Tag: Violência de Estado

  • A caixa 623 e os estados de exceção

    por Edson Teles

    Se há um acontecimento síntese dos processos de produção de subjetivação política acerca dos anos de repressão ditatorial no Brasil poderíamos dizer que ele é a experiência da Vala Clandestina de Perus. Polifônico e multifuncional, ao se fazer carne, ao se tornar discurso e ao assumir as funções do medo e da explicação histórica universal, acionou e aciona até hoje mecanismos de dominação e resistência.

    Foi no dia 04 de setembro de 1990 que, após trabalho de pesquisa do jornalista Caco Barcelos e da luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura, a prefeitura de São Paulo decidiu escavar o local onde estariam dezenas de ossadas de indigentes, mortos e desaparecidos políticos e vítimas fatais da polícia durante os anos 70. O resultado foi impactante: sacos contendo ossadas de 1.049 indivíduos e mais outras centenas de corpos misturados por terem tido seus sacos abertos e danificados. A partir desta data se instituía a Vala de Perus, originariamente alocada no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo. Tal fato ocorreu durante o governo da prefeita Luiza Erundina. Acontecimento que poderia deslocar placas tectônicas da memória política, pois as vidas da militância clandestina de resistência se tornariam públicas.

    Passados quase 28 anos, e após um degradante périplo por instituições do Estado, finalmente foi feito o reconhecimento de que a ossada da caixa 623 contém os restos mortais de Dimas Antônio Casemiro (1946-1971*2018). Nascido em Votuporanga, interior de São Paulo, no dia 06 de março de 1946, foi assassinado em abril de 1971, após ser preso pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo), fato ocorrido, segundo a Comissão Nacional da Verdade, sob a responsabilidade do delegado Alcides Cintra Bueno Filho.

    Na biopolítica latino americana, além das características apontadas pelo filósofo Michel Foucault se apresentarem misturadas, as do “fazer e deixar viver e morrer”, somaríamos a prática do “fazer desaparecer”. Por isto, as instituições das democracias herdeiras de regimes autoritários no continente deveriam adotar a marcação acima, com os anos de nascimento e morte e o de identificação do corpo desaparecido.

    Os vários lugares por onde passaram as ossadas indicaram a relação entre as memórias da ditadura e a ausência topológica ou o uso espacial do caráter político das lembranças e dos esquecimentos no Estado de Direito.

    De Perus para a Unicamp. De lá para o Cemitério do Araçá, algumas ossadas para o IML de São Paulo, outras para o Ministério Público. Algumas voltaram para o Cemitério. Mais tarde, boa parte foi para a Unifesp.

    Foram tantas as instâncias, institucionalizações, relatórios apresentados e outros nunca feitos, ofícios, burocracias. Foram várias as reuniões com representantes de direitos, dos militares, da governabilidade. Lugares sem fim, múltiplos espaços, tantas operações de controle quanto as possibilidades de abertura.

    E eis que em fevereiro de 2018, o Grupo de Trabalho de Perus (GTP), localizado no Centro de Antropologia e Arquelogia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp), confirmou a identificação de Dimas. Lá se encontram as caixas contendo as ossadas de Perus. Estas ossadas ressurgirem identificadas aparece como uma prova contundente do modo de operação e da ideologia de descarte das vidas que o Estado considera desmerecedoras de viver. Coloca em evidência um modelo militarizado de segurança pública ainda vigente.

    Da morte à abertura da Vala, passando pelo DOPS, talvez no Doi-Codi do Exército e nas várias salas de tortura para as quais as “forças da segurança e da ordem” levavam os oposicionistas, foram 19 anos. Mais os 28 para finalmente se fazer a identificação temos 47 anos. Ao ser assassinado, Dimas tinha 25 anos. Quase o dobro de tempo da sua vida para a finalização da morte. Se é que podemos dizer que esteja finalizado. Afinal, não sabemos ao certo como, onde, quais os responsáveis pelo crime cometido.

    A Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) não foi até as profundezas do mecanismo de triturar corpos da ditadura para desvendar os detalhes do que ocorreu com Dimas. Não identificou qualquer desaparecido. Em termos de história praticamente compilou o que já se sabia.

