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  • EAD: Use o celular! Mas saiba escondê-lo…

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    Foto: Vitor Ian

    por: Leticia Rolim

    Na sala de aula os smartphones já estão presentes há alguns anos. Conectados ao fone de ouvido, tocando o funk “estorado” dos alunos que te olham com cara de paisagem enquanto te escutam; gravando a sua aula de modo incriminativo, como em muitos casos da onda Escola Sem Partido, ou tirando uma selfie localizada na “Escola Estadual com Nome De Algum Militar Que Quase Ninguém Sabe Quem Foi”. Muitas funções, muitas informações.

    Agora os smartphones são as ferramentas principais para que as aulas continuem acontecendo em meio à pandemia de covid-19. A ordem “Guarda o celular!” se contradiz, e agora é através dele que nos comunicamos, quando o plano EAD (Ensino à Distância) dá certo para os alunos das escolas estaduais de São Paulo. E é sobre o funcionamento de algumas delas que consigo falar hoje, ou sobre como estamos nós, professores, lidando com a experiência de um ensino à distância. Então, de onde surgiu esse tal aplicativo, Centro de Mídias, com o qual trabalhamos hoje? Teria alguma relação com as câmeras do Escola Sem Partido?

    App Mano e Escola sem Partido

    Mês passado soubemos por meio da matéria feita pela The Intercept Brasil qual empresa é responsável pelo aplicativo Centro de Mídias com o qual trabalhamos desde o início da suspensão das aulas presenciais. Em 2018, a empresa IP.TV foi responsável pela criação de um app de streaming chamado Mano, usado para abrigar vídeos e notícias falsas da campanha de Jair Bolsonaro na época, conteúdo comumente vetado pelas redes sociais mais populares. O app teve Flávio Bolsonaro como garoto-propaganda, estimulando a migração das redes sociais mais comuns para ele, e ainda hoje os alunos do Amazonas, Pará e Piauí têm acesso ao canal “TV Bolsonaro”, ao mesmo tempo em que acessam os canais da rede pública de ensino. O app Centro de Mídias foi doado pela empresa IP.TV e recebe dados de cerca de 3,5 milhões de alunos, além dos dados de todos os professores e demais funcionários da equipe pedagógica das escolas estaduais paulistas*. Coincidências.

    O movimento Escola Sem Partido, por sua vez, se deu a partir da acusação de doutrinação político-ideológica dos professores para com os alunos. Agora, as “escolas sem partido” têm como ferramenta principal de trabalho um aplicativo que tem como base o Mano, app desenvolvido em 2018, época de campanha, em parceria com Jair Bolsonaro. A empresa desenvolvedora tem hoje acesso a todos os dados inseridos nesse app educacional: materiais didáticos, atividades, aulas gravadas, videoconferências, chats e o que mais acontecer dentro e fora do aplicativo Centro de Mídias (galeria de fotos, microfone do celular, dentre outros).  Mais uma vez a ideia de “partido”, seja como “tomar partido”, seja como partido político, é seletiva: pretensamente neutra, a Escola Sem Partido não se mantém muito longe da “tomada de partido” quando seleciona discursos que devem ser usados (TV Bolsonaro, para alguns estados brasileiros) e outros a serem descartados e até proibidos. Enquanto presencialmente há a distância no espaço da sala, com as técnicas da escola, entre professor e aluno, entre corpo e mente, pelo bem da imparcialidade e da transmissão de saberes isentos… no EAD, quão distantes estamos agora, comparado ao que tínhamos presencialmente?

    bell hooks e a pedagogia libertadora em um ensino à distância

    bell hooks fala de uma pedagogia libertadora que nos faz sair dos limites de nosso corpo, da divisão corpo e mente, sair da crença de que se faz necessário não romper a linha de fronteira entre a escrivaninha do professor e a extensão da sala de aula, onde não se pensa com o corpo, o corpo que fica de pé, que gesticula, que fala com o corpo e a mente. “A noção tradicional de estar numa sala de aula é a de um professor atrás de uma escrivaninha ou em pé em frente à classe, imobilizado”*.

    A pedagogia libertadora põe o corpo para frente da escrivaninha, para o meio da sala, onde se vê que ali também há um corpo como o dos alunos, também há opiniões e gostos pessoais, cheiros, roupas, gestos. Como a pedagogia pode ser libertadora num ensino à distância?

    O aluno pede desculpas por não conseguir acessar as lições que você posta na plataforma Google, lhe pede ajuda, e você o ajuda da maneira que pode, pelo seu whatsapp pessoal, por exemplo. Os professores se desdobram para montar videoaulas, “textos-aulas”, realizar videoconferências com os poucos alunos que participam. Alguns professores são avisados de que é preciso elaborar somente atividades escritas, pois alguns alunos estão indo à escola buscar as atividades impressas toda semana – não há comunicação por celulares ou computadores. A troca de saberes acontece quando você sabe que seus alunos estão ali minimamente (agora do outro lado da rede) lendo, ouvindo e entendendo o que você quer dizer. Mas será que a mensagem que enviamos está chegando?

    Agora rompemos mais uma vez as fronteiras, e a pedagogia é arremessada num espaço cibernético onde coincidências e desrespeitos à privacidade acontecem sem que se dê muita importância. Onde doações são feitas a um custo: doa-se um app, se ganha uma quantidade enorme de dados que podem ser utilizados tanto numa estratégia governamental quanto numa estratégia de lucro.

    A educação de plataforma não vê mais corpo, não vê limites entre privado e público, já que agora mal temos como opção passar ou não o número de telefone pessoal pra mandar uma mensagem no “zap” e tentar encontrar seu aluno prestes a desistir da escola, por exemplo. O áudio do “zap” vira uma mini aula (“Mas pode falar se você não entendeu a atividade, tá? Eu mando outro áudio!”) para alguns; as mensagens dos alunos chegam a qualquer hora do dia (ou da noite), aquele grupo de whatsapp parado virou o grupo da sala do 1º ano, onde só quem fala é professor, e os alunos não aguentam mais tanta atividade.

    A educação de plataforma não vê mais corpo, não vê limites entre pessoal e profissional, não vê limites de espaço e tempo, esquece dualismos para se colocar ali: no meio de todas as informações processadas em uma velocidade que não acompanha o nosso próprio ritmo de pensamento e raciocínio, nem dos alunos, nem dos professores.

    Ainda, sobre raciocínio: qual a didaticidade existente em escrever textos para que os alunos consigam ler e fazer as atividades com base nesse “texto-aula”? No máximo, textos que imitem a sua própria fala em sala de aula, com gírias, com memes, sem se importar tanto com as regras gramaticais. Mas, e quando a dificuldade de leitura é mais forte? E quando é difícil se concentrar em casa? Pesquisar a resposta daquela pergunta de alternativa no Google soa ainda mais tentador à distância…

    Isso tudo quando há o acesso: muitos alunos ao menos conseguem acessar o tal aplicativo, porque não têm celular em casa, porque estão usando a internet do vizinho e ela não “pega” bem, porque o celular que “pega” em casa é do pai ou da mãe, e eles trabalham o dia todo e precisam do celular para sair para o trabalho. Tantas reportagens sobre como tem sido a educação à distância para o ensino privado em contraposição ao ensino público, e enquanto no primeiro há até maior engajamento, eu me pergunto: quais os incentivos reais para continuar estudando, estando no ensino público e vivenciando situações como as que citei ali em cima? Vivendo os problemas já enfrentados em meio às técnicas escolares clássicas, presenciais, disciplinares, excludentes, agora potencializados pela tecnologia digital.

    Há algumas semanas fizemos reuniões com algumas turmas de alunos, depois de um “Conselho” improvisado (“fulano fez a lição? “não”, “não também”, “não fez”, “ok, vou tentar contato com ele. Ciclano…?”), em busca de animá-los, de não deixar que desistam, de encontrá-los e saber o porquê do sumiço, de não fazerem as atividades, de mal acessarem o tal app do governo. No geral, a maioria dos participantes das reuniões eram professores. Os alunos iam entrando na videoconferência aos poucos. Somente alguns alunos participavam, mas muitos eram já bem participativos nas aulas presenciais. A nota de participação também envolve questões de acesso à internet, celular, tv, e outras técnicas pagas, principalmente agora.

    Boatos que uma sala do 3º ano do Médio combinou entre si de reprovar em conjunto: uma professora comentou que é como se eles se incentivassem a não fazer as lições, mesmo tendo acesso normal às plataformas de ensino. 3º ano do Ensino Médio, poucos alunos restantes na turma, porque muitos provavelmente já desistiram antes de qualquer tecnologia digital virar ferramenta principal de estudo. Como reanimar?

    Todos os dias os grupos de Whatsapp dos professores são bombardeados por mensagens de “Bom dia”. Seria uma forma sutil de assinar o ponto ou de só desejar um bom dia mesmo? Já fiquei na dúvida e mandei “bom dia” algumas vezes, mas agora sei que existem formas ainda mais sutis de contar presença: nossos coordenadores nos avisaram dos relatórios de presença baseados na quantidade de “logins” às plataformas de ensino, Google Classroom, app Centro de Mídias, entre outros. Os professores que não estão acessando as plataformas são notificados, e precisam acessar as plataformas para que não fiquem com faltas.

    Quanto menor é, mais nocivo pode ser

    Quanto menor é, mais nocivo pode ser. “Eles são, tanto política quanto materialmente – difíceis de ver. Eles têm a ver com a consciência – ou com sua simulação”*. Os tais “chips de silício”, os smartphones, ocupam a função de base de trabalho agora: relatam nossa frequência, determinam nosso salário; facilitam ou dificultam o acesso dos estudantes ao aprendizado, inclui alguns, exclui ainda melhor outros; quebra barreiras entre a tal vida pessoal e a vida profissional, o privado e o público, o espaço e o tempo, de trabalho e de lazer; gera desânimo, desistências, afastamentos entre o aluno e o professor; por fim, dão lucro e alimentam muito bem bancos de dados de algumas empresas de tecnologia, como a que criou o app Mano, base para o atual Centro de Mídias paulista.

    Ao fazer a troca de ambiente técnico, não mais a escrivaninha, a lousa, o giz e o apagador, mas o smartphone e o computador, a internet, a mediação: como seria possível realizar uma pedagogia libertadora numa era de ciborgues?

    Libertadora para a professora/professor, resguardando sua liberdade de expressão, prevenindo a seletividade dos movimentos “Sem Partido”; libertadora para o aluno, que se apropria do conhecimento, que tem voz ativa e crítica frente ao conteúdo que aprende, que entende o funcionamento das práticas educativas tanto online quanto presencialmente.

    Os smartphones já estão aqui, ao nosso lado. Os ciborgues já estão aqui há algum tempo. Agora, o aperfeiçoamento é nítido: as técnicas de controle se afunilam, a liberdade de expressão é ainda menor, a mediação torna-se um caminho quase sem volta quando se pensa num mundo pós-pandemia. Como formar uma unidade de resistência, professores e alunos, frente a essas novas técnicas de controle?

    É. Agora preciso responder aos meus alunos.

    Leticia Rolim

    Referências

    *https://theintercept.com/2020/06/15/app-empresa-tv-bolsonaro-aulas-online-pandemia/

    *HOOKS, bell. “Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade”. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. – 2 ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

    *HARAWAY, Donna. “Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano – O Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. Organização e tradução Tomaz Tadeu – 2. ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009 – (Mimo).

  • Sociologia da Educação na Pandemia Covid-19 – experimentar presença

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    Na primeira semana de agosto reiniciaremos o curso interrompido em março pela Pandemia Covid-19. Ela não passou e ainda estamos num momento de grande propagação do vírus e com elevado número diário de mortos. A retomada das aulas à distancia (ADE, EAD…pouco importa) está cercada de controvérsias. Antes dessa decisão institucional eu desejava outro coisa para este momento. Queria que pudéssemos criar voluntariamente ações coletivas de investigação sobre a relação Universidade, Ciência e Pandemia: como chegamos ate aqui, e que universidade precisamos inventar pra transformar essa situação? Queria também que pudéssemos nos dedicar mais às ações de apoio mútuo entre professores, estudantes e funcionários. Quem sabe o curso agora possa servir também pra tramar um pouco dessas duas linhas.

    Nos deparamos com o desafio de realizar um novo curso em condições excepcionais. Há diversos problemas envolvidos na realização das atividades educacionais não presenciais mediadas por tecnologias digitais e cibernéticas. De imediato, o mais agudo deles são os efeitos de intensificação das desigualdades. Esse e outros problemas serão objetos de nossa reflexão no percurso da disciplina do semestre Sociologia da Educação.

    Mas há também aspectos interessantes que podem emergir dessa experiência. É hora de falar um pouco disso; é hora de reconhecer a potência da situação e lutar para “retraçar o destino trágico que nos querem impor” – linda imagem, inspirada no Odu, utilizada pelo colega Uirá Garcia numa conversa com os estudantes durante a pandemia.

    As sensações que nos atravessam durante a pandemia e os diferentes momentos que ja vivemos em mais de quatro meses, nos arrastam a modos de ser desconhecidos. Nos últimos dias comecei a imaginar, para atravessar esse momento, uma nova composição com plantas subterrâneas, tubérculos ou rizomas: devir-gengibre, devir-mandioca, devir-batata, devir-cebola. Entrar um pouco para baixo da terra, acumular energia, ficar imperceptível, crescer para os lados, fazer novas alianças, ficar amigo de fungos, bactérias, minerais e outros seres vivos, criar composições que amplifiquem uma nova reticulação, infiltrar e correr como a água, curar algumas feridas, revigorar, fazer novos parentes, ampliar a própria força para o que está por vir, rachar o solo por baixo.

    Reorganizei o curso levando em conta algumas disposições, especialmente reconhecendo a diversidade das situações de vida dxs estudantes (e também a minha) no contexto da Pandemia. Não está fácil pra ninguém, e pra muitas e muitos estudantes, a vida está por um fio. Por isso, o desenho do curso, as exigências e as expectativas serão outras. Mais do que resultados ao final do trajeto queremos uma boa travessia: o meio importa! Gosto de pensar o curso como a prática de uma mesopolítica, uma política do meio.

    Na linha do que temos experimentado no Pimentalab (nos projetos Laboratório do Comum e Zona de Contágio) o curso pode funcionar como um laboratório de investigação coletiva e situada em que seja possível constituir uma Comunidade Transitória de Práticas, um coletivo de aprendizagens. Por “coletivo de aprendizagem” refiro-me aqui à idéia forte de que ninguém aprende sozinho, aprendemos juntxs e neste processo transformamo-nos todxs (Freire, B.Hooks, Lafuente, dentre outrxs servem aqui de inspiração). Diferente, portanto, das “pedagogias de aprendizagem” vinculadas atualmente aos modos de subjetivação neoliberal (um eu-individual-soberano que aprende através da aquisição de habilidades e competências, num infinito empresariamento de si). A idéia de “transitória” tomo de empréstimo do Ailton Krenak, quando ele convida as pessoas numa atividade a constituirem uma “comunidade transitória” dedicada ao aqui-agora da escuta e aprendizado mútuo.

