Acerca de dispositivos, quebras e autorias

por: Paula Ordonhes

“Tricotávamos a lã que sobrava e voltávamos aos livros, a ler tudo outra vez e só reparávamos nas palavras. Queríamos nada saber das histórias. Prestávamos atenção às palavras para sabermos como eram ditas as coisas. Porque alguns livros pareciam perfumar a linguagem, outros sujavam-na e outros ignoravam-na. Os livros podiam ser atentos ou desatentos ao modo como contavam. Nós, inspecionando muito rigorosamente, achávamos melhores aqueles que falavam como se inventassem modos de falar.” (A desumanização, Valter Hugo Mãe)

Gostaria de escrever algo sobre o texto O que é um dispositivo?, de Giorgio Agamben. Li o ensaio na tradução de Vinícius Nicastro Honesko publicada em O que é o contemporâneo? e outros ensaios, um pequeno livro editado em 2009 pela Argos/Unochapecó.

Retornei a este texto depois de tê-lo lido anos atrás. Estou começando a escrever o mestrado em filosofia. Venho de outra área – artes visuais – e me lembrava de ter gostado muito da forma do ensaio de Agamben quando o li pela primeira vez. Pensava portanto em recuperá-lo como uma inspiração para dar forma à minha própria escrita.

Minha lembrança era de que o texto de Agamben se organizava a partir de quebras. De fato, relendo-o agora, vi que ele está dividido em 10 partes, numeradas sequencialmente, sem intertítulos. Cada parte apresenta uma quebra em relação à anterior, e também um acréscimo, como se cada nova seção do texto trouxesse elementos que complementam e ao mesmo tempo se contrapõem à parte precedente. Ao longo das seções 1 a 5, Agamben apresenta uma espécie de genealogia do termo “dispositivo” no sentido utilizado por Michel Foucault. Na seção 6 – talvez não por acaso, o meio do texto –, acontece uma quebra mais significativa que as outras. É o momento em que o autor se desliga de Foucault e passa a pensar no termo dispositivo mais livremente. Na seção 7 usa inclusive a primeira pessoa do singular para descrever seu ódio pelos celulares – telefoninos, em italiano –, um dos dispositivos mais evidentes de nosso tempo. Queixa-se que os telefoninos tornaram as relações entre as pessoas ainda mais abstratas.

Essa fratura no texto – o momento em que o autor se desliga do outro autor, para talvez seguir com ele mais intensamente, numa relação mais visceral e menos mental – também é o próprio assunto do texto. Está, por assim dizer, na carne do texto. Ao traçar a genealogia do termo “dispositivo”, Agamben verifica sua presença e centralidade na história da religião cristã. Dispositio, em latim, foi o termo encontrado por padres latinos como equivalente ao grego oikonomiaOikos significa casa, e oikonomia, a administração doméstica – e também gestão, management. A dificuldade que os religiosos cristãos procuravam resolver entre os séculos II e VI utilizando o termo oikonomia relacionava-se a um aspecto central de sua doutrina: a Santíssima Trindade. Como justificar a presença da tríade “Pai, Filho e Espírito Santo” sem retornar ao politeísmo? A solução encontrada, explica Agamben, foi pensar Cristo como operador da oikonomia da redenção e da salvação entre os homens (sic). Deus, como substância, é uno; mas necessitava de um gestor na Terra para dar conta do dia-a-dia espiritual dos seres humanos.

Assim como a solução encontrada pelos padres cristãos aponta, segundo Agamben, para uma cisão entre o que Hegel chamava “religião natural” (a experiência mística, desvinculada de uma inscrição no ordenamento religioso ou social) e “religião positiva” (o conjunto de regras, ritos e determinações que organizam a vida espiritual em suas diferentes formas), a própria constituição do humano estaria também marcada por uma fratura semelhante: a cisão entre ser e agir. O dispositivo – ou a economia –, nesse sentido, enquanto manifestação humana, não vem para “atrapalhar” nossa liberdade; ele é a própria imagem daquilo que somos, de nossa forma enquanto humanos. Forma-manifesto dessa quebra que nos constitui: ser e ação, natureza e cultura. Corpo e finanças algorítmicas.

Retornando ao início do ensaio, lembramos que dispositivos, na literatura de Foucault, podem ser “discursos, instituições, edifícios, leis, proposições filosóficas”; e sobretudo a rede que se estabelece entre todas essas manifestações dispositivas. A própria linguagem seria também um dispositivo, possivelmente o mais antigo de todos, lembra Agamben. E ainda as prisões, os manicômios, as escolas, a confissão, as fábricas; o cigarro, a navegação, os computadores, e sem dúvida, os telefones celulares. Todas essas manifestações, em alguma medida, contém o que Agamben sugere ser “um desejo demasiadamente humano de felicidade”. O dispositivo – e aqui me parece estar algo muito precioso, talvez o que realmente tenha me feito voltar ao texto – captura o que nos é mais sagrado, e por isso não conseguimos simplesmente nos livrar deles. Nosso corpo a corpo com os dispositivos não pode ser simples, já que o que está em questão é restituir ao uso comum aquilo que nos foi tomado: gestos e pensamentos. Nossa lida crítica com os dispositivos implica nossa própria ressubjetivação. Precisamos nos tornar outras pessoas, em alguma medida (em larga medida).

