Author: tramadora_q3o93j

  • É nóis, corona*!

    por: Juliana Meira Socióloga-jardineira. Interessada na comunicação pelo sensível, por aquilo que não está em evidência. E na conexão de desejos através de paisagens

    Covid-19 no país da desigualdade

    São 17:48 de uma sexta-feira. Estamos no final do verão paulistano, e mais parece o começo. Os últimos dias foram quentes. Alguma umidade se sente no ar. Os termômetros marcaram máxima de 32ºC. Tento continuar um trabalho pessoal relacionado a agroecologia e não consigo.

    A palavra que atravessa meus pensamentos, de diversos modos, é aquela que, tenho certeza, é a mesma que a maioria de nós passou os últimos dias ouvindo e lendo, na tv ou na internet. É o tema das conversas com nossos amigos, com a família. E ainda que às vezes exista espaço para outros assuntos, em pouco tempo voltamos ao assunto do coronavírus da vez, covid-19.

    Alteração dos protocolos do cotidiano

    Seu caráter extremamente transmissível fez com que penetrasse nos âmbitos mais privados das nossas vidas, do nosso cotidiano, alterasse o funcionamento das rotinas, das receitas, do ritual do almoço, da ida ao mercado e à casa dos pais e amigos, do trabalho, dos cuidados físicos e da atenção com a saúde,… daquela para além de evitar o vírus. Assim também seu longo período de incubação colocou o toque, o contato, as relações sociais em suspeita. Tão mais suspeitas quanto próximas. Sim, nos sentimos, em menos de uma semana, extremamente cansados da overdose de instruções, procedimentos e preocupações. “Estar num grupo de risco”, “me poupar”, lembrar de quem possa também estar e oferecer ajuda. Pensar na vida e no cuidado com ela hoje, pra muita gente exigiu imaginar a própria doença como parte do efeito dominó de um vírus que veio da China, da Europa… pra cá, passando por outros lugares do mundo. Que loucura!? Logo, o ‘cuidar de si’ é atravessado pelo ‘cuidar dos outros’, ou o ‘cuidar dos outros’ passa pelo ‘cuidado comigo mesmo’. Ou seja, cuidar-se passa a ter um efeito direto na própria rede e além dela, tanto diretamente por conta da possibilidade de contágio, quanto indiretamente ao pensamos que queremos atravessar esse momento da melhor maneira possível, juntos.

    Linguagem bélica: vírus como inimigo global

    É curioso que muitos de nós lidamos com o vírus como se ele fosse dotado de uma intencionalidade própria e até meio maligna, avessa à vida e ao bem estar. O vírus que antes era tomado como apenas uma gripe, passa a ser um vírus da morte, ou da ‘não vida’, na medida em que caracterizamos a vida por seu movimento. A tomada de decisão do isolamento, a quarentena, paralisa o movimento intenso, o trânsito de diversidades com os quais significamos, por sua vez, o que é cidade. Todos os problemas ficam aparentemente suspensos, frente ao ‘inimigo global’.

    Esse modo de, conscientemente ou não, pensar o vírus, leva a maioria de nós, incitados pela abordagem midiática e militarização das medidas de controle, a agir como se estivessemos realmente em guerra. Uma com várias batalhas. Podemos destacar algumas delas pelo modo como estão sendo narradas:

    I. A assepsia

    Limpeza, higiene, desinfecção é a arma. Higiene e combate em alguns momentos da história humana se aproximam de diferentes modos. No caso atual, aprendemos a lavar as mãos corretamente (ao que parece nós, pessoas comuns, nunca fizemos isso direito), a limpar a casa, as embalagens das compras e os objetos de alto contato, a manter distância enquanto falamos com os outros (antes de um, agora de dois metros), a não cumprimentar com beijos, abraços e apertos de mão, e vimos na TV a ascensão nunca antes imaginada do álcool gel, que se tornou uma espécie de super-herói contra o vírus, um tanto quanto supervalorizado em múltiplos sentidos, em relação a outros produtos e cuidados. Provavelmente as orações passaram a citá-lo: “Deus nos proteja e nos garanta álcool gel. Amém!”. Ou algo assim…, com as devidas adaptações a cada crença. Mas ele também poderia ser visto como um agente de manutenção das relações, reduzidas as necessárias. Álcool gel, o mediador. O toque tem muito a ver com esse outro âmbito do “combate”: isolamento social.

    II. O distanciamento social

    É tudo muito curioso, porque antes era mais simples: o capital destruindo as relações que nos impedem de ceder completamente a seu modo de organizar e movimentar o mundo, fazê-lo girar em torno a seus interesses, sua continuidade e expansão. Mas nesse caso, o próprio capital foi colocado numa zona de incerteza em relação a pandemia. Ignorar a situação seria tão terrível quanto não o fazer. Percebemos aos poucos os arranjos que elaboramos entre nossos interesses e os interesses propriamente econômicos. A reação em cadeia entre os fatos demonstra a complexidade do sistema. Muito provavelmente nesse caso, a lógica de funcionamento capitalista passaria por uma adaptação à situação de calamidade pública. Provavelmente também, as relações passariam a ser organizadas de outro modo, em outro âmbito e seriam deslocadas para ambientes de maior visibilidade, talvez até monitoradas com o aval da população para conter essa e outras epidemias. E de certo modo, permitir as mobilidades que estão relacionadas a continuidade movimentações econômicas, enquanto as relações sociais mais especificamente comunitárias, seriam miradas como perigosas. No entanto, por hora, com o que temos em mãos, podemos dizer que uma outra batalha é essa contra os encontros, contra os encontros contaminantes, contagiantes, físicos, corporais e agora febris entre nós humanos, e nosso com o microrganismo que tem na sua invisibilidade e inexpressividade imediata, as características mais preocupantes para o controle de sua disseminação.

    III. Os especialistas

    É interessante notar como os especialistas começaram a ganhar relevância em relação a um terceiro inimigo dos “bons cuidados” em tempos de coronavírus: as fake-news. Chamamos médicos e enfermeiros para nos ensinar a lavar as mãos, biólogos e epidemiologistas para falarem das especificidades do vírus e nos mostrar como higienizar cada coisa em cada situação, e a nos relacionar seguramente com pessoas infectadas com as quais não podemos evitar ter algum tipo de contato, gerontologistas para falar das especificidades da mortalidade entre os idosos — categoria onde estão circunscritos a grande maioria dos casos letais. Vimos matemáticos e físicos que trabalham em epidemiologia explicarem as retas e curvas nos gráficos e identificarem a fase exponencial da epidemia em cada país, e as projeções para cada cenário de tomada de decisão em diferentes momentos. E também os economistas, claro, explicarem os impactos na economia. Aos poucos nós próprios nos especializamos, junto a eles, em lidar com o inesperado e com a incerteza. Já que a cada dia há uma informação nova sobre o vírus. Coisas que só o compartilhamento de informações entre países, ou a chegada dele em um novo clima, um novo país, uma nova cultura, novos corpos e hábitos e diferentes sistemas de saúde poderiam nos mostrar. Tudo isso ganha valor e se destaca em meio a mensagens e boatos sem um emissor especificado, irresponsabilizáveis. Luta-se contra os ruídos nos protocolos que emergem no momento em que as coisas vão acontecendo. Apropriados e adaptados de outras epidemias, de outros locais.

    Quero deixar claro aqui que cada um desses tópicos é de extrema necessidade e atenção: precisamos sim, tomar todos os cuidados indicados com higiene, nos isolar (fisicamente) das outras pessoas, e precisamos dos especialistas e técnicos e suas orientações. Estes nos mostrando como o vírus “funciona” ou se “comporta”, e as medidas que serão tomadas, nos dão alguma noção do que podemos fazer para nos pouparmos, para poupar outros, e no geral, alguma perspectiva de ‘como lidar’. Mas começo a duvidar se pensar nisso como uma guerra contra um vírus é a questão disso tudo. E se essa linguagem bélica que faz emergir um inimigo comum não estaria deslocando nossa atenção daqueles outros inimigos que continuarão atuando, inclusive em meio a epidemia, no modo como se posicionam ou determinam prioridades.

    Desigualdade e vulnerabilidades sociais em meio a pandemia

    Há algo diferente aqui, como em outros países de grande desigualdade social, antes que ‘subdesenvolvidos’. Aqui percebemos rapidamente, com a propagação do vírus, quem são esses mais vulneráveis, numa vulnerabilidade não ‘para além’ da física, mas sobreposta a ela: as famílias mais pobres, trabalhadores informais, imigrantes, aqueles sem assistência financeira, moradores de rua, aqueles que já viviam em áreas de ‘risco’ e lá continuarão, os que vivem em áreas que falta abastecimento de água por dias a fio (impossibilitando os cuidados preventivos de assepsia), e os que vivem em casas de arquitetura ‘perigosa’, agora já não apenas porque podem desabar ou serem soterradas durante a próxima chuva, mas porque não oferecem o número de cômodos, a quantidade de banheiros ou a ventilação necessária para se evitar um contágio intrafamiliar caso alguém seja/esteja infectado. Famílias que acabam tendo uma espécie de pacto de sobrevivência, que querendo ou não faz dos corpos individuais um único corpo, e se expõem juntos, pela necessidade compartilhada de manter a renda financeira do grupo. A vulnerabilidade aparece mesmo no não preparo: aqueles que não podem se prevenir de contatos futuros, através da garantia de abastecimento mínimo de mantimentos para os próximos dias, ou na falta de medicamentos, até mesmo aqueles de uso contínuo. Assim, começam a aparecer as vulnerabilidades não imaginadas, diferentes umas das outras, internas ou não aos grupos apontados como “de risco” em relação aos efeitos ou consequências desse desequilíbrio em um sistema que sabíamos, de equilíbrio instável.