    Então, por que o general chefe do Exército brasileiro, Eduardo Villas Bôas, neste mesmo mês de fevereiro de 2018, dispara uma reclamação-ameaça à sociedade avisando que esta instituição não deseja uma outra comissão da verdade? O que significa esta tática em meio à intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro?

    Trata-se, ao que parece, da posse de poderes de vida e morte sobre a população. Como disse o mesmo general, o “risco sempre existe” de se atingir pessoas que não tenham relação com crimes. E para que serve a comissão da verdade? Apurar as violações da dignidade humana, em especial, na experiência brasileira, a tortura, o assassinato e o desaparecimento por parte de agentes do Estado.

    Então, exigir que não se tenha outra comissão é mais ou menos como dizer que se quer uma anistia antes de cometer a violação de direitos. O modelo do Exército atual é parecido com o da ditadura. Em dezembro de 1968, 50 anos atrás, a ditadura decretou por meio do artigo 11 do Ato Institucional número 5 (AI-5), uma auto-anistia: “excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos”.

    Como nos anos da ditadura, o Exército quer a anistia antes mesmo de começar a violar direitos. Ao expor o desejo de se salvaguardarem de outra comissão da verdade (ninguém pode hoje garantir que uma próxima comissão seria somente 40 ou 50 anos após os fatos), o general expõe as formas de uma segurança pública militarizada: a guerra contra o inimigo interno, o povo pobre, negro, ativista, jovens que usam vinagre contra os efeitos de bombas de gás, coletivos espontâneos que tomam avenidas em revolta devido a mais um assassinato cometido por policiais etc.

    A intervenção militar expõe algumas características que diferenciam os estados de exceção vividos no Brasil desde sua redemocratização nos anos 80 em relação à ditadura. E situações que modelam no Brasil uma vida e uma política militarizadas.

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    A primeira característica se refere ao território. Na ditadura a intervenção era em todo o espaço nacional, centralizado, imposto unicamente por armas e sem a necessidade de justificativas. Hoje, os estados de exceção ocorrem em territórios menores, espécies de campos de refugiados que exigiriam uma medida de força e justificado pela necessidade de restabelecer a ordem evitando o pior.

    A segunda característica própria dos estados de exceção no atual estado de direito é a existência de fendas na ordem jurídica. Aciona-se medidas de exceção a partir de mecanismos jurídicos, como a intervenção em curso, mas que não são (porque não é possível ser) regulamentados sobre seu uso. Não há como prever, na letra da lei, o que fazer se não se tem de antemão as circunstâncias que demandam a exceção. A Constituição criou os instrumentos de acionamento da medida de emergência, mas não sabe como será executada. Desta forma, são várias as pressões de militares pela liberação da violação de direitos civis básicos sob a justificativa de que se faz necessário para enfrentar “traficantes armados”. Afinal, como disse o general-interventor Braga Netto, o “Rio é um laboratório para o Brasil”.

    A terceira grande característica dos estados de exceção é seu regime de produção. São décadas de má gestão da segurança pública e de opção pela estratégia do inimigo a ser combatido por táticas militarizadas e em situação de guerra. O resultado, do ponto de vista do cotidiano das populações, é desastroso. Só produziu mais violência e criou territórios nos quais o ser humano passou a ser tratado indignamente. Por exemplo, a cracolândia, os presídios, as favelas nos morros cariocas, as ocupações de movimentos de luta por moradia. Nestes espaços, o Estado (ou forças parceiras dele) é solicitado a agir com desmesura, o tanto quanto estes territórios “anômicos” se encontram “fora da ordem”. A grande questão é: quem produziu estes “campos” apropriados para sofrer a intervenção são os que estão à frente da gestão da vida. Os que governam produzem os territórios que serão alvo da exceção.