Ao sugerir como tarefa urgente a profanação dos dispositivos, entendida como a recuperação de volta para o mundo da carne daquilo que foi abstraído, separado, tornado intangível (ou ininteligível), Agamben recusa, conforme compreendi, a ideia de destruição do que está posto. O dispositivo, afinal, é o próprio humano, já que carrega seu desejo de felicidade. Destruí-lo seria o mesmo que nos autodestruirmos. Talvez isso dê pistas sobre a insistência que experimentamos numa forma de vida que nos trouxe à catástrofe: não conseguimos nos livrar dos dispositivos nem fazer um “bom uso” deles, porque o “incessante girar em vão da máquina” da oikonomia também nos constitui, em alguma medida.

Talvez a profanação de que fala Agamben possa ser compreendida como um necessário exercício de reconhecimento de nossa parte ciborgue, daquilo em nós que se prolonga nos dispositivos. Porque não propomos outras formas de vida, não enfrentamos de modo mais contundente o neoliberalismo masculino e branco e sua máquina mortífera? Possivelmente porque há algo dele em nós mesmxs, imobilizando-nos em frente às telas. É um reconhecimento duro de enfrentar. E insuficiente, porque não gera necessariamente ação ou profanação. Mas pode ser algo.

Em Carta de um homens trans ao Antigo Regime sexual, Paul Preciado fala da erotização da dominação como parte da estratégia de perpetuação do que nomeia política do desejo dentro do regime político da heterossexualidade. A diferença de poder entre homens (cis) e mulheres (cis) seria valorizada como desejável num nível não consciente. Esta estratégia não se apresenta enquanto lei claramente estabelecida, e sim como uma norma não-escrita, traduzida em gestos e códigos sutis que determinam o que pode e o que não pode ser feito, quem pode ou não acessar determinados lugares, etc. Contra esse estado de coisas, Preciado propõe uma transformação no modo de desejar, sugerindo que passemos, como sociedade, a desejar a liberdade, em oposição a seguir desejando a dominação. Uma transformação desse porte convoca todo o corpo, precisa ser um exercício diário. Como escrever ou cozinhar.

Podemos pensar que a rivalidade, a competição, a ambição e a agressividade são igualmente erotizadas sob este regime. Uma pessoa “sem ambição” é vista como desinteressante, como alguém “menor”, e muitas vezes também como alguém que merece viver mais precariamente, não ter acesso a confortos materiais básicos, etc. Desejamos a ambição, a competição. Mas Preciado argumenta que o feminismo queer, do qual participa como teórica, não pretende extirpar a rivalidade ou a dominação das relações, e sim garantir que elas aconteçam de maneira consensuada e que os papeis não sejam fixados e naturalizados de acordo com o corpo biológico dxs envolvidxs. “Não estou dizendo que as culturas queer e trans-feminista evitam todas as formas de violência. Não há sexualidade sem um lado sombrio”. Trata-se, conforme compreendemos, de evitar a hegemonia e a predeterminação de um modelo único no qual homens brancos detém todo o poder.

Pensando mais uma vez nas quebras do texto de Agamben, na forma que me interessou e me fez retornar a ele em 2020: não há apenas fraturas no texto. Há também costuras, um fio de sentido, algo que entrelaça as partes. Pode ser que seja um desejo, uma pulsão ética, algo que movimentou o filósofo na direção de concluir o ensaio com uma proposição de profanação. Uma das profanações que me ocorrem é o impulso de nos desgarrarmos dos autores, das autoridades, das citações. Tê-los como parceiros, talvez com alguma rivalidade, mas não como dispositivos legitimadores. Agamben, aliás, profanou um dispositivo importante – a autoria – quando afastou-se de Foucault para pensar seu conceito de dispositivo da maneira como achou melhor.

Pensei em encerrar este texto com algo menos solene e que talvez possa também dar pistas de possíveis profanações. Um amigo costumava dizer que, quando estava em uma situação desconfortável – uma entrevista de emprego, uma reunião difícil com pessoas poderosas –, ajudava-o lembrar que seus interlocutores tinham cu. Me lembrei agora de um texto de Viveiros de Castro, O medo dos outros, se não me engano, que fala nisso também, nesse em-comum que temos não só com outros humanos mas também com outros seres vivos: a boca e o ânus. É um texto bonito, como é bonito o texto de Agamben. Outrxs autorxs tratam do assunto de modos mais poéticos e menos solenes.

O texto de Paul Preciado pode ser lido aqui; o de Viveiros, neste endereço; e o de Agamben, em versão apresentada pelo autor durante conferência na Universidade Federal de Santa Catarina em 2005, na revista outra travessia, com tradução de Nilcéia Valdati.