    Reconfiguração dos fatos: o ‘cuidado’ antes que o ‘combate’ e as decisões políticas em meio a ‘calamidade’

    Por isso, acho importante não desviarmos do fato de que dentre uma série de variáveis, as tomadas de decisão dos que estão em posições de liderança (já não sei se seria certo dizer “poder”) nos governos e o modo como se articulam para desenhar uma estratégia para lidar com o que já está acontecendo, o que está por vir, e como isso afetará os mais pobres é muito mais central. Ou seja, o uso que essas pessoas e grupos fazem de um tipo de poder para tomar decisões que preconizam a saúde coletiva que neste momento atravessa a garantia de recursos financeiros para que as pessoas garantam o básico ou, do contrário, titubear a partir do papel de porta-vozes dos interesse do capital, garantindo apenas que a perda das empresas seja minimizada, são exemplos de como podemos corporificar alguns dos reais ‘inimigos’, ainda que não exponha a todos. Vide falas e ações do atual presidente nos últimos dias em relação a seriedade da situação e a medida provisória (MP 927 — rapidamente revogada) que permitia suspensão de contratos e salários dos trabalhadores nos próximos quatro meses: não pagamento e pagamento parcial, assim como demissões facilitadas, etc. Pessoalmente já vejo pessoas em minha rede familiar e de amigos sendo demitidas no momento em que entrariam em isolamento.

    Um outro exemplo poderia ser o modo como autoridades lidam com a coleta de dados e divulgação de informações que são de interesse social direto. Se no início, onde tudo parece exagerado, – efeito do grau de novidade dessa situação- a resposta ao “querer saber” sobre o avanço do vírus já não é suficiente diante da realidade da subnotificação. Subnotificação que desde o começo é ao mesmo tempo problema e protocolo. Mal informar, nesse caso, é mal localizar os casos, mal planejar e adequar estratégias e mal tratar as pessoas. Resumidamente: responder mal ao que acontece. Justificados por uma insuficiência de recursos, que poderiam ter sido mobilizados muito antes da chegada (esperada) do vírus aqui. Ou priorizar a transparência apenas de informações que tem a ver com o vírus, como se nada mais fosse importante. Situação muito parecida e associada com aquela das pessoas que preferem negar o que acontece e assim acabam por não elaborar repertórios e estratégias, individuais e coletivas, para se viver de modo um pouco melhor esse momento e o futuro que estamos produzindo a partir daqui. Já que parte do que elaboramos para lidar com a situação, pode se manter no pós epidemia.

    Sugiro então nos ‘cuidarmos’, aprofundar o sentido de ‘fazer diferença’. O discurso do cuidado, da atenção, da escuta e do diálogo, potentes, contra aquele outro inócuo da ‘histeria’. Não é sobre o policiamento do cumprimento de medidas pelos outros, mas pelo diálogo. Nem sobre uma solidariedade mixuruca, que se coloca do lado do julgamento moral. É mais sobre buscarmos desenvolver também um cuidado que poderíamos chamar de cognitivo, na medida em que não aceita imediatamente o modo como as informações são apresentadas, como os ambientes simbólicos e práticos estão sendo construídos e nossa percepção orientada… Ou sobre como enquadramos o relevante. Se a realidade (o que é o ‘problema’ e o que decorre como ‘soluções’) parece emergir a partir de como estabelecemos relações entre as informações, talvez também seja sobre readequá-las de modo a conferir mais peso às atitudes dos governos — boas ou não, atentas ou não às fragilidades — e de grupos locais, que já se organizam autonomamente nas áreas mais vulneráveis. E menos sobre a ‘intencionalidade destruidora’ de um vírus.

    *Grito de um vizinho, na Freguesia do Ó, São Paulo.

  • pensar com o corpo em risco

    por: Bru Pereira

    Num texto de 1985, em meio a epidemia de HIV/AIDS, Isabelle Stengers e Didier Gille fazem uma descrição interessante sobre a noção de \”grupos de risco\” como \”batedores avançados\” (uma posição no beisebol), \”os primeiros a serem atingidos pelo perigo que ameaça a todos, mas também quem pode relatá-lo e alertar aos outros sobre ele\”. A recolocação dos grupos de riscos como heróis \”que nos contam e nos lembram o que nós somos […] seres vivos, correndo riscos de viver\”, veio como uma resposta a atitude de certas pessoas que enquadravam grupos de risco como grupos que nos põe em risco.

    No contexto atual, na pandemia COVID-19, a atitude em relação aos grupos de riscos é um tanto quanto diferente daquela dispensada aos grupos de risco de contaminação com HIV em meados da década de 1980. A composição desses dois grupos certamente tem grande influência nessa diferença, enquanto a AIDS acometeu primeiramente homossexuais, mulheres trans/travestis e usuários de drogas injetáveis, a COVID-19 apresenta um risco maior para pessoas idosas.

    Mas acredito que a descrição de Stengers e Gille dos grupos de risco como heróis, como aqueles que nos lembram do perigo que nos ameaça a todos, ainda nos ajuda a superar o sentimento de imunidade que parece acometer alguns corpos que, diante da noção de grupo de risco, se sentem protegidos por não pertencerem a ela.

    Há poucos dias o presidente irresponsavelmente afirmou que apenas os grupos de risco deveriam se isolar, e que ele próprio, por “ter histórico de atleta”, conseguiria resistir ao novo coronavírus. E nesses dias que seguiram a sua fala, eu tenho acompanhado em notícias e grupos pessoas fazendo eco à ideia de que o perigo só existe para aqueles que fazem parte dos grupos de risco. Eles recusam a lição transmitida por esses grupos: temos um corpo que corre riscos ao viver.

    E mais, os grupos de risco ainda nos ensinam que o corpo que temos participa, através de uma rede de fluídos, dos corpos dos outros. (As medidas de distanciamento social parecem se basear nisso.) A constante produção de fluidos corporais nos conecta e uma pandemia nos revela como vivemos nossas vidas através das vidas dos outros. “Viver a vida através da vida dos outros” é uma das definições de Marshall Sahlins sobre o parentesco.

    Poderíamos, então, pensar que o que as pessoas com histórico de atleta recusam, para além do ensinamento de um corpo que corre risco, é um modo de estar relacionado em redes de parentesco. Eles recusam a “mutualidade do ser”, como diz Sahlins. Portanto, essa é uma gente perigosa, pois como nos lembram muitos coletivos ameríndios, pessoas sem parentes podem não ser mesmo pessoas. Estejamos atentas.

  • Pandemia: \”santa ceciliers\” fiscalizam e vaiam pedestres do Minhocão

    matéria originalmente publicada aqui

    \"Ciclista
    Ciclista passeia no Elevado Costa e Silva, conhecido popularmente como Minhocão, em São PauloImagem: Taba Benedicto/Agência O Dia/Estadão Conteúdo

    por: Marie Declercq

    \”Vai para casa\”, gritaram dezenas de pessoas em suas janelas para L.V.*, pesquisadora e urbanista, que saiu de casa para comprar mantimentos no último domingo (22). Os gritos deram lugar às vaias, cada vez mais agressivas, até que o amigo que a acompanhava levou uma ovada vinda de um dos prédios que dão para o Elevado Costa e Silva, viaduto que conecta a região central de São Paulo com a zona oeste, conhecido popularmente como Minhocão.

    distanciamento social é uma das medidas recomendadas pelo Ministério da Saúde e a OMS para evitar o contágio da covid-19 e \”achatar\” a curva pandêmica para impedir o colapso dos sistemas de saúde, que têm da falta de leitos e equipamentos. A recomendação, portanto, é ficar em casa o máximo possível e, quando sair, evitar a aglomeração de pessoas — mantendo pelo menos 1 metro de distância dos passantes. Seguindo todas as recomendações de segurança, L.V. aproveitou o Minhocão, fechado para o trânsito de carros durante o fim de semana, para ir de bicicleta até um supermercado mais distante de sua casa, com mais opções de produtos.

    \”Pegamos o Minhocão pela Rua Ana Cintra [no bairro central Santa Cecília], e não tinha nenhum tapume. Deu para perceber que tinha algo errado porque estava tudo vazio, mas continuamos\”, relata a pesquisadora. \”Teve um momento em que as pessoas começaram a gritar dos prédios, alguns gritos meio engraçados e outros muito agressivos. Seguimos, até chegar na saída da Barra Funda, e ver os tapumes altos bloqueando a saída. Tivemos que voltar\”.

    Na volta, L.V. e seu amigo enfrentaram mais uma vez as janelas atentas dos prédios que dão para o Minhocão. Dessa vez, alguém atirou um ovo direto de um dos apartamentos, acertando em cheio seu amigo. \”A via estava completamente vazia. Claramente era uma situação que não oferecia risco a ninguém. As pessoas estão despertando essa força muito forte de querer vigiar e punir os outros\”, critica. Na semana anterior, a pesquisadora não saiu de casa, conforme recomendado. Por causa das vaias e da ovada, acabou voltando para casa sem conseguir fazer as compras que precisava. O jeito foi fazer as compras mais tarde, naquele dia, em um mercado menor.

    ju@jubrocanelli :

    eu tô muito emputecida que eu e Guilherme fomos hostilizados voltando da feira. nós fomos comprar COMIDA, porque essa é a última semana de feira, e as pessoas tavam tacando bexiga d\’água nos mandando voltar pra casa. guess what! estávamos a caminho de casa.19114:55 – 22 de mar de 2020Informações e privacidade no Twitter Ads49 pessoas estão falando sobre isso

    No mesmo dia, a analista de processos e jornalista Juliana Brocanelli passou pela mesma situação. Ao lado do seu namorado, o publicitário Guilherme*, foram de bicicleta até a feira da Santa Cecília — a última permitida na cidade antes da quarentena decretada na terça-feira (24). Ambos foram de máscara e luvas para comprar mantimentos e também usaram o Minhocão fechado para voltar para casa.