    Se as hipóteses acima sobre os estados de exceção estiverem corretas poderíamos dizer que acontecimentos como a intervenção, o golpe de 2016, as chacinas nos presídios, a destruição dos direitos, entre outros, já vêm sendo gestados faz anos. A finalização destes eventos nas tragédias já conhecidas começou com a ampla produção de territórios próprios para a demanda de medidas “duras”. Mas isto não quer dizer que há um projeto político conservador em ação, ou que a ditadura não foi derrotada e permanece nas instituições do Estado. Não. Parece-me que são estratégias de governo, que funcionam em amplas redes, as quais se utilizam dos equipamentos estatais, mas também de formas de organização social e do cotidiano. Lá no bairro em que vivemos, no comércio, no transporte público. Nas várias localidades onde as relações sociais reproduzem os bloqueios de desejos outros que não os das ordens vigentes, onde se dilatam as técnicas racistas, machistas e genocidas.

    A caixa 623 tem nome, história, desejos. Dentro dela habitam os negros, as mulheres, os índios, os homoafetivos, o militante político, as subjetividades atípicas.

    Dimas Antônio Casemiro, presente. Hoje e sempre!

  • Cracolândia, Redenção, Ocupa Brasília e a militarização da política

    texto por Edson Teles

    foto: Centro de Mídia Independente: https://midiaindependente.org/?q=node/298

    fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2017/05/31/cracolandia-redencao-ocupa-brasilia-e-a-militarizacao-da-politica/

    A securitização das práticas sociais tem sido recorrente nos vários modos de governo da vida. Se nas principais potências militares do planeta isto se dê sob a alegação de guerra ao terrorismo, aqui no Brasil a justificativa é o combate à criminalidade e à violência urbana.

    Em São Paulo, neste mês de maio, tentaram legitimar uma ainda maior militarização da cidade. Foi a operação visando acabar com a “anormalidade” dos usuários de drogas na Cracolândia. Mais conhecido como “política higienista”, o “Projeto Redenção” da Prefeitura de São Paulo, cuja parte de suas reuniões, não sem propósito, ocorreram na Secretaria de Segurança Pública, visa “erradicar” – arrancar pela raiz, eliminar, extirpar – o tráfico de drogas e “revitalizar” a distribuição da posse imobiliária da região.

    As cenas que se seguiram à determinação do prefeito, juntamente com o governador e por meio de suas forças policiais, foram de violência indiscriminada. Bombas, tiros, ameaças, destruição de imóveis provocando o “fluxo” desesperado de centenas de paulistanos, abandonados pelas instituições que deveriam lhes garantir direitos. É como se fosse necessário, para este modo fascista de governo, transformar seres humanos em bando, os excluindo do acesso à lei, para acionar os mecanismos inscritos na mesma lei e que visam lidar com possíveis situações emergenciais. O bando é a própria condição da efetividade de um poder autoritário e discricionário, cujos instrumentos devem ser os equipamentos do Estado.

    Os fluxos resultantes da repressão policial produziram outras cracolândias pelo Centro de São Paulo. São cenas conhecidas do paulistano. Em janeiro de 2012, Prefeitura e Estado haviam “deflagrado” a “Operação Dor e Sofrimento”, cuja síntese funcional era inflingir dor e sofrimento aos usuários, mediante a falta da droga e a dificuldade de fixação, obrigando-os a solicitarem ou aceitarem ajuda (leia-se: “internação”). Agora, em 2017, a agressão do Estado foi mais longe e pretende, com autorização judicial, abordar, deter e internar compulsoriamente os indivíduos considerados perigosos para a “ordem pública” na região.

    Mas de qual “ordem pública” se está falando? Por que a garantia da lei e da ordem exige zonas de indistinção entre o lícito e o ilícito, o democrático e o fascista? A que visa a política de produção dos “bandos”?

    Sem dúvida que no caso da Cracolândia um dos principais objetivos específicos da ação criminosa das instituições do Estado é a tentativa de erigir a “Nova Luz”, projeto de especulação imobiliária para a construção de torres de apartamentos e de centros comerciais sob a direção das já excessivamente delatadas construtoras. A alegação de lugar degradado não se deve à presença de usuários de drogas, mas à negligência do poder público em cumprir funções e serviços básicos como coleta de lixo, manutenção dos espaços comuns, cuidado com os bens históricos e culturais do bairro. Soma-se ainda o fechamento de um grande centro comercial, em 2007, e a demolição deste e de outros imóveis nos anos seguintes, espaço para onde se deslocaram com mais intensidade os abandonados e esquecidos.

