • Corpo/Cuidado/Luta

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    Corpo-Conspira
    Nós outr s presentes

    Estamos convocando um encontro público para falar compartilhar práticas de corpo/cuidado/luta. Fazeres que partem da vulnerabilidade, da inteligência, da potência dos corpos e da presença coletiva. Nos cuidar. Experimentar outras formas de presença. Honrar os problemas dos quais ainda não conhecemos soluções. Conspirar. O que pode um corpo? O que significa resistir? Como honrar nossas precariedades corpóreas e fazer delas matéria de novos vínculos? Nos implicar; Lutas; Formas de vida; Comum.

    – O que você/seu coletivo(a) faz para se manter inteira(o)?
    – Qual é o problema não resolvido de que você/sua coletiva(o) mais gosta?
    – Do que precisa uma vizinhança para (sobre)vivermos em comum?

    A ideia é reunir praticantes de clínicas, cuidados, cultivos, curas, danças, combates, coletivos que entendam suas práticas como formas de luta e de produção de conhecimento e que queiram compartilhar problemas, afinidades, conspirar e começar a articular uma vizinhança. >>

    A iniciativa nasce de debates e encontros do Urucum pesquisa-luta.

    Terça-feira, 19 de setembro às 19:00

    Casa do Povo: Rua Três Rios, 252, Bom Retiro, São Paulo