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  • Saúde coletiva e tecnopolíticas do comum

    Henrique Z.M. Parra

     

    texto apresentado no 12° Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, no Rio de Janeiro, 27 de julho de 2018 (*)

     

    Foto: George Magaraia

     

    Recebi o convite para participar do Congresso da Abrasco como uma boa oportunidade para compartilhar com vocês alguns problemas que venho investigando no campo dos estudos sociais em ciência e tecnologia. Não sou da área da saúde e nem tenho a saúde como um tema/objeto específico de trabalho. No entanto, penso que este encontro é o início de um novo diálogo e de parcerias de trabalho. Em parte porque acredito que estamos enfrentando problemas semelhantes (na educação, na ciência e no desenvolvimento tecnológico), mas também porque na área da saúde muitos dos problemas que vamos tratar aqui adquirem uma convergência e interdependência muito densa.

    Mas também, outra razão que me aproxima das preocupações da Abrasco é a possibilidade de tomarmos a Saúde como um Comum e aí, problematizarmos quais poderiam ser as estratégias, ações, normas, protocolos, infraestruturas que dão forma à instituição (no sentido de ação instituinte) da Saúde como um Comum.

    Quais seriam as formas desses direitos e institucionalidades que dariam existência e sustentação à Saúde como um Comum? Como resistir, portanto, às dinâmicas neoliberais (micro, meso e macropolítica)? Essa é uma grande pergunta que dá forma a um exaustivo programa de pesquisa e de práticas.

    Mais especificamente, sob o guarda-chuva dessa ampla questão, tenho investigando algumas experiências (que denominamos de laboratórios cidadãos ou laboratórios de prototipado) onde este problema é enfrentado com recortes muito limitados. O que me interessa nessas experiências é a forma de enfrentamento dessas questões. Nos laboratórios constitui-se uma comunidade de afetados (ou uma comunidade de atores co-implicados) em torno de um problema que emerge diante da ameaça de destruição de um comum. Em seguida, o problema é investigado, adensado pelas distintas perspectivas (saberes incorporados e situados) dos atores, através de um esforço de criação de um protótipo, um artefato ou um dispositivo que contribua para dar um melhor entendimento e tangibilidade sobre os mecanismos de produção e sustentação deste Comum ameaçado.

    E no âmbito dessas iniciativas, o meu interesse é mais especificamente por aquelas experiências que estão envolvidas com a criação de arranjos sociotécnicos orientados para a produção do Comum. Dito de outra forma, “tecnopolíticas do comum”.

    Sinteticamente, o argumento da minha exposição será a seguinte:

    1. Caraterização de uma experiência política de assombro: não só no Brasil, mas em diversos países, experienciamos uma profunda crise institucional e das políticas sociais. Há um acelerado desmanche dos direitos sociais e o fortalecimento de um Estado-Empresa onde o público-estatal é cada vez mais indistinto do privado-corporativo. A lei, as instituições, os canais de representação parecem insuficientes para responder à atual configuração dos conflitos de uma perspectiva democrática (falamos agora em democracia autoritária, democracia securitária, normalização do estado de exceção, entre outros…).

    2. Dentro deste processo interesso-me por uma dinâmica de deslizamento nos mecanismos de exércicio do poder e nas formas de orientação da ação social, que se deslocam de uma orientação por valores, normas e leis, para uma forma de determinação/orientação que podemos denominar “tecnopolítica”. São as técnicas, protocolos, infraestruturas, procedimentos, tecnologias diversas através das quais conduzimos nosso cotidiano e se realizamos, de forma imanente, as formas de vida que elas propagam.

    3. Investigar a maneira como alguns arranjos sociotécnicos (dispositivos, aparatos e tecnologias utilizadas por humanos) participam da mudança social e abordam o problema da escalabilidade de outra forma. Um desafio que temos (na educação, saúde etc) quando pensamos numa política pública é o de encontrar formas de transpor uma iniciativa de pequena escala para uma outra escala. Todavia, ao invés de pensar em como transpor escalas (do micro para o macropolítico), assumo um caminho alternativo: como pequenos dispositivos através da recursividade e reticulação vão constituindo longos arranjos sociotécnicos.

    Ao pensar a produção do Comum por essa perspectiva, minha hipótese é que podemos encontrar estratégias complementares de luta e de instituição de novas formas de vida.

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    O Comum, no sentido que estamos utilizando aqui (e inspiro-me sobretudo no trabalho de Antonio Lafuente), diz respeito à algo que é sempre produzido entre todos. Atualmente, são muitos os sentidos que podem ser atribuídos ao Comum e há uma vasta literatura sobre isso (link para uma apresentação onde discorro especificamente sobre este tema).

    O ar que respiramos, a cultura, a experiência de urbanidade, o cuidado na reprodução da vida, a escuridão da noite que permite ver as estrelas, o conhecimento, a saúde são possíveis exemplos desse Comum.

    Frequentemente este Comum só emerge, só aparece quando ele se encontra ameaçado. Quando o ar que respiramos se torna poluído, um Comum (a qualidade e portanto a participação do ar em nossa saúde) foi destruído por formas de uso que o degrada. Em termos econômicos, formas de uso e apropriação exclusiva que externalizam os efeitos de sua utilização. O Comum tem portanto uma dimensão não codificada, não formalizada, não essencialista, tácita e relacional, mas que é fundamental à produção e sustenção da vida. Essa paradoxal invisibilidade e presença constitutiva do Comum em nossas vidas é simultaneamente sua maior potência e ao mesmo tempo sua maior fragilidade.

    É neste sentido que o problema do “Comum” não pode ser separado (como bem descreveu Ricardo Teixeira) de um problema da “percepção do Comum”. Por isso, a forma do Comum transitar entre o intangível e o sensível depende de um regime de sensibilidades que dá forma a uma Política, onde as dimensões afetivas-culturais-cognitivas-econômicas são indissociáveis.

    Como percebemos que somos co-partícipes na produção do Comum? Quais as estratégias, práticas, tecnologias, infraestruturas que dão forma a essa experiência de co-implicação na produção do comum?

    Para a Abrasco é evidente que a saúde é um problema coletivo. Não há saúde individual sem saúde coletiva. Parte do conflito histórico e atual, em torno dos direitos à saúde, dá-se pelas dinâmicas que procuram submeter a Saúde a dinâmicas individualizantes (em termos dos modos de subjetivação, na forma como nos constituímos e nos relacionamos com nossa da saúde) e privatizantes (em termos das formas de codificação, mercantilização e regulação social). Mas falar em termos do “Comum” significa transbordar a dicotomia público-privado; humano-não-humano. Ele é uma terceira margem que não está em oposição nem ao público, nem ao privado. O Comum convive e apoia-se tanto no público como no privado, assim como ele se realiza com os humanos e não-humanos (objetos, recursos naturais, artefatos tecnológicos).

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    Retorno então ao tema mais específico das “tecnopolíticas da produção do comum” para indicar 3 eixos de questões que me levam a eleger este recorte como forma de criação e resistência.

    1. Como explicar isso que reconhecemos como uma rápida erosão de conquistas duramente construídas? Como explicar essa intensificação, aceleração, austúcia nos processos de desmanche dos direitos sociais? Isso é sinal de uma fragilidade institucional ou baixa qualidade democrática de nossas instituições? É sinal da precariedade do nosso marco regulatório? Ou é algo que convive e integra desde muito tempo a produção do atual regime de governo, mas que agora adquire novos contornos? Quais são as continuidades e rupturas?

    Neste momento, é fundamental identificar quais são as práticas, as áreas da saúde que estão sendo capazes de resistir e persistir na produção da Saúde como um Comum. Ao longo da história, o Comum e as comunidades que o produzem tem aprendido a sobreviver a diversas investidas que procuram destruí-lo ou submetê-lo a regimes de apropriação e expropriação. Ao mesmo tempo é importante identificar quais os novos mecanismos, as estratégias, e as novas práticas que tornam possível a privatização da saúde. Em resumo, partilho da impressão de que o desenho institucional que temos disponível é importante, porém parece ser insuficiente para responder às ameaças atuais.

    2. Quais os limites, quais os modos de interação do público-estatal com o privado-corporativo? É possível encontrarmos outras composições para além da dicotomia Estado-Mercado? Aqui também a percepção ordinária (para não dizer senso comum) que se difunde em nossa sociedade é de uma crescente indistinção entre o público-estatal e o privado-corporativo. Como essa experiência se constituí? Quais as mediações entre os cidadãos, o acesso aos serviços de saúde, as relações entre os trabalhores da saúde e os demais cidadãos?

    Cada vez mais precisamos indagar como os diversos aparatos, equipamentos públicos servem e funcionam como infraestruturas para a expropriação e apropriação privada da Saúde?

    Ao mesmo tempo, qual é a percepção, a experiência que se constitui desde o cidadão, o usuário na ponta? Qual é a interface, a mediação que ele tem o sistema?

    Pensando desde a borda do sistema, a partir dos modos de uso e apropriação do cidadão, e do modo de relação e de subjetivação que ele constitui com o sistema de saúde, quais seriam as possíveis formas de ativar um devir-comum do público-estatal? Como o cidadão reconhece a produção do Comum e como ele experiencia as diferenças e conexões entre aquilo que é público-estatal e aquilo que é privado-corporativo?

    3-Cotidianamente nos confrontamos com práticas, procedimentos e tecnologias que se instalam em nossa vida como dispositivos que se apresentam como neutros (\”pós-ideológicos\”). Há evidentemente princípios e valores que constituem as relações tecnicamente mediadas. A capacidade de captura e adesão a um dispositivo depende de sua eficácia prática e de sua capacidade de tornar-se desejável. Sua adoção é quase “natural” (ela se aproveita das disposições emergentes num campo de possíveis). Ao prover a “melhor solução” para um determinado problema ela atualiza de forma imanente uma racionalidade específica. Assim, novas técnicas e tecnologias vão paulatinamente modificando o seu ambiente, criando recursivamente um contexto cada vez mais favorável à sua adoção, de forma que num momento posterior seja impossível não adota-las (veja artigo que publicamos sobre Google as Universidades brasileiras).

    Simetricamente, quais seriam nossas técnicas, nossas tecnologias que poderiam promover as formas de vida e cuidado que desejamos propagar?

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    Em resumo: se nossas instituições e os canais de mediação política são importantes, porém insuficientes; se a ciência e tecnologia, participam cada vez mais da criação de artefatos que influenciam nossas vidas; e se há um crescente processo de delegação da agência à mediação técnica, neste cenário talvez a criação e a resistência tecnopolítica seja um importante campo de lutas.

    Certos arranjos sociotécnicos são capazes de informar e produzir efeitos sobre seu entorno de maneira a produzir certas configurações de mundo. Destaco duas propriedades neste processo de propagação e estabilização: a recursividade e a reticulação. Juntas elas abordam o problema de escala (micro, meso, macro) de uma outra maneira. Nós, cientistas sociais, poderíamos trabalhar mais com os engenheiros, cientistas da computação, arquitetos, médicos e sanitaristas para aprender juntos a “construir coisas”.

    Um exemplo (veja ensaio \”Do protesto aos arranjos tecnopolíticos\”): “a criação da pílula anticoncepcional, o protocolo TCP/IP da internet e o telefone celular são exemplos de artefatos técnicos-científicos que produzem arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares. Sua forma de adoção e propagação vai gradativamente modificando as relações sociais através do seu uso, e os efeitos de sua adoção nas pontas (sujeito individual ou máquinas) cria mecanismos de reforço sistêmico. […]

    Recursividade: Uma prática, uma tecnologia, uma organização que atue recursivamente está desenhada para a resolução prática de um problema, cujo modo de ação dá-se mediante a criação de sub-rotinas que atacam frações de um problema maior, e a cada movimento ela volta à sua função (missão) original, porém agregando um “aprendizado” que a torna mais eficiente. Este aumento de eficiência (ou ganho de poder) acontece também porque além de resolver partes do problema (diminuindo a força do seu oponente) ela modifica gradualmente o seu meio de ação (meio-associado), criando um ecossistema mais favorável à sua execução. Ou seja, um artefato recursivo é um dispositivo prático (material-simbólico) que executa um programa (uma ação normativamente orientada) cuja eficiência está na transformação do seu meio-associado e não apenas na realização de um objetivo final abstrato). Como efeito, a recursividade apoia-se na produção de uma “comunidade” ou de “públicos recursivos” que dão sustentação ao processo.

    Reticulação: A reticulação é um processo de propagação não-linear e rizomático de uma estruturação emergente criando níveis subsequentes de estruturação de uma realidade. Quando uma prática, uma tecnologia, uma organização se reticulariza, significa que ela é capaz de tornar durável, de diferentes formas, o seu programa de ação, criando níveis crescentes de estruturação. Como efeito, ela amplia sua capacidade de determinação sobre um campo de possíveis. Ou seja, a reticulação dá maior consistência e força para seu programa de ação (PARRA, 2018).

    ***

    A título de contra-exemplo examinemos dois arranjos sociotécnicos que podem produzir fortes agenciamentos de orientação neoliberal.

    Proliferam hoje diversas tecnologias digitais portáteis, tanto os APPs de smartphones como os novos wareables (relógios ou roupas) destinados a fazer a coleta permanente de informações produzidas por nossos corpos. Essas tecnologias são adotadas por milhares de pessoas e permitem a coleta, organização e disponibilização dessas informações em diferentes plataformas. São hardwares e sofwares frequentemente corporativos (mas há também versões em software livre) que criam novas possibilidades de análise, tanto para os indivíduos usuários como o bigdata realizado pelas grandes empresas que centralizam e comercializam esses dados. Aqui, há tanto a formação de uma experiência de individualização na produção e análise dos seus dados pessoais (que pode reforçar uma percepção mais individualizante da saúde), como também a formação de novas comunidades de usuários que compartilham dados e criam novas analíses e diagnósticos sobre problemas específicos. Em ambos os casos, vemos o fortalecimento de um conhecimento que se apoia numa concepção de corpo informático (sem “corpo”), pois os dados são vez mais descontextualizados quando a coleta é seletiva e não leva em conta elementos contextuais, mas também em alguns casos a constituição de novas comunidades que se constituem através da partilha de suas experiências. Hermínio Martins refere-se aquela primeira “forma de conhecer” descorporificada (baseada na metafísica informacional) como ciborgues epistêmicos (veja apresentação \”Algoritmos Encarnados\” realizada no Medialab-UFRJ).

    Neste caso, a crescente adoção dessas tecnologias, ao mesmo tempo em que produz uma nova forma de conhecimento sobre o corpo, produz outro modo de relação com a saúde (percebida aqui cada vez mais numa chave individualizante). Ao mesmo tempo, ela participa de uma economia política informacional baseada na exploração dos dados pessoais (seja para os seguros médicos como para a indústria farmacêutica). A depender do caso, temos ainda a produção de novas formas de governo biopolítico: basta imaginar a utilização de mensuração glicêmica ou da análise da atividade física dos usuários associada à gameficação da vida (seja para o cidadão ou para o consumidor de planos de saúde).

    Mas o contra-exemplo que melhor se encaixa nessa discussão talvez seja os dos novos sistemas de intermediação de consultas médica e exames laboratoriais: Dr.Consulta, Doutor123, CiadaConsulta. Desconheço o funcionamento em detalhes desses serviços, por isso destacarei apenas os elementos que dialogam com os problemas descritos acima (esses serviços merecem estudos minuciosos sobre sua forma de criação e expansão). Podemos ver aí como a recursividade e a reticulação vai acontecendo através da adoção das tecnologias móveis pelo usuário, combinadas ao georeferenciamento, à analise de dados pessoais, infraestrutura física e a gestão do trabalho (na forma de um capitalismo de plataforma).