    Como fio condutor do curso “Sociologia da Educação” teremos uma seleção de problemas que emergiram para o campo da educação diante da Pandemia Covid-19, elegendo recortes estruturantes deste vasto campo de estudos. O curso deve servir também pra nos ajudar a elaborar melhores perguntas.

    Para a arquitetura deste curso à distância, concebemos que as atividades deveriam levar em conta a possibilidade de trabalharmos tanto com diferentes graus de engajamento dos estudantes, mas também com diferentes graus de abertura para públicos externos à sala de aula habitual. Um vantagem de um curso remoto é a chance de colocarmos na conversa pessoas e perspectivas distintas que normalmente não teriam condições de estar em nossas salas de aula. Assim, algumas atividades do curso terão um desenho mais fechado (voltado ao trabalho interno) e outras terão um desenho mais aberto (voltadas ao envolvimento com públicos distintos).

    Leituras: o conteúdo sofreu alterações de forma a criar maior aproximação com temáticas que eclodiram no contexto da Pandemia (escola-educação, universidade, trabalho docente e tecnologias educacionais entre outras). O volume de leitura também foi modificado. A partir da idéia de um núcleo Mínimo-Múltiplo-Comum (MMC) organizamos trilhas de estudos com graus diversos de complexidade de maneira que cada estudante possa escolher o caminho que lhe é possível neste momento.

    Encontro sincronicos: a idéia é que possamos experimentar e tentar inventar “estados de presença”. O que pode ser um encontro numa sala virtual? O que pode ser uma aula? Quais os modos de presença que desejamos praticar? O problema não é novo e ele tambem se coloca para uma aula presencial. Nos habituamos a não questionar a qualidade de nossas aulas e a “crise de presença” contemporânea (dxs professorxs e dxs estudantes), como se estar em sala fosse o suficiente para provocar um acontecimento-aula-encontro. Numa aula muitas coisas acontecem e ela também comporta diferentes estados de presença. Não é suficiente transferir nossas práticas da sala de aula para os ambientes virtuais. Assumir a experimentação talvez seja a melhor alternativa nesse momento. No ambiente digital estamos sujeitos a um outro regime de sensibilidade (percepção-sensação); a outros ritmos; a uma outra política da atenção. O meio importa!

    Dividi as atividades sincronicas em dois momentos distintos que serão alternados a cada semana. Teremos mini-blocos temáticos de 15 dias. Numa semana faremos um encontro na forma de um grupo de estudos e orientação, conversaremos sobre os textos, elaboraremos perguntas, discutiremos, e vamos pensar sobre os projetos da disciplina. Essa atividade está mais voltada para o trabalho interno. Noutra semana faremos uma espécie de “aulão”. Haverá um momento expositivo inicial (penso em realizar uma fala de aproximadamente 20-30 minutos), poderemos ter diferentes convidadas/os para essa conversa e também público espontâneo. Em seguida, abriremos para interação entre todxs. Tempo máximo de duas horas para toda a atividade. Minha expectativa é que neste encontro possamos partir do pensamento dxs autorxs dos textos, para dialogar com os materiais que serão coletados e produzidos pelxs estudantes, e também com as experiências que serão narradas entre nós. Temos que “aproveitar” o fato de que nosso curso tem como objeto/tema a própria educação. Do ponto de vista tecnológico resolveremos assim: nas atividades internas utilizaremos ferramentas e ambientes de acesso restrito; nos encontros-aulão utilizaremos plataformas de acesso público e streaming.

    Atividades assincrônicas: alem da leitura dos textos esperamos que os estudantes possam produzir (individualmente ou coletivamente) um exercício de pesquisa sobre temas/problemas relacionados à disciplina. Vamos coletar e organizar links para pesquisas, relatorios, reportagens, dados; e vamos criar ensaios em diferentes linguagens. Além da página na wikiversity (onde vou documentar o percurso da disciplina), vou utilizar um site em wordpress para hospedar os demais produções da disciplina. A cada quinzena os estudante serão convidados a produzir algo e publicar na forma de um comentário no site: um pequeno texto, audios, fotos, poesias, microvideos relativos ao tema da quinzena. Fizemos isso na Zona de Contágio e foi uma boa experiência. Aqui um exemplo (vejam os comentários ao post).

    Como forma de avaliação temos duas opções e cada estudante poderá optar por um caminho: coletânea de suas produções publicadas no site durante o semestre; ou a elaboração de um ensaio único ao final do semestre.

    Por fim, outro elemento importante para que o curso possa melhor fluir é a enfase nos processos coletivos. Como podemos misturar a constituição de grupos de pesquisa entre os estudantes, com as formas dos grupos de afinidade e grupos de apoio-mútuo? Um curso à distância é cheio de armadilhas (assim como um curso presencial). Frequentemente,nos ambientes digitais, graças à tecnicidade do meio (sua tecnoestética e tecnopolítica), há uma maior disposição para a individualização dos processos de aprendizagem. Teremos que praticar uma atenção e escuta ativa aos processos que vamos desencadear para que consigamos promover outros desenhos e disposições para o fortalecimento coletivo. Como transformar a tela em uma interface mais conjuntiva do que conectiva? “Como redesenhar a pesquisa, o ensino universitário para uma lógica da conjunção? Que arranjos acadêmicos, investigativos, pedagógicos e de convívio poderiam ativar uma fratura que permita “pular os muros” da lógica proprietária do conhecimento, mas cair longe deles? Como manter, por algo despertado na quarentena, nossa capacidade de decifrar os signos segundo o desejo, liberando espaço para a vibração do desejo-pesquisa, desejo-educação, desejo-arte, desejo-luta?

    Sobre o curso (início 5 de agosto): vespertino 15hs; noturmo 19hs.

    Programa e recursos: https://pt.wikiversity.org/wiki/Sociologia_da_Educa%C3%A7%C3%A3o_na_Pandemia_Covid-19

    Canal de difusão no Telegram: https://t.me/socioeduca2020

  • o dia que roubei comida

    #relatosfebris

    A quarentena foi decretada em São Paulo há algumas poucas semanas, mas continuei trabalhando como entregador de bicicleta através dos aplicativos. Meu único vínculo é o cadastro de inscrição nos apps. Não se reconhece o vínculo trabalhista, celetista ou qualquer outra coisa. Sou uma espécie de trabalhador autônomo, mas sem autonomia. Precisei continuar trabalhando para ter uma renda enquanto o auxílio emergencial ainda era uma discussão entre os políticos.

    Mas, o primeiro domingo de abril, foi meu último dia de trabalho. Na última entrega, da última noite em que trabalhei como entregador (até então não havia decidido parar de trabalhar por conta da pandemia), eu estava na calçada de um restaurante. Esse é um local comum aos entregadores, fora do restaurante. Daquelas regras não ditas, mas que ficam explícitas na fala dos atendentes: “espera lá fora que eu já levo o pedido para você”. Com a desculpa de dar mais agilidade e melhorar a circulação, criaram portinhas que já dão para a calçada, para entregarem comida. Mas que, para mim, são as portas que separam onde é o espaço dos clientes e dos trabalhadores.

    Este local comum dos trabalhadores, a calçada, é um lugar de troca de experiências. Por volta das 23 horas, eu e outros três motoboys conversávamos sobre trabalho, em frente a um restaurante japonês. O assunto era a piora do trabalho na pandemia. Sobre a diminuição dos valores pagos e a mudança no perfil dos pedidos. 

    Com medo de saírem às ruas, as pessoas passaram a fazer mais pedidos de compras em mercados. Realizar compras nos mercados não é vantajoso para o entregador. São pedidos demorados, já que o trabalhador tem que procurar no  mercado pelo pão de forma, integral, com mais de 12 grãos, sem casca da marca azul, não a vermelha! Essa procura é sempre demorada. Fora uma série de outros contratempos que esse tipo de pedido traz. O valor do produto na prateleira diverge do valor no app, o produto está esgotado naquele mercado, achei o produto, mas cadê a etiqueta com o preço? Filas, erros nos aplicativos, demora de processamento, são tantos problemas que já aconteceram…tempo de vida!

    Todos reclamavam sobre esses tipos de pedidos. Os clientes passaram a pedir muitos produtos nos mercados. O que antes eram alguns produtos pontuais, viraram compras grandes. Relatei a eles sobre o tempo que perdi para sair de um pedido, pois o cliente havia pedido 20 litros de água pelo aplicativo. Nem um motoboy conseguiria carregar aquilo, muito menos eu, de bike.

    Outros comentários que surgiram na conversa eram reclamações sobre como havia decaído o valor pago aos entregadores nos últimos dias. Um deles queixou-se que estava na rua desde às 10 horas da manhã e ainda não havia ganhado R$100. Mostrava-se descontente porque antes recebia o dobro do valor em um dia inteiro de trabalho.  Outro motoqueiro, com o celular na mão, concordou e disse que estava quase na mesma. Falou que estava na rua desde o meio dia e acabara de bater os R$100 do dia. Virou e mostrou a tela do celular para que todos vissem.

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    Imagem retirada de um grupo de entregadores do Facebook. O print foi um bug que zerava as corridas e que ocorreu meses após o relato do texto.

    O primeiro motoboy que já havia reclamado dos valores se exaltou com a demora do pedido e foi cobrar o atendente do restaurante. Perguntou, incisivamente, se seu pedido já estava pronto. Ele estava há 40 minutos esperando. Era seu último pedido, queria ir para casa descansar depois de um dia difícil. Contudo, o atendente conseguiu acalmá-lo. Falou que o pedido estava em preparo e pediu para aguardar. Mesmo contrariado, decidiu aguardar mais um pouco. Não que tivesse muita escolha, pois sair de um pedido é arriscado. Recusar pedidos pode causar bloqueio no app o que significa ficar sem emprego. Trabalhador autônomo sem autonomia.

    Lembrei que nessa mesma semana, já na “quarentena”, estava pedalando até um restaurante por uma rua mal iluminada que termina em uma extensa avenida bem movimentada. Na esquina, duas viaturas da polícia estacionadas. Paravam alguns carros, motos e bikes (eu) “aleatoriamente”. Não que os policiais tenham sido mal-educados ou violentos comigo. Mas, é o tipo de coisa que irrita. Pois, claramente eu estava trabalhando. Nas costas, carregava uma mochila enorme, característica de entregadores, com o logo da empresa estampado, com uma cor gritante. Entretanto, sei que não foi a cor da mochila que chamou a atenção deles para me pararem.

    Meu pedido ficou pronto antes. Não vi o desenrolar da história do motoboy que já estava impaciente. Peguei as várias caixas do pedido, coloquei na mochila e fui embora. Passava das 23 horas e queria chegar logo em casa. Terminar o último pedido e descansar.

    Contudo, pedalando pela noite, seguindo o GPS, também sentia raiva. Comecei a pensar sobre aquela conversa, aquela semana, a pandemia, o trabalho, etc..

    Era um acúmulo, um esgotamento da estrutura do trabalho através dessas plataformas. Das condições trabalhistas já conhecidas por muitos. Da posição social dos entregadores, descartáveis para muitos. As classes mais abastadas recolhem-se dentro de seus apartamentos, longe do vírus, enquanto nós temos que continuar na rua trabalhando. Eles não conseguem abrir mão de comer pizza, hambúrguer, sushi, sei lá. Querem comer, mas não estão dispostos a se arriscar nas ruas em meio a uma pandemia. Deixem que outros se exponham no lugar. 

    E a gota d’água era a desconfiança que aquela última entrega era para alguém que não estava cumprindo o isolamento social. Era muita comida para apenas uma pessoa. Na minha mochila havia comida para umas seis pessoas. Uma família grande, talvez? Nunca tive a confirmação de fato. Mas entregar mais de R$200 de comida, enquanto dois trabalhadores não tinham ganhado nem R$100 trabalhando o dia inteiro, para um casal branco, de classe média, risonho, que provavelmente não estavam cumprindo a quarentena. Foi o empurrão para que eu roubasse alguma comida daquela entrega.

    Desde quando comecei a trabalhar um dos assuntos recorrentes na nossa calçada são formas de pegar o pedido para si. Existem várias formas de pegar a entrega para si e comê-la. Varia de aplicativo para aplicativo e das condições de cada pedido. Na fila de espera, na calçada, é comum alguém falar que está esperando ali para levar o pedido para casa e outro comenta que já fez isso, mas de outra forma. Um terceiro trabalhador complementa com mais uma outra técnica para comer a encomenda do cliente. Enfim, existem muitas formas que os entregadores encontraram para explorar as vulnerabilidades dos aplicativos. E essas práticas são compartilhadas entre nós.

    Não que seja grande coisa, pegar uma parte do pedido para mim não é nada. Mas, naquela noite, me senti bem. Era o que eu queria. Desejava que todos eles se fodessem. Queria dar prejuízo ao aplicativo, ao restaurante, aos clientes.

    Não sei qual foi o desfecho da história. Se reclamaram com o restaurante, com o aplicativo ou deixaram por isso mesmo e comeram o resto do banquete. Mas, sei que aquele shimeji pareceu mais saboroso naquele dia.

    #relatosfebris #BrequeDosAPPs #ApoioBrequeDosAPPs

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  • Zona de Contágio: como seguir? – projeto coletivo de pesquisa; comunidade autônoma temporária

    Conversações Febris #6 – 2 de julho, quinta-feira as 19:00hs.

    Nos cinco encontros realizados tecemos caminhos, investigamos juntas a possibilidade de retomarmos o ritmo nos interstícios algorítmicos de novas verdades tecnológicas. Experimentamos convocações de presença, a possibilidade de respirar juntos em um ambiente de muitas saturações, comandos e novas disciplinas. Criamos encontros, narrativas, escritas, vídeos, performances, diálogos intensos.

    Fizemos isso a partir de duas coreografias de pensamento: ciência da retomada e ciência dos dispositivos, movimentos investigativos de atentar tanto para os saberes minoritários, das lutas e conspirações dos viventes como também para as novas formas do poder que nos conduzem e paralisam. Nessa trajetória, 4 grandes dimensões de analise foram emergindo como fios que ajudaram a tramar uma investigação selvagem: regimes de conhecimento; regimes de poder; regimes tecnopoliticos e tecnoesteticos; transição societal e os limites do antropoceno/capitaloceno/plantationoceno. 