    \”Quando subimos pela rampa de entrada (que não estava bloqueada), um casal estava saindo e avisou para a gente se preparar porque seríamos massacrados. Quando chegamos [na via], foi um barulho ensurdecedor\”, narra Guilherme. Na frente do publicitário e da jornalista estava um casal gay correndo pela via. Eles viraram alvos de bexigas cheias de água, atiradas pelos moradores do entorno do Minhocão. \”As pessoas foram gritando, mandando a gente ir para casa e a gente estava voltando para casa, mesmo. Um dos caras que estavam correndo na nossa frente tinha cabelo grisalho e o pessoal ficou falando que ele era velho e ia morrer primeiro\”, lamenta.

    O casal não só ouviu palavras de ordem para fazer o que já estava fazendo como também foi xingado de \”arrombados\”. Chegando na saída da Barra Funda, viram que o acesso estava fechado por grandes tapumes de metal. Tentando sair da via, foram recebidos mais uma vez com gritos e celulares apontados para eles dos moradores do bairro. \”Comecei a ficar assustada de a gente estar descumprindo alguma ordem ou regra\”, conta Brocanelli. \”A gente não saiu para nada além de comprar a comida\”, conta.

    biruleike@cremubipr:

    Tava comendo ouvi uma gritaria quando vi todo mundo na janela xingando umas pessoas andando no minhocão: \”vai pra casa, caralho\” kkkkkkkk

    A jornalista postou um vídeo das vaias no Minhocão, criticando a conduta dos moradores. L. V. também fez um post no grupo de que participa, onde moradores da região postam avisos. Ambas foram atacadas por alguns internautas, que endossaram a atitude dos vigilantes informais do Minhocão. Não muito longe da entrada principal do elevado está a Praça Roosevelt — onde ainda se veem pessoas utilizando o local para caminhar com seus cachorros e fazer exercícios. Após os panelaços contra o presidente Jair Bolsonaro, que já se tornou costume diário na região, não é raro ouvir moradores dos prédios gritarem para pessoas na rua irem para casa.

    Desde o último fim de semana, o Minhocão passou a ser bloqueado por tapumes após certo horário para impedir que pedestres o utilizem para fazer esportes ou caminhar e, assim, evitar a aglomeração. Parques também foram fechados. No entanto, a quarentena decretada em São Paulo não impede que pessoas caminhem nas ruas, mas aconselha que só saiam de casa apenas para fazer coisas essenciais. Muitas pessoas também não pararam de sair de casa para trabalhar, como é o caso de milhões de trabalhadores autônomos e de prestadores de serviços essenciais que ainda precisam enfrentar o transporte público lotado e outras situações do tipo para conseguirem se manter.

    Pedro Ribeiro Nogueira@draomcqueen :

    Tem um cara andando no minhocão e geral gritando vai pra casa mas janelas

    Vigiar e punir

    A presença de pessoas na rua ainda não é (ainda) algo tão anormal de se observar na cidade. Sem um contexto individual, pode parecer absurdo que alguém ouse sair de casa, colocando seus familiares e a si mesmo em risco. Os gritos das janelas em alguns pontos de São Paulo podem até refletir uma preocupação válida com a seriedade da pandemia da covid-19, mas acabam se manifestando como uma vigilância informal — que é pouco efetiva para lidar com a crise do novo coronavírus no país.

    \”Há muito tempo, em torno de outras questões como o consumo de drogas, existe uma concepção de cidadania que costumo chamar de cidadão-polícia, onde todo mundo se sente policial de si e dos outros\”, explica Acácio Augusto, professor no Departamento de Relações Internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador do LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento).

    \”Esse tipo de conduta policialesca obviamente tende a se intensificar quando, por algum motivo de força maior — no caso, o desencadeamento de uma epidemia — se invoca uma espécie de mobilização total em nome de um bem coletivo e que se sobrepõe a tudo. Nesses casos, todos são imediatamente responsabilizados pelo que pode acontecer de pior. Só isso, a imagem de imobilização total, já é complicada, porque ela não é real. Mesmo do pontos de vista econômico e social, é evidente que ela atinge as pessoas de maneira diferente.\”

    Augusto diz não se surpreender com o fato de que a vigilância venha de uma região conhecida pitorescamente por ter moradores progressistas — os próprios \”santa ceciliers\”. \”Isso atinge tanto as pessoas identificadas ideologicamente com a direita quanto a esquerda. É o que o Foucault chamou de microfascismo, que está incrustado em nossa carne, nas dobras do corpo. Acho bastante complicado, porque [essa conduta] não funciona e gera mais animosidade ao que funcionaria de fato, que é a solidariedade entre as pessoas. Isso decorre da própria ideia de achar que a gente está numa guerra, o que é no mínimo ridículo. É uma guerra contra quem? Contra um vírus que não é uma força política ou militar. Quando se assume esse discurso de guerra, todo mundo se sente alistado na tarefa de manter as pessoas dentro de casa\”, diz.

    A reação das janelas paulistanas no último fim de semana fez com que Mário Eduardo Pereira Costa, psiquiatra e psicanalista e professor do Departamento de Psiquiatria da Unicamp, se lembrasse dos \”Fiscais do Sarney\”, um título popular instituído nacionalmente em 1986, pelo então presidente José Sarney, para que cidadãos fizessem o controle de preços nos mercados varejistas por conta do Plano Cruzado, que tabelava o preço de bens e mercadorias. Rapidamente, a medida escalou para situações esdrúxulas como a cena histórica do consumidor que fechou um supermercado em Curitiba (PR) para evitar a remarcação de preços. \”Numa situação como essa, quanto mais ameaçadas as pessoas sentem com a possibilidade de que o outro rompa o pacto social, mais se desencadeiam paixões brutais. Esse tipo de situação coloca todo mundo à flor da pele o tempo todo. Você está sempre desconfiado que aquele equilíbrio está instável\”, comenta.

    A vigilância feita por nós mesmos parece às vezes ser a única opção — especialmente quando o presidente do país minimiza os danos e mortes da covid-19 e diz que tudo deve voltar ao normal —, mesmo quando grande parte dos países afetados mostra que é muito mais efetivo ficar em casa. Porém, pouco ajuda na situação de quem está saindo de casa pela primeira vez em uma semana para fazer compras ou quem não tem opção, a não ser enfrentar as ruas. \”Uma coisa é ter cuidados, outra coisa é usar a crise para agredir as pessoas e expressar seu ressentimento social\”, aconselha Augusto.

    O Minhocão foi fechado no último fim de semana para evitar a circulação de transeuntes na via, impedindo assim aglomerações. A esperança agora é que as janelas vigilantes se acalmem por ora e o panóptico paulistano descanse um pouco até o final da quarentena.

    * Os nomes e sobrenomes foram ocultados a pedido dos entrevistados. 

  • SUSCETIBILIDADE E VULNERABILIDADE À COVID-19: SOMOS TODOS IGUAIS?

    por: Ricardo Rodrigues Teixeira (Professor da Faculdade de Medicina da USP) e Ivan França Jr. (Professor da Faculdade de Saúde Pública da USP)

    uma versão bem reduzida desse artigo foi publicada na FSP em 26/03/2020

    Até o momento, sabemos que duas abordagens vêm, de algum modo, dando resultados no enfrentamento da epidemia de COVID-19.

    Chamaremos a primeira de testagem agressiva e sustentada. Ela busca ativamente pessoas que possam estar infectadas (testagem dos sintomáticos, busca e testagem dos contatos, visitação domiciliar, controle de temperatura, quarentena dos positivos). Esta tem sido basicamente a resposta na Coréia do Sul, Japão e em cidades-estados como Singapura e Hong Kong. Na Coréia do Sul, após testar 222 mil pessoas, houve um decréscimo dos casos novos, mas chegaram a quase 10 mil casos confirmados e 75 mortes. Os demais têm menos de mil casos.

    Esta resposta exige um sistema de vigilância epidemiológica forte com recursos para buscar, testar, tratar e isolar pessoas, combinado ao uso intensivo de controles por celular, monitoramento do uso de cartão de crédito e, inclusive, por satélites. Para que seja bem-sucedida, além de um sistema de saúde robusto, é preciso que as pessoas isoladas recebam apoio psicossocial, alimentar e de outras necessidades. Na Coréia do Sul, o sistema de saúde é de acesso universal e gratuito, e considerado o melhor entre os países membros da OCDE.

    Esta abordagem é conhecida como estratégia de alto risco, em que o foco está na procura, avaliação e cuidado dos já afetados. Trata-se de uma estratégia fundamentalmente focada nos indivíduos considerados de “alto risco” para a disseminação da doença. Neste caso, os já comprovadamente infectados. Temos razões para acreditar que esse “modelo coreano” tenderá a ser expandido a partir dessa pandemia. Não sem inúmeras implicações ético-políticas que merecem ser discutidas, já que ela envolve graves infrações do direito à privacidade e a implementação de mecanismos de controle individualizado dos cidadãos dignos de um episódio de “Black Mirror”.

    Chamaremos a segunda abordagem de distanciamento social. Trata-se de uma estratégia de saúde pública que busca reduzir drasticamente o contato entre pessoas, de tal modo a diminuírem ao máximo as chances de contato entre infectados e não-infectados. Ela envolve medidas de larga escala, como cancelamento de eventos e fechamentos de espaços públicos, bem como decisões individuais de evitar multidões e manter distância mínima entre pessoas. Em situações mais extremas, isso pode significar interromper a circulação de pessoas em regiões, cidades, estados ou até em um país inteiro, bem como promover grande mobilização social para que os cidadãos adotem oautoconfinamento voluntário e prolongado. Independentemente da situação clínica de cada um, o distanciamento social é adotado por todos os habitantes de um dado local e não apenas pelos afetados. Esta abordagem é conhecida como estratégia populacional.