    São tecnologias – entendidas aqui como ambientes dentro dos quais modos de vida são produzidos – que se efetivam através da criação e propagação de um arranjo sociotécnico que produz um tipo de experiência com a saúde. Alguns desses serviços já estão em operação há alguns anos, e é possível observar como vão expandindo pouco a pouco sua infraestrutura de atendimento fisico. Gradativamente, elas vão se reticulando na vida social, ampliando sua presença, e de forma recursiva vão modificando seu meio de maneira a torná-lo mais favorável ao seu funcionamento.

    ***

    Temos aí em operação (exemplo da articulação micro-meso-macro):

    1. Os efeitos macropolíticos relativos à regulação jurídica das atividades da saúde, criação de dispositivos burocráticos e legais que ampliam os agenciamentos privatizantes, mudanças nos marcos regulatórios dos direitos sociais, a economia política informacional baseada na exploração dos dados pessoais. Mas também a dimensão cultural e discursiva propagada nos meios de comunicação (tanto nos meios corporativos como nas redes de autocomunicação de massas). Nesta camada ainda adicionaria a emergência de novos saberes populacionais que correspondem a novas forma de exércício do poder. Para além do saberes disciplinares e populacionais que dão forma ao modo de governo biopolítico, bem descritos por Foucault, participamos agora da emergência da governamentalidade algorítmica apoiada nos saberes simulacionais, no big data e na estatística preditiva (veja o trabalho de Antoinette Rouvroy).

    2. No nível mesopolítico poderíamos identificar os diversos mecanismos de gestão e organização do trabalho, os regimes de visibilidade e sensibilidade que determinam o que conta e o que não conta numa organização, as formas de mensuração, quantificação, avaliação e tomada de decisão. Quais os limites entre o trabalho visível e o trabalho invisível do cuidado?

    Novamente, é na organização do cotidiano, na produção e reprodução da vida que um amplo conjunto de técnicas, procedimentos e tecnologias utilizados irão constituir modos de vida específicos.

    3. No nível micropolítico um modo de subjetivação baseada numa relação individualizada e mercantilizada com a saúde. Os modos de subjetivação, conforme analisa Suely Rolnik, apoiam-se em dois modos de conhecimento sensível. “A primeira é a experiência imediata, baseada na percepção que nos permite apreender as formas do mundo segundo seus contornos atuais…quando vejo, escuto ou toco algo, minha experiência já vem associada ao repertório de representações de que disponho e que, projetado sobre este algo, lhe atribui um sentido”. Mas há “um outro tipo de experiência que a subjetividade faz de seu entorno, é a que designo como “fora-do-sujeito”, é a experiência das forças que agitam o mundo enquanto corpo vivo e que produzem efeitos em nosso corpo em sua condição de vivente. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver e de sentir aquilo que acontece em cada momento (o que Gilles Deleuze e Félix Guattari denominaram, respectivamente, “perceptos” e “afectos”)” (ROLNIK, 2018).

    Lembro-me aqui do filme Daniel Blake. Em diversos momentos, quando Blake vai ao posto do serviço público para solicitar uma licença médica ou o seguro desemprego ele vive um conflito entre duas ordens distintas: sua experiência, sua cultura, sua subjetividade de trabalhador formada durante os anos de Welfare State constituí-se a partir de uma contrato social. Ele se relaciona com o aparato público-estatal através dessas representações instituídas. Entretanto, nada mais funciona como antes: os funcionários tem que atende-lo sob determinados protocolos, ele tem que produzir resultados e passar por distintos testes para ter sua condição reconhecida. A situação cria um conflito intransponível para ele, a formação do Estado-Empresa. As reações seguem então por duas direções: as estratégias individualizantes que encontram apoio nos modos de subjetivação neoliberal (Você-S/A); as estratégias coletivas que buscam constituir um território comum de experiência e lutas, capaz de tecer a vida.

    Acontece que, quando pensamos a micropolítica, atentamo-nos quase que exclusivamente à dimensão das representações, àquilo que podemos enunciar e disputar discursivamente. Negligenciamos, frequentemente essa dimensão dos afectos e perceptos que está além e aquém do sujeito: o pré-individual e o supra-individual. Por isso sem uma política de subjetivação, capaz de modificar o regime de sensibilidades, a relação com o público e o Comum são subtraídas.

    ***

    Pensando agora nos aspectos mais “proximais”, no âmbito de uma micropolítica ou de uma mesopolítica, gostaria de perguntar e imaginar qual é nossa tecnopolítica? Quais são nossas tecnologias de produção do comum? Que dispositivos, artefatos, protocolos, infraestruturas já temos ou que podemos criar para promover e dar sustenção à saúde como um Comum?

    A partir dos problemas descritos acima, imagino que uma tecnopolítica do comum seria portadora de algumas características.

    Em primeiro lugar trata-se de tecnologias que produzem uma comunidade e que são apoiadas por essa comunidade. Neste sentido, uma tecnologia da comum é sempre uma tecnologia de produção de vínculos, é uma tecnologia de pertencimento (para usar uma expressão de Isabelle Stengers). Uma cozinha coletiva numa ocupação de sem-teto (como analisa Alana Moraes) é uma importante tecnologia de pertencimento que abriga processos terapêuticos. Uma certa metodologia de conversa e escuta pode ser pensada também como um tecnologia de produção do comum (como bem relata Antonio Lafuente sobre a experiência dos alcóolatras anônimos).

    As tecnologias do comum também transitam da simples participação (relação usuário-serviço) para o reconhecimento da condição de co-produtores, onde tod@s estão co-implicados na produção. Que tecnologias temos no âmbito política nacional de Sáude que atendem a essa condição? Talvez as experiências dos conselhos de participação popular, os fóruns, possam ser pensadas como exemplos dessas tecnologias. Após mais de 20 anos de implementação das experiências dos conselhos (na educação, saúde…), já podemos reconhecer algumas estratégias que consideramos mais potentes e outras que convertem a participação em mecanismos de captura e gestão (governamental, partidária, corporativa).

    Transitar de uma cultura participacionista para uma política orientada pelo “princípio do comum”, nos termos de Laval & Dardot, implicaria numa outra forma de composição da política, modificando o regime de subjetivação política e de produção dos sujeitos de direitos; e numa outra forma de composição entre o público-privado, econômico-social, reconhecendo, como o fazem as feministas, que toda a vida é política:

    “a identidade do princípio (o comum) não suprime a distinção das esferas (social-econômica, público-privada, politica, e publica-publica), mas tem a função de organizar o social de tal maneira que seja possível uma deliberação na esfera pública que não fique prisioneira dos interesses de tal ou qual categoria socio-profissional. Isso só pode acontecer se a esfera da produção e dos intercâmbios se reorganize a fundo a partir do autogoverno do comum” (Laval & Dardot).

    Imagino também que nas tecnologias de produção do comum o conhecimento é algo vivo, e portanto, sua forma de produção-circulação e seus regimes de uso devem ser vetores de resistência às diversas expressões do capitalismo cognitivo. Recentemente, a Fiocruz desenvolveu um conjunto de referências que darão forma a uma política de ciência aberta. No momento em que o conhecimento acadêmico e científico é cada vez mais colonizado pelas dinâmicas de fechamento, privatização e mercantilização (seja no ambito dos periódicos científicos e na expansão dos direitos de propriedade intelectual), defender a ciência, a cultura e o conhecimento enquanto um Comum é uma ação fundamental.

    Para isso é necessário criar infraestruturas próprias, orientadas pela noção de “soberania tecnológica”, protocolos, formas de governança que permitam efetivar e lutar pela abertura da ciência. Importante destacar aqui que a noção de “livre e aberto” não se confunde com a noção de “grátis” (free as an freedom of speech, not free beer). Ou seja, promover a ciência enquanto um Comum exige a criação de formas de co-responsabilidade no uso, capazes também de dar sustentação à todo o ecossistema que produz esse Comum.

    As tecnologias de produção do comum também estão orientadas pelo reconhecimento e maior centralidade conferida à experiência do cidadão e d@s trabalhador@s da saúde. Como diz Lafuente: “todos somos expert em experiência”. As tecnologias cognitivas devem então estar alinhadas à capacidade de escuta de diferentes saberes. Isso significa também, que talvez essas tecnologias sejam dispositivos de desacelaração (modo slow). Passamos então de um regime de dominância dos experts para um regime de co-existência entre diferentes saberes da experiência. Ao darmos maior centralidade à experiência, ao saber vivo, interrogamos portanto a idéia dos corpos informáticos dos ciborgues epistêmicos. Novamente, não se trata de colocar-se contra as tecnologias. Ao contrário, penso em formas tecnológicas que dêem lugar aos ciborgues (no sentido de Haraway) encarnados. Ou seja, modos de conhecer e de composição que reconheçam nossa cultura técnica e nossa natureza híbrida.

    São também arranjos sociotécnicos que reconhecem a agência dos objetos, substâncias e máquinas. Os elementos não-humanos devem “ter voz”. Do contrário, corre-se o risco de apagarmos os efeitos de que eles são portadores. O debate sobre os alimentos transgênicos e toda sua relação com a cadeia produtiva e alimentar é um ótimo exemplo desse problema. O mesmo se aplica às nanotecnologicas. Na somatória de algumas dessas características entramos em tensão com aqueles modos de conhecimento científico que estão apoiadas na convergência N.B.I.C. Novamente, defendo que não se trata aqui de confrontá-los, mas sim de criar formas de convivência entre esses diferentes regimes de conhecimento, buscando, todavia, alternativas que fortaleçam o Comum e impeçam a sua apropriação e expropriação.

    Finalmente, nos termos da Isabelle Stengers, temos que pensar numa cosmopolítica que seja capaz de abarcar uma diversa ecologia de práticas. Por isso, uma tecnopolítica do comum implica numa outra política (de saberes e poderes): gosto de fabular em torno da transição de um “saber-poder governar” para um “saber-fazer habitar”. Portanto, são tecnologias que são concebidas e implementadas dentro de uma política do cuidado. O cuidado é um trabalho material, é um fazer do corpo. Em certo sentido, o Programa Sáude da Família em sua versões mais comunitárias, proximais, talvez possa ser pensado como um bom exemplo dessa tecnologia de vínculos, de pertencimento multiplos e de produção de sáude coletiva. Necessitamos de tecnologias de nos permitam co-habitar o mundo, que reconheçam nossa interdependência. Esse é um critério muito claro face à tecnopolítica neoliberal que produz isolamento travestida de liberdade; que produz hipertrofia do privado sob a ilusão do compartilhamento, corroendo a possibilidade de um mundo comum.

    Enfim, como podemos fortalecer esses arranjos sociotécnicos que julgamos relevantes? Como podemos ativar um devir-comum da saúde pública? Como podemos criar mecanismos de recursividade e reticulação que ampliem as condições de produção e sustentação das formas de vida, cuidado e saúde que desejamos propagar?

    (*) Mesa Redonda 55 – Direito à saúde, direito a uma vida comum: novas formas de lutar em tempos de neoliberalismo.

    Coordenador: Henrique Sater de Andrade – UNICAMP (SP)
    Expositor: Tadeu de Paula Souza – UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO
    SUL (RS)
    Expositor: Henrique Zoqui Martins Parra – Universidade Federal de São Paulo (SP)
    Expositora: Alana Moraes de Souza – Museu Nacional/UFRJ (SP)

     

  • As novas eras não começam de uma vez: saúde, doença, começos de mundos

    Alana Moraes

    texto apresentado no 12 congresso brasileiro de saúde coletiva, ABRASCO. Julho 2018*

     

     

    Em um texto publicado no começo desse ano, o filósofo espanhol Amador Fernandez Savater  nos lança uma pergunta que eu gostaria de retomar aqui. É possível ler a conjuntura política não simplesmente como uma disputa entre diferentes grupos pelo poder, mas como um choque entre diferentes percepções da vida social, entre diferentes sensibilidades da vida em comum? Eu faria apenas uma pequena alteração na pergunta porque penso que não se trata apenas de “percepções da vida social”, mas, radicalmente, diferentes modos de viver.

    Como lembra um outro filósofo, o Agamben, “Nós vivemos depois da falência dos povos” e agora que ocidente também experimenta um modo particular de falir podemos, ao menos, nos deslocar para lugares dos escombros mais interessantes. Tentando caminhar com a pergunta do Amador, a hipótese que gostaríamos de abrir aqui é a de que levar à sério a crise em que vivemos é experimentar uma filosofia do fim do mundo. Essa hipótese nos exige arriscar um pensamento que possa convocar aqueles e aquelas contra os quais o capitalismo e o pensamento moderno vem erguendo cercas, fogueiras e tribunais desde o seu principio – aqueles e aquelas, portanto, que são os verdadeiros especialistas em fim de mundo (ampliando ainda mais a proposição do Viveiros de Castro): mulheres pobres, populações indígenas, o povo negro – aquelas e aqueles que tiverem seus mundos dilacerados materialmente mas também as suas cosmovisões variadas: xamãs, feiticeiras, curandeiras, rezadeiras, guerreiros, bruxas, tias, vizinhas – muitas versões do comum, de uma metafísica do sensível e de produções políticas assentadas em paradigmas do habitar uma vida, de insisti-la, e não governá-la.

    Pensar com os especialistas do fim do mundo é também nos reconciliar com uma ecologia da prática. Não que acreditemos na separação entre pensamento e vida corpórea, entre fabulações e possibilidades de criação de infra-estruturas – como sempre quiseram nos convencer os modernos – mas é admitir, de uma vez por todas, que nossa guerra não é uma guerra de verdades (narrativas, discursos, mesmo de ideias), mas é uma guerra de corpos e afetos, o que passa entre eles, o que move e o que vincula – algo que Isabelle Stengers insiste quando fala que uma “ecologia das práticas” nos exige um senso de responsabilidade da qual a disputa de verdades nos permite escapar. Ela nos obriga a pensar a partir de situações específicas e agir como praticantes, não mais como mero “formuladores” cujos corpos não se implicam em nada.

    O neoliberalismo, olhado a partir do ponto de vista das especialistas do fim de mundo, é apenas a última versão, bem atualizada, é verdade, da pulsão mais importante desse modo de produzir e governar (mas todos os usuários de máquinas sabem bem o quanto as atualizações são importantes!). A partir desses pontos de vista é possível compreender que o movimento majoritário e mais significativo ao longo do história desse sistema econômico não foi a “exploração da mão de obra assalariada”, mas foi a destruição de modos de vida e a expropriação das formas coletivas de cuidado e conhecimento. Os pontos de vista dos filósofos do fim do mundo, como no perspectivismo ameríndio, não equivalem a “visões” diferentes sobre determinado ponto – os sujeitos antecedendo a realidade – mas, ao contrário, são modos diversos de agenciamentos (humanos, não-humanos, outros) dessa realidade que constituem os sujeitos, muitos mundos incorporados e não apenas \”percepções\” desses mundos.

    Segundo o filósofo xamã yanomami Davi Kopenawa o pensamento do branco atua como um espírito canibal, um espírito xawarari que se movimenta de forma epidêmica e descontrolada. Necropolítica, segundo Mbembe, não mais a biopolítica do delírio de fazer viver do Estado do bem estar social, mas uma declaração descarada e obscena do fazer morrer e, portanto, da produção continua de corpos matáveis e zonas de morte. O fazer-comum seria então a luta pela produção permanente de mundos não cercáveis, mas também o reconhecimento de que a prática de conhecer e de pensar são inseparáveis das múltiplas relações que tornam possível o mundo que estamos pensando, as vidas que estamos reconstruindo e celebrando. Cuidar e relacionar são práticas que nos parecem muito importantes aqui, mas quase sempre apagadas nos registros oficias da “luta de classes”. “Evitar a morte, a desordem e o sofrimento” e isso é o que nos une, fala Mauro Almeida.