    Em nosso ultimo encontro, entretanto, mergulhamos de forma mais detida numa reflexão sobre a educação (formal e informal), universidade, escola, tecnologias, praticas e saberes em luta diante das reconfigurações do presente e das intensificações provocadas pela pandemia covid-19. Sentimos que neste ultimo encontro foi possível articular aquela tessitura intelectual que vinhamos nutrindo com uma discussão mais aterrada nas experiencias vividas sobre problemas comuns que nos afetavam. Talvez porque estejamos todxs de alguma maneira envolvidos com atividades educacionais, de pesquisa e criação (formais ou informais) e porque sentimos coletivamente os limites de muitos desses espaços para responder à crise total que habitamos hoje.

    Por isso tudo pensamos em uma continuidade para a Zona de Contágio que pode se fazer como um experimento (um protótipo) de uma de rede de pesquisa entre as muitas experiências e práticas com que estamos implicadas; uma zona de confluência temporária entre as investigações e fazeres com que cada um aqui esta envolvido. A partir das discussões anteriores e sob um guarda-chuva generoso (educação) que emergiu em nosso ultimo encontro, listamos algumas temas que sentimos ressoar nas produções e atuações dos participantes desse percurso:

    educação, regimes de conhecimentos e práticas minoritárias;  saberes das lutas; experimentos de Retomada;  educação, modos de subjetivação, tecnologias;  dispositivos de controle e (des)controle;    mediações técnicas, tecnológicas e algoritmos; regimes de sensibilidade, percepção, sensação e modos de conhecer;  ambiências e corpo, cidade, experiência X ambientes tecnomediados; campos experimentais de luta e direitos; práticas educacionais e ambientes/tecnologias digitais: o que pode ser uma aula?  Quais universidades? pluriversidades? territórios de luta e de produção de conhecimento.


    Imaginamos para o próximo semestre enveredar numa investigação coletiva entramada pelas praticas de cada um em torno de problemas confluentes. Nesta quinta-feira (02/07) gostaríamos de conversar sobre essa ideia e também sobre como realizá-la. Inicialmente, pensamos em seguir com encontros quinzenais neste mesmo dia/horário pra compartilharmos nossas experiências e também produzirmos coisas juntxs. Gostariamos de intensificar a documentação coletiva que já estamos praticando e quem sabe produzir um livro coletivo ao final do ano, sintetizando um tanto do que estamos criando e ainda vamos produzir durante o próximo semestre. A realização de podcasts, experimentações corpograficas, sonoras e audiovisuais também são desejadas!

    Aguardamos vocês para mais uma conversação febril! Quinta-feira, 2 de julho as 19hs

  • A comunidade das sobreviventes contra a sobrevivência dos heróis

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    texto de: Bru Pereira – publicado em: https://n-1edicoes.org/089

    imagens: Marcela Cantuária

    Sobreviventes indignas

    Depois de se lançarem numa investigação-companheira sobre o que as mulheres fizeram ao pensamento, Isabelle Stengers e Vinciane Despret terminam seu livro — Women Who Make a Fuss1 — se perguntando como melhor responder às situações que nos solicitam “assegurar que todo mundo mantenha com dignidade o percurso em direção a um futuro que já não tem um futuro” (p.164). O questionamento reativa a tradição feminista especulativa de se perguntar “e se…”: “E se a estabilidade deste percurso exigir esta dignidade triste e antecipada?”.

    E se a diferença provocada por uma aposta hipotética no comportamento escandaloso e indigno for desconhecida da situação? Não seria essa uma possível dádiva do gênero marcado [feminino] para todos, homens e mulheres, marcados para a zumbificação? Aprender a fazer escândalo, pegar o bastão dos escândalos que outras provocam não é uma proposição dirigida apenas às mulheres, ainda que a dignidade corajosa daqueles que sabem a importância de não se fazer isso pertença às virtudes masculinas. A questão das mulheres que fazem escândalo é dirigida a todas as mulheres e a todos os homens, assim como a questão de um mundo habitável: um mundo um pouco melhor, não o mundo em que o bem, por mais definido que seja, teria triunfado sobre mal. (p. 164-5)

    Ao propor o escândalo das mulheres no lugar da submissão digna dos homens, Stengers e Despret não estão afirmando que fazer baderna necessariamente lhes permitirá resistir ao que há de devastador em nosso mundo. Antes elas apostam em que talvez “seria melhor fazer isso do que corajosamente se submeter, com dignidade, ao que é apresentado como inescapável” (p. 165). Nesse ponto elas se lembram de Georgette Thomas, que acusada pelo assassinado da sogra, junto a seu marido, foi condenada, em 1887, à guilhotina e teve de ser carregada pelo executor até o lugar da execução, pois lhe faltava a coragem necessária “que cria a grandeza dos homens que sobem o cadafalso — uma coragem que também torna a posição do executor tolerável” (p.166). Após essa execução, nos contam as autoras, o executor-chefe pediu ao Presidente da República que desse clemência automática a todas as mulheres, o que aconteceu até 19412.

    As mulheres persistiram — em 1947, Lucienne Fournier, que jogou o marido de uma ponte no Marne, na noite do casamento, teve que ser arrastada da cela para o cadafalso. Ela urinou de medo e gritou: “Eu não fiz nada”. Ela foi a penúltima [a ser executada na guilhotina na França]. As mulheres, decididamente, não mereciam a punição suprema, eram incapazes de “pagar suas dívidas à sociedade”. Que seus exemplos nos dêem força para não nos submetermos com dignidade. (p.166)

    Esta é, de fato, uma poderosa sabedoria: que não nos submetamos com dignidade àquilo que nos elimina. Hoje, enquanto escrevo, o Brasil assumiu a liderança do ranking de número de mortes diárias por Covid-19. Uma estimativa recente projeta que até o final de junho podemos ter de encarar mais de 80 mil mortes devido a doença. Outras estimativas ditas otimistas apontam que o país pode ter um total de 1 milhão de mortos até passar a pandemia. E é nesse contexto lúgubre, em que o otimismo coabita com a imagem da perda de 1 milhão de vidas, que senti a necessidade de escrever sobre a sobrevivência, escrever sobre o “depois que a pandemia passar”. Mas é uma tentativa de escrever sobre a sobrevivência sem deixá-la ser capturada pelas narrativas que tornam os sobreviventes heróis dignificados; ou ainda, sem deixar a sobrevivência ser dotada da capacidade de conferir àqueles que sobrevivem o status de heróis.

    É claro que as mulheres que herdaram a clemência por conta do escândalo feito por Georgette Thomas não sobreviveram do mesmo modo que a sobrevivência tende a se constituir para aqueles que vivem uma pandemia. Mas a impossibilidade de imaginar as mulheres que fazem uma baderna escandalosa como heróis — pois heróis são aqueles que se submetem com dignidade, mesmo à morte — é o que é importante para mim aqui: é contra a imagem do sobrevivente heroico que eu escrevo. Pois eu sinto que ela diz pouco sobre como lidar com o fato de que teremos que aprender a constituir uma comunidade de sobreviventes.

    Heroísmo é botulismo”

    Ursula K. Le Guin3 não nos permitiu esquecer da intenção de Virginia Woolf em recriar os significados das palavras inglesas buscando inventar uma nova expressividade. Em suas anotações, diz Le Guin, Woolf propõe definir heroism as botulism, enquanto a hero is a bottle. O jogo sonoro entre botulism e bottle que permite a sua associação conjunta com o par heroism/hero é difícil de traduzir ao português, já que a tradução mais convencional de bottle é garrafa, o que a faz perder a proximidade sonora com a palavra em português botulismo. Uma tradução menos convencional para a palavra que talvez permita manter, mesmo que parcialmente, as associações em jogo seria botelha: heroísmo é botulismo e um herói é uma botelha.

    Contudo, meu intuito aqui não é um exercício de tradução das novas definições de Virginia Woolf. O que me interessa é a expressividade possível que ela inaugura. Sou inspirada pela insistência de Donna Haraway — aprendida com Marilyn Strathern — sobre a importância de pensar quais palavras palavreiam outras palavras, pois “palavras carregam coisas” (Le Guin, p.153). Que fábulas podemos contar quando um herói é uma botelha e o heroísmo não é nada mais nem nada menos que botulismo?

    Para Ursula K. Le Guin, imaginar que o heroísmo é botulismo lhe permitiu construir o que ela nomeou como uma teoria bolseira da ficção científica. Ela estava tentando reativar a capacidade de contarmos histórias da vida, capacidade que foi contaminada pela toxidade botulínica do heroísmo e suas histórias mortíferas. E ao mesmo tempo, ela tentava dar conta do fato de que as longas e intermináveis histórias heroicas de como “o mamute caiu sobre Boob e como Caim caiu sobre Abel e como a bomba caiu sobre Nagasaki e como a gelatina incendiária4 caiu sobre o vilarejo e como os mísseis irão cair sobre o Império do Mal, e todas as outras paradas na Ascensão do Homem” (p.151) não a faziam se sentir humana. Todas essas histórias eram contadas por humanos tornados demasiado humanos pela sua capacidade de bater, de cutucar, de perfurar, de meter, de penetrar, de empurrar, de matar…

    A teoria bolseira da ficção científica adapta a teoria bolseira da evolução humana de Elizabeth Fisher, que propunha que o primeiro artefato humano tinha sido algum tipo de recipiente que permitiu que as pessoas carregassem coisas como frutas, pequenos animais, objetos que considerassem valiosos e até bebês. Sem algo para carregar, até uma coisa tão sem graça e indefesa como uma aveia, conta Le Guin, escaparia da gente. E os romances, os livros, as histórias são formas de carregar coisas com as palavras: e, às vezes, elas carregam até os heróis. Mas heróis, dentro das histórias, tem o mal hábito de querer tomar posse delas, pois o que é claro é que “o Herói não fica bem dentro deste saco. Ele precisa de um palco ou de um pedestal ou de um pináculo. Você coloca ele dentro de um saco e ele se parece com um coelho, ou com uma batata” (p.153).

    As bolsas, os sacos, os recipientes feitos com cabaças e até aquelas cuias bastante singelas feitas pelas crianças de folhas curvadas para beberem água na margem dos rios são o antídoto leguiniano contra a lança empunhada pelos heróis, estes sempre guerreiros, que lançadas, progridem inevitavelmente em direção ao futuro, em direção ao seu alvo. O progresso é imaginado como lança, assim como o Tempo, o tempo das histórias botulínicas dos heróis, é uma flecha. As histórias de heróis são sempre triunfantes e, por isso mesmo, são sempre trágicas: o herói persiste apesar da destruição, ele é aquele que sobrevive à destruição. E é exatamente o fato de ter sobrevivido que o constitui como herói e seus atos como heroísmo. Do mesmo modo que o botulismo, o herói é uma figura mortificante.

    A irresponsável sobrevivência dos heróis

    Contar uma história interessante da sobrevivência requer recusar transformar os sobreviventes em heróis, por mais difícil que isso seja, já que estamos há muito acostumadas a celebrar com medalhas penduradas no pescoço os bravos feitos do heroísmo. E às vezes, a medalha do herói é sua congratulação pela evidência de que sua sobrevivência reside em sua superioridade.

    Durante uma entrevista, quando perguntado sobre se estava preocupado com um possível contágio pelo coranavírus, Bolsonaro respondeu que não, por ele ter um “histórico de atleta”. Essa conjunção um tanto fascista entre corpo atlético e corpo resistente, superior, despreocupado com os riscos, torna a sua sobrevivência uma questão de superioridade. Na reencenação de um argumento bastante próximo do darwinismo social, a sobrevivência se torna uma narrativa sobre o triunfo dos mais fortes. O herói faz parte do seleto grupo dos que têm histórico de atleta.

    Numa reunião ministerial, Bolsonaro também retornou de outro modo a associação entre sobrevivência e o triunfo dos mais fortes ao comentar sobre a morte de um patrulheiro da polícia rodoviária, dizendo que numa ligação com o Diretor-Chefe dessa instituição descobriu que o falecido tinha “comorbidades”. A comorbidade é o que excluiu esse patrulheiro de ascender ao pódio dos heróis com histórico de atleta, cujos corpos combatem de modo eficaz o perigo do antagonista atual, o vírus-vilão.

    A noção de comorbidade, associada a um uso ruim do conceito de grupos de risco, opera como um modo de, nas palavras do presidente eleito, diminuir o medo dos que se percebem fora da vulnerabilidade, isto é, que conseguem se imaginar como pertencentes ao exército dos heróis que sobreviveram. E a própria figura do herói é bastante persuasiva. Essa é uma das metáforas mais utilizadas politicamente ou, pelo menos, é uma das que mais circulam entre as pessoas como forma de atribuir valor.

    O herói é fundamentalmente aquele que tem um destino e que não se desmobiliza por nada. Ele pode ter dúvidas, ele pode inicialmente recusar a própria jornada, mas o herói, ou o bom herói é aquele que persiste na sua aventura. O herói é um obcecado. E é do tipo de obcecado que requer que os destinos de todos os outros se tornem pontos de apoio para o seu destino. Como disse Le Guin, o herói faz de qualquer história o seu palco, sendo capaz de se apoderar do destino de qualquer um enquanto um meio de expressão do seu próprio. Desse modo, o herói é um grande privatizador de histórias e no ato de fazer tudo convergir em uma narrativa épica, ele se constitui enquanto uma grande máquina de produzir ressonâncias.

    A constante mobilização que o herói considera ser impossível de romper, afinal de contas o destino dele é o destino de todos, é experimentada por ele e por aqueles que o seguem enquanto a forma mais pura de liberdade e também como desculpa para se furtar à responsabilidade. A tal ponto que qualquer incitação para um exercício de responsabilidade é sentido como restrição de liberdade: “O que esses filha de uma égua quer, ô Weintraub, é a nossa liberdade.”

    Quando convocado a praticar responsabilidade, a resposta do herói acaba quase sempre sendo de repetir a ladainha do refrão de seu canto épico, que lembra pra todos a necessidade dele continuar na sua missão, seguir no seu destino. Sem interrupções ou desvios. Sem, sob hipótese alguma, hesitar. Porque hesitação é sinal de fraqueza. Seu destino tem que se realizar sem que seja confrontado com as consequências de sua jornada, sem que tenha que por em prática a responsabilidade.