    Esta foi a estratégia primordialmente adotada pela China, na cidade de Wuhan, província de Hubei. Foram adotadas várias medidas progressivamente mais restritivas à circulação de pessoas: numa primeira etapa, isolando Wuhan e outras áreas da província de Hubei, visando impedir a exportação de casos; numa segunda etapa, restringindo a circulação de pessoas dentro das cidades, construindo um verdadeiro cordão sanitário. Essas medidas foram o tempo todo mescladas à testagem agressiva e sustentada.

    Como na Coréia do Sul, o esforço também tem sido enorme. Segundo a OMS, “em Wuhan mais de 1800 equipes de epidemiologistas, com um mínimo de 5 pessoas/equipe, estão rastreando dezenas de milhares de contatos por dia. O acompanhamento dos contatos próximos dos casos suspeitos é meticuloso, com uma alta porcentagem destes completando a avaliação médica. Entre 1% e 5% dos contatos foram posteriormente casos confirmados em laboratório para COVID-19”. Há alguns dias, não há casos novos e, hoje, a China acumula 81.116 casos e 3231 mortes.

    As estratégias populacionais possuem, via de regra, muito maior potencial para obter resultados coletivos que a estratégia de alto risco, mas também possui suas desvantagens. Há consequências econômicas e psicossociais importantes. Afeta o cotidiano de vida e trabalho, ampliando a ocorrência de sofrimento psicossocial, da fome e da pobreza em vastos setores da população. A implementação também pode ser difícil, dada a necessidade de mobilização coletiva para o autoconfinamento prolongado. Exige do Estado uma alta capacidade de controlar centralmente a informação, de coordenar a gestão das ações para sustentar a vida das pessoas e de exercer poder coercitivo externo. Esse “modelo chinês” também possui inúmeras implicações ético-políticas, com outras violações de direitos civis e políticos, que podem impor limites à sua aplicação em sociedades democráticas e abertas.

    O “modelo chinês”, confirmando o maior impacto coletivo das estratégias populacionais, conseguiu, ao que tudo indica, interromper a transmissão e zerar o número de casos novos. O “modelo coreano” vem sendo bem-sucedido na estratégia de “achatamento da curva de contágio”, sem zerar totalmente a transmissão, mas conseguindo uma desaceleração considerável, que preserva a capacidade de resposta do sistema de saúde e faz com que a Coréia do Sul venha apresentando uma das menores letalidades. Ambas as estratégias não eliminam o problema do estoque de suscetíveis – daqueles que ainda não se infectaram e podem vir a se infectar se o vírus continuar em circulação –, colocando em dúvida a sustentabilidade do panorama atual nos dois “modelos”.

    O caso italiano, que vem sendo tratado como o mais dramático de descontrole no número de casos novos e de óbitos, não adotou efetivamente nenhum dos dois modelos acima. Inicialmente, adotou apenas a testagem dirigida aossintomáticos, sem medidas efetivas de vigilância e busca ativa de novos casos.
    Quando a situação saiu do controle, se viu obrigada a adotar o distanciamento social, mas de forma tardia e através de medidas radicais, baseadas em importantes restrições de direito e forte coerção policial. Importante dizer que, a despeito da generalização, houve diferenças de respostas entre várias regiões da Itália, sendo menos afetadas as regiões ou cidades onde se realizou testagem mais agressiva ou o “lockdown” foi instituído mais precocemente.

    No Brasil, num momento em já nos encontramos em um nível de resposta que é de “emergência de saúde pública”, estamos tendendo a uma combinação dos dois “modelos”, mas com limites. Segundo o Procedimento Operacional Padronizado estabelecido pelo Ministério de Saúde, a testagem permanece restrita à confirmação diagnóstica de casos suspeitos, com indicação de avaliação dos contatos próximos, encaminhando-se para testagem apenas os casos sintomáticos detectados. Também não houve, até aqui, a busca ativa de pacientes internados em hospitais privados, como ficou evidenciado pelos casos do Hospital Sancta Maggiore, que só foram descobertos quando vieram a óbito, caracterizando uma forma de vigilância “passiva”. Portanto, uma estratégia ainda bem distante da testagem agressiva e sustentada praticada pela Coréia do Sul.
    Por outro lado, também vem sendo adotada uma estratégia gradual de distanciamento social, mas com medidas menos drásticas do que a China e numa etapa posterior da epidemia. Sinteticamente, temos, até aqui, uma resposta ínfima na testagem se comparada à coreana e tímida de bloqueio na circulação se comparada à chinesa.

    Não se trata de escolher entre um e outro “modelo”, nem sugerir que poderíamos ou deveríamos aplicar qualquer um deles na íntegra e acriticamente. Trata-se, sim, de cotejar as evidências de sucesso e insucesso que dispomos, num contexto que exige respostas rápidas, para agirmos da maneira mais efetiva possível para preservar vidas, sem violação de direitosfundamentais ou a aceitação resignada do impacto brutal que a epidemia terá sobre os mais vulneráveis. Nesse sentido, considerando o estágio em que já nos encontramos da progressão epidêmica, parece-nos urgente acelerar a combinação da testagem agressiva e sustentada e o distanciamento social, mas orientadas pelas singularidades da nossa estrutura econômica e social e pelos valores que estão na base de uma sociedade democrática e solidária.

    O Brasil, em princípio, se encontraria entre as países que teriam potencialmente uma das melhores capacidades de resposta por contar com um sistema universal e gratuito de saúde. Mas sabemos que a história do SUS é marcada pelo subfinanciamento crônico, agravado, nos últimos anos, pelo desfinanciamento, com o comprometimento de áreas estratégicas. Para aumentarmos nossa capacidade de testagem, precisamos adotar medidas urgentes de reversão desse cenário e fortalecimento do SUS, em especial, da atenção básica e da vigilância epidemiológica e sanitária, além da assistência médica e multiprofissional necessária para o atendimento dos doentes.

    Para tornar efetivo o distanciamento social, precisamos ampliar a mobilização social para o autoconfinamento voluntário prolongado, acionando medidas de mitigação das consequências indesejáveis desse confinamento, em especial,para as populações mais vulneráveis. Medidas que são, de fato, pré-condições para que essas populações possam aderir ao distanciamento social. Em outras palavras, é preciso uma orientação firme e inequívoca das autoridades sanitárias para que o distanciamento social massivo seja praticado. Mas, como sabemos, é na implementação dessa medida que vêm se expressando as mais brutais desigualdades perante essa epidemia. Somos todos suscetíveis, mas a vulnerabilidade é profundamente desigual. São milhões e milhões de brasileiros que vivem do ganho diário para sobreviver, trabalhadores precarizados, sem proteção social, vivendo sem condições adequadas de moradia e de saneamento urbano, quando não vivendo nas ruas. Fundamentalmente, são estes brasileiros que não poderão aderir às medidas de distanciamento social, não porque não queiram, mas porque não podem.

    Diante do imperativo desafio de desacelerar a epidemia e preservar tanto quanto possível nossa capacidade de cuidar dos casos mais graves sem o colapso do sistema de saúde (que, presumivelmente, aumentará o número de mortes e não apenas pelo coronavírus), precisamos acelerar e ampliar tanto a estratégia de alto risco, quanto a populacional. Sabemos, contudo, pela experiência de outros países, que as medidas de distanciamento social radical acabam se impondo de forma draconiana quando a epidemia progride para o descontrole. No ponto da curva ascendente de novos casos em que nos encontramos no Brasil, entendemos que o distanciamento social se apresenta como medida emergencial prioritária e mandatória, mas ainda temos a chance de decidir de que maneira iremos implementá-lo. Essa decisão, tecnicamente embasada, apresenta-se, contudo, como uma clara bifurcação política a respeito do papel esperado de um Estado na gestão de uma crise dessa magnitude e gravidade. De um Estado que, obviamente, não se resigna à passividade e a meramente contabilizar os casos e as mortes e narrar os próximos capítulos da catástrofe. Queremos um Estado judiciário-policial que atuará para impor um distanciamento social forçado, com suspensão de direitos e imposição de todos os danos colaterais dessa medida aos mais vulneráveis ou um Estado social e de defesa dos direitos fundamentais, que proverá os meios necessários para que todos, independentemente das condições de vida, possam efetivamente adotar o distanciamento social voluntário.

    Não podemos conceber em hipótese alguma que a admissão de mortes que poderiam ser evitadas entre nos cálculos que embasam nossas decisões. O princípio deve ser: ninguém será deixado para trás. Em tempos de embrutecimento dos espíritos, também precisamos estar muito vigilantes em relação ao que enuncia coletivamente nossas decisões, sob pena de fazermos escolhas que podem trazer maior ameaça à nossa sobrevivência como “espécie” do que o próprio vírus.

  • guerra e pandemia: produção de um inimigo invisível contra a vida livre

    \"\"

    por: Acácio Augusto

    Professor no Departamento de Relações Internacionais da UNIFESP e coordenador do LASInTec. Autor
    de Política e polícia: cuidados, controles e penalizações de jovens, Rio de Janeiro: Lamparina, 2013


    A linguagem…, a linguagem…, dizia meu avô — disse Renzi —, essa frágil e enlouquecida
    matéria sem corpo é uma tênue fibra que entrelaça as pequenas arestas
    e os ângulos superficiais da vida solitária dos seres humanos porque ela os amarra,
    como não? Sim, e os liga, mas só por um instante, antes de voltarem a afundar
    nas mesmas sombras em que estavam mergulhados quando nasceram e berraram
    pela primeira vez sem ser ouvidos, numa remotíssima sala branca, e de onde, outra vez no
    escuro, lançarão em outra sala branca seu último grito antes do fim,
    sem que sua voz tampouco chegue, de certo, a ninguém.
    Ricardo Piglia. Anos de formação. O diário de Emilio Renzi. 2017

    As autoridades governamentais e de organizações internacionais, como o governo brasileiro e a ONU, insistem na retórica da guerra ao vírus para se referir às ações para conter a pandemia da COVID-19 declarada oficialmente no dia 11 de março de 2020. Isso é, também, um atento contra a vida. Não contra a vida em geral, a Ideia de Vida, mas contra a vida real de cada um, a vida livre. Então, se você, virtual leitor, não é patrão, empresário, político, militar ou governante: não caia nesse conto! Não use a metáfora da guerra para se referir a uma luta que é pela vida de cada um e não pela morte de um inimigo invisível e intangível.