    Contudo, há nestas ações a articulação de uma militarização da vida urbana, ou ainda, da política. Atos de governo para a manutenção da ordem – higienistas, como na Cracolândia, ou repressivas, como na violência contra as manifestações do “Ocupa Brasília” – não objetivam somente os “criminosos”, “traficantes” e “vândalos”. Estariam na mira das forças da ordem todos os que podem ser de alguma forma perturbadores da normalidade hegemônica submetida a poderes econômicos, oligárquicos e políticos.

    Quando em 2007 o então ministro da Defesa Nelson Jobim anunciou que a presença das tropas brasileiras em solo haitiano seria um bom treino para a garantia da lei e da ordem no Brasil, já se visava agredir com esta força militar os atos de protesto e movimentos de resistência, desde os mais críticos às políticas neoliberais até os coletivos de luta contra a gentrificação e em defesa de direitos humanos. No manual do ministério da Defesa, de execução da “Garantia da Lei e da Ordem”, de 2013, pode-se ler que seu uso se destina, como uma de suas principais funções, ao emprego das Forças Armadas quando houver o “esgotamento” dos órgãos de segurança pública para conter os “movimentos contestatórios”. No cenário do treino descrito no “Manual” se descreve como “forças oponentes” os “elementos integrantes de movimentos sociais reivindicatórios, de oposição ou protesto, comprometendo a ordem pública”.

    No movimento “Ocupa Brasília” se tentou, novamente como em outros momentos de produção de farsas da lógica da governabilidade, alegar a violência de alguns, os “vândalos” infiltrados nos movimentos sociais, para reprimir indiscriminadamente e em proporções obviamente desiguais e absurdas corpos em resistência. Esse parece ser o alvo: os corpos em luta, em especial os dos negros, dos pobres e das mulheres.

    Frequentemente, lanço meu próprio corpo às ruas em dias de manifestações. Desde 2013 não vou a elas sem um lenço para tapar o meu rosto. Eu sei que se for uma manifestação que apresente qualquer risco à “ordem”, as bombas e tiros virão. A “máscara” é o mínimo de proteção. E lá, no calor da correria, quando a polícia começa a agredir indiscriminadamente para intimidar o protesto, facilmente entendo e me solidarizo com os que têm a desproporcional coragem (em relação à força policial) para enfrentar as agressões. Não dá mais para apelar à lógica conciliatória diante do governo da vida descartável e matável. É claro que não se deve lançar-se contra o que irá nos ferir profundamente, é importante se preservar. Mas compreendo a revolta (e isso é também política, concorde-se ou não com o método) produtora dos ataques aos símbolos do capitalismo ou da burocracia e das instituições do Estado.

    Dor, sofrimento, redenção. Redenção, dor, sofrimento, repressão. Não, a redenção não aconteceu. Ninguém foi liberto, salvo ou reabilitado. Tal como no “Projeto Redenção” em São Paulo, a violência do Estado se repetiu, sob moldes parecidos, nas proximidades do município de Redenção, no interior do Pará. Dez pessoas foram executadas pela Polícia Militar, segundo os relatos dos sobreviventes colhidos pelo Ministério Público Federal. O que mais se pode ler nestes depoimentos transcritos é: “a polícia chegou atirando”, de modo semelhante a Cracolândia ou a Brasília, mas com munição letal. Redenção é uma localização próxima ao massacre de Eldorado dos Carajás, que completa 21 anos com profundos rastros de impunidade. É também a região onde, entre 1972 e 1974, cerca de 100 guerrilheiros de resistência à ditadura foram assassinados e, em sua maioria, continuam com os corpos desaparecidos até hoje.