    Possivelmente um dos fascínios das histórias de heróis resida exatamente não só na separação entre liberdade e responsabilidade, mas na sua oposição. Talvez, quando um desses caçadores pré-históricos de mamute retornava de sua jornada— escreve Ursula K. Le Guin —, contando como ele matou uma fera gigante enquanto seus companheiros de aventura sucumbiam um a um; todas e todos que permaneceram ali cuidando de bebês, coletando frutas, pescando, fazendo fogueiras, se protegendo do frio, ficavam fascinadas com a possibilidade de exercer uma liberdade desconectada da responsabilidade com o outro e diante de tal fascínio talvez nada tinham a dizer. Afinal de contas, qualquer questionamento sobre a necessidade da aventura diante das vítimas causadas por ela, retornaria na fala do herói como evidência de seu próprio destino: é porque ele sobrevivera a despeito dos demais, que ele sabia que aquele era seu destino se realizando. E esse destino, por sua vez só se realizou, porque ele foi capaz de ser livre, de romper com as amarras impostas pela responsabilidade com o outro. Ou ainda, porque ele tinha um histórico de atleta.

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    Corpos em risco

    Num texto de 1985, em meio à epidemia de HIV/AIDS, Isabelle Stengers e Didier Gille5 fazem uma descrição interessante sobre a noção de \”grupos de risco\” como \”batedores avançados\” (uma posição no beisebol), \”os primeiros a serem atingidos pelo perigo que ameaça a todos, mas também aqueles que podem relatá-lo e alertar os outros sobre ele\” (p.236). A recolocação dos grupos de riscos como testemunhas \”que nos contam e nos lembram o que nós somos […] seres vivos, correndo riscos de viver\” (p.237), veio como uma resposta à atitude de certas pessoas que enquadravam grupos de risco como grupos que nos põem em risco.

    No contexto atual, na pandemia de COVID-19, a atitude em relação aos grupos de risco é um tanto quanto diferente daquela dispensada aos grupos de risco de infecção com HIV em meados da década de 1980. A composição desses dois grupos certamente tem grande influência nessa diferença. Contudo, acredito que a descrição de Stengers e Gille dos grupos de risco como testemunhas, como aqueles que nos lembram do perigo que nos ameaça a todas, ainda nos ajuda a superar o sentimento de imunidade que parece acometer alguns corpos que, diante da noção de grupo de risco, se sentem protegidos por não pertencerem a ela. Inspirado pelas palavras irresponsáveis de gente-com-histórico-de-atleta, como Bolsonaro, um rebanho de pessoas faz eco à ideia de que o perigo só existe para aqueles que fazem parte dos grupos de risco. Eles recusam a lição transmitida por esses grupos: temos um corpo que corre riscos ao viver.

    E mais, os grupos de risco ainda nos ensinam que o corpo que temos participa, através de uma rede de fluídos, dos corpos dos outros. A constante produção de fluídos corporais nos conecta e uma pandemia nos revela como vivemos nossas vidas através das vidas dos outros. “Viver a vida através da vida dos outros” é uma das definições de Marshall Sahlins6 sobre o parentesco, sendo que é essa constante conectividade fluídica o que nos torna vulneráveis.

    Poderíamos, então, pensar que o que os heróis-com-histórico-de-atleta recusam, para além do ensinamento de um corpo que corre risco, é um modo de estar relacionado em redes de parentesco. Eles recusam a “mutualidade do ser”, como diz Sahlins. Tornando-se assim uma gente perigosa, pois como nos lembram muitos coletivos ameríndios, pessoas sem parentes podem não ser mesmo pessoas, afinal de contas, gente-sem-parentes são os mortos.

    Terror anal

    Os heróis, ao recusarem o reconhecimento da vulnerabilidade da vida que é vivida através dos outros, isto é, a vulnerabilidade própria envolvida nas relações de cuidado, de vizinhança, do trabalho reprodutivo, da intra e interconectividade ecológica, não recusam totalmente a vulnerabilidade, mas a recolocam em outro lugar; digamos, talvez, em suas hemorroidas: “Que os caras querem é a nossa hemorroida! É a nossa liberdade!” — disse Bolsonaro na reunião ministerial.

    É notável a conjunção feita entre a masculinidade e a liberdade através de uma interdição anal, ou de uma “analização da vulnerabilidade”, isto é, da localização da vulnerabilidade do corpo masculino no ânus. Paul Preciado chamou de “terror anal”7, não o medo de tornar-se um corpo-penetrável, pois o que assusta a cis-hétero-masculinidade não é a penetração, mas o medo da igualdade radical que o ânus pode oferecer enquanto uma nova ficção somatopolítica no lugar das ficções patriarcais da diferença sexual genitalizada. Igualdade radical é o outro nome possível para vulnerabilidade, para essa vulnerabilidade que aprendemos ao entre-viver, e que é insistentemente recusada pelos heróis.

    No homem heterossexual, o ânus, entendido unicamente como orifício excretor, não é um órgão. É a cicatriz que a castração deixa no corpo. O ânus fechado é o preço que o corpo paga ao regime heterossexual pelo privilégio de sua masculinidade. Tiveram que substituir o dano por uma ideologia de superioridade de modo que só lembram de seu ânus ao defecar: como fantoches se creem melhores, mais importantes, mais fortes… Esqueceram que sua hegemonia se assenta sobre sua castração anal. O ânus castrado é o armário do heterossexual. Com a castração do ânus, surgiu […] o pênis como significante despótico. O falo apareceu como mega-$-pornô-fetiche-acessível da nova Disney-hétero-lândia. (p. 136-7)

    Seria tentador imaginar que os portões da Disney-hétero-lândia estariam fechados em respeito às medidas de isolamento social e que a moeda corrente no cis-hétero-patriarcado finalmente caiu em desuso. Mas não. Muitas de nós estamos nos dando conta de que o espaço da casa — há muito negligenciado pelas políticas de retomada da esquerda — tem se tornado um polo de experimento barroco de condensação de diferentes regimes de dominação e de exploração que capturam, sobretudo, corpos femininos, pretos, pobres. Porém, gostaria de me permitir, mesmo que brevemente, um exercício de esperança, ensinada por Jota Mombaça8 como sendo uma arte de des-esperar. Pois não me engano, escrevo em profundo e escandaloso desespero.

    Talvez agora, se formos capazes de resistir ao heroísmo, e podermos incitar que os heróis — quase sempre muito masculinos — experimentem com a igualdade radical, com o reconhecimento da vida como entre-viver, com a lembrança que o vírus nos traz da permeabilidade e porosidade dos corpos, a intrusão do acontecimento Covid-19 se torna uma possibilidade de imaginar a queda do cis-hétero-patriarcado e suas violentas imposições de fronteiras: o muro da diferença sexual pode finalmente ser posto abaixo. Mas não só. Como nos ensina Preciado, “é preciso desejar a liberdade sexual”. Portanto, não basta que o muro caia, as pessoas precisam querer transitar entre lá e cá para, enfim, desaprender a existência de um lá e de um cá. O terror anal enquanto política do medo da igualdade radical dará lugar, então, à contrassexualidade enquanto nova arquitetura do corpo (e talvez da casa).

    A comunidade das sobreviventes que vem

    Foi para elaborar o incômodo gerado pela associação da sobrevivência a uma história de heroísmo que comecei a escrever este texto. Como disse, podemos estar caminhando para a morte de 1 milhão de pessoas no Brasil, o que fará de tantas outras, sobreviventes. Imaginar as que sobrevivem como heróis que triunfaram na guerra contra o inimigo viral nos impede de reconhecer uma característica fundamental da sobrevivente: sua solidão. A sobrevivente é, em princípio, solitária. Ela é quem constantemente repete para si mesma a pergunta sobre o porquê ela, e não tantas outras, ter sobrevivido9.

    Mas pensar a sobrevivência também tem sido uma questão importante para mim já há algum tempo. Nos últimos anos tenho me dedicado a investigar — para parafrasear Stengers e Despret — o que os trans/feminismos têm feito ao pensamento; e vira-e-mexe reencontro por aí histórias de sobrevivência. Num texto de Jota Mombaça10, pude entrar em contato com uma frase postada por Kerollayne Rodrigues em um relato sobre uma agressão transfóbica que sofreu por parte de um homem cis. Ali ela dizia: “Porque nascemos para morrer, mas não morremos”. Uma profecia potente, ainda mais quando somos capazes de reconhecer para além do “nascemos para morrer”, a insistência vital no “não morremos”.

    A sobrevivente trans/feminista sabe reconhecer na vida, no “não morremos”, a dívida inscrita pelo “nascemos para morrer”. Não é sobre, como disseram, carregar um cemitério nas costas, é sobre se reconhecer como testemunha, sobre saber da importância de manter viva a memória dos que não sobreviveram. Mas é igualmente sobre testemunhar o próprio ato de sobrevivência. Sobreviver é antes sobre a vida do que sobre a morte: é sobre a vida de quem sobrevive tanto quanto um testemunho sobre a vida que se perdeu. É isso, me parece, que aprendemos com abigail Campos Leal em “me curo y me armo, estudando”: modos de envivecer11.

    Aqui reside uma importante diferença entre a sobrevivência do herói e a sobrevivente trans/feminista. Enquanto o herói não é capaz de testemunhar nada além do seu próprio destino, a sobrevivente trans/feminista tem a possibilidade de lembrar que se ela sobreviveu entre tantas outras, é exatamente por viver entre tantas outras que ela pode sobreviver. Ela tem a chance de superar a solidão da sobrevivência ao se tonar capaz de constituir no seu testemunho uma comunidade de sobreviventes.

    É claro que a comunidade de sobreviventes pós acontecimento covid-19 terá que se proteger, enquanto se recusa a ser definida em termos de heroísmo, das armadilhas que tentarão converter seu testemunho em somente uma história sobre a letalidade do vírus. Que o vírus tem um poder de adoecer e matar, não questionamos. Contudo, a comunidade que vem também terá que testemunhar sobre o descaso institucional com a saúde coletiva, a incapacidade de garantir o direito à quarentena para todas, o descuido com a segurança das que vivem o confinamento num espaço de violência, etc.

    Nenhum herói seria capaz de incluir em suas histórias cheias de movimento e ação e marcadas pela temporalidade linear e irreversível do progresso, a bagunça das temporalidades do cotidiano sob o signo das catástrofes. E testemunhar será preciso, pois a narrativa heroica daqueles que têm histórico de atleta já está em curso: “E… tivemos aí dois caras aí na história recente que pegaram terra arrasada e entraram para a História. Um foi Roosevelt, o outro foi Churchill. O terceiro vai ser o Bolsonaro” – disse desavergonhadamente o atual Ministro de Infraestrutura, quando, na verdade, não são eles quem têm que por os pés no chão e habitar a terra arrasada. No final das contas, os heróis possuem o mal hábito de querer morar nas alturas juntos aos deuses, enquanto na terra, a comunidade de sobreviventes tem que permanecer com o problema que é viver nas ruínas da destruição causada por suas valentes aventuras heroicas.

    1 DESPRET, Vinciane; STENGERS, Isabelle. 2014. Women Who Make a Fuss. Minneapolis: Univocal Publishing.

    2 Stengers e Despret comentam: “Élisabeth Ducourneau, guilhotinada em 1941, pensara que seu pedido de clemência fora aceito por Pétain, como era a tradição. Quando eles anunciaram a ela que havia chegado o momento de pagar sua dívida com a sociedade, ela teria respondido: ‘Mas certamente, senhor, eu tenho algum dinheiro guardado com o Escrituário…’ A execução foi muito dolorosa.” (p.166)

    3 LE GUIN, Ursula K. 1996. “The Carrier Bag Theory of Fiction”. In: The Ecocriticism Reader. Cheryll Glotfelty, Harold Fromm, eds. Londres: The University of Georgia Press.

    4 Aqui a autora se refere ao napalm, um conjunto de líquidos inflamáveis feito à base de gasolina gelificada.

    5 STENGERS, Isabelle; GILLE, Didier. 1997 [1985]. “Body Fluids”. In: Power and Invention. Isabelle Stengers. Minneapolis: University of Minnesota Press.

    6 SAHLINS, Marshall. 2013. What kinship is – and is not. Chicago The University of Chicago Press,

    7 PRECIADO, Paul. 2009. “Terror Anal”. In: El Deseo Homosexual. Guy Hocquenghem. Espanha: Editorial Melusina.

    8 MOMBAÇA, Jota. 2016. “lauren olamina e eu nos portões do fim do mundo”. Caderno Octavia Butler da Oficina de Imaginação Política. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/caderno_oip_6_digital

    9 GLOWCZEWSKI, Barbara. 2015. “Resisting the Disaster: Between Exhaustion and Creation”. Spheres. Disponível em: http://spheres-journal.org/resisting-the-disaster-between-exhaustion-and-creation/

    10 MOMBAÇA, Jota. 2018. “Se não puder ser livre, sê um mistério!”. Revista SELECT, 38. Disponível em: https://www.select.art.br/se-nao-puder-ser-livre-se-um-misterio/

    11 CAMPOS LEAL, abigail. 2019. me curo y me armo, estudando. Pandemia Crítica 052, N-1 edições. Disponível em: https://n-1edicoes.org/052

  • notas de um burburinho reverberando conversações

    começo: Conversações Febris – 04 de junho de 2020

    1) Regimes de conhecimento (as disputas em relação à ciência, os saberes menores e não autorizados, as ontoepistemologias dos saberes das lutas, corpos como sensores);


    2) Regimes de poder que atualizam formas de controle; Biopoder-Biopolítica, dispositivos (novas formas de mobilização e desempenho, tecnologias de gênero e racializadoras/racistas, a relação entre a casa, o corpo, o prazer e a produção);


    3) Regimes tecnopolíticos e tecnoestéticos (a complexidade tecnosomática; dataficação, algoritmização da vida e novos modos de extração e trabalho; alteração nos modos de associação, desejos e individuações tecnomediadas);


    4) Transição societal e os limites do capitaloceno/plantationoceno/antropoceno (terra e o mundo vivo, relação entre viventes; extrativismo ampliado e formas cosmopolíticas de luta).

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    A ambiguidade constitutiva da modernidade, encarada superficialmente quer como processo disciplinar quer como processo liberal, quer como realização do totalitarismo quer como advento do liberalismo, está contida e suprimida na, com e pela nova governamentalidade que emerge, inspirada pela hipótese cibernética. Esta não é nada além de um protocolo de experimentação, grandeza natural do Império em formação. Sua realização e sua extensão, ao produzir efeitos verdadeiramente devastadores, já corroem todas as instituições e as relações sociais fundadas sobre o liberalismo e transformam tanto a natureza do capitalismo quanto as chances de contestá-lo. O gesto cibernético se afirma por uma denegação de tudo o que escapa à regulação, de todas as linhas de fuga que a existência arranja nos interstícios da norma e dos dispositivos, de todas as flutuações comportamentais que não seguiriam in fine das leis naturais. Na medida que veio para produzir seus próprios vereditos, a hipótese cibernética é hoje o anti-humanismo mais consequente, o que quer manter a ordem geral das coisas gabando-se de ter ultrapassado o humano. (TIQQUN, HIPÓTESE CIBERNÉTICA)

    Como habitar a revolta?