    Pra que os marxistas não fiquem muito bravos, eu venho pensando também como o próprio Marx foi marcado em seu pensamento pela força do comum diante do Estado – ele que também era um filósofo do fim de um mundo, ainda que seu otimismo com a noção de progresso tenha o afastado das epistemologias dos mundos despedaçados por algum tempo. Mas a intuição de Marx de que a luta de classes era também uma guerra entre mundos se expressa vivamente no modo pelo qual ele foi afetado com o problema do chamado roubo de lenhas, a luta de camponeses europeus empobrecidos pelo direito à ao uso comum da floresta, ao uso das lenhas que se tornaria crime, um arcabouço legal era então erguido para transformar em delito o que antes era a vida em comum. Marx toma parte da situação e com a inteligência própria daqueles que se deixam arrastar pela paixão das lutas, fabrica sua artimanha argumentativa: o movimento do capital se faz moribundo, se apropriando do que é comum. A propriedade estabiliza, ergue cercas contra os usos incertos, destrói a criação coletiva da auto-organização e o faz em nome do Estado. Transforma a natureza, os corpos e o conhecimento em \”recursos\”, o uso livre em \”crime\”.

    Mas a revolta da comuna de Paris, o levante que levava o comum no nome, também transformou significativamente o pensamento de Marx – essa é uma história praticamente apagada pela ortodoxia marxista posterior (mas agora retomada por Jean Tible em seu Marx Selvagem, um Marx de retomada). Ao se deparar com o levante de Paris, Marx se deu conta que o conflito capital versus trabalho não se daria necessariamente nas fábricas, mas a revolta – protagonizada pelas mulheres e suas cozinhas coletivas, creches e barricadas que estavam defrontando-se com a degradação permanente de seus modos de vida – era tecida por paixões de outro tipo: o desejo de retomar a política para a vida, de organizar a própria vida e de resistir à expropriação da felicidade. “Não basta aos trabalhadores substituírem a gestão do Estado, é preciso destruí-lo”. Marx contra o Estado, vejam!

    Marx-xamã nos brinda agora com um mundo outro, costurado por vários outros mundos e cantos de guerra. Seria possível pensar em um marxismo crítico da modernidade e seus aparelhos conceituais? Um Marx-do-comum, por tanto, que como a comuna de paris ou os sovietes, aldeias ou quilombos, pode pensar em uma prática de democracia na vida, pela diferença e o exercício coletivo da felicidade? Marx mesmo desconfia do pensamento ocidental, quando por diversas vezes, trata o capitalismo como um \”mundo enfeitiçado\”, abstrações e fetiches capitalistas atuando como feitiços do pensamento.

    Não vou, eu própria, cometer a indecência de defender o Fim do Estado justo agora quando precisamos lutar com todas as forças contra todos os desmontes e conquistas. Mas uma boa filosofia de fim do mundo pode reconhecer confortavelmente hoje que o capitalismo não nos expropria apenas materialmente, mas também imaginativamente quando nos convence que todas essas experiências outras de organização da vida fazem parte de um passado e não mais de uma possibilidade latente. Quando nos convence que o SUS é apenas uma política de Estado e não uma prática coletiva de pensar os corpos e suas relações, o território e a proximidade da vida; Quando nos convence que a indústria farmacêutica é uma conquista civilizatória e não uma apropriação privada e rentista de modos coletivos de conhecer, de pesquisar e transmitir conhecimento sobre a vida;

    Não se trata, portanto, de defendermos um comum contra o público, mas ampliar e democratizar o público vai depender de políticas que reconheçam o comum como a única saída possível para uma vitalidade democrática. Na última vez que frequentei uma ala psiquiátrica de um hospital público em São Paulo para acompanhar minha avó, naquele momento apresentando um quadro já avançado de Alzheimer, me dei conta que dentro daquele ambiente hospitalar havia uma ecologia muito heterogênea de conexões entre humanos, máquinas, entre gritos e conversas quase mudas, pessoas que dormiam, trocas de informação sobre os modos diversos de manifestação da doença, receitas caseiras que poderiam amenizar sintomas. Piadas sobre memória e esquecimentos. Havia muita gente, mais de 50 macas se avizinhando e nenhum médico presente, apenas uma enfermeira. Naquele momento me dei conta que eram as mulheres acompanhantes dos doentes que gestavam o cotidiano da ala: elas que ajudavam seus parentes e os parentes de outras a levantarem das macas, a caminharem um pouco pelo corredor, elas que supervisionavam os horários dos medicamentos e construíam uma comunidade de afetadas por aquela situação, se revezavam.

    Outro bom exemplo da coexistência entre o público e o comum vem dos dias de visita nos presídios brasileiros. São as mulheres, companheiras e mães daqueles que estão nas penitenciarias que, semanalmente, garantem alguma dignidade para os encarcerados, uma vida possível de ser vivida, tratam doenças com receitas caseiras, oferecem alimentos que curam, denunciam os mal tratos, torturas e violência de todo tipo.

    Podemos pensar também nas ocupações urbanas dos sem-teto nas periferias, atraindo pessoas que desejam acessar o direito à moradia, mas que acabam experimentando uma nova vida coletiva, a produção de uma outra temporalidade (experimentar o tempo livre outra vez!) onde se pode retomar o engajamento sobre si, contornar as paralisias e medos e tornar-se alguém que importa na produção de um comum. Uma vez ouvi uma mulher na ocupação explicando para uma outra que chegava o porquê de muita gente no entorno abandonar cachorros dentro de uma ocupação: “É porque eles sabem que aqui o cachorro vai viver!”. Vitapolítica contra a necropolítica se atualizando na prática constante de fazer alianças, inclusive inter-espécies.

    Na verdade, podemos até nos perguntar se o “público” seria mesmo possível sem o comum. O que essas mulheres, filósofas de fim de mundos, nos oferecem enquanto paradigma, enquanto possibilidades epistemológicas de cura, é o que a antropóloga Annemarie Mol conseguiu bem captar em seu trabalho no qual ela opõe a lógica do cuidado contra a lógica da escolha.

    A lógica da escolha é aquela que faz o médico apresentar um diagnóstico e falar: “agora você precisa escolher um tipo de medicação ou de tratamento”. Ela presume que a doença é algo estranho, uma zona sufocante na qual a gente só pode trabalhar no sentido de sua superação – e você estará, mais uma vez, irremediavelmente sozinha. Pensar pela lógica do cuidado, ao contrário, é pensar pela vulnerabilidade do corpo e criar uma zona de relação entre o cuidado e o cuidador, uma zona na qual podemos nos engajar juntos, com cumplicidade, onde podemos pensar pela especificidade da relação de cada doença com um determinado corpo. A lógica da escolha transforma a relação no par cliente-consumidor. A lógica do cuidado, desloca ambos os lados: pensar pela doença é deixar de se constituir como um “sujeito autônomo”, mas estar atento aos sinais do corpo, ao mundo, aos sonhos e intuições.

     O paradigma da cidadania ocidental moderna é entendida como a capacidade das pessoas controlarem seus corpos – deixarem o corpo fora da arena publica e escolherem, continuamente, os melhores representantes. A concepção moderna (e mais hegemônica) de “política pública” também tem a ver com a crença nessa relação cidadão-cliente; indivíduo-beneficiário. Mas o corpo doente é incontrolável, ele é errático, ele necessita de cuidado permanente, ele necessita ser pensado permanentemente. Não se trata de uma servidão em relação à doença ou ao cuidador, mas sim de buscar uma heteronomia que potencialize outros vínculos e relações.

    Por isso Annemarie Mol defende o paradigma do pacientismo, esse fabricado na lógica do cuidado, como fundador de uma outra hipótese democrática; é preciso se afinar com as escutas permanente do corpo; produzir aliança entre tecnologia e cuidado, compreender que esse sujeito autônomo cidadão masculino não existe por si só, ele é fruto de relações de cuidado, de uma rede de interdependência. O paradigma pacientista exige tempo livre e talvez seja essa a luta dos nossos tempos: a luta pelo próprio tempo. E não é desprezível o fato de que “ficar doente” tem sido uma prática constante de resistência ao capitalismo: além de romper com tempo do trabalho, a doença pode abrir um campo de relações outra vez – é a reconexão com um corpo, ainda que seja no terreno limite da vulnerabilidade. A luta de classes hoje poderia ser bem descrita pela luta daqueles que tempo contra aqueles que não tem; aqueles que podem pagar por curas e tratamentos contra aqueles e aquelas que insistem em criar relações de cuidado, transmitindo saberes ancestrais, mas também lutando para que o posto de saúde não desabe.

    Por fim, pensar uma radicalização democrática passa por sabermos criar tecnologias de pertencimento. Para os indígenas a guerra e festa são duas dimensões básicas da vida porque justamente são aquelas onde é possível estabelecer alianças. \”Não façam bebês, façam parentes!\” é o slogan feminista de Donna Haraway que aposta na prática de alianças, o parentesco como um idioma vivo de conexão.

    Não é à toa que tanto os evangélicos como os membros do PCC se chamem de “irmãos”, que as mulheres mais velhas nas periferias são chamadas de “tias”. Se o neoliberalismo age fundamentalmente esgarçando relações, rompendo relações, a prática do comum (e também o que é público democratizado) devem ser dimensões fundamentais de produção de tecnologia de pertencimento. Na cracolândia, muitas pesquisas vem apontando que 1/3 das pessoas que permanecem no fluxo não é usuário, mas gente à procura de conexões – egressos do sistema penal, pessoas com problemas de violências domésticas e de outro tipo. As filósofas do fim do mundo vem nos mostrando justamente que nossa política, à curto prazo, precisa ser aquela que possa reconstituir os refúgios.

     Se fizéssemos um exercício de continuar simplificando os antagonismos dos nossos tempo, poderiamos dizer também que o Estado neoliberal é aquele que age rompendo e destruindo relações, enquanto o comum é a pratica permanente de conectar, de relacionar. Pra terminar, com mais uma filósofa do fim do mundo, eu gostaria de ecoar a frase da Bruna Silva, Mãe do Marcos Vinicius, o menino que foi assassinado na Maré quando ia para escola. Carregando para todos os lugares o uniforme manchado de sangue, Bruna tem repetido: “O Estado está doente” “O Estado levou meu filho”. Em uma conversa que tivemos, Bruna contava das profundas conexões que conseguiu estabelecer a partir desse sofrimento incontornável. “Encontrei a mãe de um policial que foi morto em uma operação. Nos abraçamos, choramos. Eu falei pra ela: o mesmo Estado que matou meu filho, matou o seu também”. Do mesmo modo Bruna fala do encontro que teve com a mãe de Marielle: \”Sentimos que a filha dela agora está cuidando do meu filho lá no céu, e eu estou aqui agora cuidando dela\”.

    As mães que perdem seus filhos vitimas da violência policial tem fabricado um dos idiomas de conexão mais potentes dos nossos dias: “nossos mortos tem voz” elas repetem, narrando e atualizando permanentemente a memória dos seus filhos: o que faziam, que musica ouviam, o que gostavam de comer. Elas atuam justamente contra o apagamento do Estado, mostrando que os meninos na verdade são filhos, irmãos, são maridos, faziam parte de uma trama de relacionalidade que também é morta quando eles são mortos – elas são insistente conectoras, de imagens, de memórias, quase todas adoecem e evocam o mundo dos vivos e dos mortos para expressar sua luta por justiça. “Eu vou falar da minha luta, vou falar do meu filho, mas eu não vou chorar. Porque quando eu choro ninguém presta atenção no que eu falo”, insiste Bruna.

    Nossa nova hipótese democrática vai precisar ser fabricada a partir dessas experiências que dilatam o que conhecemos como \”política\”, nos chamam para um mundo povoado de elementos não visíveis. Produzir resistências assim como um novo paradigma de direitos é, portanto, assumir que nossa guerra é também uma guerra de mundos, fazendo da nossa própria existência um campo de batalha. Silvia Cusicanqui, filósofa aimara cita o lênin quando ele diz que a gente precisa sonhar, mas com a condição de praticar nossos sonhos permanentemente, de não abandonar a realidade – nosso projeto de democracia radical deve conter Response-Ability, essa habilidade contínua de responder à situações e não á uma lógica abstrata e universal de emancipação.

    Enfim, Nos reapropriar de nossa inteligência coletiva porque o pensamento branco, alerta Kopenawa, se esfumaçou e se fechou às outras coisas.

    * esse texto é fruto de trocas e reflexões compartilhadas nesses últimos tempos com Herique Parra, Adriana Viana, Ricardo Teixeira, Jean Tible, Bárbara Lopes, Fábio Zuker, Gabriela Acerbi, Débora Del Guerra, Pedro Ekman, Paula Ordonhes, Julia Ruiz e muitas outras.

    Foto de capa: apresentação de rua do Ilú Oba de Mim

    Para mais informaçãoes acesse o site do Ilú Oba de Mim 

  • Brasil e a democracia securitária: nota contra a sentença dos 23 da Copa de 2014

    Brasil e a democracia securitária: nota contra a sentença dos 23 da Copa de 2014

     

    Sob o olhar de um juiz, duro como um jejum,

    Caiu, por acaso, um pavão laranja-azul:

    Na mesma hora virou cor de carvão

    A espaventosa cauda do pavão.

    (…)

    Nem os meus versos escapam à censura:

    São interditos, sob pena de tortura.

    (…)

    Somente, acocorados com rancor sob os livros,

    Ali jazem, deprimidos, os juízes.

    Vladimir Maiakóvski, 1915

     

    O Brasil vive tempos sombrios. Enquanto o cenário eleitoral se divide entre uma direita proto-fascista que inventa notícias e ameaça pesquisadoras nas universidades e uma esquerda majoritária que se ocupa em salvar sua burocracia partidária, a vida cotidiana sucumbe ao mais duro e mortal autoritarismo. Intervenção militar no Rio de Janeiro; recorde de pessoas encarceradas (terceira maior população carcerária do planeta) e assassinadas violentamente (cerca de 60 mil homicídios por ano); massacres nas periferias e penitenciárias. A lista é aterradora e temperada com protagonismo de militares na vida política do país.

    A execução há quase 130 dias, brutal e cirúrgica, de Marielle Franco, vereadora do PSOL pelo Rio de Janeiro é a síntese do estado em que se encontra o país. O Brasil já não é mais uma democracia, embora não seja ainda uma ditadura. Vivemos em uma democracia securitária que tem no poder judiciário e no sistema de justiça criminal seu baraço forte e assassino.

    No dia 17 de julho de 2018, o juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau, da 27º Vara Criminal do Rio de Janeiro, emitiu a sentença condenatória de 23 pessoas detidas em manifestações contra a realização da Copa do Mundo da FIFA em 2014. Num inquérito policial tão absurdo que chegou a indiciar como suspeito o anarquista Mikhail Bakunin, morto há mais de um século. O processo, que se arrastava há 3 anos, é cheio de falhas e ilações, mas mesmo assim chegou a uma sentença de 7 anos por associação criminosa (art. 288 do Código Penal) e corrupção de menores (art. 69 do Código Penal e 244B do ECA). Mas o que de fato se ataca é a liberdade de manifestação dos acusados. Essa sentença expõe como o terror é o artifício ordinário dos agentes da lei, do policial ao juiz, passando por seus servis carcereiros e respectivos mandatários políticos e empresários.

    Conhecido como “processo dos 23 da Copa”, o caso tem particularidades assustadoras e cela a repressão política que se abateu após as jornadas de junho de 2013. Essas 23 pessoas foram selecionadas por um inquérito policial e midiático que visa calar e capturar as maiores manifestações da história recente do país que levaram centenas de milhares às ruas. Manifestações que a partir de uma reivindicação específica relativa aos transportes coletivos e a vida nas cidades deflagrou uma série de lutas represadas por um governo que se dizia popular.

    A partir das jornadas de junho de 2013 os alvos das manifestações no Rio de Janeiro foram: a violência policial nas favelas e nas manifestações; as leis de exceção, como a Lei Geral da Copa nº 12.663/2012; as execuções no interior da Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que teve como símbolo o caso Amarildo de Souza; as remoções arbitrárias e violentas, como na Vila Autódromo e na Aldeia Maracanã; a repressão às greves selvagens, como a dos professores, em outubro de 2013, e dos garis, em 2014; além e reagirem contra a campanha midiática, à direita e à esquerda, que identificava os “black blocs” como terroristas perigosos.