    Brasília, Cracolândia e Redenção não são fatos isolados. Também não começaram a ser praticados ontem. São modelos de laboratório para a modulação de uma sociedade de controle. A sinergia entre estas operações de higienização, repressão a manifestações e eliminação de corpos em resistência é a característica e confirmação maior da militarização da vida, das subjetividades e da política. Essa nova política militar já vem sendo testada nos conflitos de terra, nas periferias das grandes cidades, nos entornos de campos de futebol, nos megaeventos esportivos por vários anos e, nestes dias, a vimos em plena potência. Esses modelos de “pacificação” e controle via a militarização vêm acompanhados de discursos de conciliação, consenso e manutenção da ordem. Trata-se de um tipo de biopolítica, praticada desde sempre, é verdade, mas que sofreu uma intensificação na última década (é só conferir relatórios de ONGs de direitos humanos) e sob os olhares atônitos ou de cumplicidade das instituições do Estado de Direito.

    São operações – termo apropriado ao discurso da guerra mobilizado (vocabulário utilizado também contra a violência urbana, o ataque à propriedade, os “vândalos”, mas que se soma à guerra contra o tráfico, alimentar, da saúde pública) – que desfazem as separações jurídicas e éticas entre o lícito e o ilícito, o legítimo e o ilegítimo. São cada vez mais localizadas, para não se tornarem alvo de denúncias do modelo bélico e ainda servirem como teste; e, permanentes, normalizando o que surge perante a opinião pública como exceção. Em vez dessa militarização da política se fundamentar nos direitos humanos, nas leis e na cidadania, tais formas de controle social emergem com base na construção dos perfis de indivíduos e de comportamentos, de territórios e coletivos, aos quais são atribuídos qualificações e graus de risco à ordem, bem como potências de resistência.

    A vigilância da vida (tanto as de resistência quanto as corriqueiras) tem como paradigma o controle dos espaços, comuns e privados, das estruturas e práticas sociais e da circulação dos corpos a partir da produção da ideia da guerra e da insegurança. Isso serve à militarização de discussões sobre a menoridade, o transporte, as paisagens e os espaços urbanos, mas também de questões amplas como a cultura popular. Os argumentos da guerra e da militarização se dirigem inclusive aos processos de produção de subjetividades. São nesses processos que se encontra a vida política mais profunda. E, também, são nessas ranhuras e porosidades do cotidiano que se criam as mais eficazes estratégias de resistência.

  • Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército

     

    Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército

    acácio augusto

     

    O Espirito Santo é um dos estados mais violentos da federação. Há décadas figura nas primeiras posições em taxa de homicídios, taxa de encarceramento e assassinato de mulheres. Basta consultar os últimos Atlas da Violência, Mapa do Encarceramento e Mapa Violência. Essa violência, como não poderia ser diferente, remonta ao estilo de colonização da região. A colonização pela espada e pela cruz esteve orientada aqui para que o estado servisse de barreira de proteção às riquezas das minas gerais. E mesmo recentemente, quando no começo dos anos 2000, os índios Tupinikin e Guarani resolveram enfrentar a multinacional Aracruz Celulose (hoje FIBRIA), foram duramente reprimidos pela Polícia Federal e por tratores, no sangrento janeiro de 2006. Em resumo, a violência é regra e não exceção no estado. Há menos de um ano, o assassinato de um jovem em Jardim da Penha, Vitória, despertou alguns poucos que ainda se incomodam com isso [nota 2].

    Recentemente o estado tem sido lembrado como exemplo de superação em relação à política penitenciária. Após abrir os famosos “micro-ondas”, carceragens de zinco em formato de contêineres, e ser denunciado no CIDH, a política de superencarceramento do Espírito Santo ganhou aporte federal. Hoje, passados quase 10 anos e a propósito das cabeças que rolaram ao norte do país, a imprensa nacional olha para o Espírito Santo como modelo a ser seguido. Seu secretário de Justiça hoje, Walace Tarcísio Pontes, integrante da equipe de Paulo Hartung, mesmo governador da época dos contêineres, se gaba de ter zerado as mortes e controlado o “caos prisional” no estado. Em matéria da BBC Brasil, ele declara que sua palavra-chave é “arquitetura-prisional” e após investir mais de R$ 500 milhões, o estado passou de 13 par 35 unidades prisionais [nota 3]. Descentralizadas e inspirada em prisões estadunidenses que impedem a comunicação entre pavilhões e proíbe a entrada de comida e material de higiene trazidos pela família, essas modernas instalações substituem os chamados cadeiões com eficácia, como se orgulha o ilibado gestor. No entanto, pesquisadores que acompanham de perto essa política de aprisionamento da miséria no estado, mostram que nem tudo são flores e que a “arquitetura-prisional” foi erigida com violentos procedimentos de tortura sistematizada [nota 4].