    Como disputar a revolta? 

    Existe revolta conservadora?

    A revolta dentro da ordem – Bolsonaro.

    Revolta conservadora é ressentimento, não? Até que ponto estamos dispostos (enquanto civilização) a nos revoltar? Qual o limite?

    O limite é o próprio limite do projeto civilizacional/republicano. Que \”democracia\” é essa que podemos imaginar/sustentar para além do jogo colonial da república dos Donos que nos pede \”participação\”, \”responsabilidade\” e mobilização de \”maiorias\”? O que significa ser \”maioria\”? Não desejamos ser outra coisa?

    Está havendo um silenciamento entre os professores e estudantes. Silencio de uma tristeza muito grande. As pessoas estão vivendo traumas.Problema da visualidade – problema do espectador.
    Como voltar? Como lidar com as tristezas? Quem trabalha com educação, como lidar com a situação?
    Como sustentar a revolta? O problema é como sustenta-la! Como não se disciplinar a se acostumar com as coisas? Como diferenciar a ansiedade inerente da produtividade capitalista da tristeza diante da tragédia humana? Falar de morte sem despedida. Como abandonar os rituais mais antigos das culturas humanas e conviver consigo?

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    A suspensão das atividades, pela quarentena abriu uma fratura no tempo que permitiu que, tendo um pouco de tempo, também o pensamento sofresse aberturas. Para onde se vai quando se pode finalmente pensar que caminho tomar? 
    Mas logo o tempo volta a ser capturado, sentir o produtivismo torna-se intolerável. O que manter, do mundo de antes? O que deixar morrer, do mundo de antes? No mundo pós-pandemia, para onde redirecionar atenção? Reposição e revisão para a retomada das coisas, dos elos, dos focos. Que elos existem ou podem vir a existir, que não sejam os de bases hierárquicas

    Como redesenhar a pesquisa, o ensino universitário e escolar para uma lógica da conjunção? Que arranjos acadêmicos, investigativos, pedagógicos e de convívio poderiam ativar uma fratura que permita “pular os muros” da lógica proprietária do conhecimento, mas para cair longe deles? Como manter, por algo despertado na quarentena, nossa capacidade de decifrar os signos segundo o desejo, liberando espaço para a vibração do desejo-pesquisa, desejo-educação, desejo-arte? ou que não nos pressuponham no lugar de espectadores, mas em lugares de ação, em um corpo coletivo?

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    Como retomar o ruído, a contaminação?
    Formas que transbordam, escapam.
    Homens indo pra rua protestar X Mulheres que estão sustentando todo o cuidado, a saúde? Qual é a revolta necessária?
    Relação analógica com o pandemico.
    Ciencia da cretinice!
    Diversidade no corpo.

    Escapar da escolha infernal: Cuidado X Luta

    O ensino formal sistematizado pelas formas de dominação não cabem em uma situação dessas. A educação formal não cabe, mas o aprendizado não se esgota ou interrompe. Há uma fenda no tempo e espaço para a noção do social e do homem que se insere nele, mas até que ponto isto não é uma oportunidade de aprofundamento dos controles – sob novas formas – ou no sentido oposto, falhas no tecido de contenção que permitem esgarniçá-lo. Quais são as forças dessas costuras? Há aproveitamento dos fios de ligação e condução ou novas experiências e experimentações nos trarão uma espécie de primeira infância social novamente? Anibal Ponce discorre que a educação reformada para o afrouxamento/atentar os interesses de camadas marginais do poder são premissas do desenvolvimento de novos processos revolucionários nas histórias humanas. As revoltas são portanto o resultado desse processo de transformação educacional. Se perdemos a possibilidade de execução de uma educação bancária, o que nos impede o exercício de uma educação experimental e crítica?

    Cidade silenciosa, floresta sonora.

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    O apanhador de desperdícios

    Manoel de Barros

    Uso a palavra para compor meus silêncios

    Não gosto das palavras fatigadas de informar

    Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo

    Entendo bem o sotaque das águas

    Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes

    Prezo insetos mais que aviões

    Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis

    Tenho em mim um atraso de nascença

    Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos

    Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo

    Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas

    Queria que a minha voz tivesse um formato de canto

    Porque eu não sou da informática:eu sou da invencionática

    Só uso a palavra para compor meus silêncios

    Essa idéia do desperdicio me parece fundamental na sabotagem algoritmica: por um lado, a reorganização dos dispositivos de controle/rendimento/desempenho, uma afirmação brutal de que não se pode mais \”perder tempo\”; de que a tecnologia está aí para \”otimizar\”; \”tornar o trabalho mais eficiente\”; evitar o desperdício. Por outro: o que transborda, o que pede mais tempo, o que precisa parar, os corpos que apresentam os sintomas da paralisia, do esgotamento; invencionáticas; uma informática que esteja a serviço do tempo livre, dos prazeres do encontro.

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    Sobre as palavras e a distopia do Coronga, no texto do Zizek.

    Ao final do Screen New Deal existe a ideia de um cérebro conectado, de nossos cérebros compartilhando diretamente experiências em uma Singularidade, uma espécie de autoconsciência coletiva divina. Elon Musk, outro gênio da tecnologia de nossos tempos, recentemente declarou que ele acredita que em questão de 10 anos a linguagem humana estará obsoleta e que, se alguém ainda a utilizar, será “por motivos sentimentais”. Como diretor da Neuralink, ele diz que planeja conectar um dispositivo ao cérebro humano dentro de 12 mesesEsse cenário, quando combinado com a extrapolação do futuro em casa de Naomi Klein, a partir das ambições dos simbiontes de Big Tech de Cuomo, não lembra a situação dos humanos no filme Matrix? Protegidos, fisicamente isolados e sem palavras em nossas bolhas de isolamento, estaremos mais unidos do que nunca, espiritualmente, enquanto os senhores da alta tecnologia lucram e uma multidão de milhões de humanos invisíveis faz o trabalho pesado — uma visão de pesadelo, se é que alguma vez existiu algumaNo Chile, durante os protestos que eclodiram em outubro de 2019, uma pichação num muro dizia: “Outro fim de mundo é possível”. Essa deveria ser nossa resposta para o Screen New Deal: sim, nosso mundo chegou ao fim, mas um futuro-sem-contato não é a única alternativa, outro fim de mundo é possível.

    Vou partilhar link de uma compilação de imagens da ação Zengakuren contra a expansão do aeroporto de Narita.

    Ando reunindo umas compilações desde umas filmagens da década de 50 até ações recentes. Um dia de repente mando uma narrativa de que como \”surgiu\” a Liga Zen Nihon Gakusei Jichikai Sō Rengō (Zengakuren) – algo como \”Liga de japoneses pelo auto governo jovem\”. Tenho achado interessante descobrir que Zengakuren é muito diferente de geração pra geração do pós-guerra até então. Há \”ondas Zengakuren\” no Japão, não exatamente uma organização fixada numa frente de alianças… Um certo contexto de aliança fascista Japão-EUA em expansão do aeroporto de Narita, por exemplo, foi responsável pela expulsão de camponeses de comunidades tradicionais ao redor, nesse vídeo. Mas houveram ondas em momentos de tratados de conciliação de cooperação militar entre Japão e EUA que mantiveram bases militares de ocupação do exército norte americano no Norte (com o argumento do avanço comunista da Coreia) e no arquipélago do Sul (mantendo as tensões com Vietnã, China, Filipinas…), levando essa característica mais auto dita como liga, entre 1948 até grandes ondas de manifestações aos longo das décadas de, 1960, 1870 e 1980. Ainda que a sigla aponte um certo \”auto-título\” de \”estudantes organizados\”, acho muito difíceis as aproximações com imagens identificadas com certa classe estudantil \”anarco-comunista\”, e é verdade que haviam contextos de grupos secundaristas e universitários se reunirem para traduzir para o japonês panfletos e textos dos Panteras Negras, manuais de guerrilha latino-americanos (uns escritos do Che Guevera, por exemplo) e experiências do comunismo e lutas antifascistas na Europa.

    Mas é verdade também que o tipo \”estudante/jovem aprendiz\” japonês na sigla, pode ser lido como um tipo em ação ou uma ação em um tipo. Jovens aprendizes dos saberes e dos ofícios de uma terra devastada, explodida, rendida para a ocupação da Marinha, Força Aérea e bases terrestres norte americanas, com um imperador golpista de papinho com os altos comandos do exército norte americano. Explodiu, principalmente ao longo da década de 1960, a geração que cresceu nos territórios ocupados, fazendo racionamento de arroz, das ondas de fome no sul e no norte. O tipo \”jovem aprendiz\”, na cidade é, também, aquele que viu tudo explodir para que, inclusive o selo imperial do golpe Meiji permanecesse intacto pela presença da ocupação militar dos EUA. A juventude japonesa vivia a aliança fascista EUA-Japão acabando com os últimos territórios autônomos e independentes de povos originários e comunidades camponesas, jogando toda essa juventude para trabalhar nos novos conglomerados industriais que disputam a exportação de seda com a China (depois da instabilidade política dos primeiros ministros dos anos 60/70, vem o toyotismo que já é outra história nesse contexto…). Mas sabia que lidava com outro tipo de fascismo que aquele que foi combatido na Europa. Os círculos mais universitários do período foram atrás de como estavam os movimentos de insubordinação dos povos sendo racializados no contexto da América do Sul e América do Norte. Não se tratava de \”filiar-se a este ou aquele círculo/corrente/fração partidária\”, mas de \”fazer\” Zengakuren em cada contexto na medida em que é possível procurar juntos respostas para manter Japão (o que quer que ele seja) com seus conflitos internos sendo resolvidos sem os EUA!

    A situação das cidades industriais, hoje, está tomada por dekasseguis brasileiros que até conseguem cidadania se trabalharem 16h por dia com endereço fixo por 2 anos, e trabalhadores chineses e filipinos com vistos de trabalho de 6 meses. O Japão \”pega de volta\” os descendentes da diáspora dos povos que expulsou para a América do Sul como mão de obra barata depois de ter ocupado os territórios dos seus bisavós, avós, pais e mães com o exército norte-americano. O que mais me atravessa nessas ondas que chegaram a ter 16milões de pessoas \”fazendo\” Zengakurem nas ruas, em diferentes períodos de continuidades tanto do golpe Meiji, quanto da aliança militar Japão-EUA (o que é meio que a mesma coisa), é que Zengakuren não é uma \”experiência anarquista e comunista\” do Japão justamente porque é inegável que tenham havido circulações de saberes até mesmo sobre o manual do guerrileiro urbano do Marighella até experiências de guerrilha na Guerra Civil Espanhola e, ainda assim, seja por influências de intensas aberturas e intensos fechamentos destas populações insulares, o fato é que tudo o que nihonjin engole, nihonjin \”devolve ao contrário\”. E Zengakurem é prática local de devolver o que o mundo racista do capitalismo neoliberal merecia enchendo o saco dos territórios de camponeses ou deixando a juventude sem perspectiva nos conglomerados industriais: a revolta do perigo amarelo. 
    https://www.youtube.com/watch?v=OAPC1wI08IM

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    Zizek quando o coronavirus era um problema apenas chinês (começo de fevereiro)


    Férias em Wuhan. Há, no entanto, uma perspectiva emancipatória inesperada escondida nessa visão de pesadelo. Preciso admitir que, nos últimos dias, tenho me visto sonhando com a possibilidade de visitar Wuhan.Ruas de megalópoles semi-abandonadas não nos transmitem a imagem de um mundo sem consumismo, em paz consigo mesmo? Centros urbanos geralmente movimentados parecendo cidades fantasma, lojas de portas abertas e vazias de clientes, somente algum caminhante ou carro por aí, indivíduos com máscaras brancas. A beleza melancólica das avenidas vazias em Shanghai ou Hong Kong me recorda alguns dos filmes pós-apocalípticos antigos, como A Hora Final [de Stanley Kramer, 1959], onde se mostra uma cidade cuja população foi quase toda dizimada — sem nenhuma grande destruição; simplesmente, o mundo lá fora já não está mais à mão para nós, esperando por nós ou olhando para nós. Até as máscaras brancas na face das poucas pessoas que circulam por aí oferecem um anonimato muito bem vindo, uma libertação da pressão social pelo reconhecimento.

    Muitos devem se lembrar do famoso epílogo do Manifesto Internacional Situacionista de 1966: . “Vivre sans temps mort, jouir sans entraves” — viver sem tempo morto, curtir sem empecilhos. Se Freud e Lacan nos ensinaram algo, é que essa fórmula é a receita para o desastre — o caso de uma liminar do superego levada ao extremo, pois, como Lacan demonstrou muito bem, o superego nada mais é do que uma liminar positiva a ser desfrutada e não um ato negativo de proibição. O desejo de preencher com intenso envolvimento todos os momentos do tempo que temos, inevitavelmente, nos leva a uma monotonia sufocante. O tempo morto — aqueles momentos de retiro, que os antigos místicos chamavam de Gelassenheit, libertação — são essenciais para revitalizar a nossa experiência de vida. E, talvez, a gente possa esperar que, como consequência involuntária das quarentenas de coronavírus nas cidades chinesas, algumas pessoas passem a usar seu tempo morto para se libertar de atividades agitadas e pensar na falta de sentido de sua situação.Tenho plena consciência do perigo que enfrento ao tornar públicos esses meus pensamentos: não estaria eu me envolvendo em uma nova forma de atribuir ao sofrimento das vítimas uma visão mais profunda e autêntica, desde minha posição externa segura e, assim, legitimando cinicamente o sofrimento deles?
    https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/zizek-coronavirus-racismo-e-histeria/

    Sant\’Antônio, Sant\’Antônio

    Vou te fazer uma oração: Derrubada de governo miliciano casada com a verdadeira abolição. 

    Tônho, Tônho

    Te juro que tu fica na bacia de ponta cabeça, se não tiver tar casamento. E se não for pedir muito… Queria acrescentar só mais um elemento: Que o povo celebre esse dia, jogando o Bolsonaro no excremento 

    Amém.

  • Novas formas de sabotagem escolar no EAD

    por: Uns Mal Educados

    #relatosEad

    A pandemia do novo coronavírus forçou redes escolares ao redor de todo mundo a suspenderem suas aulas presenciais e adotarem, abruptamente, regimes de ensino à distância (EaD). Medida de emergência para manter o sistema educacional operando durante o período de isolamento, as aulas encontram uma série de obstáculos materiais – a começar pelas tantas situações em que alunos nem sequer possuem acesso à internet em suas casas.

    ​Nos polos mais desenvolvidos da educação, no entanto, os chamados AVAs (“Ambientes Virtuais de Aprendizagem”) estão longe de ser novidade, ainda que ocupassem até hoje um papel sobretudo auxiliar às atividades presenciais. Com a situação de emergência sanitária, os ambientes virtuais precisam substituir os ambientes físicos das escolas. Salas de aula dão lugar a chamadas de videoconferência, lousas se tornam streamings, carteiras e mesas são substituídas por celulares e computadores.