    Além disso, essa retórica da guerra não fazer sentido, ela apenas atende aos interesses dos que almejam o controle social e político total antes, durante e após a pandemia. A guerra, como sempre foi para esses senhores, é a saúde do Estado. Uma definição clássica de guerra, orienta que ela é um “conflito armado, público e justo”. Portanto, uma guerra segue uma espécie de roteiro, que mesmo sujeito às intempéries do acaso, possui uma forma específica. Há objetivos, um inimigo declarado, etapas a serem cumpridas, planos de ação e hierarquia dos agentes, gente treinada para matar etc. Ela é a realização de um teatro sangrento, i. e., regulado racionalmente e distribuído no espaço. E mesmo que a chamada guerra clássica tenha se metamorfoseado e hoje leve nomes como “conflito de baixa intensidade”, “guerra de quarta geração” ou “estados de violência”, ela segue produzindo um banho de sangue e uma pilha de cadáveres humanos tomados como inimigos (os treinados para a morte do outro lado), e isso não tem nada a ver com um vírus. Ao menos não deveria ter.

    O uso de analogias e metáforas militares para se referir à ações sanitárias não é novo, trata-se de algo mais ou menos generalizado na linguagem moderna. Em Vigiar e punir, Michel Foucault demonstra como a tecnologia política disciplinar, vinculada aos modernos saberes médico, militar e criminológico, segue o modelo da peste (muito mais que da guerra) como condição ideal de sua realização. E aí não se está exatamente em situação de guerra, mas de repartição disciplinar dos corpos. Isso justifica o controle total da circulação de pessoas e sua divisão no espaço como forma de contenção da contaminação e a necessidade de sacrifício coletivo. Todos obedecem em nome da salvação pública e cada um pode ser isolado.

    Sabemos que as tecnologias disciplinares há muito cederam espaço para as tecnologias políticas da sociedade de controle. No entanto, elementos do efeito disciplinar que se buscava na cidade pestilenta ainda são produzidos, sobretudo a abertura de um campo de capilaridade para exercício dos poderes. Como observa Foucault, “contra a peste que é mistura, a disciplina faz valer seu poder que é de análise. (…) Atrás dos dispositivos disciplinares se lê o terror dos ‘contágios’, da peste, das revoltas, dos crimes,
    da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem e desaparecem, vivem e morrem na desordem. (…) No fundo dos esquemas disciplinares, a imagem da peste vale por todas as confusões e desordens; assim como a imagem da lepra, do contato a ser cortado, está no fundo do esquema de exclusão. (…) A divisão constante do normal e do anormal, a que todo indivíduo é submetido, leva até nós, e aplicando-os a objetos totalmente diversos, a marcação binária e o exílio dos leprosos; a existência de todo um conjunto de técnicas e instituições que assumem como tarefa medir, controlar e corrigir os anormais, faz funcionar os dispositivos disciplinares que o medo da peste chamava” (Vigiar e punir. ed. Vozes, 2002, p. 164-165).


    Mesmo com as metamorfoses do poder disciplinar, notem que não é guerra, mas controle e divisão dos corpos para exercício do poder divisionário e analítico o que está em jogo. E as autoridades continuam dizendo que estamos em guerra. Em texto publicado no dia 22 de março na Folha S. Paulo, o secretário geral da ONU, António Guterres, pontifica que “a Covid-19 é o nosso inimigo comum. Temos de declarar guerra a este vírus. Isso significa que os países têm a responsabilidade de acelerar, reforçar e ampliar a sua ação”. Reiterar que estamos em guerra é o prenúncio de que mortes serão inevitáveis e sacrifícios serão necessários. Insistir na metáfora da guerra é insistir do fomento de uma guerra interna contra e
    entre as pessoas, do Estado contra todos e cada um. E, assim, perde-se de saída. Por dois motivos: o primeiro é factual, pois pressupõe que o vírus está fora, quando está dentro. Logo, como conter a \”invasão\” de algo que já está entre nós e que habita invisível e virtualmente cada um dos corpos?

    O outro motivo é ético-político: médicos e demais trabalhadores da saúde não são soldados. Novamente, trata-se de convocar ao sacrifício. Mobilizar a linguagem da guerra contra um não inimigo (o vírus não declarou guerra a ninguém) só aumenta a conflituosidade social, sobretudo entre os “alistamentos voluntários” de pessoas que sentirão autorizadas a dizer como o outro (vizinhos, por exemplo) devem se comportar durante a pandemia, fazendo das pessoas reais e visíveis, virtuais infectados ou vetores do vírus, os reais inimigos. Essa imagem, criada pelas autoridades e pelos os que governam, não apenas corrói a solidariedade social (essa sim eficiente na contenção e mitigação dos efeitos do vírus) como vai elegendo pessoas e grupos como alvos. Nesse momento entram os exércitos e as polícias como elementos \”necessários\”, agentes da ordem unida que, supostamente, estão atuando de forma
    “enérgica” para o bem de todos.

    Desta maneira, os controles securitários são justificados como medidas duras, mas necessárias, medidas de exceção para uma situação sem precedentes. Mas a verdade é que as autoridades são apontados como solução de um problema que elas mesmos criaram ao usarem a retórica da guerra e ao se colocarem como única forma de conter o vírus, alçado aos status de inimigo mortal. E isso não é o pior, pois essa lógica se espalha entre os que se sentem autorizados a fazer “o que for necessário”. Se espalha, porque os cidadãos em geral se sentem alistados nessa guerra fictícia, ou melhor, fabricada pela retórica da guerra. E como o vírus é invisível, quem vira o inimigo a ser combatido? Virtualmente, qualquer um ou qualquer grupo social. Exemplos não faltam.

    Quando no Brasil a epidemia nem havia se instalado, já corriam relatos de hostilidades contra pessoas com traços asiáticos, com as medidas de isolamento social já em curso. Há relatos de cidadão-polícia que até ovo atiraram em pessoas que estavam sozinhas (sem contato social, portanto) andando de bicicleta na rua. E assim, esse inimigo pode ser os chineses, como insiste o presidente dos EUA Donald Trump e seus asseclas da familícia fascista brasileira; pode ser o imigrante, como foi na Itália; os moradores de rua em qualquer parte do planeta; alguém que (supostamente) desrespeitou a quarentena etc. Em resumo: qualquer um, menos os que produziram essa situação. O campo para o exercício do racismo de Estado se amplifica consideravelmente, inclusive para além das instituições estatais. Muitos, por sua própria condição, serão entregues à mortes e, como já foi dito por diversas autoridades no Brasil, mortes serão necessárias que a “vida volte ao normal e o impacto econômico seja mitigado”.

    É impressionante como mobilizar essa linguagem de guerra e sacrifício faz com que militares, políticos, gestores, empresários e corporações multinacionais caridosas (bancos e empresas de tecnologia computo-informacional, sobretudo), se tornem, magicamente, os heróis e salvadores de uma condição que eles mesmo produziram. Basta notar o que está acontecendo no Brasil, onde a conduta fascista grassava muito antes do espalhamento do vírus e, agora, tem um inimigo intangível pronto a se tornar a fonte de todo mal.


    Tudo que li sobre o controle do vírus em países que o receberam muito antes do Brasil (posso estar errado, pois não sou especialista em questões médicas) informa que a testagem em massa e uso de máscaras (adequadas), além dos cuidados com higiene e com os grupos mais frágeis, são as principais medidas de contenção e/ou mitigação da epidemia. Mas curiosamente falta máscaras e os testes, até o momento, demoram a aparecer. Será que é muito difícil um esforço excepcional (ah!, a economia essa deusa moderna que senta ao lado do deus Mercado!) para produção de máscaras e testes em massa?Porque são tão rápidos em expandir os controles eletrônicos, os monitoramentos mútuos, as declarações de estado de sítio, a imposição do home office, mas tão lentos para produção ou compra de testes e máscaras?


    As notícias em todo planeta também informam que o distanciamento social é necessário neste momento para conter o espalhamento da doença. No entanto, governos declaram quarentena e/ou estado de sítio, mas não investem em testes e equipamentos de proteção, como as máscaras. Falta proteção até para as equipes de médicos e enfermeiros! Pra não falar de entregadores e motoristas de aplicativos, funcionários dos Correios, trabalhadores autônomos e demais trabalhadores que são coagidos a trabalhar sem o devido equipamento de proteção. O que passa então? O que passa é que ao falar de guerra, deixa-se claro que não se trata de conter a epidemia, mas de manter e expandir o controle das ruas, das vias de comunicação, da circulação de bens, pessoas e mercadorias.

    Como sabemos, o poder é logístico. A retórica da guerra é isso: o meio pelo qual antes, durante e depois da pandemia, governos de todo planeta vão justificar as milhares de mortes e buscar manter o controle da logística no planeta. Os Estados e as corporações multinacionais possuem interesses próprios que são antagônicos aos da vida de cada pessoa. Quando eles chamarem, não se aliste nessa guerra fabricada. A melhor maneira de lidar com a situação é pelo autocuidado, o apoio mútuo, a ciência, a ação direta e a defesa da vida. Ficar à mercê das autoridades é entregar a vida aos que, desde sempre, apenas jogam com ela.