    No entanto, mesmo com um histórico deste, o estado ficou de fora da farra orçamentária da segurança pública que circundou a realização dos megaeventos. Como se sabe, especialmente estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, tiveram uma volumosa renovação de equipamentos, treinamentos, contratação de pessoal, etc., como resposta às revoltas de junho de 2013 e adaptação às exigências internacionais para realização dos megaeventos. Pois bem, o Espírito Santo ficou fora disso tudo e tem hoje uma PM pré-Copa. Militares são constitucionalmente impedidos de fazer greve. Mas seus familiares decidiram prostrarem-se diante dos quarteis da Polícia Militar reivindicando ajuste salarial (alegam que a categoria não o tem há 7 anos), plano de saúde familiar (alegam que o Hospital Militar está abandonado) e auxílio alimentação, uma promessa não cumprida pelo governo do estado. A mobilização dos familiares começou na noite de sábado, 4/2/17, mas foi na manhã de segunda que o discurso de pânico e desordem produziu seus efeitos. Via aplicativos de mensagens e redes sociais digitais, os relatos e vídeos de lojas saqueadas, carros roubados e violência generalizada foram se avolumando desde o final de semana, até que na tarde de segunda, 6/2/17, a Região Metropolitana da Grande Vitória se tornou uma cidade fantasma.

                         

    Deste momento em diante as coisas se passam como se fosse um resumo em ato das ficções jurídicas que justificam o Estado nos livros jusnaturalistas do século XVII e XVIII. A ausência de autoridade instala a “guerra de todos contra todos” e é preciso uma autoridade centralizada e forte que estabeleça a lei e a ordem. Foi o que o secretário de segurança do estado, André Garcia, fez: convocou o Exército Brasileiro e a Força Nacional de Segurança para (re)estabelecer a ordem. Em pouco tempo, as mensagens com relatos e vídeos de lojas saqueadas foram sendo substituídas por imagens de abordagens dos homens do exército e imagens apavorantes de corpos empilhados no DML (Departamento Médico Legal de Vitória), que teve sua capacidade excedida. No entanto, o que foi anunciado como guerra de todos contra todos, logo se tomou uma caçada de homens armados e fardados contra quem se aventurou a não respeitar o toque de recolher. No DML, as imagens dos corpos mutilados eram de corpos, como diz a canção, todos pretos, ou quase pretos de tão pobres. Para um paulistano vivendo em Vila Velha/ES, a lembrança do maio de 2006 [nota 1] e o massacre de 500 pessoas pela polícia e grupos paramilitares de extermínio foi imediata. Aqui, até o momento, os números oficiais falam em mais de 60 corpos.

    No entanto, tudo isso, infelizmente, não é novidade quando se pensa na repressão regular dos dispositivos de segurança do Estado. O que mais me impressionou foi que, no final da tarde de segunda-feira, conforme os carros e caminhões do Exército Brasileiro (a Força Nacional de Segurança diz chegar durante o dia 7/2/17) foram ganhando as ruas desertas, as pessoas saíam nas sacadas dos prédios para saudá-los, batendo palmas e gritando vivas. No exato momento me veio à mente a cena do filme do grego Costa Gravas, Missing, que em português recebeu o nome de Desaparecido, um grande mistério, de 1982, baseado em história real contada no livro de Thomas Hauser, The Execution of Charles Horman: An American Sacrifice, de 1978, que conta o desparecimento de um jovem jornalista estadunidense durante o golpe de Estado do General Augusto Pinochet, no dia 11 de setembro de 1973, no Chile. Neste filme, cada vez que os caminhões do exército passavam nas ruas, logo após o golpe, as pessoas saíam nas sacadas das mansões para aplaudir os militares. É claro que não quero comparar, muito menos mostrar similitude entre momentos dispares no tempo e no espaço. Na forma de relato expresso apenas uma memória imagética e cinematográfica que me acorreu ao ver as pessoas em suas sacadas, nas quais antes se batiam panelas, agora aplaudindo o exército tomando as ruas da cidade. No entanto, em ambos os casos fica claro uma coisa: não se condena a violência em si, mas apenas aquela violência que parece não estar a serviço de sua segurança e felicidade.