     

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    A sentença do juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau visa atingir e calar toda forma de contestação que ouse desafiar os poderosos, suas máfias e suas milícias. Ela, de certa forma, reconhece a potência de junho de 2013, como algo que ainda está acontecendo nas lutas sociais e, assim, se soma às muitas reações contra esse acontecimento que, mesmo após 5 anos, segue incompreendido e temido por muitos.

    As palavras do juiz expõem seu ressentimento em relação aos acusados. No texto, ele repete diversas vezes que os manifestantes possuem uma “personalidade distorcida”. Reconhece não possuir provas factuais, além de objetos apreendidos na casa de um dos acusados, mas refere-se a “crime[s] de mera conduta e de perigo abstrato”. Por fim, atribui a liderança das manifestações à uma das acusadas sem qualquer justificativa lógica e seguindo um enredo midiático.

    Mas o que mais irrita o juiz Itabaiana é o anarquismo dos manifestantes. Em certo momento ele aponta o que chama de “grupos de ação direta” como responsáveis pelos “atos de vandalismo e de violência”. Somando a ação direta como o que chama de “personalidade distorcida”, o juiz atualiza a imagem do anarquista como sujeito perigoso, aos moldes da psiquiatria do século XIX. Assim, deixa claro que além dos traços intoleráveis de seletividade e racismo característicos do direito penal, sua sentença é a expressão de seu delírio covarde e de sua ucronia conservadora.

    Essa sentença é um golpe violento às liberdades civis de um regime democrático. Por isso, ela precisa ser interrompida imediatamente! Do contrário, marcará, junto à execução de Marielle Franco, um ponto sem retorno no autoritarismo brasileiro.

    Repudiamos a sentença para além dos argumento legais. Juiz nenhum vale mais que um professor, um estudante ou qualquer pessoa que ousa questionar os atos dos poderosos, suas máfias, milícias e juízes com suas togas manchadas de sangue.

    Muitos dos alvos das manifestações de 2013 e 2104 encontram-se hoje presos por envolvimento em atos de subtração do erário público, o que prova a justeza de suas reivindicações ontem e hoje.

    Por tudo isso exigimos a liberdade aos 23 sentenciados!

    E contra o autoritarismo da democracia securitária no Brasil e seu judicoario autoritário, afirmamos:

    Todo preso é um preso político!

     

  • sobreviver ao fim do mundo

    sobreviver ao fim do mundo

    por Leila Saraiva

    publicado originalmente em: https://www.entranhas.org/titulo/

    Tendo a achar que há laços, vidas, conexões que, quando olhamos lá de cima, não conseguimos ver. Diante da destruição contínua operada pelo capitalismo e por essa atual fase de avanço neoliberal, algo segue sendo reerguido. Lembremos que atrás dos números, há pessoas. Pessoas que reconstroem e reinventam suas vidas, diante de projetos de separação, exclusão e fronteiras. Talvez elas não nos salvem (não é essa a ideia). Mas preciso acreditar que elas nos inspirem, com tudo o que são: contradições, capturas e, sim, potências. É nessas sementes cotidianas que talvez possamos reafirmar: como o capitalismo sabe destruir pessoas! E, ao mesmo tempo, como ele não entende nada, nada, sobre o que as constrói.

    Eu não sei a que horas Dona Antônia[1] acorda, todo dia, para chegar ao prédio da Universidade de Brasília onde trabalha. Sei, por conta dessas conversas que, vez por outra, tivemos nos intervalos das minhas aulas, que o caminho é longo e o expediente começa cedo. “Eu atravesso o mundo, entre a minha casa e a universidade”. São longas as horas que, no transporte coletivo cheio de todo dia, D. Antônia assiste o cenário mudando: das ruas quem sabe de terra de uma região do Entorno do DF para o concreto branco do Plano Piloto; mudam as cores, as pessoas, as perspectivas. D. Antônia, todo dia, atravessa o mundo para, enfim, sentar-se à mesa da recepção do prédio do Instituto de Ciências Sociais, onde trabalha como porteira. Ali, naquele lugar onde os acadêmicos conversam, fazem suas leituras e elaboram teorias – sobre os mundos que D. Antônia vive.Ela é uma senhora pequena, de sorriso fácil, que eu só conheço de uniforme. Gosta de fumar seu cigarrinho, na porta do prédio, enquanto conversa com seus colegas ou com um ou outro dos frequentadores/as do Instituto que porventura a veem por ali. Enquanto passam as horas, está acompanhada de sua bíblia, sempre à postos, na mesa em que trabalha. Me pergunto se ela já me disse há quanto tempo é funcionária terceirizada na universidade. Não consigo lembrar. Nossas últimas conversas foram, justamente, sobre a ameaça desses tempos acabarem: D. Antônia, como outra centena de funcionários/as terceirizados/as, anda com a espada da demissão na cabeça.

    Houve um dia em que espada deixou de ser fantasma e virou documento. D. Antônia recebeu, naquele mesmo prédio, o anúncio de sua demissão. O sorriso se desfez e o coração balançou. Ela se sentiu mal, naquele mesmo prédio. Diante do desespero para leva-la ao hospital, seu chefe reclamou: o carro da empresa não poderia ser usado para esses fins. Foi no carro de um professor, dirigido pelos colegas, que D. Antônia foi levada. Felizmente, não foi nada mais grave. Felizmente, a decisão da demissão foi revertida. Ninguém sabe até quando. O documento voltou a virar fantasma.

    ***

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    A ideia, as práticas, a urgência da austeridade[2]: ao menos desde 2016, esse discurso voltou a figurar, com toda força, nas mensagens espalhadas pelos de cima. Manchetes de jornais, comentaristas econômicos: não há o que fazer, a não ser aceita-la. “É mais ou menos como quando estamos com problemas de orçamento em casa: não há outra saída a não ser cortar gastos e esperar a crise passar”. Não é isso, afinal, que ouvimos todos os dias, num mantra encadeado? Se não tomarmos esse caminho duro, dizem, o que há de pior estar por vir – no melhor estilo do que Isabelle Stengers, uma mulher com quem gosto de pensar, chama de “alternativas infernais”. É isso, exatamente a mesma coisa, que D. Antônia escuta da reitora, dos decanos, dos diretores da universidade, quando eventualmente questiona sua demissão: é preciso cortar gastos [infelizmente, o gasto é você].

    Muita gente tem trabalhado exaustivamente para mostrar que não, esse não éo único caminho possível para resolver a crise econômica. Que não há uma única saída. Que a adoção de tais medidas é política e, portanto, uma escolha entre outras. Não tenho a pretensão de discutir nesse texto esses aspectos do que vivemos: para tal, recomendo a leitura do que tem produzido, por exemplo, a economista Laura Carvalho. O que queria é que pensássemos aqui o fundamento da austeridade – o neoliberalismo – não enquanto sistema econômico, mas como produtor de subjetividades. Como se sente D. Antônia, ao se ver dispensável? Como se sentem aqueles/as que, diariamente, seguem adentrando aquele mesmo prédio no qual D. Antônia vive suas angústias, mas caminham como se tudo estivesse no seu devido lugar? Mais: o que sustenta, diante de tudo, o sorriso no rosto de D. Antônia? Estará nele o segredo de nossa resistência? Se é também verdade que não me arrisco a responder essas perguntas, são elas que aqui me guiam.

    Entre as perguntas acima, talvez a que mais me intrigue – no sentido mais incompreensível –  seja a segunda. [É doido pensar como ela se liga necessariamente à primeira: como D. Antônia se sente?] Que força é essa, a que nos permite seguir nossas vidas diante de tragédias diárias? Como foi que nos habituamos a andar, impassíveis, diante de mundos que se despedaçam?

     

    Claro está que esse não é um hábito novo, inclusive entre esse campo amplo que chamamos de esquerda. Se focarmos especificamente na experiência brasileira, podemos afirmar, sem dificuldades, que o convívio com situações extremas de violência é mais que um evento, é uma força constituinte disso que chamamos de país. Nos acostumamos a seguir nossas vidas, apesar daquelas diariamente ceifadas da juventude negra; dos mundos indígenas massacrados; das mulheres trans que não podem fazer planos depois dos 35 anos; de mortes a pedradas de pessoas em situação de rua. Nos acostumamos, enfim, a separar aqueles cuja vida é sagrada, daqueles cuja morte é cotidiana.

    Tomemos como pressuposto, então, que essa separação é constituinte desse mundo que vivemos – um mundo que podemos chamar de colonial, moderno, capitalista, entre outras tantas possibilidades[não vou exatamente me arriscar aqui a entrar nessas discussões de conceito/origem]. Há quem diga, nessa mesma linha, que a própria ideia de Estado é baseada nessa exata operação: a de separar aqueles que o integram e aqueles contra quem temos que nos proteger. Aqui me refiro à Michael Herznfield [3] que, ao refletir sobre as práticas simbólicas do cotidiano da burocracia na Grécia, afirma que elas se fazem e se atualizam na criação de categorias de exclusão, fixando fronteiras entre quem pertence e quem não pertence ao Estado e, assim, atribuindo humanidade a uns em contraposição a outros. A não atribuição de humanidade resulta na impossibilidade de se afetar. A essa operação, de sermos capazes de nos indignarmos por uns enquanto ignoramos a outros, ele chama de produção social da indiferença. Se isso é parte da nossa forma [localizada] de fazer mundo, estaremos diante de algo muito distinto, nesse momento de acirramento do neoliberalismo? Não estaríamos, nesse momento, sendo capazes de indiferenças cada vez maiores, mais abrangentes?

    É difícil pensar nisso sem que outras mil portas se abram, e de novo me parece fundamental afirmar que a crise é mais profunda que a de um momento específico desse projeto de mundo, mas própria dele mesmo. Aqui, gosto de pensar no neoliberalismo como um extremo, para que lembremos que um extremo não é uma ruptura, mas um ponto máximo dentro de uma mesma lógica: estamos, justamente, diante de um momento em que conciliações não fazem sentido e que as máscaras de que esse projeto poderia abarcar e incluir a todos/as caem, sem a menor vergonha. É mais ou menos isso que diz Naomi Klein, no seu último livro “Não basta dizer não:resistir às políticas de choque e conquistar o mundo do qual precisamos”, quando discute um reality show promovido por Donald Trump ainda em 2007, no qual dois grupos de trabalhadores disputam para ver quem será contratado para trabalhar com o atual presidente dos Estados Unidos. A divisão e a perversidade é tão explícita, ela diz, que fica claro que já não há promessa de que o capitalismo possa promover algo bom para todo mundo, como já foi a tônica do sistema algum dia. Trata-se de uma mudança de discurso: sem a promessa [falsa] que caberíamos todos/as, a ideia é que necessariamente há alguns poucos vencedores diante de uma multidão de perdedores. A melhor coisa a se fazer é “se certificar de estar no time vencedor”. Ou, como diz Achile Mbembe, também sobre esse momento que vivemos: “a única coisa que importa é ganhar, por qualquer meio necessário”.

    “Nós já sabíamos que esse mundo não ia dar em nada”, podemos bradar, não sem razão. “Socialismo ou barbárie!”, e de novo estaremos certos/as. Mas não podemos deixar de assumir que o fim da necessidade dessa promessa leva tudo a outro nível – e que, para além do nosso desejo de uma crise transformadora, essa situação corta ainda mais fundo na carne daqueles com quem, justamente, queremos construir esse outro mundo, como D. Antônia. A vontade revolucionária não pode nos levar a um outro tipo de indiferença – há outra coisa aqui que precisamos buscar.

    Se podemos chamar esse momento de fim da era do humanismo, como também afirma Mbembe – e esse fim evoca tanto potência como ruína – temos que assumir que não estamos indo tão bem nesse momento, agora. A balança, ao menos ainda, não está pendendo para o nosso lado. Gosto quando o autor diz: “O capitalismo neoliberal deixou em sua esteira uma multidão de sujeitos destruídos, muitos dos quais estão profundamente convencidos de que seu futuro imediato será uma exposição contínua à violência e à ameaça existencial.” Talvez essa frase nos dê algum lampejo sobre como se sente D. Antônia diante da carta de sua demissão? Mais: se esse regime constrói a indiferença entre aqueles que se julgam vencedores, sua contrapartida é a resignação – perversa- entre aqueles que parecem não merecer o pódio. A destruição causa uma sensação constante de que não há o que fazer – indiferença e resignação como afecções complementares. Há mudança a partir da resignação?

    Não.

    Há mais do que isso.

     

    \"\"

     

    – Mas, D. Antônia, o que você tá fazendo aqui?

    – Ah, eu passei um pouco mal, mas agora já tô bem. Não posso deixar de estar nesse momento, né? As coisas andam complicadas.

    – Eu sei que andam. Mas é que você precisa cuidar da sua saúde.

    – Cuidar da minha saúde é também estar aqui. Não aguentava mais ficar em casa. Eu gosto mesmo é de estar aqui.

    ***

    Quais são as primeiras coisas que sentimos quando nos deparamos com esse diálogo? Talvez uma indignação (justa) de saber que uma senhora, submetida à violência da austeridade, se levanta ao dia seguinte para seguir ao trabalho, para aquele mesminho lugar que a violenta. Talvez, quem sabe, um assombro, sobre isso que gostamos de chamar de resiliência, na busca implacável pela sobrevivência? Estarão, os sentidos e as possibilidades, dessa atitude de D. Antônia restritas às nossas hipóteses? Cabe o sorriso de D. Antônia em nossas explicações?

    Não gosto de teorias que atribuem à esse sorriso qualquer explicação que tire de D. Antônia sua capacidade de se reconstruir: alienação, clientelismo, venda desesperada de sua força de trabalho, qualquer dessas ideias de sempre. Gosto mais de achar que há coisas aí que eu não tô sabendo reconhecer, que ultrapassam minhas leituras, debates, práticas sistemáticas. Reconhecer isso não nega a perversidade do que critico e denuncio, contra o qual sigo construindo minha vida. Reconhece, apenas, a possibilidade de existência, para além do que dizem ser inevitável. O que há, afinal de contas, no sorriso de D. Antônia?

    Tendo a achar que há laços, vidas, conexões que, quando olhamos lá de cima, não conseguimos ver. Diante da destruição contínua operada pelo capitalismo e por essa atual fase de avanço neoliberal, algo segue sendo reerguido. Lembremos que atrás dos números, há pessoas. Pessoas que reconstroem e reinventam suas vidas, diante de projetos de separação, exclusão e fronteiras. Talvez elas não nos salvem (não é essa a ideia). Mas preciso acreditar que elas nos inspirem, com tudo o que são: contradições, capturas e, sim, potências. É nessas sementes cotidianas que talvez possamos reafirmar: como o capitalismo sabe destruir pessoas! E, ao mesmo tempo, como ele não entende nada, nada, sobre o que as constrói.

    Não tenho pretensões de otimismo, mas de transformação – inclusive daquilo que sempre foi na esquerda considerado não como o antídoto, mas como o veneno. O que nos acostumamos a ver com maus olhos é, justamente, o que talvez nos leve a lembrar do que nos faz lutar. Não consigo, mesmo, deixar de me preocupar com o niilismo que vejo nos arrebatar todo dia: uma outra versão do argumento inimigo, que nos diz que não há o que fazer. The dream is over. Seria mesmo essa a nossa saída [um meteoro?]? Se é verdade que os tempos andam críticos, como não vê-los apenas como uma declaração de nossa derrota? A crítica, uma “iluminação crítica” de tudo isso que está aí nos leva a um outro lugar, não menos perverso: deixamos de sentir, de tanto que já sabemos como as coisas funcionam. A questão que me mobiliza talvez seja: como não morrer um pouco cada vez que um dos nossos se vai e não deixar que essas mortes, de tão cotidianas, nos sejam apenas naturalizadas? Como, em outras palavras, não conjugar a indiferença e a resignação?