    O vírus não é um inimigo, ele é apenas mais um dos vários fluídos venenosos que nos atravessam ao longo da vida. O COVID19, em especial, pode matar, não trata de diminuir esse truísmo, mas de compreender que ele não é um inimigo. O Estado, sim, além de parasita, é um inimigo da vida livre. Como cantou a banda anarcopunk Crass: “eles nos devem uma vida”. Não entregue a sua à eles. Como também colocam esse inventores do punk em seu manifesto inicial: “não há autoridade a não ser vocês mesmo” (Crass: escritos, diálogos e gritos. Imprensa Marginal/No Gods No Masters, 2017, p. 10).

    O Estado e as corporações planetárias não só se interessam por sua vida na medida em que você está disponível a servir, na medida que se entrega à servidão voluntária. A vida não é um fato biológico e não pode estar disponível aos medidores que as contabilizam em bancos de dados estatísticos georreferenciados do nascimento à morte. Vida em servidão não é vida, mas sobrevida.

  • Coronavírus: medidas urgentes de proteção às pessoas em situação de vulnerabilidade

    Iniciativa: Fórum Mundaréu da Luz

    fonte: https://mundareudaluz.org/2020/03/20/coronavirus-medidas-urgentes-de-protecao-as-pessoas-em-situacao-de-vulnerabilidade/

    À Prefeitura de São Paulo
    Ao Governo do Estado de São Paulo
    À Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social
    À Secretaria de Segurança Pública
    À Secretaria Municipal de Saúde
    À Secretaria Municipal de Habitação
    À SP Urbanismo
    Ao Ministério Público do Estado de São Paulo
    À Defensoria Pública do Estado de São Paulo
    Ao Tribunal de Justiça de São Paulo

    A chegada do coronavírus (COVID-19) está impactando a vida de muitas pessoas na cidade de São Paulo. Muitos de nós, de forma acertada, têm passado os últimos dias em isolamento, dentro de casa. Mas e aqueles que não têm casa, o que devem fazer?

    Os impactos de uma pandemia são ainda mais duros em contextos de vulnerabilidade. Certamente, a população em situação de rua requer proteção especial, uma vez que enfrenta obstáculos muito maiores para cumprir com as medidas de prevenção básica da doença. Esta população lida com a falta de acesso a materiais de higiene pessoal, à assistência médica, à água e à alimentação e, por fim, a falta de moradia impossibilita a concretização da recomendação de isolamento social.

    Ainda, os grupos de risco mais suscetíveis à infecção pelo coronavírus compreendem pessoas idosas, gestantes e pessoas com doenças crônicas, imunossupressoras, respiratórias e outras comorbidades preexistentes que possam conduzir a um agravamento do estado geral de saúde a partir do contágio, com especial atenção para diabetes, tuberculose, doenças renais, HIV e coinfecções. Dados do Ministério da Saúde, por exemplo, apontam que a prevalência de tuberculose entre as pessoas em situação de rua pode ser até 70 vezes maior que a população geral.

    Na cidade de São Paulo, os dados do censo divulgado neste ano indicam que pelo menos 24 mil pessoas vivem nas ruas, sendo que 3 mil são mais suscetíveis à complicações pois têm mais de 60 anos. Embora a prefeitura tenha definido um protocolo de atendimento para casos suspeitos entre a população em situação de rua, ainda não foram implementadas ações de prevenção e proteção.

    Moradia é direito básico. Estudos e práticas internacionais mostram que o acesso à moradia diminui significativamente demandas em outros serviços de assistência social, saúde e justiça. Os ganhos são para toda sociedade.

    Neste cenário de pandemia, estratégias de prevenção e proteção são urgentes e devem ser pensadas de acordo a cada contexto. Uma realidade que merece atenção especial é a região dos Campos Elíseos, numa região demarcada pelo Plano Diretor de São Paulo como uma Zona Especial de Interesse Social, uma ZEIS 3, e onde se situa a área conhecida por cracolândia.

    Nesta ZEIS e no seu entorno imediato, as pessoas encontram-se em situação cada vez mais vulnerável, muito em decorrência de ações e do descaso do próprio Estado. Seja pelo recente desmonte de equipamentos e serviços de atendimento e acolhida a pessoas em situação de rua, pela constante e crescente violência policial, pela ameaça iminente de despejo de centenas de pessoas que vivem em pensões e hotéis dos dois quarteirões onde o fluxo da cracolândia costuma se concentrar, ou da remoção pelo poder público de quase 200 famílias de um quarteirão inteiro sem que houvesse atendimento habitacional adequado.

    Se a conjuntura já era complicada e a infraestrutura dos equipamentos existentes insuficiente num cenário pré COVID-19, agora a tendência é de agravamento da situação, caso medidas adequadas não sejam tomadas. As pessoas daquela região, sobretudo as que estão em situação de rua, não têm o mínimo necessário para conter a disseminação do vírus, como torneiras para lavar as mãos, banheiros públicos, álcool gel, muito menos moradias e\\ou abrigos em escala suficiente para o isolamento social.

    Complica ainda mais o fato da prefeitura determinar a paralisação das ações de organizações da sociedade civil conveniadas que atendem diariamente essas pessoas, orientando e promovendo medidas de redução de danos. Outra preocupação é que o modelo de confinamento adotado em centros de acolhida da região como política de quarentena: quem entra não poderá mais sair e, se sair, não poderá regressar.

    Soma-se a isso a portaria anunciada pelo Ministério da Justiça na última terça feira, que prevê medidas como a realização de internações compulsórias e a prisão de até 15 dias a dois anos de pessoas contaminadas ou suspeitas de contaminação por COVID 19, que tenham descumprido a quarentena. Medidas estas que contribuem apenas para o uso arbitrário da força policial e a propagação da infecção nos presídios brasileiros, comprovadamente insalubres conforme atestado pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347/2015.

    Continuar com a política de cerceamento e violência só vai piorar a situação. Essas medidas adotadas recentemente tiveram como resultado o aumento do fluxo, e não sua diminuição, como era previsto pela prefeitura. É necessário e urgente que sejam adotadas medidas de proteção a essa população, sejam as pessoas que fazem uso de crack, sejam as inúmeras famílias e comerciantes que vivem e trabalham no entorno do fluxo em moradias e imóveis precários.

    Neste momento, é preciso que o Estado assuma sua responsabilidade e adote medidas adequadas à proteção e à realidade das famílias mais vulneráveis. Por tais motivos, exigimos aos governos, instituições, órgãos e autoridades que adotem, em caráter de urgência, as seguintes medidas e ações de prevenção da disseminação do coronavírus, garantindo saúde pública para as pessoas em situação de vulnerabilidade, em especial aquelas que habitam e circulam na região dos Campos Elíseos:

    1. Interrupção dos processos de despejo dos moradores. Este processos devem acontecer apenas com o atendimento habitacional imediato, em moradia próxima e em condições adequadas para o isolamento e com acompanhamento adequado da equipe social antes, durante e após a mudança para a nova moradia, de modo a garantir que nenhum direito seja violado, inclusive , à saúde pública, à educação, etc.;
    2. Suspensão, por pelo menos 60 dias, das cobranças de parcelas e prestações das famílias beneficiadas por programas habitacionais como locação social, carta de crédito ou outros tipos de financiamento, em razão da interrupção e proibição de atividades econômicas geradoras de renda para boa parte dessa população;
    3. Garantia do acesso à moradia digna para as pessoas em situação de rua e que fazem uso de drogas. Para isso, sugerimos a promoção do serviço de moradia terapêutica para pessoas em situação de rua nos prédios públicos vazios da região central. Este serviço deve estar associado ao acompanhamento psicossocial, promovendo não só melhores condições para a contenção da COVID-19, mas também proporcionando a reabilitação e a reinserção social de pessoas que hoje estão em condições de extrema vulnerabilidade social e baixa autonomia, evitando apreensões e prisões de pessoas com pequenas quantidades de drogas;
    4. Oferta urgente de moradia terapêutica para a quarentena de moradores em situação de rua, testados positivos para o COVID-19 ou com suspeita de contaminação em edifícios públicos vazios localizados na área central adaptados para o uso residencial assistido, de acordo com os protocolos de habitabilidade, saúde e assistência social.
    5. Oferta urgente de moradia a idosos em situação de vulnerabilidade, em edifícios públicos vazios adaptados para o uso residencial assistido, de acordo com os protocolos de habitabilidade, saúde e assistência social.
    6. Suspensão das ações de repressão coletiva na cracolândia, realizadas pela Polícia Militar, Civil e Guarda Civil Metropolitana, que envolvem a utilização de instrumentos de repressão como bombas e balas de borracha;
    7. Suspensão do cumprimento e emissão de mandados de busca e apreensão expedidos anteriormente na região da cracolândia para investigação de delitos não violentos, como tráfico de drogas, evitando prisões de grande quantidade de pessoas simultaneamente e superlotação em carceragens policiais;
    8. Instalação de torneiras, bebedouros e banheiros públicos dotados de toda infraestrutura necessária para o correto saneamento e higienização da população, com água encanada, sabonete líquido, papel higiênico/toalha e álcool gel;
    9. Realização e intensificação de ações de prevenção e redução de danos, com insumos (sabão líquido, álcool gel, máscaras, piteiras) e orientações específicas.
    10. Disponibilização de acesso à alimentação adequada, inclusive líquidos, para garantir um estado de saúde minimamente adequado. Esta demanda requer a continuidade da atuação dos restaurantes populares para atendimento da população de rua e a distribuição de cestas básicas para as famílias que vivem em moradias precárias;
    11. 1. Revisão e garantias de recebimento do Benefício de Prestação Continuada (BPC), uma vez que muitas pessoas em situação de rua, especialmente idosas, tiveram essa transferência de renda negada;
    12. Garantia da oferta de renda mínima ou ajudas de custo mensais, de caráter emergencial, para as pessoas mais sensíveis aos impactos econômicos neste período de controle da pandemia: como famílias muito vulneráveis, trabalhadores informais, autônomos e pequenos comerciantes e também às famílias que forem afetadas pelos cortes de programas federais de transferência de renda;
    13. Garantia o adequado funcionamento dos equipamentos de assistência social, adequados para atuar com cuidados e prevenção à COVID-19.
    14. Ampliação as medidas de prevenção nos albergues municipais, como compras extras de álcool gel, material de limpeza desinfetante, máscaras, luvas aventais e macacões descartáveis para os funcionários, usuários e prestadores de serviços;
    15. Suspensão da cobrança das contas de água e energia elétrica para as famílias em situação de vulnerabilidade social, visto que estas dependem de renda proveniente de trabalho informal que não poderá ser continuado neste período.