    A imposição emergencial do EaD acelera o processo de reestruturação produtiva no ramo da educação em curso nos últimos anos, consolidando um novo patamar. Novas empresas, metodologias de ensino, regimes de trabalho, formas de vigilância e indicadores de produtividade se assentam de vez no setor. Para os professores e demais trabalhadores da educação, essas transformações representam novas condições de exploração, mas também abrem novas possibilidades de luta1.

    E quanto aos estudantes? Para além do entrave do acesso aos sistemas online entre as famílias mais pobres, como tem agido os jovens que conseguem logar nas plataformas?

    Google precisou mudar o Hangouts Meet

    De modo geral, os softwares de videoconferência haviam sido originalmente projetados para transmitir reuniões, mas não necessariamente aulas. É o caso do Google Hangouts Meet, subitamente adotado por escolas no mundo todo. Agora suas salas de conferência hospedam milhões de salas de aula diariamente.

    Acontece que a sala de aula não é simplesmente uma estrutura física, mas um espaço permeado por relações e conflitos. As conversas paralelas, antes feitas por bilhetinhos ou sussurros entre uma carteira e outra, passam agora para os chats. Junto da matéria do curso, a sabotagem estudantil é transportada para o meio digital.

    Em 19 de março de 2020 (ainda no início do período de isolamento em boa parte dos países do ocidente), o Google divulgou uma alteração nas configurações de seu programa para contas de escolas:

    Nas contas de instituições educacionais, só o criador da reunião, o proprietário do evento da agenda ou a pessoa que configura a reunião em um dispositivo de hardware na sala pode desativar o som ou remover os participantes da videochamada. Isso garante que os alunos não poderão desativar o som de outras pessoas nem remover outros alunos ou o professor. Essa restrição automática está sendo aplicada a todas as contas de instituições educacionais desde 19 de março de 2020.2

    Se até dia 19 de março qualquer participante da aula — aluno ou professor — tinha plenos poderes para desligar microfones ou expulsar outra pessoa da sala, podemos imaginar que os primeiros dias de EaD não foram nada fáceis para as autoridades de boa parte das escolas que escolheram usar o Google Hangouts Meet. O comunicado da empresa nos dá o rastro de uma silenciosa vaga de sabotagem estudantil em larga escala.

    Wuhan: o aplicativo implora piedade

    Outro caso emblemático de sabotagem silenciosa foi registrado na China. Dada a veloz propagação do novo vírus, não houve volta às aulas em Wuhan após o Ano Novo Lunar. Mas a miragem de prolongar as férias pela quarentena foi frustrada aos estudantes chineses pelo anúncio de aulas remotas. O aplicativo DingTalk passava a ser a sala de aula de 50 milhões de crianças e jovens.

    Na noite de 11 de fevereiro, o software recebeu uma avalanche 15 mil avaliações baixas. Sua nota despencou de 4,9 a 1,4. Era um ataque coordenado dos alunos de Wuhan, apostando que se o programa tivesse nota inferior a 1,0 poderia ser banido da loja virtual de apps chinesa. Nas redes sociais, uma publicação do DingTalk implorava piedade: “eu tenho só cinco anos de idade, por favor não me matem!”3.

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    Bombardeando as aulas no Zoom

    Em 30 de março, o FBI emitiu um comunicado alertando sobre casos de “zoom-bombing” (“bombardeio de Zoom”) nos EUA4. Ao lado doHangouts Meet, o Zoom foi um dos aplicativos de videoconferência mais adotados por escolas desde o início da pandemia — saltando de 10 milhões de usuários em dezembro de 2019 para 200 milhões em março de 2020. No entanto, suas brechas de segurança são mais evidentes: qualquer usuário com o link pode entrar na sala, e os links são facilmente adivinháveis5.

    Esse tipo de invasão de aula pode ser feita por qualquer um, não necessariamente estudantes, e parece especialmente convidativa para redes de extrema-direita e pornografia. Como solução simples, o Zoom orienta a exigência de senhas para o acesso, fornecidas apenas aos inscritos no curso. O fato de casos de zoom-bombing ainda assim continuarem acontecendo revela que são os próprios alunos que seguem compartilhando links e senhas entre si.

    O caso de Malissa, uma adolescente da Califórnia, ganhou destaque na imprensa. Através de sua conta do Instagram, recebia e compartilhava acessos do Zoom entre seus contatos (“só para geração Z”, avisava). Depois, postava prints da invasão no TikTok — atingindo a 732 mil visualizações e 175 mil likes. À imprensa, Malissa explicou que só fazia isso porque “estava entediada e queria aprender”6. Seu caso, porém, é apenas um dentre tantos ao redor do mundo. Um professor de uma escola particular no interior de São Paulo relata a aparição de um perfil chamado “invasão palhaça” em sua aula. Por vezes, podem ser os próprios alunos a acessar a aula de dispositivos diferentes a fim de tumultuar.

    Da zoeira à revolução proletária

    Da soneca à bagunça, os estudantes sempre colocaram entraves ao processo produtivo da escola. Se a escola surge no contexto da revolução industrial para produzir força de trabalho, a insubordinação estudantil traduz uma recusa do trabalho que dá para se formar como mercadoria força de trabalho.

    Já num tempo em que o trabalho perde sua forma, também o ensino formal parece ficar obsoleto. Na rede estadual de São Paulo, em que boa parte das escolas já cumpria um papel sobretudo de prisão — repositório de jovens, e não formação –, é natural que o EaD seja apenas uma fachada. Enquanto boa parte dos alunos sequer consegue se conectar, os 80 mil que assistem lives de EduTubers têm acesso a um chat único em tempo real, onde fazem jogos e postam todo tipo de conteúdo absurdo. Nesse caso, a sabotagem já faz parte do jogo, segue o baile. Os mais engajados, conectados e resilientes vão aprender: o mecanismo de seleção continua operando.

    Quer dizer que a rebeldia estudantil, em si, talvez não aponte para lugar nenhum. Como explicava Malissa, é só zoeira. E seu efeito imediato, boa parte das vezes, é dar dor de cabeça — dar mais trabalho — aos professores e demais funcionários da escola. Ao mesmo tempo, é por essa insubordinação que os estudantes mantêm uma margem de autonomia. Pois é justamente nesse  espaço de ação fora do controle das autoridades escolares que residem as possibilidades para um  enfrentamento político, como a onda de ocupações de escolas que atravessou o Brasil em 2015-16.

    Um tablóide espanhol noticia que dois meninos foram à casa da professora cortar os cabos de fibra ótica para impedi-la de dar aulas online7. Quem sabe numa próxima vez, se for o caso — numa greve, de repente? –, o alvo seja o servidor central da escola.

    \"rede2\"

    Fonte: www.laart.art.br

    1No Brasil, indicamos os Diários de Quarentena, série de relatos de trabalho em tempos de pandemia produzida pela Voz Rouca, boletim autônomo organizado por trabalhadores da educação privada e público. Disponíveis em: <https://passapalavra.info/2020/04/130766/>.

    2<https://support.google.com/edu/classroom/answer/9784550?hl=pt-BR>.

    3Quem observou o ataque ao DingTalk foi Wang Xiuying em London Book Review. Ver: <https://www.theverge.com/2020/3/9/21171495/wuhan-students-dingtalk-hooky-nyc-columbia-princeton-app-store-reviews> e <https://www.businessinsider.com/students-wuhan-remote-classes-dingtalk-app-store-reviews-2020-3>.

    4<https://www.fbi.gov/contact-us/field-offices/boston/news/press-releases/fbi-warns-of-teleconferencing-and-online-classroom-hijacking-during-covid-19-pandemic>.

    5But how could someone just \”drop into\” a private meeting? \”Zoom bombing is nothing more than enumerating different URL combinations in the browser,\” says Dan Desko, a cybersecurity expert from accounting firm Schneider Downs, in Columbus, Ohio. He gives an example: To find a Zoom meeting, you enter the URL Zoom.us/ plus a string of numbers, which serves as the meeting identification number (e.g., https://zoom.us/j/55555523222). Em: <https://computer.howstuffworks.com/zoom-bombing.htm>.

    6<https://www.insider.com/zoom-classes-high-school-zoombombing-crashes-as-part-of-trend-2020-4>.

    7A notícia, publicada em El Mira, tem toda cara de clickbite: uma fake news produzida para ganhar acessos <https://elmira.es/05/05/2020/dos-ninos-cortan-internet-de-la-casa-de-la-maestra-para-que-no-mande-mas-tarea/>; citamos ainda assim, pois não deixa de ser uma possibilidade que o EaD abre à imaginação.

  • Inventar brechas, saturar os controles: educação, crise da presença e imaginações tecnopolíticas

    Conversações Febris #5 – 18 de junho às 19hs

    Link para transmissão:

    para participar da sala de videoconf escreva para conspire [arroba] tramadora.net

    \”Governar o comportamento de pessoas ou máquinas exige mecanismos de controle que assegurem a ordem, contrapondo a tendência à desorganização. A chave do governo (“conduzir a conduta”) é a informação. A informação é estatística por natureza e se organiza segundo as regras da probabilidade. Conhecer os padrões de conduta do presente nos permitirá predizer e guiar as ações futuras. A informação (já não o interesse) é a “linfa vital” da ordem cibernética. Portanto, a Hipótese Cibernética já não confia na racionalidade do indivíduo (muito imperfeito, limitado, ignorante de si mesmo), nem tampouco na tendência ao equilíbrio do conjunto (e sim, o contrário), senão que trabalha na construção deliberada e consciente de um novo entorno socia: um sistema-rede de nós transparentes, em conexão e desconexão permanente, organizado em torno da gestão ótima da informação. O capitalismo cibernético. O pesadelo\” (Amador Fernández-Savater – O pesadelo de um mundo em rede).

    Quase três meses de confinamento – para alguns. Nesse pouco tempo, já vivemos uma reconfiguração tecnopolítica expressiva de nossas vidas. A expansão do teletrabalho, suas arquiteturas, disposições e ambientes atuam agora pelo regime TINA: there is no alternative. O teletrabalho nos exige provas de eficiência e sacrifício em longas jornadas como se tivéssemos que compensar o fato de que finalmente podemos ficar em casa. Estamos vendo agora, por muitos dispositivos, novas formas de medir, qualificar, avaliar – uma nova cidadania do desempenho que também é uma cidadania policial e gerencial: todos vigiam, todos denunciam, todos avaliam os “serviços” e dão sua nota, todos participam e se sentem convocados em “fazer sua parte”.

    Rapidamente as plataformas corporativas de ensino vão conformando um novo debate sobre a relação entre ensino e aprendizagem, sobre distância, conectividade, novas imagens de aprendizado, dispositivos de metrificação, organização e gestão do trabalho, avaliação e produção relacionados ao ensino. Os debates em torno das tecnologias de ensino à distância reforçam a ideia de que teremos que nos adaptar ao novo regime sociotécnico mais \”eficiente\”, mais correto e que eliminaria os desperdícios – sem dar a devida atenção para o fato de que agora chamam de desperdício o que costumávamos chamar de experiência. Os CEOS das grandes corporações de TI nos dizem que a sala de aula \”perdeu o sentido\” e que as relações educacionais podem ser muito mais eficientes dessa forma já que trata-se de produzir e fazer movimentar o \”capital humano\”. Edufactory cibernética, a redução de formas de conhecimento em \”produção e gestão de conteúdo\”.

    Estamos atordoados diante da nossa brutal incapacidade coletiva de pensar alternativas sociotécnicas que possibilitem autonomia, radicalização democrática ou uma forma de experiência que não seja a do desempenho, das muitas formas de avaliação, certificação, controle e modulação existencial. E essa paralisia é também uma crise de presença diante das novas urgências. Estamos diante de uma escolha infernal: aderir ou recusar.

    No entanto, desejamos fazer outras perguntas. É preciso abrir uma conversa epocal sobre o que significa uma aula, quais os sentidos da presença no que se refere à produção de conhecimento e os sentidos fortes da experiência que atravessam as formas de criação e de conhecimento. Qual é o papel da universidade e dos espaços de educação formal, como espaços de encontros de pensamento-luta, diante da corrosão absoluta dos sentidos democráticos que vivemos hoje? Essa corrosão se produz desde um entrelaçamento entre os novíssimos modos de extração neoliberal-cibernético com formas muito antigas de racismo neocolonial. Muito da arquitetura tecnoalgorítmica de vigilância, comando, controle, mas também de desempenho e de eficiência tem a ver com esse entrelaçamento.

    Como redesenhar a pesquisa, o ensino universitário e escolar para uma lógica da conjunção? Que arranjos acadêmicos, investigativos, pedagógicos e de convívio poderiam ativar uma fratura que permita “pular os muros” da lógica proprietária do conhecimento, mas cair longe deles? Como manter, por algo despertado na quarentena, nossa capacidade de decifrar os signos segundo o desejo, liberando espaço para a vibração do desejo-pesquisa, desejo-educação, desejo-arte, desejo-luta?

    Contra-pedagogias da encruzilhada: Não uma recusa técnica, mas uma tecnopolítica que sustente formas de existência não-fascistas, não-binárias, emaranhadas. Como pensar a corrosão democrática a partir da aposta na disputa dos regimes de conhecimento – as disputas em relação à ciência, os saberes menores e não autorizados, as ontoepistemologias dos saberes das lutas que possam reconfigurar nossas arquiteturas e espaços de conhecimento?

    Como escapar das escolhas infernais?

    Para essa #5 Conversações Febris, dia 18 de junho as 19hs, sugerimos também algumas leituras pra inspirar essa conversa.

    Link para transmissão:

    para participar da sala de videoconf escreva para conspire [arroba] tramadora.net

    Luiz Rufino Rodrigues Junior, Pedagogias das encruzilhadas, Revista Periferia, v.10, n.1, p. 71 – 88, Jan./Jun. 2018. https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/periferia/article/view/31504/

    Antonio Lafuente: Elogio à sensorialidade da Cultura: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/elogio-a-sensorialidade-da-cultura/

    PARRA, H.Z.M.; CRUZ,L.; AMIEL, T.; MACHADO,J. Infraestruturas, Economia e Política Informacional: o Caso do Google Suite For Education. MEDIAÇÕES, Londrina, v. 23 n. 1, p. 63-99, Jan./un. 2018. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/32320/pdf

    Gigantes da tecnologia estão usando esta crise para colonizar o Estado: https://jacobin.com.br/2020/05/gigantes-da-tecnologia-estao-usando-esta-crise-para-colonizar-o-estado/

    Naomi Klein, Coronavírus pode construir uma distopia tecnológica: https://theintercept.com/2020/05/13/coronavirus-governador-nova-york-bilionarios-vigilancia/

    Giorgio Agamben: Réquiem para os estudantes: https://n-1edicoes.org/082

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  • Relatos febris do trabalho em saúde

    Vidas indignas de imunização

    por Danilo Pescarmona

    Início este texto com uma pequena vinheta de minha prática como psicólogo em um serviço público de Saúde Mental, destinado a pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas.