    Acredito que é preciso criar refúgios – como diz Donna Haraway. Os refúgios que nos façam sobreviver à esses tempos estranhos que destroem tudo, que tentam nos convencer que saída é individual, autossuficiente. É preciso que nos tornemos dependentes do máximo de pessoas possíveis, como aprendi no movimento autônomo do DF – mais conectados do que nunca. Abdicar desses laços é construir o oposto: é apoiar as desconexões sobre as quais o capitalismo e o neoliberalismo se criam. Aqui, referenciando mais um laço daqueles que me constituem, me lembro de Ju Llama e Cled Pereira, na indagação que precede esse texto em muito: “Como manter as pessoas vivas?”. Talvez só agora tenha entendido o desenho que acompanha a campanha: uma cigarra, com asas tremendo. Aquelas mesmas cigarras que, apesar de atormentar os ouvidos dos brasilienses sedentos por silêncio, passam 1, 2, 17 anos embaixo da terra – até que emergem, de seus refúgios, com um canto coletivo que joga na cara de todos nós que há coisas que se criam no subterrâneo. Curiosamente semelhante ao que dizem os zapatistas, quando se viram diante de um mundo surpreso com sua resistência, no auge do neoliberalismo mexicano: “As grandes transformações não começam “por cima”, nem com feitos monumentais e épicos, senão através de persistentes movimentos, algumas vezes, pequenos em sua forma, que aparecem como irrelevantes para os analistas que olham de cima. A história se transforma, a partir da construção consciente de organizações e forças sociais que se conhecem e reconhecem mutuamente, desde baixo e à esquerda, e constroem uma outra política.”

    A única saída, para nós mesmas, é retomarmos, reconstruirmos, reinventarmos os laços que esse sistema tenta nos tirar. E temos que lembrar, sempre, que o erro do capitalismo é achar que a cigarra é formiga.

    *****

    Quando me dispus a escrever esse texto, minha tentativa era a de reavivar a esperança. Não suporto a melancolia desses tempos, a vejo entre as armas mais eficazes para que continuemos neles, caminhando como se não houvesse outros possíveis, outras potências, outras formas de fazer mundos além dessa que nos esmaga. “Defendamos la alegria, el inimigo la teme” – dizia uma frase que ouvi, ainda no começo dos anos 2000, em um cd produzido pelos Hijos, organização argentina de filhos de militantes sequestrados pela ditadura daquele país. A frase se repete em looping na minha cabeça, como uma espécie de antídoto às insígnias inimigas que nos condenam. No meio desse processo, perdi um amigo – não sei bem para que monstros internos. Talvez como uma saída clássica, um subterfúgio de militante que sou, não consigo desconectar essa perda da cara também monstruosa dos tempos de fim de mundo que vivemos. Não sei se consegui ser esperançosa. Mas espero ao menos ter conseguido ser urgente: precisamos descobrir como nos manter vivas. E não podemos mais esperar.

    [1] Nome fictício

    [2] Doutrina econômica que aposta no controle e corte dos gastos, inclusive em áreas sociais e de garantia de direitos, para superação da crise econômica.

    [3] “The social production of indifference: Exploring the Symbolic Roots of Western Bureaucracy”, 1992.

     

    Ilustrações de Juliana Del Lama | Texto revisado por Camila B.

  • Quando Quebra Queima: revolta dos erês e a doçura da sabotagem

    Quando Quebra Queima

    A revolta dos erês e a doçura da sabotagem

    por: Gabriela Acerbi e André Fogliano

     

    os gestos menores que confrontaram o Leviatã com a inocência tumultuada dos erês. A revolta dos erês, poderíamos dizer, sabotou, com alegria, mandinga e sagacidade rueira – como num jogo de capoeira, lúdico e mortal –, a ordem das coisas de um sistema de ensino e de segurança que mata preto e pobre todo dia

     

    É sempre estranho traduzir em relato algo quase da ordem do insondável, do inexprimível. A performance quando quebra queima é um experimento desse tipo: faz com que ginguemos com o indizível. Criação do grupo coletivA ocupação, grupo formado em sua maioria por estudantes secundaristas que fizeram parte das ocupações das escolas públicas de São Paulo em 2015, vergando de joelhos a maquinaria de governo do tucanistão, como poucas vezes se viu, a peça é um desdobramento encenado dos meses de molecagem insubmissa que enxameara no correr daqueles dias.

    quando quebra queima rodeia e fustiga, em tom de brincadeira festiva, dançante e movente, essa camada intempestiva que emerge das barricadas da revolta. quando quebra queima traz a experiência da revolta por outros meios. Revolta dançada, essa peça-ato é um convite para compormos com os sentires e os desejos destravados nas ocupações. Esse baile (funk) afetivo – sa-sabote, sabote o Estado – coreografa maliciosamente àquele momento em que se imaginou politicamente um ritmo e uma batida outros para a escola, para a cidade e para a própria vida. A peça–ocupação é um jeito de afirmar esse acúmulo de desejo que numa contra-dança maloqueira bandou o Estado no chão, deixando evidente que a política de governo imposta não quer outra coisa senão separar os corpos daquilo que eles podem, de sua força desejante.

    O que mais impressiona na peça-ato é, justamente, a exuberância transbordantes dos corpos. Corpos-estranhos, como queria Mateusa, cabelos pluricoloridos em cachos encrespados, transbordando melanina pelos poros, ventando em zigue-zague por entre o público, encarando-os de frente com a coragem da verdade para berrar com jeito: pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro. É preciso encarar o indomável, o insuportável, assim, tete à tete, papo reto, um sorriso abusado de canto, para ser contaminado afetivamente pela semiose fervilhante do levante.

    A memória daqueles dias é contada em fragmentos de imagens, fotos, vídeos, palavras, música, traquejos corporais sinuosos, signos que manejam os gestos menores que confrontaram o Leviatã com a inocência tumultuada dos erês. A revolta dos erês, poderíamos dizer, sabotou, com alegria, mandinga e sagacidade rueira – como num jogo de capoeira, lúdico e mortal –, a ordem das coisas de um sistema de ensino e de segurança que mata preto e pobre todo dia. No mesmo espaço em que seus futuros são diariamente sequestrados, colonizados, exterminados, ali, justamente, os erês indomáveis mostraram que o sistema não aguenta a força desses novos corpos-estranhos, preto-feminino-queer, transando e bejiando na boca um mundo outro.

    Chega, então, o momento inevitável de pular os muros. Atravessar os portões. Levar a sala de aula para o meio da rua. Cedinho, antes da roda do capital começar a girar. Coloca o pé aqui, salta! Dá-me a mão. Depois as barricadas com as cadeiras, as assembleias da madrugada e o motim desordenado da manhã. As festas, claro, sem zoeira não rola. Entra na roda e ginga. Batalha de passinhos. Exu nas escolas. E comida: macarrão, muito macarrão. Café passado ao tumulto. Açúcar, faxina e uma dose de rebeldia. Fora os macho escroto. La digna rabia é baile de baque solto e paixão. Só que agora os vermes estão vindo: Corre, corre! A PM chegou! Pra onde vamos agora? Cuidado: a primeira pessoa que a polícia vai pegar é uma pessoa preta. medo. Assusta. Mas nosso ódio pelo mundo como tal e o amor pela vida é parecido e hoje a cidade vai ser nossa.

    Depois de assistir à quando quebra queima, uma coisa fica evidente: naqueles dias ocupou-se o mundo com artimanha, beleza e doçura. O mundo foi ocupado com sensualidade melanodérmica. Essas ocupações fizeram entrever uma escola que compunha corpo, cuidado e luta. Coreografava-se uma nova ecologia do cuidado, do corpo, da luta. Gestava-se um território existencial diverso, uma cabaça da existência variada, que se parecia com os contornos de um terreiro aquilombado: corpo, cuidado e luta – comida, dança e festa. Escola: quilombo-afrofuturista.

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    Ao experimentar com quando quebra queima, borra-se as separações espaço-temporais entre o espetáculo e as ocupações. Deve-se experimentá-las em co-composição, continuidade, experiência em ato. Prolongamento. Aliança. É de alguma forma um mesmo terreiro existencial, com suas vibrações singulares a cada caso, a cada incorporação, a cada roda. O que mais pode ser a Escola além disso que foi, uma pedagogia da tristeza? É possível destituí-la com táticas de sabotagem dançante? É possível recriar, reinventar, refazenda e refazendo tudo? É possível coreografar outros passos, outras gingas, e forjar novos usos?

    É Negri quem fala da luta contra a desfiguração da vida e do amor. Contra esses mecanismos de degradação e repressão. E como ele coloca, há um sentido de positividade na construção de projetos plurais: há comunidade, liberdade. Há vontade de luta, doçura da sabotagem e todo um tempo do amor que é arrancado ao sistema. Esse tempo existe, reforça: um tempo arrancado do inimigo.

    Nada sei de grandes projetos de reconstrução. Só sei que milhões e milhões de seres humanos como eu constroem a cada instante uma alternativa de desejo, sei que este enorme acúmulo de desejo atrapalha o funcionamento do sistema, e sei que este tempo outro que quero viver constrói um signo de contradição ao inimigo e uma esperança para mim.

     quando quebra queima diz algo desse tempo em que se sentiu liberto. Tempo em que se sabotou gingando as engrenagens estatais, militares, midiáticas. Tempo que se desdobrou numa recusa que era riqueza transbordando os muros. Esse tempo liberto [esse imediato] pode ser uma dança – uma dança que também é doce, como aqueles que honramos aos erês. Essa escola que vem aquilombada, com corpos-estranhos, e uma pedagogia da alegria, do cuidado e da luta. Alegria, essa energia incontrolável que ameaça a ordem brincando: a revolta dos erês.

    Então dance. Dance e sabote o Estado.

    Eu ocupo o mundo com o meu corpo.

    quando quebra queima é sobre aqueles momentos em que o Estado e a pele branca deixaram de ser o centro de gravidade do mundo; esse é o grande acontecimento. E ainda que os delírios dessa modernidade sejam cruéis, essa revelação nos é dada com alegria. Ainda que os arrastões neoliberais nos endividem e tratem os corpos como dos escravos do passado. Há um devir-negro do mundo. E apesar de toda tormenta instaurada, há sobrevivência e força nessa dança-reviravolta. Toda energia aprisionada no corpo está subindo a terra. Circulando. Há ruído no ritual de insurreição e o lugar da dor é agora um lugar da criação.

    Ultima nota: dia 24 de Junho de 2018 foi o último dia da temporada de Quando Quebra Queima no Teatro Oficina. Casa cheia. Corpos eufóricos. Corpos concentrados. Corpos emocionados. Em um mês de lutas e de fogo. E mais uma vez em Junho – que é muita coisa – o calor desses corpos alumiou a rua e a ocupou. Eles trouxeram o prazer da sabotagem. Como é gostoso sabotar o mundo enquanto se dança, sabotar o mundo dançando. Nós temos força pra revirá-lo outra vez.

    Corpo aberto, corpo gira.

    C o r p o R e v o l t a

     

     

    QUANDO QUEBRA QUEIMA é uma peça construída por estudantes que viveram o processo de ocupações e manifestações do movimento secundarista em 2015 e 2016. Frutos da primavera secundarista, 14 corpos insurgentes deslocam para a cena a experiência dentro das escolas ocupadas, criando uma narrativa coletiva e comum a partir da perspectiva de quem viveu intensamente o cotidiano dentro do movimento.

    Ocupando o tempo presente, a ColetivA provoca de maneira pulsante o universo que compõe esse movimento que transformou o corpo e vida de todos que participaram.

    CRIAÇÃO

    Abraão Santos / Alicia Esteves / Alvim Silva / Ariane Fachinetto / Beatriz Camelo / Gabriela Fernandes / Ícaro Pio / Leticia Karen / Lilith Cristina /Marcela Jesus / Matheus Maciel / Mel Oliveira / André Dias de Oliveira / Heitor de Andrade / Martha Kiss Perrone / Mayara Baptista

    https://www.facebook.com/coletivaocupacao/

  • escolas tomadas

    Alunas ocupam universidades no Chile para denunciar violência de gênero

    traduzido por: Bárbara Lopes

    Com ocupações e greves, estudantes universitárias chilenas estão em uma grande onda de manifestações contra a violência machista e por protocolos contra casos de assédio sexual que, segundo as jovens, são acobertados pelas instituições. No momento, são 15 universidades ocupadas e outras tantas em greve. O estopim foi na Faculdade de Direito da Universidade do Chile, ocupada por alunas no dia 27 de abril para protestar contra a demora de uma resposta a uma denúncia de assédio sexual e trabalhista feita há oito meses contra um professor. Em apoio à mobilização, professoras, intelectuais e ativistas políticas fizeram um manifesto que traduzimos abaixo:

     

    Estamos diante de um movimento de transcendência histórica. Estão se levantando, em nosso país, em diversas universidades, assembleias, greves e ocupações feministas, configurando formas de ação coletiva que há poucos anos não eram sequer imagináveis e que hoje estouram no cenário público para desafiar as fundações patriarcais e androcêntricas das instituições universitárias.

    Este novo ciclo de mobilizações, que se inicia por denúncias de assédio sexual e pela insuficiência dos protocolos e normativas existentes, abre uma possibilidade inédita de colocar em questão o sistema de educação superior em seu conjunto, pois tanto a violência machista quanto a reprodução das desigualdades de gênero denunciadas estão estreitamente imbricadas com o caráter antidemocrático e mercantil das instituições educativas.

    Sabemos que a violência de gênero é grande e complexa e que atravessa todas as esferas de nossa vida. Por isso, transformar esta dimensão nas universidades implica transformar estruturalmente a educação, minando as bases do sexismo que reproduz, nas instituições educativas, a divisão sexual do trabalho, reforçando a associação de razão, poder e sucesso no mercado com o masculino e de emotividade, subordinação natural e precarização com o feminino. Neste sentido, não é nada casual que usemos a expressão “casa de estudos” para nomear as universidades, se vemos como estas replica, os papéis de gênero, constituindo assim uma extensão da casa heteropatriarcal na esfera da educação formal.

    A luta contra o patriarcado e contra a reprodução dos papéis de gênero é também uma luta contra a educação de mercado, pois as carreiras feminizadas, associadas aos trabalhos de cuidado, crianças e empatia, são precisamente as mais precarizadas, enquanto que as carreiras tipicamente masculinas são as mais valorizadas socialmente, as mais exitosas no mercado e as que contam com maiores recursos. Isso segue reforçando a reprodução dos papéis de gênero e perpetua a violência contra os corpos feminizados. O feminismo, justamente, convida a desafiar essa reprodução e entender que não podemos lutar contra o patriarcado na educação sem lutar contra o mercado que reforça as assimetrias de gênero e que orienta as instituições educativas.

    Pensar a educação feminista significa pensar a democracia, a liberdade e a igualdade. Ideais que não são sinônimo de empoderamento individual e meritocracia sustentada em privilégios socioculturais e que tampouco podem ser tratados mediante a incorporação cosmética da “perspectiva de gênero” em cursos, programas de aperfeiçoamento ou formação continuada, capacitações ou outros mecanismos característicos da administração universitária neoliberal. Una educação feminista significa transformação desde a raiz, abarcando a ordem jurídica (mudança de estatutos a partir de uma ordenação feminista), igualdade substantiva (procedimentos de paridade, igualdade de salários, etc.), perspectiva teórica feminista para o questionamento geral do conceito de educação e de universidade, das disciplinas até as hierarquias. A educação feminista significa também retomar as bandeiras históricas da luta pela educação pública e insistir na educação como um direito social e na necessidade de financiamento direto às universidades públicas, para poder materializar um projeto educativo transformador e garantir condições de dignidade e igualdade trabalhista para acadêmicas/os e funcionárias/os, porque o feminismo contesta também a precarização do trabalho.