    Pela nossa experiência e vínculo com o território dos Campos Elíseos, as medidas aqui apresentadas têm grande aderência. Mas, certamente, elas deveriam ser estendidas a todo o conjunto da população em situação de rua da cidade, assim como para diversas cidadãs e cidadãos que vivem em moradias com condições precárias.

    Para além das medidas emergenciais aqui exigidas, é importante afirmar que também são necessárias ações mais consistentes, de longo prazo, capazes de reverter a situação atual de extrema vulnerabilidade em que esta população se encontra.

    O respeito pela diferença e a diversidade tornam-se fundamentais para avançarmos em uma ideia de cidade que contemple as necessidades e desejos de seus cidadãos. Políticas públicas de cuidado, proteção social, habitação, cultura, entre outras, devem dialogar com a perspectiva de valorizar a vida comunitária que existe em cada lugar.

    Nesse sentido, nós já produzimos o plano urbanístico e social Campos Elíseos Vivo, desenvolvido pelo Fórum Aberto Mundaréu da Luz, que aglutina propostas focadas para os Campos Elíseos, mas que também poderiam ser adequadas e implantadas em outros territórios. Trata-se de uma alternativa concreta que, em tempos de pandemia pelo coronavírus, pode ser uma ferramenta potente de proteção à vida das pessoas e que nos auxilia a experimentar uma cidade mais participativa e inclusiva, que cuide de todas e todos.

    Assinam essa carta:
    Ação da Cidadania
    A Craco Resiste
    Centro de Convivência É de Lei
    Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos
    Cia. Mungunzá de Teatro
    Comissão de Direitos Humanos OAB-SP
    Conectas Direitos Humanos
    Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama
    Emau – mosaico
    Fique Vivo Clínica Social
    Fórum Aberto Mundaréu da Luz
    Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas – INNPD
    Instituto dos Arquitetos do Brasil – São Paulo – IABsp
    Instituto Luz do Faroeste
    Instituto Pólis
    Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade – LabCidade FAUUSP
    Laboratório Justiça Territorial – LabJUTA UFABC
    Laboratório de Tecnologia, Política e Conhecimento – Pimentalab/Unifesp
    Teatro de Contêiner
    Observatório de Remoções
    Movimento Nacional de Direitos Humanos de São Paulo (MNDH-SP)
    Núcleo de Defesa e Direitos Humanos da População em Situação de Rua – SP – NDDH -SP

  • Lab_ Zona de Contágio

    \"\"

    Laroiê!

    salve o mensageiro!

    \”Nós, que pensamos em “ideologia”, somos vulneráveis. Nós não possuímos os saberes pertinentes para identificar e compreender os dispositivos de captura e de produção de impotência. Ora, lá onde se pensa que os feiticeiros existem, aprende-se a reconhecê-los, a diagnosticar seus procedimentos, a se proteger deles, e ainda a contra-atacar\” (I.Stengers). 

    Zona de Contágio é um laboratório situado, prática coletiva de uma ciência do contato implicada em habitar a pandemia COVID-19 como um acontecimento: \”um acontecimento está no interior da existência e das estratégias que o perpassam\”. Ele surge como uma plataforma de convergência entre pesquisadorxs-ativistas cujo trabalho de investigação viu-se forçado a pensar com a intrusão viral. Uma encruzilhada.

    O vírus é a entidade estrangeira que fala pelo nosso corpo, através dele, de sua vulnerabilidade e estupidez. Fala que nossas noções de “política” e de “progresso” ou “civilização” são débeis, inócuas. Faz com que sintamos a febre da Gaia Criatura como resposta imunológica às simplificações ecológicas e biológicas produzidas pelos modos extrativistas que seguem fazendo deserto sem nome do “crescimento econômico”, “desenvolvimento”; que seguem produzindo muros, cercas, desejo de segurança e separação. 

    O medo da contaminação como forma de governo das vidas sempre foi a principal bio-tecnologia colonial,  atualizada pelos regimes autoritários modernos. Tecnologias de vigilância são convocadas ao controle epidemológico; pessoas tomadas por um desejo de segurança profilática passam a “denunciar” outras pessoas que precisam fazer qualquer coisa na rua porque, às vezes, não se tem muitas opções. Outras começam a professar o “Estado Forte” como forma de contenção – como se não nos bastasse a força do que já temos. Fala-se em “Guerra”, mas é importante responder: queremos a restituição da vida em sua possibilidade erótica, não somos os seus soldados!

    Estamos na encruzilhada Hobbes x Espinosa; o Estado e a hipótese do Comum!  O momento em que desejamos que o Estado tome medidas de exceção de controle populacional em nome da segurança sanitária, é o momento em que renunciamos à nossa potência de cuidado da saúde coletiva. Seremos capazes de construir alternativas com nossa inteligência coletiva? Como ativar o Comum, a potência de produção da saúde entre todos, promovendo vínculos solidários de cuidado coletivo? Como infraestruturar as estratégias, dispositivos, tecnologias, diferenças, práticas e conhecimentos que possam dar lugar a essas formas de vida?

    A natureza do poder se modificou de tal forma que hoje confunde-se com a própria vida. Está na paisagem da cidade e suas infraestruturas, nas centenas de dispositivos que conduzem nossa atenção, localização, nas catracas, na produção dos desejos e das frustrações; nas centenas de outros dispositivos que nos conduzem à novas formas de desempenho; novas formas de concorrência.

    Os arranjos sociotécnicos ao mesmo tempo vigiam e controlam toda possibilidade de fuga com outros inúmeros dispositivos de neutralização preventiva. A algoritmização da vida bloqueia qualquer possibilidade de imprevisto, de acontecimento e abertura. O poder se organiza de forma imanente à vida e sua expressão de exterioridade é apenas uma expressão performativa e mais visível dele – ainda que nos pareça mais confortável imaginar que o Poder está lá, sentado em uma cadeira. \”Uma perspectiva revolucionária já não tem a  ver com a reorganização institucional da sociedade, mas com a configuração técnica dos mundos\”. Na metrópole, assinala o Conselho Noturno (2019), o que encaramos não é mais o velho poder que dá ordens, o poder que localiza-se desde uma exterioridade, mas uma forma de poder que logrou constituir-se como a ordem mesmo desse mundo. \”A metrópole é o simulacro territorial efetivo de um mapa sem relação com nenhum território\”

    Diante da crise de presença alimentada por inúmeros dispositivos de produção de corpos neoliberalizados, Zona de Contágio convida ao diálogo praticantes que desejam tensionar as modernas e habituais fronteiras entre ciência e política; entre corpos e pensamento. Assumir nossa debilidade existencial como ponto de partida para pensar os deslocamentos do político. Pensar a nossa crise de presença como condição epocal seria também investigar os diversos dispositivos que a produzem, mas, por outro lado, experimentar como reativar “uma maior atenção ao devir da presença dos entes” no mundo vivo; retomar nossa capacidade de “co-pertencimento e co-produção a cada situação vivida”; encontros. Ciência de contato. Saber qual território habitamos, qual é a terra que pisamos quando falamos \”cidade\”, quais as relações que a constituem, quais são os saberes desautorizados, os saberes sujeitados, os saberes das lutas que desejamos convocar? Uma ciência objetora de tudo que nos envenenou: produtividade, crescimento, competição, originalidade. Uma ciência de combate que acontece entre corpos e suas diferenças.

    Com o acontecimento COVID-19, o Laboratório Zona de Contágio instaura-se como um dispositivo de pesquisa e intervenção na medida em que a produção coletiva de conhecimento sobre as atuais possibilidades de fabricação de uma vida não-fascista torna-se urgente. Se o fortalecimento de governos autoritários já era uma ameaça à vida comum, a intrusão viral potencializa a disseminação de uma cultura imunitária e securitária de contornos fascistas no tecido da própria vida social.

    A crise é maior, é total. Ela nos faz pensar muito concretamente sobre que vida estamos vivendo, qual vida queremos viver  – o vírus, como intruso, fabrica uma das maiores bifurcações da história: a vida tomada como forma securitizada, protegida, entretida, mobilizada para destruir “inimigos”; mas do outro lado, a vida em seu excesso, como forma erótica de habitar o mundo que não queremos perder; uma vida febril que sabe que a liberdade é também interdependência, risco, confusão, travessias. Exu.

  • corpo-como-risco

    por: Alana Moraes

    Em 2018, Bifo falava nessa entrevista com Amador Savater que voltar a nos entediar era a \”última aventura possível\”.

    Bifo parte de um diagnóstico difícil sobre nossos tempos. A intensidade contemporânea das mediações tecnológicas digitais produziu uma verdadeira \”mutação antropológica\” das nossas sensibilidades e percepções.

    Nesse novo regime, o corpo do outro nos aparece como \”signo\”, como informação. Além disso, a hiper-saturação de estímulos do modo conectivo vem produzindo uma \”paralisia do corpo erótico\”; a lógica do modo conectivo como matriz relacional depende de cada elemento permanecer diferenciado e interagir somente de uma maneira funcional, algoritmizada. Aqui a interpretação do sentido está reduzida (deve ser reduzida) a formatos mínimos.