    Em meados de março deste ano, nos dirigimos à residência de um usuário – localizada em uma comunidade da Zona Oeste de São Paulo – que, na noite anterior, havia ficado um pouco mais agitado e agressivo com os familiares, em função de um possível quadro de abstinência de drogas. Em tempos de pandemia, as visitas domiciliares se tornaram mais frequentes com o objetivo de tentar diminuir a circulação de pessoas que se deslocariam até o serviço.

    Após o atendimento, o pai deste usuário – que aqui chamarei de I. – nos acompanha até o transporte próprio do serviço. Era notório a presença de inúmeras pessoas nas ruas da comunidade e sem a utilização de máscaras, tal como se fosse em um dia corriqueiro e como se desconsiderassem a determinação das autoridades políticas e sanitárias em relação a obrigatoriedade do isolamento social. Ao ver tal panorama, orientei I. sobre a importância do uso de máscaras e de álcool em gel. Ele, então, me responde: “pobre não pode pegar isso aí não, essa doença é coisa de rico”.

    Agora, vamos colocar esta situação em suspensão para retornarmos a ela em breve.

    Diante do atual momento que estamos atravessando, referente a pandemia do coronavírus, muito tem se falado. Por exemplo, de um lado, uma série de pensadores tem afirmado que o vírus abre um leque de possibilidades que poderiam romper as bases do atual modelo de governo da vida entregue ao capital que, a cada momento que passa, é mais acumulador, segregatório e violento com a imensa maioria da população que está na base social. Para estes, inclusive, o vírus é um produto deste mesmo capitalismo que, com seu funcionamento, tem provocado uma série de disfuncionalidades nos diferentes ecossistemas e que coloca em risco a existência da vida no planeta. O vírus possibilitaria, então, a reflexão sobre o modo como a condução de nossa vida está equivocado, abrindo um campo para o esboço de um novo mundo.

    Há aqueles que, em contrapartida, inserem a pandemia no contexto das crises cíclicas do capital. Por esta razão, o atual sistema econômico se fortaleceria ainda mais, produzindo uma acumulação nunca vista antes e expondo uma quantidade gigantesca de pessoas a morte; indicando, acima de tudo, a lógica de plasticidade contínua do capitalismo atual. 

    Mais do que isso, o vírus delinearia um novo modelo de gestão de trabalho – com a comodidade do home oficce, ele poderia ser estendido por mais tempo e com menores salários. Além disso, a pandemia sofisticaria as formas de controle em função da condição ainda mais premente da utilização de aparatos tecnológicos, a fim de dar conta de diversas necessidades da vida, atualmente prejudicadas pelo isolamento social. Encontros de amigos, reuniões universitárias, entre outros eventos, virariam dados, no fim das contas, facilmente disponibilizados às grandes corporações tecnológicas.

    No contexto brasileiro, especificamente, a situação parece ainda mais agravante. A quarentena é posta em segundo plano entre os mais pobres devido à luta cotidiana pela sobrevivência. Entregadores de delivery, empregadas domésticas, porteiros, seguranças e outros trabalhadores de baixa renda não têm escolha. As suas dívidas mensais – aluguéis, boletos, carnês – não serão postos em quarentena em hipótese alguma.

    A saúde pública é também um caso à parte. Sucateada há muitos anos, principalmente pelo problema histórico de financiamento, agora ela está prestes a colapsar. Insuficiência de leitos e de equipamentos – dos básicos aos mais avançados – impõem aos que estão na linha de frente (inclusive eu) um contexto de medo e de adoecimento. Colocaria, acima de tudo, o dilema que diz respeito a quem deveria ter o direito de acesso aos serviços de saúde

    Neste contexto, é falsa a ideia de que o vírus pode causar os mesmos males a todos, ou mesmo que o vírus poderia infectar a todos independentemente de quem seja. É evidente que os mais pobres serão os mais atingidos. Negros, mulheres e outras minorias receberiam de modo mais severo as consequências ainda desconhecidas do vírus. Muitos deles estarão nas estatísticas oficiais; outros, em contraposição, sequer poderão ter esta informação em seus atestados de óbitos. Serão “subnotificados”, o novo termo para designar o silenciamento de violências historicamente praticadas a determinados grupos no interior da realidade brasileira. A morte por Covid-19, acima de tudo, é um acontecimento político e as dezenas de milhares de valas abertas não nos permitirão o esquecimento!

    O coronavírus poderia então levar a biopolítica brasileira as suas últimas consequências. Esta é a modalidade do poder, definida por Foucault, capaz tanto de permitir a proliferação e a defesa da vida, quanto pela possibilidade de dizimá-la em massa. Ou como disse recentemente o dono de uma cafona – metida a gourmet – rede de lanchonetes, cuja especialidade gastronômica é pão com carne moída, o impacto causado pela morte de milhares seria mínimo se, em troca, pudéssemos salvar outros milhares, a economia e os empregos.  

    O que faz de uma vida ter o direito de continuar vivendo em detrimento de uma outra que poderia ser abandonada a própria morte, indigna de ser vivida? Para Roberto Esposito (2017), o paradigma da imunização responderia a questão acima delineada. Em linhas gerais, a imunização diz respeito à indissociável relação entre política e vida, sendo a política toda ação disposta quando o que está em questão é a conservação da vida mediante aquisição de mecanismos de defesa. Tal como na lógica médica busca-se a imunização de um corpo a partir da inserção do agente patológico que pode ameaçá-lo para que desta forma seja viável a sua proteção com a aquisição de mecanismos de defesa, a fim de que seja evitado o seu desenvolvimento natural.

    Ainda para o filósofo italiano, este paradigma é concomitante ao momento histórico em que a vida precisou passar por processos de individuação em contraposição a uma vida comunitária exposta a uma diversidade de riscos. Um destes dispositivos de individuação é a propriedade[1]. Sumariamente, é pela posse – de seu corpo, de suas atividades, de seu trabalho, de seus bens – que o sujeito se constitui, necessitando, desse modo que sua vida e tudo aquilo que o cerca sejam passíveis de proteção, de imunização. Em outras palavras, a propriedade é a possibilidade do homem dispor das coisas que são necessárias para a preservação da sua vida.

    Por esta razão é que os não proprietários são aqueles que terão suas vidas mais expostas a morte. I., morador da periferia, sabe que não pode pegar a Covid-19, pois sua vida e a de seus vizinhos são indignas de imunização. Adquirir a doença é correr o risco da morte, mas também de criar anticorpos, de se defender. Mas “isso é coisa de rico”. Já I. sabe que não terá tempo nem meios de acesso aos serviços de saúde, medicamentos e seu corpo estará indefeso, entregue à morte.

    I. sabe o que é biopolítica.

    ESPOSITO, R.Bios: biopolítica e filosofia. Tradução de Wander Melo Miranda. 1ª edição, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.

    [1] Os outros são a soberania e a liberdade que, para este especificamente, não serão categorias de análise.


    tempestades no trabalho em saúde em tempos de covid-19

    por Henrique Ribeiro

    Me pego durante a noite no recolhimento de onde moro, agitado, pesquisando em meu smartphone o que seria uma \”citocina\”. Durante o dia enquanto estava na UBS ( unidade básica de saúde) onde trabalho assistia de relance o noticiário vespertino televisivo sobre o coronavírus quando um dos convidados do programa menciona a palavra citocina e a elenca como uma agente importante no processo da doença ocasionado pelo vírus. O convidado era um infectologista que buscou resumidamente explicar a motivação de falarmos sobre um grupo de risco. Existem diversos tipos de citocinas com funções variadas sendo papel delas atuar na regulação do mecanismo inflamatório infeccioso do organismo.

    Há um momento pró-inflamatório em que se busca destruir moléculas maléficas, no caso as do vírus, e com antiinflamatório busca-se controlar a resposta da defesa imunológica para que esta não acarrete mais malefícios do que benefícios ao corpo humano. Pois bem, não apenas em infecções se encontram as inflamações e as citocinas. Doenças como hipertensão, diabetes mellitus dentre outras de caráter crônico são influenciadas pelo mecanismo citocínico apresentando um desequilíbrio entre as respostas anti e pró. Na medida em que envelhecemos esse processo também ocorre levando a uma gradual deterioração imunológica.

    Aprendi com a breve leitura de notícias e com a fala do infectologista que a COVID-19, ao que aponta os estudos iniciais, é uma doença provocadora, em casos graves, de uma “tempestade citocínica” na qual a ação pró-inflamatória do organismo é muito mais forte do que a fornece a anti-inflamatória levando o corpo a uma síndrome respiratória. Ou seja, a trama do agente viral é causar um adoecimento pela própria defesa de nossos corpos. Dessa forma, aqueles classificados como \”grupo de risco\” podem apresentar maior suscetibilidade ao agravamento da doença uma vez que já apresentam uma relação citocínica desequilibrada.

    Volto a mim analisando o que pesquisei. A noite me parece mais tranquila pós leitura. Sei bem que em meus pensamentos não compreender ou estranhar situações e coisas me causam um mal estar. Na UBS em que trabalho cada um procura ou já exercita seus procedimentos para atenuar os impactos da pandemia em sua sanidade. Ignorar ou manter no inconsciente é uma alternativa, mas nas conversas atuais se percebe uma inclinação generalizada a buscar terapias senão agora, para o pós crise. O abalo emocional existe e se demonstra mais nítido na possibilidade dos profissionais de saúde transmitirem a doença aos familiares.

    A culpa se instaura mesmo não havendo um contágio (será que sou um caso assintomático?) agindo como uma pré indicativo de doença. Então o não contaminado está/é doente? Essa classificação típica da biomedicina mantém uma relação estreita com o que os estudos de inspiração foucaultianos nos apresentam conceitualmente como biopolítica, biopoder e governamentalidade. Nesse sentido o poder biomédico agencia nossos hábitos mantendo uma relação estreita com a economia sendo também base para formas de se viver e sentir. Ocorreu com a pandemia uma intensificação na disseminação de vídeos e mensagens com fórmulas e ingredientes para se manter a higienização e dieta alimentar preventiva ao adoecimento. O coronavírus fornece novos contornos a um processo de assujeitamento e subjetivação do qual me atentarei aos efeitos para com os trabalhadores na área da saúde sendo também abordado a reestruturação produtiva em saúde ocasionada por ela, em particular, ao que ocorre na UBS em que trabalho.  

    No que se refere a tecnopolíticas, na distinção entre tecnologias duras e relacionais dentro do arranjo sociotécnico da UBS, a COVID-19 levou a uma reestruturação produtiva uma vez que parte da força de trabalho integrante se encontra no grupo de risco e puderam se afastar do ambiente de trabalho via decreto municipal. Àqueles que se mantiveram se depararam em uma situação em que as divisões e protocolos existentes foram modificados. As consultas eletivas foram canceladas, consultórios foram repassados à ala do Pronto Atendimento na tentativa de minimização de contágio interno, as visitas domiciliares ( de suma importância na vinculação entre usuário e UBS, assim como no acompanhamento do processo saúde/doença)  de agentes comunitários foram, via decreto municipal, canceladas (em outras cidades não foram) e a campanha vacinal de influenza antecipada para ajudar na identificação de casos de coronavírus.

    Aconteceu do gerente da UBS estar de férias, por conta disso, a assistente de gestão pública da unidade assumiu a função. Dois dos cinco enfermeiros chefes se afastaram via decreto. Somente um auxiliar de enfermagem permaneceu. Dada a situação, as divisões de equipes em microáreas dentro do território se tornaram disfuncionais, os compromissos com a secretaria de saúde temporariamente modificados. Compromissos, como por exemplo, a suspensão temporária dos grupos (de insulino dependentes, de gestantes, de apoio ao cuidador dentre outros) com reuniões mensais dos usuários da UBS em que se trabalha a educação em saúde. Revogou-se a obrigatoriedade de assinar as retiradas de materiais de insumo pelo usuário da UBS sendo agora somente necessário que o trabalhador escreva no espaço indicado \”COVID-19\”. Em consonância a esse movimento a descrição do mapa diário do ACS e a do enfermeiro da família estão sendo respaldadas através do código “COVID-19”. Dessa forma, uma resposta a um email advindo da regional de saúde cobrando dados sobre um determinado trabalho se justifica, no limite, com o termo “COVID-19”.

    Os protocolos, os referenciais técnicos e administrativos e de igual forma os usuários são os instrumentais que fazem funcionar a UBS, sem estes os trabalhadores em saúde não realizam a produção em saúde. No referencial macropolítico a OMS e os Estados nacionais seguem mantendo uma relação com momentos, ora conflituosos, ora consonantes. Aos profissionais de saúde e no caso observado também servidores públicos municipais, o referencial medicinal misturado às preferências políticas partidárias e político ideológicas intensificou um clima de tensão e atrito. A não conformidade entre o executivo estadual e federal só piora.

    Para alguns, a eminente desestabilização dos sistemas de saúde prenunciava o estado de calamidade pública, para outros a situação geraria apenas polêmicas em torno do poder executivo, contudo sem força pois agora a pátria amada \”descontaminada da corrupção\” aguentaria tranquilamente uma gripezinha. Somados a situação inicial em que não se encontravam na rede EPI suficientes aos funcionários, começamos a questionar não se estávamos preparados (a sensação é que não estávamos) e o que deveríamos fazer para minimizar os danos.

    A movimentação de prevenção em saúde se tornou prevenção em UTI (não há respiradores suficientes): a governamentalidade aceita determinada quantidade de mortes com o condicional de minimizar os impactos na economia e esse discurso está reverberando sendo a vontade de muitos que se retome a “normalidade” mesmo se a situação pandêmica não evidenciar melhora. Além disso a não adoção de parte da população ao distanciamento social voluntário coloca os trabalhadores em saúde, e os da UBS, a questionar sua função na estrutura. Do que adianta a energia e esforços dispensados se o pacto não está sendo cumprido por todos?

    Há ainda um sentimento extremamente perverso que faz com que os trabalhadores em saúde não afastados experimentem algo próximo de um sentimento de inveja em relação aos que estão afastados, pois estes últimos não vivenciam, pelo mesmo não da mesma forma, a situação pandêmica. Uma inveja que leva uma pessoa a desejar ter uma doença crônica para ser encaixando no grupo de risco e não ficar na linha de frente. Por outro lado, quando um servidor portador de doença crônica se afasta contribui para uma sobrecarga daqueles que permanecerão – então serei eu, nesse momento tão crítico, que “abandonará” o meu companheiro de profissão?