    O feminismo coloca em questão as hierarquias, os privilégios e as desigualdades, já que as assimetrias de poder e o caráter estratificado nos espaços sociais geram condições propícias para o abuso e para sua naturalização. Nesse sentido, a democratização das instituições educativas e o trabalho coletivo são condições de possibilidade para levar adiante a transformação de nossas universidades a partir de uma perspectiva feminista.

    As mobilizações estudantis que explodiram são uma rebelião contra a injustiça que os mandatos do gênero impõem no neoliberalismo. Portanto, o resgate da educação pública da captura do mercado sexista não passa por ter uma universidade mais neoliberal com “perspectiva de gênero”, e sim por derrubar as bases da educação mercantil-sexista para construir a partir do feminismo uma nova educação pública.

    Saudamos e apoiamos com entusiasmo as estudantes que levantaram este movimento e como deputada feminista, professoras universitárias, escritoras e intelectuais fazemos um chamado a assumir um papel ativo nesta mobilização, organizando-nos, criando espaços de discussão e nos articulando em uma aliança feminista ampla, que crie as bases de um novo pacto social por uma nova educação pública, democrática e feminista.

    Assinam:

    • Camila Rojas Valderrama. Diputada Izquierda Autónoma. Frente Amplio.
    • Beatriz Sánchez. Instituto de Comunicaciones e Imagen. Universidad de Chile.
    • Faride Zerán Chelech. Universidad de Chile.
    • Diamela Eltit. Escritora.
    • Nelly Richard. Crítica Cultural y Ensayista.
    • Alejandra Castillo. Filósofa feminista. Departamento de Filosofía. Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación.
    • Daniela López Leiva. Encargada Feminista Diputación Camila Rojas Valderrama.
    • Pierina Ferretti. Socióloga. Centro de Estudios Culturales Latinoamericanos Universidad de Chile – Fundación Nodo XXI.
    • Camila Miranda. Directora Fundación Nodo XXI.
    • Carolina Olmedo Carrasco. Universidad Alberto Hurtado. Directora Fundación Nodo XXI.
    • Yesenia Alegre Valencia. Socióloga. Universidad Viña del Mar. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Leticia Arancibia Martinez. Pontificia Universidad Católica de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Gloria Caceres Julio. Pontificia Universidad Católica de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • María Angélica Cruz. Universidad de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Mónica Iglesias. Instituto de Sociología. Universidad de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Patricia González San Martín. Facultad de Humanidades. Universidad de Playa Ancha. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Tania de Armas Pedraza. Directora Departamento de Sociología Universidad Playa Ancha. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Sonia Reyes Herrera. Instituto de Sociología Universidad de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Lorena Zuchel Lovera. Departamento de Estudios Humanísticos UTFSM. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Jeanne Hersant. Departamento de Sociología Universidad de Playa Ancha. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Alejandra Ramm Santelices. Universidad de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Claudia Montero. Instituto de Historia y Ciencias Sociales Universidad de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Maribel Ramos Hernández. Departamento de Sociología Universidad de Playa Ancha. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Marjorie Mardones Leiva. Facultad de Ciencias Sociales. Universidad de Playa Ancha. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Pamela Soto Vergara. Psicóloga. Universidad Andrés Bello.
    • Luna Follegati Montenegro. Historiadora. Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación.
    • Rosario Olivares. Departamento de Filosofía. Universidad Alberto Hurtado.
    • Carolina Avalos. Facultad de Filosofía y Humanidades. Universidad Austral de Chile.
    • Lelya Troncoso. Trabajo Social. Universidad de Chile.
    • Mia Dragnic. Socióloga. Maestra en Estudios de Género. Universidad de Chile.
    • Caterine Galaz. Trabajo Social. Universidad de Chile.
    • Hillary Hiner. Escuela de Historia. Universidad Diego Portales.
    • Laura Albornoz Pollmann. Departamento de Derecho Privado. Universidad de Chile.
    • Daniela Marzi. Universidad de Valparaíso.
    • Javiera Arce. Universidad de Valparaíso.
    • Isabel Piper. Psicología. Universidad de Chile.
    • Paula Quintana. Instituto de Sociología. Universidad de Valparaíso.
    • Antonella Marín. Instituto Arcos Viña del Mar.
    • Paula López. Instituto Arcos Viña del Mar.
    • Eloid Chabaud. Instituto Arcos Viña del Mar.
    • Ana Luisa Muñoz. Profesora de Historia e Investigadora.
    • Claudia Rojas Necuhual. Facultad de Economía y Negocios. Universidad de Chile.
    • Ana Traverso. Facultad de Filosofía y Humanidades. Universidad Austral de Chile.
    • Karen Alfaro. Facultad de Filosofía y Humanidades. Universidad Austral de Chile.
    • Mónica Peña. Facultad de Psicología. Universidad Diego Portales.
    • Ariadna Biotti Silva. Archivo Central Andrés Bello. Universidad de Chile.
    • Javiera Carmona Jiménez. Universidad de Playa Ancha.
    • María José Yaksic. Magíster en Estudios Latinoamericanos. Universidad de Chile.
    • Ximena Azúa. Facultad de Ciencias Sociales. Universidad de Chile.
    • Daniela Jara. Instituto de Sociología. Universidad de Valparaíso.
    • Carolina Benavente Morales. Centro de Investigaciones Artísticas. Universidad de Valparaíso.
    • Javiera Robles Recaberren. Doctoranda en Historia. UNLP/IIGG-CONICET
    • Karin Berlien Araos. Departamento de Ingeniería Comercial. Universidad de Valparaíso.
    • Pamela Jaime Elías. Profesora de Historia.
    • María Isabel Puerto Perez. Abogada. Docente Universidad de Valparaíso.
    • Verónica Francés. Arquitecta. Centro de Investigaciones artísticas. Universidad de Valparaíso.
    • Carolina Andrade Amaral. Encargada Oficina Comunal Diversidades Sexuales y Docente en Violencia de Género. Universidad Andrés Bello.
    • Sara Avalos Urtubia. Profesora de Historia y Geografía. ONG Contra de Reñaca Alto.
    • Sandra Rojas Cáceres. Trabajadora Social. Universidad de Viña del Mar y Universidad de las Américas.
    • Ana Gálvez Comandini. Historiadora. Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación.
    • Alejandra Zuñiga Fajuri. Escuela de Derecho. Universidad de Valparaíso.
    • Marcela Díaz Rebolledo. Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales FLACSO Chile.
    • Sofía San Martín Moreno. Socióloga. Universidad de Playa Ancha.
    • María Soledad Vargas Carrillo. Pontificia Universidad Católica de Valparaíso. Directora Magister en Comunicaciones.
    • Lina Marín Moreno. Universidad de Valparaíso.
    • Nico Mazzucchelli. Trabajadora Social. Académica Universidad de Viña del Mar y Universidad de Valparaíso.
    • Nicole Cisternas Collao. Socióloga.
    • Carolina Pinto. Socióloga. Académica Universidad de Viña del Mar.
    • Claudia Espinoza. Universidad de Valparaíso.
    • Tamara Ortega Uribe. Socióloga. Universidad de Playa Ancha.
    • Camila Arriagada B., Unidad de Control de Proyectos Universidad Técnica Federico Santa María
    • Claudia López, Departamento de Informática y Observatorio de Género en Ciencia e Ingeniería UTFSM.
    • Paulina Santander Astorga, Departamento de Industrias y Observatorio de Género en Ciencia e Ingeniera UTFSM.
    • Marianna Oyanedel, Departamento de Estudios Humanísticos UTFSM.
    • Aldonza Jaques, Departamento de Ingeniería Química y Ambiental UTFSM
    • Marcela Prado Traverso Facultad de Humanidades, Universidad de Playa Ancha
    • Francesca Iunissi, Facultad de Ingeniería, Universidad de Playa Ancha
    • Karen Alfaro, Facultad de Filosofía y Humanides, Universidad Austral de Chile
    • Ana Traverso, Facultad de Filosofía y Humanidades, Universidad Austral de Chile
    • Paola Bolados, Instituto de Historia y Ciencias Sociales, Universidad de Valparaíso.
    • Karina Marambio Guzmán, Escuela de Psicología. Universidad de Valparaíso.
    • Esperanza Díaz Cabrera, Profesora de Historia, Magíster en Historia.
    • Verónica Figueroa Huenchu. Instituto de Asuntos Públicos. Universidad de Chile.
    • Paulina Vergara Saavedra. Instituto de Asuntos Públicos. Universidad de Chile.
  • A destruição da empatia (e as lágrimas felizes)

    por Amador Fernández-Salvater

    Originalmente publicado em espanhol em: https://www.eldiario.es/interferencias/8M-Patricia_Ramirez-Mame_Mbaye_6_753184690.html

    Tradução Tática: Alana Moraes, Anne Clio, Graciela Foglia, Henrique Parra

    É possível ler a conjuntura política não simplesmente como uma disputa entre diferentes grupos pelo poder, mas como um choque entre diferentes percepções da vida social, entre diferentes sensibilidades da vida em comum?

    Vamos experimentar responder a essa pergunta apoiados no sugestivo conceito de \”pedagogia da crueldade\” proposto pela antropóloga Rita Segato. Explico muito brevemente esse conceito abaixo.

    Em nossas sociedades a vida se torna cada vez mais precária: o desamparo e a falta de proteção são tendências gerais e transversais.

    O capitalismo de hoje não procura simplesmente a sua reprodução regulada, mas busca incessantemente a conquista de novos territórios objetivos e subjetivos: novas terras e novas camadas do ser para explorar. É um capitalismo de rapina.

    Essa conquista permanente exige, não apenas a abolição das antigas regulações e proteções (muitas vezes fruto das lutas dos debaixo), mas de uma dessensibilização radical.

    Na guerra de todos contra todos, a competição geral e o salve-se quem puder, o outro deve ser percebido acima de tudo como um obstáculo, uma ameaça: como inimigo.

    O princípio da crueldade se realiza como redução da empatia: o outro é descartável e dispensável, nenhum fio me liga a ele, nossos destinos não têm nada em comum.

    Existe toda uma \”programação neurobélica de baixa empatia\” em nossas sociedades. E a violência aqui é a ferramenta chave: lança a mensagem instrutiva de que o outro (mulher, velho, migrante, pobre, negro, dissidente) é supérfluo, pode ser eliminado.

    O que sustenta as políticas de precarização da vida é uma certa configuração (ou desconfiguração) da percepção e da sensibilidade. Estas são questões políticas de primeira ordem, mas as análises de conjuntura as ignoram, concentrando-se em vez disso nas manobras partidárias, nas intrigas palacianas, nas relações de força entre organizações e facções, nas sondagens e na \”opinião pública \”. É necessário e urgente equipar-se com uma sensibilidade poética sismográfica para entrar e descrever este plano de realidade.

    Direitização afetiva

    Muitas vezes já foi dito. O 15M (movimento dos Indignados) funcionou na Espanha como um \”firewall\” contra a ascensão do populismo de direita que se estende nos níveis micro e macro em toda a Europa: Frente Nacional, Brexit, Alternativa para a Alemanha, Pegida, Liga do Norte, Casa Pound, Amanhecer Dourado.

    Mas que tipo de \”firewall\” foi aquele? De nossa parte, ainda insistimos em pensar e descrever o 15M como um efeito de sensibilidade. Um fenômeno de sensibilização coletiva. A partir de maio de 2011, uma espécie de \”segunda pele\” foi implantada por toda a sociedade, através da qual se sentia como algo próprio e próximo o que acontecia a outros desconhecidos.

    Isso não significa que todos estavam presentes em cada despejo nos bairros, em cada acompanhamento de um migrante sem cartão de saúde, em cada confinamento em uma escola ameaçada de cortes, mas sim que havia um clima social geral que envolvia, conectava e amplificava cada ação, cada iniciativa. O 15M criou um comum sensível no qual era possível sentir os outros e com os outros, como semelhantes.

    Essa pele foi arrancada ou adormeceu, enfraquecida em grande parte por uma \”verticalização\” da atenção e do desejo, depositada e delegada durante o \”ataque institucional\” da promessa eleitoral da nova política (Podemos, confluências, etc). Cativados pelos estímulos que vinham de cima (TV, líderes, partidos), negligenciando o que acontecia ao nosso redor, a pele rachou.

    Na realidade, não saímos de nenhuma crise: simplesmente perdeu-se o contato sensível entre os \”afundados\” e os \”salvos\” (ou aqueles que pensam que estão salvos por enquanto). A retirada do \”firewall\” 15M deixa o caminho livre para as forças que estão sempre aí: o aprofundamento e a consolidação da precariedade existencial geral, a guerra de todos contra todos, o salve-se quem puder.

    O veneno de amargura que reside em cada um por tantas humilhações sofridas no cotidiano, sejam grandes ou pequenas, reais ou imaginárias, torna-se o ferrão de um ressentimento vitimista, circulando hoje com prazer pelas redes sociais.

    A \”direitização\” da qual se fala ultimamente, especialmente como a raíz do que \”despertou\” em toda Espanha no conflito da Catalunha, não é, em primeiro lugar, uma questão ideológica, identitária ou política, mas uma tensão social e afetiva. Um endurecimento da percepção e sensibilidade.

    O fundo do conteúdo das bandeiras espanholas que ainda podem ser vistas em tantas varandas (já valem para a copa do mundo …) é o medo, a amargura, a solidão, o desejo reativo de ordem, consumo e punhos cerrados contra tudo que desestabilize ou desvie a ficção da normalidade, com o anti-catalanismo como o primeiro elemento aglutinante.

    Ciudadanos (com fortes ressonâncias de Macron) é certamente o partido que, de maneira mais desenvolta, agita hoje essa \”paixão obscura\” (Diego Sztulwark) a fim de capturá-la mais tarde eleitoralmente, fazendo dela a base do projeto político de transformar a sociedade em uma empresa total. Onde só há lugar para os vencedores, onde não há espaço para os adversários (destituídos como interlocutores mediante a repressão, a censura e a criminalização), nem tampouco para as \”anomalias\” (como os comuns urbanos, as ocupações, os ambulantes).

    Nesse fundo obscuro e tenso também aparecem vozes e movimentos que convocam outra sensibilidade, ativam outra percepção e abrem outra pele. Sem nenhum espírito exaustivo ou totalizante, vou me concentrar em três exemplos (há mais). O 8 de março e as mobilizações em torno das mortes de Gabriel Cruz e Mame Mbaye.

    O mandato de masculinidade

    Segundo Rita Segato, a primeira expressão da pedagogia da crueldade é a violência machista. O capitalismo do roubo instaura um campo de batalha no corpo das mulheres.

    Na condição de precariedade geral, a posição do homem está fragilizada: ele não pode prover, ele não pode ter, ele não pode ser. Mas ao mesmo tempo ele tem que provar que ele é um homem. Os machos estamos submetidos a um \”mandato de masculinidade\” que nos obriga a demonstrar força e poder: físico, intelectual, econômico, moral, bélico etc. O mandato da masculinidade hoje se traduz assim em um mandato de violência.

    O estupro não é erótico ou prazeroso, mas uma demonstração de poder. O poder do impotente, ansioso para provar que ele é, que segue sendo um homem. É uma mensagem que um homem envia a outros homens: eu posso, sou capaz, sou dono das vidas. Não é um fato excepcional, algo feito por machos monstruosos ou \”psicopatas\”. Se assenta em uma base composta de mil violências cotidianas e transversais: no espaço público e no íntimo, na rua e na casa, no trabalho e nos relacionamentos.

    A mulher não é simplesmente um corpo-vítima da violência. O que se agride nas mulheres é precisamente sua força insubmissa ao mandato de masculinidade, a capacidade de criação de vínculos, de laços, de redes, de cumplicidades, de empatia e comunidade.