    O que se perde é então a experiência erótica do corpo (que não tem a ver simplesmente com relações sexuais) mas, de uma forma expandida, ela é percepção e experiência do corpo do outro como continuação sensível do meu corpo. À essa matriz erótica-relacional, Bifo chama de \”conjuntiva\”. Ela se situa em uma região de ambiguidades: estar aberto ao encontro é também correr risco. O erótico atua em um sentido forte de contaminação, confusão, afecção, do equívoco, do não-entendimento.

    O modo conectivo, por sua vez, encontra uma nova zona de convergências e afinidades eletivas com (algumas) práticas neopentecostais populares e muitas das novas tecnologias securitárias de vigilância e militarização que se espalham pelo mundo. Trata-se aqui de produzir separações, condomínios, profilaxias imunitárias; a diferença deve ser exterminada, a confusão (exu!) deve ser ordenada. Dispositivos de subjetivações securitárias que fazem da vida uma imagem de pureza, proteção, segurança, blindagem.

    O ruído e a diferença devem ser contidos – as \”novas\” direitas emergem desse tecido biopolítico, não de outro; Uma reorganização tecnológica do dispositivo colonial e racializado de produção intensiva de fronteiras e zonas de morte.

    E aí chega a pandemia.

    O corpo-como-risco seria capaz de restituir a hipótese erótica para a vida? A condição de isolamento nos impõe a percepção radical de que o que nos falta é essa continuação sensível do meu corpo no corpo do outro; Um bloqueio profundo e mesmo cognitivo que nos leva também às formulações de Bateson sobre a mente: a mente é capaz de pensar a vida porque pertence a um mundo vivo; ela não está \”dentro\” de nós.

    Enfim poderíamos voltar agora a nos entediar como uma forma de recusa aos hiperestimulos, à mobilização constante de nossa atenção, uma \”terapia da angustia\”, uma abertura para o pensamento; o desejo do erótico como forma primeira de liberdade. Mas os dispositivos querem, ainda assim, nos organizar em mil formas de \”entretenimento – \”não pense na crise\”.

    Por outro lado, a contra-ofensiva imunológica parece ter encontrado agora terreno fértil: tecnologias de vigilância são convocadas ao controle epidemológico; pessoas tomadas por um desejo de segurança passam a \”denunciar\” outras pessoas que precisam fazer qualquer coisa na rua porque, às vezes, não se tem muitas opções. Outras começam a professar o \”Estado Forte\” como forma de contenção – como se não nos bastasse a força do que já temos. Fala-se em \”Guerra\”, mas é importante responder: queremos a restituição da vida em sua possibilidade erótica, não somos os seus soldados!

    A crise é maior, é total. Ela nos faz pensar muito concretamente sobre que vida estamos vivendo, qual vida queremos viver – o vírus, como intruso, fabrica uma das maiores bifurcações da história: a vida tomada como forma securitizada, protegida, entretida, mobilizada para destruir \”inimigos\”; mas do outro lado, a vida em seu excesso, como forma erótica de habitar o mundo que não queremos perder; uma vida febril que sabe que a liberdade é também interdependência, risco, confusão, travessias. Exu.

  • Coronavírus como a \”intrusão de Gaia\”

    por: Alana Moraes

    Isabelle Stengers há tempos vem apontando para a \”intrusão de Gaia\” como acontecimento que produz deslocamentos radicais na relação dos humanos com a Terra viva. Isso porque, ela segue, os Modernos elaboraram dois modos preferenciais de se relacionar com a Terra: alguns consideraram que ela era um recurso a ser explorado infinitamente, outros que era preciso \”protege-la\”, \”preserva-la\” como uma \”boa mãe provedora\”. Mas ela nunca foi enxergada como portadora de um poder assustador, incontrolável, destruidor e decisivo.
    \”Ofendida , Gaia é indiferente à pergunta “quem é responsável?” e não age como justiceira (…) Teremos que responder incessantemente pelo que fazemos diante de um ser implacável, surdo às nossas justificativas. Um ser que não tem porta-voz, ou, antes, cujos porta-vozes estão expostos a um devir monstruoso\”
    Pois então, o vírus é a intrusão dessa Gaia-criatura viva e furiosa que nos faz lembrar de um jeito doloroso que os inúmeros micro-organismos, vírus, bactérias, sempre fizeram parte de seu regime de existência. Nós, os humanos, não.

    Percebam que o que se faz evidente agora não é a \”fragilidade da Terra\”, \”do meio-ambiente\”, mas é a nossa fragilidade, nossa existência contingente nesse mundo. O confinamento nos deixa perceber/sentir que o \”lá fora\”, \”o mundo\” é parte do nosso corpo vivo, estamos emaranhados, misturados com a Terra, vivemos em uma simbiose obrigatória com muitas outras entidades e criaturas. De repente, tudo o que queremos é o contágio, a contaminação, não da doença, mas do mundo e de suas criaturas – porque pensamos e vivemos graças ao mundo e aos outros. Porque a vida acontece apenas graças ao fluxo contínuo dos materiais que a atravessam.

    O vírus é a entidade estrangeira que fala pelo nosso corpo, através dele, da sua fraqueza e estupidez. Fala que nossas noções de \”política\” e de \”progresso\” ou \”civilização\” são débeis, inócuas; Faz com que sintamos a febre dessa Gaia Criatura como resposta imunológica às simplificações ecológicas e biológicas produzidas pelos modos extrativistas que seguem fazendo desertos em nome do \”crescimento econômico\”, \”desenvolvimento\”; que seguem produzindo muros, cercas, desejo de segurança e separação.

    O medo da contaminação como forma de governo das vidas sempre foi a principal bio-tecnologia colonial, sempre atualizada pelos regimes autoritários modernos. Agora estamos nós personagens desse pesadelo da \”purificação\” cheirando à alcool gel, monitorando uns aos outros, capturados pela tecnologia de domesticação e controle mais eficiente e infernal dos Modernos: a domesticidade heteropatriarcal. Agora com as centenas de outros dispositivos virtuais que prometem nos \”entreter\”, nos livrar do desconforto desse \”acidente\” que é o fim do mundo.

    Mas existe, existirá um jeito de compormos outra vez com a Gaia-criatura e seu devir-monstruoso contra os \”porta-vozes\” daquilo que tem nos envenenado: o progresso, o crescimento, a mobilização permanente, os representantes seguros de suas decisões, os cientistas que tem medo de deixarem suas verdades correrem riscos?
    Parece que estamos agora obrigados a pensar.

  • Coronavírus e a #GreveHumana

    por: Alana Moraes

    A pandemia do coronavírus que se alastra pelo mundo torna visível muito rapidamente um conjunto de constatações perturbadoras e ao mesmo tempo fundamentais para visualizarmos rotas de fuga das máquinas neofascistas, seus pontos de saturação – seria possível uma conexão parcial com o vírus que, ao menos, nos fizesse pensar melhor?

    1) O problema da epidemia e seu poder de contágio se localizam em uma dimensão do transindividual: por mais cuidado que uma pessoa possa ter e mesmo que se esforce para seguir todas as recomendações entre lavar as mãos e evitar aglomerações (e é bom nos esforçarmos) – ainda assim, todos sabemos, estamos vulneráveis uns aos outros. Independente de opções ideológicas, nossa saúde depende de um acordo coletivo que terá mais sucesso quanto maior for o reconhecimento de nossa interdependência; Isso quer dizer que para produzirmos saúde não nos basta APENAS defender a saúde pública, precisamos entender como sustentar a saúde no Comum, entre todos.

    2) O coronavírus tem o potencial de fazer emergir outras comunidades não-identitárias (ou seja, que não sejam nacionais ou religiosas); Subitamente, somos todos potenciais participantes de uma comunidade de afetados pelo vírus; uma comunidade que pode emergir, portanto, de uma vulnerabilidade compartilhada;

    3) Essas duas primeiras dimensões tem emudecido os fascistas que não sabem bem como evocar um afeto de solidariedade que não seja a partir da língua do banimento e de suas fronteiras morais que hierarquizam os que merecem viver e os que merecem morrer – o corona nos faz ver que o mundo é isso que está entre todos (e não \”acima de todos\”).

    4) Os arranjos infraestruturais das nossas cidades dependem de aglomerações, grandes fluxos de abastecimento; nosso padrão de periferias depende de grandes deslocamentos em transportes lotados: a pandemia nos leva também à reflexão sobre os limites das cidades que estamos vivendo (o que alguns já sabem e vivem todos os dias) e, portanto, precisamos levar mais a sério os debates sobre DESMETROPOLIZAÇÃO.

    5) É preciso parar, mas o que significa interromper os fluxos de circulação no neoliberalismo hoje? Nesses momentos de crise nos damos conta como nosso corpo todo, disponibilidades afetivas, subjetividades, tudo parece estar conectado e trabalhando para o funcionamento da máquina. O vírus é uma sabotagem não-humana que fabrica um outro regime de sensibilidade. De repente nos damos conta de que somos um corpo e não portadores de uma \”cidadania\” global e desencarnada;

    6) No começo dos anos 2000 um coletivo artístico sugeriu retomarmos a ideia de uma \”greve humana\”:
    \”Este tipo de greve que interrompe a mobilização total a que todos estamos submetidos e que permite que nos transformemos pode ser chamado de greve humana, pois é a mais geral das greves gerais e o seu fim é a transformação das relações sociais informais que constituem a base da dominação\”.
    Uma greve mais que humana, talvez; interespecífica; porque o \”humano\” também já deu o que tinha que dar; uma greve que parte da consciência radical de que somos todos viventes e habitamos o mesmo mundo – e se gostamos mesmo dessa nossa condição de viventes, vamos ter que aprender a sustentar uma vida comum para além das autoridades governamentais e muitas vezes contra elas.