    Uma outra situação contribui ao caldeirão de emoções experimentados pelos trabalhadores em saúde e está ligada ao ministério da saúde. Uma convocatória para cadastramento em um banco de dados na qual os profissionais se alistam e se sujeitam a serem chamados, se necessários, a trabalhar diretamente ao órgão onde quer que seja dentro do território brasileiro. Há um misto de sensações entre os que estão contrariados e os que aceitam o chamamento. A responsabilidade pública ligada a solidariedade social está misturada ao identitarismo nacional. Considerações como se de fato vale a pena se separar dos familiares para ir trabalhar para este governo e, por outro lado, os que se sensibilizam com o nacionalismo sentem que negar um chamamento nessa situação seria negar a pátria.                              

    Por fim, observando a micropolítica e me atentando a UBS anteriormente referenciada, os referenciais em abalo e o afastamento de parte de corpo técnico e administrativo levou a uma situação em que a construção interna se efetivou com novos pactos. De certa forma a justificativa “COVID-19” possibilitou uma abertura a uma prática em saúde coletiva mais livre. Aos que adotam a estratégia saúde da família, a vinculação com a população está sendo maior assim como a perpetuação das novas regras e condicionalidades necessárias, respeitando evidentemente o princípio da universalidade e solidariedade social. Foi nítido também a dificuldade daqueles que não possuem acompanhamento via Saúde da Família em entenderam as modificações para a ala de emergência e da cobertura vacinal. Passada as primeiras semanas e a comprovação da efetividade das medidas, a sensação coletiva que fica (diferente da inicial) é a de que podemos lidar com a pandemia apesar dos referenciais técnicos e administrativos. Para além do que a governamentalidade possa assujeitar e, no limite da situação, aceitar muitas mortes, existem aqueles dentre os trabalhadores da saúde que recusam essa lógica e isso tende a se tornar mais nítido. A morte faz parte da nossa vivência. Tem lógica e significado sendo sentida de diversas formas por cada um, mas àquela justificada pela razão de “o país não pode parar”…essa não se justifica.       

  • Experimentos práticos para presença e alegria em reuniões virtuais com verdades fictícias

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    De: Conrado Federici e Marina Guzzo*

    \”A alegria é a única afecção passiva que aumenta nossa potência de agir; e só a alegria pode ser uma afecção ativa. Reconhecemos o escravo por suas paixões tristes, e o homem livre por suas alegrias, passivas e ativas. O sentido da alegria aparece como sendo o sentido propriamente ético“ (Deleuze, 2017 p. 188)

    Como se manter alegre em meio à pandemia?

    Como se manter presente, ativo em lives e reuniões virtuais?

    Escrevemos esse texto como uma série de experimentos para serem lidos e performados.

    Juntos e separados.

    Em qualquer ordem.

    Alegrias inventadas para tempos de imposições tristes.

    Uma crítica à situação que nos coloca a pandemia em forma de brincadeira.

    Coreografia em pequenas telas retangulares.

    Tentativa de fazer roda, de circular a palavra e o sentido.

    Em meio à tantas perdas, como re-inventar rituais?

    Como criar presenças em reuniões tecno-mediadas?

    Que verdades fictícias são possíveis no mundo do zoom/jitsi/meet?

    A alegria, aquela que nos apresenta Espinoza, será nossa ética para resistir?

    A pandemia arremessou de volta uma parcela da população de cara para si mesma, em casa e, como se não bastasse, vem provocando proliferações de diferentes ordens: das negações, das lives, das reuniões virtuais.Estantes de livros fake são vendidas para servir de fundo de tela.

    É possível participar de uma aula e ao mesmo tempo, lavar a louça?

    Para a maioria, habitar e trabalhar parecem ser verbos inconjugáveis com a nova normalidade que começa a brotar, ainda que provisoriamente.

    Esta coincidência entre aqueletrabalhodeforagoraexecutadoaquidentro ainda encontra no sujeito, em seu corpo individual, seu lugar de amálgama, na medida em que as fronteiras do privado continuam sendo diuturnamente violentadas. O trabalho procura pela casa o local mais adequado, controlado, calmo, protegido, livre de interferências, cool, apresentável, capaz de sustentar uma “boa conexão”.

    Não o encontra, mas insiste. Fechar a câmera, o áudio, o coração?

    A escolha deste ambiente ideal revela o absurdo, o ridículo de todos nós. O fracasso das reuniões de trabalho já emoldurava toda a produtividade esperada e, agora, é transmitido ao vivo pelos aplicativos de encontros virtuais.

    Pretender que a presença aconteça independentemente dos recursos disponíveis para a mediação dos encontros (computador, tablet, celular, chamada telefônica) tem sido um jogo perdido. Sempre foi. O que resta de atenção é empurrado para a corda bamba e obrigado a buscar aquela experiência da “reunião” que a memória ainda guarda. Tarefa desesperadora ou risível.

    \”A alegria é na realidade resultado de encontros alegres com outros, encontros que aumentam nossos poderes, e da instituição desses encontros de tal maneira que perdurem e se repitam\” (Negri& Hardt,2016, p.415)

    Entende-se por presença a capacidade movida pelo desejo de se estar simultaneamente no mesmo tempo e espaço em que se está. No presente, com atenção e vontade. A presença virtual ainda é uma novidade tão plana quanto a tela. O encontro com pessoas daí resultante não tem densidade pois, ao serem desligados microfones e câmeras para o bem da conexão possível, os interlocutores perdem os retornos dos sinais que regulam as trocas humanas. Fisionomias, gestos, murmúrios e suspiros precisam ser silenciados para que algum entendimento seja estabelecido. A comunicação será necessariamente precária, mas custa-se a aceitar.

    As necessidades de encontro humano nesta fase de distanciamento forçado parecem clamar por um cuidado especial com os próprios dispositivos tecnológicos de acoplamento e dispersão. A multiplicidade de sensíveis em jogo exige um tempo para a sua compreensão e degustação. Exige um tempo. Abandonado e despretensioso.

    A flexibilidade das crianças nos indica as pistas de um importante gesto a ser feito nesta época de suspensão e reavaliação dos rumos da humanidade: brincar.

    Os experimentos são tentativas de explorar essa situação e o dispositivo que nos circunda. Brincar e inventar presenças possíveis. Criar rituais de partilha.

    (pressupõe-se de antemão que os resultados oscilarão entre a completa ficção e os múltiplos olhares sobre a realidade. Não importa se você irá inventar ou se basear na verdade).

    01.

    Experimento para respirar junto

    1- Pedir para todos os participantes da sala virtual abrirem seus microfones

    2- Sentar-se em uma posição confortável com a coluna ereta

    3- Fechar os olhos

    4- respirar juntos e ouvir o som ao redor. Todos os sons.

    5- Ficar assim por 5 minutos

    6- Aceitar e lidar

    02.

    Experimento para descontração

    (tela do computador em “modo arena”, onde aparecem todos os quadrinhos simultaneamente)

    Todos com microfones ligados começam suas declarações de bom dia, boas-vindas, narrativas e banalidades pessoais, enfim, as coisas possíveis e importantes de serem ditas publicamente..) falando prolificamente, sem parar.

    0- Aleatoriamente, cada um na sua, congela e volta, variando sempre a posição do congelamento;

    1- Se um congela, todos congelam, se um retorna todos retornam;

    2- Um de cada vez vai congelando até todos pararem e a tela ficar imóvel, e depois desfaz, um de cada vez vai descongelando, até retornarem ao caos.

    Procurar um estado de presença para uma equalização mínima da escuta para o encontro coletivo

    O3.

    Experimento para (re)conhecer a casa território

    1- Use um dispositivo que você possa mover durante a reunião

    2- Conecte-se em um lugar, escolhendo uma imagem ao fundo.

    3- Desconecte-se e mude de lugar na sua casa/confinamento sem avisar o grupo

    4- Conecte-se novamente e permita que a nova imagem de fundo seja vista pelo grupo.

    5- Crie pequenos textos sobre o que vê das imagens e das casas imaginadas dos outros participantes.

    6- Compartilhe no espaço do chat.

    04.

    Experimento para um gesto poético de presença coletiva virtual

    1- Atente-se para si mesmo, neste exato momento. Perceba-se. Descreva a sensação dominante, qualificando-a, e em seguida, polvilhe características cinestésicas, como dores, cansaços localizados, resíduos de excessos corporais, prazeres, banhos de sol e lua. Vale desejos também!t

    2- Atente-se para o lugar onde você está neste exato momento. Perceba-o. Descreva-o e como você se sente em relação a ele. Destaque (ou invente) um aspecto invisível, uma marca inesquecível deste espaço em que você se encontra agora.

    3- Atente-se para uma outra pessoa deste grupo. Descreva aquilo que te impressiona, que chama a sua atenção concretamente. Imagine a continuação do contexto que extrapola o enquadre que você é capaz de apreender na sua tela. Faça perguntas.

    4- Por fim, proponha uma ação simples para o coletivo. Um verbo.

    5- Envie seu texto para uma pessoa do grupo por mensagem privada (algumas salas virtuais dispõem deste recurso)

    6- Leia em voz alta para o grupo a mensagem que você recebeu.

    (Garanta que todos os escritos sejam lidos)

    05.

    Experimento para crianças pequenas em atividades escolares

    -Perceba a criança em frente ao dispositivo: o que chama a atenção dela? Tente perceber por quê. Descreva para si com precisão aquilo que a desperta

    -Reconheça a importância de todas as coisas que acionam a criança em uma reunião virtual

    -Permita-se acompanhá-la na invenção do roteiro do encontro que emerge da relação com a(s) outra(s) pessoa(s)

    -Não diga como ou o que a criança deve falar ou responder quando perguntada

    -Traduza somente o imprescindível

    -Perceba o interesse pelos detalhes dos planos de fundo e ambiência sonora, às vezes, mais do que a professora ou assuntos principais do encontro

    -Programe reuniões curtas e ritualize os encontros, dando os contornos suficientes para que o novo hábito se instaure com conforto

    -Reconheça que os encontros podem se tornar chatos

    -Admita o caráter precário e paliativo, e a importância da manutenção do vínculo, acolhendo o que todos trazem, caótica ou organizadamente

    -Converse com a criança sobre o que mais gostou e sobre o que não foi bom

    -Planeje o próximo encontro junto com a criança, valorizando suas sugestões

    06.

    Experimento para vídeo-dança

    1- Todos os participantes abrem suas câmeras

    2- Colocar modo \”exibição de todos na tela\”

    3- Olhar para sua posição no quadro geral

    4- Colocar uma música dançante

    5- Movimentar-se dentro do pequeno quadrado que sua câmera projeta

    6- levantar e dançar por 30 segundos, e deixar de olhar para tela

    7- gravar esse momento para poder assistir depois.

    07.

    Experimento para intervalo (real ou fictício) de reunião

    -Informe que precisará fazer uma pausa (real), desligue a câmera, o microfone e fique observando/ouvindo;

    -Informe que precisará fazer uma pausa (fictícia), desligue a câmera e esqueça propositalmente o microfone ligado: simule a sonoplastia de uma ida ao banheiro e assista a reação do grupo. Retorne e prossiga a reunião com normalidade;

    -Proponha um intervalo (real e fictício) para a reunião e envie mensagens de trabalho e/ou pessoais pelo Whatsapp dos participantes durante a pausa;

    -Forge uma pausa sem sair da reunião, participando com atraso nas respostas, falando sem voz, dublando outra pessoa, congelando em expressões absurdas.

    Sustente cada uma das ações até ser flagrada(o).

    08.

    Experimento para revigorar

    Presença e espaço – percurso da atenção até a interface pele/coisa (o contato) e de volta

    (com olhos fechados é melhor)

    (tela do computador em “modo arena”, onde aparecem todos os quadrinhos simultaneamente)

    1.desencostar

    2.espreguiçar

    3.esticar

    4.torcer

    5.(torcer e) desviar

    6.superar

    7.alcançar

    8.tocar

    9.segurar

    10.sentir

    a. reconhecer como você é fisicamente diferente (tamanho, peso, textura, calor, cheiro, gosto, vida) da coisa (é MUITO FÁCIL?)

    b. reconhecer o que haveria de semelhança entre você e as características concretas da coisa (é MUITO DIFÍCIL?)

    c. mimetizar a coisa primeiro com o corpo todo e depois somente com a musculatura facial

    d. (para quem quiser e tiver energia criativa sobrando…) – inventar metaforicamente as relações de semelhança experimentadas nos movimentos, narrando as sensações ao coletivo

    09.

    Experimento para as passagens

    *da vida

    Para acompanhar o parto da amiga

    -faça uma sala virtual só com mulheres

    -peça para as participantes abrirem suas câmeras

    -olhem-se e sorriam em silêncio

    -acendam uma vela para a passagem

    *da morte

    Para o funeral de alguém querido

    • peça para os participantes abrirem as câmeras e fecharem os microfones.
    • chorem juntos em silêncio
    • acendam uma vela para iluminar a passagem

    10.

    Experimento para catarse coletiva

    (sugestão que seja no final da reunião)

    • abram todos os microfones
    • Berrem juntos, bem alto (#foraBolsonaro)

    Perceba que todo experimento não passa de um jogo para você mesmo perceber como inventar seus próprios roteiros de criação. Seus rituais de presença. De roteiros. Singulares.

    Para lidarmos com as nossas realidades. Virtuais. Verdadeiramente.

    Desde que vos tornastes novamente alegres! Em verdade, todos vós desabrochastes: parece-me que flores como vós necessitam de novas festas” (Nietzsche, 2003, p. 300).

    REFERÊNCIAS

    Deleuze, Gilles. Espinosa e o Problema da Expressão. São Paulo: Ed. 34, 2017.

    Hardt, Michael e Negri, Antonio. Bem-estar comum. Rio de Janeiro: Record, 2016.

    Nietzsche, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Editora Martin. Claret, 2003. ( Coleção A obra-prima de cada autor, v. 22 ).

    *Conrado Federici

    Professor Adjunto da Unifesp no Campus Baixada Santista, Coordenador do Laboratório Corpo e Arte e palhaço

    *Marina Guzzo

    Professora Adjunta da Unifesp no Campus Baixada Santista, pesquisadora do Laboratório Corpo e Arte e artista-coordenadora do Núcleo Indisciplinar de Dança – N(i)D.

    Veja também o artigo Partilhas sensíveis e essenciais em tempos pandêmicos [ou quando poderemos novamente ir ao teatro sem medo?], de Marina Guzzo: https://n-1edicoes.org/062