    O 8M visibilizou milhares de mulheres em toda a Espanha dizendo basta, em uma jornada inaudita de greve e manifestações massivas. Seus cantos e cartazes podem ser lidos como um registro detalhado das milhares de violências diárias que habitam a \”normalidade\”. As mulheres não voltam iguais depois de terem vivido uma jornada tão excepcional, mas voltam mais unidas e mais fortes. O 8M é apenas a crista de uma onda grande que impulsiona a transformação completa da vida cotidiana, um \”viveiro\” da violência mais espetacular que vemos no noticiário.

    E também pode ser assumido como uma ocasião para os homens que querem desobedecer o mandato da masculinidade e sair desse circuito funesto entre a indigência existencial extrema e a obrigação de demonstrar poder. Como um convite à metamorfose.

     

    As ações bonitas

    O desaparecimento e a busca de Gabriel Cruz, o \”peixinho\”, tem sido um fenômeno altamente midiatizado. .

    A mídia e as redes sociais são hoje, especialmente de um tempo pra cá, os veículos privilegiados da pedagogia da crueldade. As tendências a espetacularização (o mórbido), a simplificação da realidade (o juízo e não o pensamento) e a polarização social (a lógica de bandos, bons e maus), os atravessam transversalmente. Mas não importa se a realidade é instrumentalizada à favor da direita ou da esquerda: se contribui, em qualquer caso, para a destruição da sensibilidade, do pensamento e da autonomia.

    Apesar de tudo, a mídia e as redes facilitaram por vários dias a ativação de muitas pessoas que ajudaram na busca de Gabriel ou queriam fazer com que sua família sentisse calor e solidariedade. O apoio se transformou em ódio quando se encontrou o corpo do menino e se conheceu a identidade do assassino: mulher, estrangeira, negra. Neste contexto, a voz de Patricia Ramirez, mãe de Gabriel, ressoou como vinda de outro mundo, quando na verdade vinha do amor mais comum que existe: o amor de mãe.

    Sua mensagem principal: não se concentrar na raiva e no inimigo, mas na solidariedade e \” nas ações bonitas\”. Deslocar a atenção para os gestos de apoio que \”traziam o melhor das pessoas\” durante esses dias. Que o que permaneça, no absoluto absurdo da morte de Gabriel, é a memória calorosa do abraço social. \”Porque outras pessoas vão precisar disso no futuro.\”

    De onde Patrícia conseguiu forças para não ser envenenada pelo desejo de vingança? É a questão que os jornalistas perguntavam repetidas vezes, perplexos e impressionados. E ela sempre respondeu da mesma forma: \”Em homenagem ao peixinho, ele não era assim e eu também não\”. Ou seja, não é que Patrícia tenha conservado o \”bom senso\” e a \”cabeça fria\”, como se os afetos levassem diretamente ao ódio e à raiva e apenas a \”razão\” pudesse contê-los. Essa é a visão masculina típica. Na verdade, é exatamente o contrário: a voz de Patricia veio do amor por seu filho, de gratidão para com aqueles que se moviam por ele e do desejo de que sua memória não estivesse associada à raiva vingativa. Dos afetos.

    Precisa e preciosa palavra, cheia de humanidade e ternura, rica em metáforas muito físicas (relacionadas frequentemente à água: o rio aberto, a onda de solidariedade, a ressaca da dor…), a voz de Patricia conseguiu desarmar a voracidade da mídia e redes sociais, baseada na lógica da espetacularização, simplificação e polarização social.

    E nos trouxe, indiretamente e como um presente, algumas indicações de que todos podemos converter em modos de resistência a destruição da empatia e o cultivo de outra sensibilidade: implicar-nos em vínculos de cuidado, buscar a intimidade e o silêncio, agradecer o carinho, transformar os afetos reativos em afetos ativos, evitar a instrumentalização, não deixar que outros falem em nosso nome, não buscar excessivo protagonismo, \”olhar sempre dentro do coração\”.

     

    Guerra entre os pobres

    Mame Mbaye, de origem senegalesa, vizinho de Madrid e trabalhador ambulante, morreu no dia 15 de março no contexto de uma perseguição policial no bairro de Lavapiés. Sem dúvida, quem o matou foi um sistema de maltrato cotidiano que injeta todos os dias o medo, cerceia a felicidade e adoece, destruindo o direito humano à despreocupação, ao descanso e à serenidade, como explica Sarah Babiker.

    Esse sistema de maltrato cotidiano – a lei dos estrangeiros, a desigualdade econômica, as batidas policiais etc. – é precisamente a \”pedagogia da crueldade\”. Mais do que perseguir objetivos específicos, como a erradicação do comércio ambulante, o que se busca é produzir insensibilidade: marcar e nos fazer ver o outro como outro, distinguir entre os afogados e os que estão salvos, entre os que estão dentro e os que estão fora, nos fazem cortar a empatia e toda a solidariedade possível.

    Provocar uma guerra entre pobres, quando na verdade o coletivo de trabalhadores ambulantes é apenas o ponto mais extremo das tendências gerais de que hoje ninguém está a salvo: insegurança, vulnerabilidade e desamparo da vida.

    Um dia depois da morte de Mame Mbeye, os discursos que foram improvisados ​​na concentração da praça Nelson Mandela de Lavapiés misturava a raiva digna (de uma morte intolerável) e as palavras que apelavam novamente à igualdade, à humanidade comum, à empatia. Contra o mandato da crueldade: não sentir, não sentir com os outros, não co-moverse.

    Os oradores não falavam menos do que três idiomas (inglês, francês, espanhol), mostrando assim a potência que existe na vida migrante: a energia, as capacidades e os saberes que habitam aqueles corpos acostumados aos trajetos mais difíceis, à aprendizagem e à realfabetização constantes, à criação de redes de apoio e cumplicidade.

    Eles não são apenas pobres ou vítimas que merecem nossa compaixão, mas neles habita uma grande riqueza, um grande potencial que nossa sociedade não conhece nem deseja acolher. Como lembrou Malick Gueye, porta-voz do sindicato dos trabalhadores ambulantes, Mame não era apenas um \”camelô\”, mas uma pessoa envolvida na luta pelos direitos sociais e um artista, à quem não foi autorizado praticar sua profissão na Espanha.

    Lágrimas felizes

    Confesso:

    Me caíram lágrimas no 8M vendo logo no início da manhã um \”piquete\” de meninas menores de 16 anos (e meninos, na retaguarda) andando no meu bairro com jatos de energia e lucidez infinita em seus slogans.

    Me caíram lágrimas ouvindo Patricia Ramírez pedindo às pessoas para que \”tirassem a bruxa da cabeça\” e lembrassem das \”ações bonitas\” que ocorreram durante a busca por Gabriel.

    Me caíram lágrimas escutando os oradores da praça Nelson Mandela de Lavapiés apelarem, logo um dia depois da morte (morte política) de Mame, à humanidade compartilhada, à igualdade de todas as pessoas.

    O filósofo e escritor George Bataille dizia que há \”lágrimas felizes\”. Não são exatamente lágrimas de alegria, mas de emoção por ver algo \”milagroso\” acontecer: imprevisível, inesperado, impensável, impossível mas verdadeiro.

    É \”milagroso\” ouvir aqueles que sofreram um imenso dano falar em lutar por mais vida e não por mais morte, por mais humanidade e não por menos, por mais empatia e não por mais guerra de todos contra todos.

    Que molhemos mais os olhos dessas lágrimas para despertar e reativar nossa pele endurecida pelo princípio da crueldade.

     

    Obrigada Marga, Marta, Diego, Ema, Guille, Jabuti, Miriam, Juan, Leo pelas conversas.

    Foto: Luis Gene (AFP)

  • Geisel e a insistência do Brasil extra-legal

    Mas o leitor, a esta altura, pode estar se perguntando o que isto tem a ver com as atuais violações de direitos cometidas pelo Estado. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, citados e analisados na dissertação de Marielle Franco (“UPP – a redução da favela a três letras”), constata-se que “entre o ano de instauração e o seguinte, há um crescimento na ordem de 72,7%” nas áreas sob a ação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

     

    por: Edson Teles

    “O Presidente e o general Figueiredo concordaram que quando o Centro de Informações do Exército (CIE) prender alguém que possa ser enquadrado nesta categoria [subversivo perigoso], o chefe do CIE consultará o general Figueiredo, quem deverá aprovar antecipadamente a execução da pessoa”.

    Esta cena estarrecedora do crime de Estado consta de um memorando da Agência Central de Inteligência norte-americana (CIA), de abril de 1974. Trata-se da descrição de uma reunião do alto comando militar do país, com a presença do general presidente Ernesto Geisel, do chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) e futuro presidente, general João Batista Figueiredo, e dos generais comandantes do CIE, Milton Tavares de Souza e Confucio Danton de Paula Avelino.

    O memorando, cujo título é “Decisão do presidente brasileiro Ernesto Geisel de continuar a execução sumária de subversivos perigosos sob certas condições”, tem gerado interpretações e debates neste momento em que se torna público. Possui seis parágrafos, sendo que dois deles, o primeiro e o quinto, são mantidos ainda hoje como sigilosos (“não desclassificados”).

    Não fosse o Brasil um país sob inúmeras ilegalidades, com forte atividade de violação de direitos por parte do Estado e sob intervenção militar no Rio de Janeiro e presença dos generais no cotidiano da política, tal memorando poderia passar quase desapercebido da opinião pública mais geral.

    Gostaria de colaborar com a releitura do momento histórico descrito no memorando a partir de três apontamentos principais, os quais, me parece, conectam a política de extermínio da ditadura com as práticas do Estado genocida do presente: o desaparecimento forçado; os “métodos extra-legais”, como teria dito o general Milton Tavares no memorando; e, a não abertura dos arquivos militares.

    Ao tornar evidente a cadeia central de comando na política de execução, algo já sabido e certificado pelo Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), algo escapou de uma análise mais imediata: a decisão de desaparecer com os corpos executados. Vejamos os números, de acordo com o mesmo relatório da CNV. No ano anterior à dita reunião, 1973, sob o governo do general Médici, 79 pessoas foram executadas segundo os “métodos extra-legais”. Destes, 31 foram considerados mortos, com a apresentação do corpo, e 48 desaparecidos, sem que seus corpos tenham sido devolvidos, nem na época, nem em democracia (das dezenas de opositores desaparecidos na ditadura, até hoje menos de 10 corpos foram localizados e enterrados dignamente).

    Os cerca de 60% de casos de desaparecimento denotam, em 1973, uma política de Estado visando apagar os rastros de seus crimes. Em grande medida, sob o impacto da eliminação de vidas e corpos na região do Araguaia, onde se organizava uma resistência armada, e, ao golpe no Chile, cujo Estado passou a colaborar com as forças repressivas brasileiras e intensificou o desaparecimento forçado no continente.

    No ano de 1974, com o general presidente Geisel, da “abertura lenta, gradual e segura” e que teria ficado famoso por conter a violência e preparar o país para a volta à “democracia”, houve 55 execuções. Foram 2 mortos e 53 desaparecidos. O desaparecimento salta para o índice de 96% do número de executados. Segundo o próprio Geisel, conforme consta do livro “A ditadura derrotada” (Gaspari, p. 387), era preciso “agir com muita inteligência, para não ficar vestígio nessa coisa”.

    Mas o leitor, a esta altura, pode estar se perguntando o que isto tem a ver com as atuais violações de direitos cometidas pelo Estado. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, citados e analisados na dissertação de Marielle Franco (“UPP – a redução da favela a três letras”), constata-se que “entre o ano de instauração e o seguinte, há um crescimento na ordem de 72,7%” nas áreas sob a ação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

    Caso emblemático é o desaparecimento do Amarildo, em julho de 2013. Sequestrado, torturado e assassinado, teve seu corpo desaparecido e nunca mais localizado após ser preso pela Polícia Militar. Há imagens que mostram Amarildo sendo levado para o posto da UPP da Rocinha, onde morava. Exposição cruel do país é que os primeiros protestos de denúncia do seu desaparecimento ocorreram com o fechamento do túnel Zuzu Angel, nome dado ao local em homenagem a mãe de Stuart Angel, desaparecido político em 1971. Zuzu, desde a prisão e desaparecimento do filho, sempre denunciou a ditadura pelo crime. Em 1976, ela morreu em acidente provavelmente montado por agentes da repressão. Para a CNV, sua morte foi montada e efetivada pela ditadura.

    Não se trata de dizer que a política decidida em 1974 ainda esteja em vigência. É bem mais grave a constatação. Trata-se de observar que a “abertura lenta, gradual e segura” do general Geisel e sua tropa produziu uma transição controlada cuja marca maior, em termos das estruturas e estratégias de um Estado repressivo, foi a continuidade em vez da ruptura. O processo político de redemocratização não desmilitarizou a segurança pública, não reviu as práticas das instituições do judiciário e não modificou a Constituição, em 1988, no que tange às polícias e ao controle social pelo Estado.

    Não houve no país uma política de memória e verdade, mal se fez reparações pecuniárias e alguns poucos lugares de memória. Entre 40 e 50 anos após estes crimes se montou uma tímida comissão da verdade. E, principalmente, se evitou ao máximo, nas instituições do Estado, relacionar a violência do passado com as práticas genocidas e de extermínio do presente.

    Hoje tempos um general gestando a segurança pública no Estado do Rio de Janeiro. Os crimes cometidos por militares contra civis voltaram para a justiça militar, como nos tempos da ditadura. Tanques e soldados desfilam pelas ruas de grandes cidades. Intervenção sem planejamento público e conhecido.

    No começo da intervenção militar no RJ, o comandante do Exército exigiu para os militares a “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. É como se as Forças Armadas cobrassem uma “anistia em branco” e prévia à prática de crimes. Seria, caso efetivado, a liberação do uso de “métodos extra-legais” para agir nos morros cariocas, como faziam na ditadura.

    A emergência de documentos comprovando operações de extermínio por parte do Estado brasileiro nos anos 70 tornam eventos da democracia ocorrências ainda mais graves do que já foram. Segundo relatório de pesquisa realizada pela Universidade Federal de São Paulo em parceria, entre outros, com o Movimento Mães de Maio, fica explícito a chacina de mais de 500 pessoas em uma semana, no mês de maio de 2006. O estudo demonstra que os tiros fatais, na sua grande maioria, foram dados de cima para baixo e na região da cabeça. Ação de extermínio via “processos extra-legais”.

    Apesar de haver no país uma razoável lei de informação, não tivemos acesso aos arquivos militares da ditadura. Nem mesmo a Comissão Nacional da Verdade obteve tais documentos. Sim, as Forças Armadas alegam que foram destruídos. Mas isto nunca foi comprovado. São apenas breves declarações em ofícios burocratizados. Não houve até hoje qualquer prova de que realmente tenham sido destruídos. Ao contrário, em alguns poucos momentos do pós ditadura surgiram documentos militares acerca do processo repressivo.

    Bem como, sobre os crimes de maio de 2006, não houve apuração e os documentos oficiais que comprovam o extermínio não foram considerados. A maior parte dos laudos médicos legais comprovam a chacina. O Estado brasileiro, à época, não quis federalizar as investigações, medida necessária devido ao envolvimento de forças policiais do Estado de SP.

    Conhecer hoje o que fizeram Geisel e companhia, diante do quadro de violência e terrorismo de Estado em que vivemos, demanda medidas criativas e inusitadas, sem as quais não há como efetivar processos de democratização. É preciso uma outra comissão da verdade para apurar os crimes do Estado em democracia e relacionando-os às estruturas já expostas pelo relatório da CNV.

    Paralelamente, seria fundamental reinterpretar a Lei de Anistia de 1979, tornando puníveis as graves violações de direitos, em especial os desaparecimentos forçados, o que exporia um modus operandi ainda em prática nas polícias atuais e ainda poderia atingir a cultura de impunidade em vigor.

    Por fim, a possibilidade de termos uma política de segurança pública transparente, não genocida, passa pela abertura dos arquivos militares da ditadura, bem como os referentes às ações das polícias, em especial as militares, que produziram eventos como a “Chacina do Carandiru” ou os “Crimes de Maio”.

  • quando quebra queima, coletivA ocupação: explosão, levante político-artístico e revolução do cotidiano

    por: Jean Tible

     

    \”quando o parlamento vira um teatro burguês,
    todos os teatros burgueses devem se transformar em assembleias\”, 1968

     

     

    Ocupação do Teatro do Odéon (16 de maio de 1968)

     A ocupação do Teatro do Odéon pelo comitê de ação revolucionária do teatro, pelos trabalhadores e estudantes solidários que decidem que o Odéon, Teatro da França, deixa de ser um teatro por um prazo ilimitado.

    Ele se transforma a partir do dia 16 de maio:

    – num local de encontro entre operários, estudantes e artistas

    – uma permanência revolucionária criadora

    – um lugar/assembleia de encontro político ininterrupto.

     

     

    o que vem depois da explosão?

    Em 2018, comemoramos:

    os 100 anos da revolução alemã,

    os 50 anos da revolução global de 1968 e

    os 5 anos da disrupção de Junho de 2013.

    Como continuando vivendo essas explosões? O pensamento conservador tenta conjurar esses acontecimentos (dizendo que já passou, não foi bem aquilo, não deu em nada, foram derrotados…), pois os temem.

    No fim de 2015, houve a magnífica onda de ocupação das escolas. Um movimento alegre, que surpreende e encanta a todos, na talvez primeira derrota do tucanistão (o mesmo grupo político predomina nas instituições estaduais “desde sempre”).

    A irrupção secunda se desdobra, nos anos seguintes, na luta contra a máfia da merenda e depois do corte do passe livre. E continua numa multiplicidade de espaços de luta e vida: em diversas organizações políticas, na atuação cotidiana nas escolas, universidades e locais de trabalho e outras ocupações. A ColetivA Ocupação é um dos frutos dessa faísca.

    O bom encontro de alguns artesãos da cultura com secundas nas ocupações de escolas e nos atos se reforçou com o Rózà nas escolas[1] na qual a peça Rózà, espetáculo criado a partir das cartas de prisão da revolucionária Rosa Luxemburgo dirigido por Martha Kiss Perrone e Joana Levi, percorre em 2016 algumas escolas públicas ocupadas no ano anterior em apresentações seguidas de debates. Na cena final da peça, as três rózàs-atrizes pulam o muro e tomam as ruas onde são projetadas as últimas palavras de Rosa: eu fui, eu sou, eu serei. Logo na primeira escola, um imprevisto que vai se repetir a cada vez: secundas acompanham as atrizes e pulam o muro na sequência. Peça-ato. Forma-se aí a ColetivA Ocupação. A partir de 2017, passam a ensaiar todos os domingos na Casa do Povo.

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    Vários filmes sobre a luta secundarista foram realizados[2] e outros virão. São contribuições importantes. Uma característica, no entanto, fundamental e inovadora de Quando Quebra Queima: a narrativa é feita, encarnada e encenada pelos próprios protagonistas, que ocuparam escolas, ETECs e fábricas de cultura. Vozes próprias e polifonia.

    No início da peça, público e atores estão mesclados. Não é tão simples saber quem é “público” e quem é “ator”, até por que o público também é em parte secunda e uma outra parte constitui uma rede de apoio e aliados dessas lutas (professores, pais, artistas, militantes, comunidade afetiva…). Ícaro diz em certo momento tem muita gente lá fora[3]. Essa distinção existe, mas é tênue e tende a se apagar em vários momentos (músicas cantadas, jogral, corpos mobilizados…). Atores esbarram (ou quase) no público em muitos momentos nesse espaço comum.

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    por-se em movimento

    Narram suas histórias e (re)pensam juntos: como superar o medo e lançar-se? Como se dá o estalo, a decisão de movimentar-se, de enfrentar as estruturas que nos moem? Como articular os corpos? São perguntas que percorrem a peça-movimento.

    De repente, tudo muda. A pulsão de vida toma o comando. Pula muro, pula catraca, prepara alicate, cadeado, faixas, todo o básico. Gasolina neles!

    O que é uma cadeira, pergunta Letícia. Tudo se transforma e assume novas funções. A cadeira não mais um lugar para sentar na sala-cela da escola-prisão. Vira trancaço. Vira barricada (que no espetáculo se forma, se move e desloca o público). Vira proteção/escudo contra a violência policial.

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    vida comum

    A ocupação centra-se na organização coletiva: fazer a vida fluir, decidir como garantir a limpeza, comida, segurança, debates e tomada de decisões. No cuidado coletivo, dos cabelos (escova, pente…) e carinhos que aparecem em cena e nos vídeos gravados nas ocupações. Na assembleia pontual e permanente. Nas tensões e brigas retratadas com humor e jogo: todos querem falar, tomar a palavra, às vezes cortada. Discussões. Agruras e belezas da vida coletiva. As angústias e festividades da madrugada.

    O sabote o estado na prática, que pressupõe um engajamento: participar mesmo (ou seja numa construção democrática, autônoma) é difícil e exigente. Os debates e ideias da assembleia (e palavras do público) tornam-se a faixa do ato e depois estandarte pendurado na janela modernista que dá pra rua. Um retrato dos laços entre palavra e ação numa geração que retoma a ênfase no aqui e agora – não há uma Revolução, mas revoluções possíveis, novas formas de existência por descobrir e inventar. habitar novas/nossas vias/vielas/caminhos.

    corpo coletiva

    A repressão e brutas ameaças estão onipresentes. No cerco de duzentos PMs, na violência policial nos atos, na perseguição cotidiana. A peça, porém, escolhe puxar o fio da alegria espinosiana: os braços cruzados na nuca dos secundas-atores detidos viram punho esquerdo levantado: a irresistível resistência.

    A raiva (convocada pela forte música de uma rapper francesa) move, ajuda a mobilizar, mas é extremamente limitada para constituir novas relações. O sabotar das velhas estruturas se expressa na força coletiva do coro e suas coreografias. Coreografia do levante, da rebelião. Do catracaço. O muro pulado. Na dança permanente, cada uma ao seu modo. Na incorporação graças aos tambores e que leva todos para a rua e as últimas cenas.

    O fluxo do movimento é interrompido por momentos intimistas. Mostram fotos (boa parte delas feitas por Alicia) de 3 anos atrás. Suas fotos e de outros secundas. Falam de si e dos outros. Carinho e cuidado. Mulher bonita é mulher que luta, dizia um cartaz nos atos de 2015. Novos corpos nasceram, mais bonitos, mais pretos, mais livres. Novos cabelos, curtos, longos, trançados, coloridos. Um corpo coletiva de múltiplas singularidades. A rebelião cria.

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    Nos últimos dias, Matheusa ativista negra não binária e estudante de artes da UERJ foi executada no Rio. 20 anos. Mais um, mais uma. Tragédia brasileira ininterrupta e naturalizada. Quando Quebra Queima retrata e encarna um ímpeto criador. Desejos revolucionários. O catártico e apoteótico fim na rua, trancando-a e celebrando a explosão e o cotidiano, teatro e política nos novos corpos – individuais e coletiva. Alicia diz: antes da ocupação, acho que eu tinha não existência. É isso que eles temem: a vida.

     

     

    4, 5, 6 de Maio (sexta a domingo), 19h
    13 de Maio (domingo), 19h

    Casa do Povo
    Rua Três Rios, 252 – Bom Retiro
    Metrô Tiradentes/ Metrô Luz

    20 reais/10 estudante e morador do Bom Retiro
    Secundarista de Escola Pública não paga
    Bilheteria aberta 1h antes do espetáculo
    coletivaocupacia@gmail.com

    QUANDO QUEBRA QUEIMA é uma peça construída por estudantes que viveram o processo de ocupações e manifestações do movimento secundarista em 2015 e 2016. Frutos da primavera secundarista, 14 corpos insurgentes deslocam para a cena a experiência dentro das escolas ocupadas, criando uma narrativa coletiva e comum a partir da perspectiva de quem viveu intensamente o cotidiano dentro do movimento.

    Ocupando o tempo presente, a ColetivA provoca de maneira pulsante o universo que compõe esse movimento que transformou o corpo e vida de todos que participaram.

    CRIAÇÃO

    Abraão Santos / Alicia Esteves / Alvim Silva / Ariane Fachinetto / Beatriz Camelo / Gabriela Fernandes / Ícaro Pio / Leticia Karen / Lilith Cristina /Marcela Jesus / Matheus Maciel / Mel Oliveira / André Dias de Oliveira / Heitor de Andrade / Martha Kiss Perrone / Mayara Baptista

     

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    [1]   https://www.youtube.com/watch?v=Ww2ddV0q88M

    [2]   Conheço três (deve ter muito mais): Acabou a paz – isto aqui vai virar um Chile (2016), de Carlos Pronzato; Lute como uma menina! (2016), de Flávio Colombini e Beatriz Alonso; Escola de Luta (2017), de Eduardo Consonni e Rodrigo Marques e Tiago Tambelli.

    [3]   As falas da peça estão em itálico ao longo do texto.

  • O último cerco à utopia

     

    Mas eu prefiro abrir a janela pra que entrem todos os insetos

    por Bárbara Lopes

     

    Meu pai gostava muito de ficção científica. Ao longo da adolescência, eu pegava alguns de seus livros. Outros ele mesmo colocava na minha mão. Já nos meus vinte-e-poucos, os livros de ficção científica começaram a chegar por outros caminhos. Em 2003, quando a Aleph lançou uma tradução do Neuromancer, eu emprestei para o meu pai, que escreveu uma resenha para um site que eu co-editava então.

    Os mundos real e virtual convivem, sem que seus “habitantes” humanos sequer percebem com clareza em qual deles estão, num determinado momento. De qualquer forma, qualquer dos mundos de Neuromancer é sórdido, cruel e violento. Nenhuma fumaça de ética, exceto nos Panteras [Modernos] e nos Rastafaris. Toda a ciência e a tecnologia avançadas servem somente à desgraçada miséria da condição humana. Como diria Drummond, quando todo esse progresso chegar, felizmente estarei morto.

    Achei curioso porque meu pai gostava do sombrio na poesia e porque eram raras as vezes em que a gente discordava sobre literatura. Eu tinha adorado o livro! A distopia me parecia uma escolha mais acertada e mais interessante que a ficção triunfante de Julio Verne e Asimov (de que ele gostava).

    Desde então, vez ou outra encontrei esse tipo de crítica à ficção científica distópica e seu pessimismo paralisante. Se o progresso distópico preocupava o meu pai, o utópico me entediava. Achava mais relevante denunciar que não há um caminho natural para um futuro de avanços científicos e sociais e que esse sonho pode, de muitas e variadas formas, se converter em pesadelo. Diferentemente dele, poeta e comunista, eu havia incorporado o desgosto com as utopias.

    Essas reflexões voltaram por conta de duas obras. Na virada do ano, finalmente segui as diversas recomendações de ler Os Despossuídos, da Ursula le Guin. Logo depois, assisti a Pantera Negra. O livro e o filme têm bastante em comum: não são distopias, mas também não são utopias (pelo menos da forma como eu sempre pensei em utopias). Em ambos, há mundos melhores do que aquele em que vivemos, mas que, não sendo universais, não nos deixam esquecer o que são: possibilidades. Dessa forma, esses mundos têm de lidar com os dilemas de se manterem puros ou de correrem o risco da abertura. Há também uma diferença importante. Anarres, o planeta anarquista d\’Os Despossuídos, sofre com a escassez de recursos. Em Wakanda, não apenas há abundância, como há um metal alienígena que só é encontrado lá, o vibranium.  

    No livro, um físico deixa Anarres rumo a Urras – onde está a potência capitalista A-lo, além de outros países – para concluir e divulgar uma importante teoria científica. Anarres e Urras são um sistema planetário: um é a lua do outro. O romance alterna passagens em cada um dos mundos, antes e depois da viagem do protagonista. Ele é o primeiro anarresti a deixar sua terra, que desde a fundação vivia praticamente isolada. Sua decisão é motivada por um desejo político e coletivo de romper o isolamento e também pelos conflitos que emergem mesmo em uma sociedade sem Estado e sem proprietários.

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    Wakanda é também uma terra isolada. Os demais países não sabem de sua riqueza e de seus avanços científicos. A trama do filme é a da sucessão do trono de Wakanda (cujo titular também recebe o título de Pantera Negra), em que o herdeiro T\’Challa é desafiado por seu primo, conhecido como Killmonger, que cresceu na Califórnia e cujo pai foi morto após ser descoberto traficando vibranium. Junto ao desejo de vingança, o primo se revolta com o fato de o país ser tão próspero para seus moradores, enquanto negros ao redor do mundo sofrem com a miséria e o racismo. Há também a personagem de Lupita Nyong\’o, que, sem o ódio, mas também sem a radicalidade de Killmonger, espera que seu país influencie para melhorar a situação de afrodescendentes ao redor do mundo.

    Ambas histórias são honestas, ao admitir que seus mundos podem ser bons, mas não perfeitos, como também ao deixar claro que se fechar é de fato o caminho mais seguro. N\’Os Despossuídos, isso é inclusive questionado por alguns personagens. Os anarrestis são revolucionários e não devem se conformar com a segurança. Sair de suas fronteiras é um jogo em aberto: nada garante que aquela possibilidade não será aniquilada. É fundamental que a resposta possa até parecer óbvia, mas que não seja fácil.

    Esse impasse é um terreno muito mais fértil que as certezas utópicas ou distópicas. Foi também o impasse que emergiu em um laboratório da Vila Itororó, aquela que parecia ruína, mas era construção. Um espaço que carrega as marcas de uma intensa vida comunitária. Vida e comunidade são esses fenômenos que acontecem em meio à pujança, como em Wakanda, ou em meio à escassez, como em Anarres. Na Bela Vista, essa vida foi arrancada quando os moradores foram retirados em nome da proteção a um patrimônio cultural, e conseguiu brotar de novo com a abertura do galpão para atividades públicas. Mais uma vez está sendo sacada, com a decisão da prefeitura de não dar continuidade ao Canteiro Aberto. Mas nesse intervalo, quando foi possível o exercício de lembrar-viver-imaginar, se vislumbraram: cozinha pública, moradia, redes de troca, lavanderia, memória.

    Dito assim, parece utopia (ainda mais contra o fundo distópico de mais um fechamento da Vila) nos dois polos dessa palavra: no desejo por algo melhor, justo, bonito; e também num horizonte final e impossível. É ao sair da utopia que as coisas se tornam mais interessantes. Ao descer e se debruçar sobre esse mundo não como um fim, mas como um começo, outras questões surgem: é possível – e como – preservar para os moradores aspectos importantes da vida cotidiana (como privacidade, segurança, tranquilidade) e também manter a possibilidade de circulação aberta para qualquer pessoa? É possível – e como – ter um espaço fundado nos vínculos entre as pessoas e também totalmente poroso ao mundo externo? Quais são os limites de uma comunidade? Quem fica de fora?

    As possíveis respostas precisam passar por experiências de mulheres (não é à toa que ambas obras tenham um tanto de feminismo e que os mundos que retratam apontem para outras possibilidades de relações de gênero). Não apenas porque tenha cabido, historicamente, às mulheres manter comunidades e os vínculos que as sustentam, já que \”o mundo lá fora\” surge como esfera masculina. Mas porque também coube a elas – a nós – fazer escolhas sobre o que mostrar e o que esconder. Os saberes femininos – sobre corpo, natureza, ciclos, cuidados – foram um dos alvos prioritários da caça às bruxas, como nos lembra Silvia Federici. São até hoje alvo tanto da ameaça de aniquilamento como da apropriação mercadológica. Assim, mulheres de comunidades urbanas, camponesas e indígenas estão em constante negociação sobre quanto compartilhar e quanto guardar.

    Ao invés das certezas utópicas ou distópicas, precisamos cada vez mais nos mover nesse universo de possibilidades e perigos. Felizmente, não é progresso, já chegou e estamos vivos.