     

    Outra relação um pouco aflitiva com o filme retomado em minha memória imagética é que o protagonista do filme, Ed, pai de Charles Horman, vai ao Chile e procura mobilizar as autoridades de seu país natal para saber o que aconteceu com o jovem jornalista desaparecido. Ed, junto à esposa de Charles, Beth, corre delegacias, hospitais, embaixadas até descobrir que seu filho foi “desaparecido” por agentes do exército e se encontra emparedado no Estádio Nacional de Santiago, junto à outros opositores do Golpe. Essa lembrança me leva a pensar nos pais, mães, irmãs, esposas, irmãos que começarão a mesma jornada de reconhecimento de corpos e esclarecimento dos fatos com os possíveis “desaparecidos” desta noite de estado sítio no estado do Espírito Santo. Com a diferença de que seus filhos, irmãos e companheiros não são nem jornalistas nem cidadãos da nação mais rica e poderosa do mundo.

    Por fim, sem a menor intensão de estar produzindo uma análise para além de um relato com impressões [nota 5], há uma última questão a ser levantada. Muito se falou que a partir da greve da PM no estado, a população do Espírito Santo ficou refém de “marginais” e da “criminalidade”, isso pode até ser verdade, durante algumas horas e/ou dias, mas podemos ver as coisas de outro jeito também. Quando aqui chegaram os colonizadores, eles diziam encontrar um povo “sem fé, sem lei e sem rei”. Pois bem, por meio da violência e de um brutal etnocídio instaurou-se aqui a fé, a lei e a autoridade centralizada (seja ela do rei, do povo ou da nação). Mais de 500 anos depois, uma simples greve daqueles que mantém a lei e a ordem pela violência, é capaz de instaurar a desordem, atiçar a ânsia em tomar na marra tudo aquilo que se repete a exaustão que se deve ter, mas não se pode comprar. Numa equação simples, se por horas ou dias a população ficou refém da criminalidade, por toda vida ela é refém da polícia. Assim, a força maior vem para pacificar e instaurar a ordem contra aqueles que ainda subsistem, aqueles que insistem em viver nessa civilização sem fé, sem lei e sem rei. O que mostra, a despeito de todas a explicações filosóficas, sociológicas e históricas, que vivemos sob uma autoridade que é tão brutal, na mesma medida em que é extremamente frágil, pois encontra-se em guerra permanente contra uma parte significativa da sociedade, enquanto a outra parte vive entre o pavor de ser expolida e a prontidão em aplaudir o massacre em nome de sua felicidade. Então, diante disso, eu pergunto: é de polícia que precisamos? Ou melhor: quem precisa de polícia? Para quê? Contra quem? Pra que serve a polícia? As respostas triviais não nos levarão a conclusões satisfatórias.

    De fato, como nos alertou Michel Foucault, “a política é a guerra continuada por outros meios”.

    Nota 1: Ver “Um breve histórico da luta e vitória das comunidades indígenas contra a gigante Aracruz Celulose no ES”, in https://prazeresdeamelie.wordpress.com/2009/02/27/um-breve-historico-da-luta-e-vitoria-das-comunidades-indigenas-contra-a-gigante-aracruz-celulose-no-es/

    Nota 2: Ver http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2016/10/grupo-sai-da-ufes-e-protesto-contra-morte-de-jovem-no-bairro-da-penha.html

    Nota 3: Camilla Costa. “Como o Espírito Santo conseguiu zerar mortes em prisões – e o que ainda não funciona em seu sistema”, in BC Brasil em São Paulo, 17 de janeiro de 2017, em http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38657173

    Nota 4: Ver “Crescimento da população carcerária implica aumento da violação de direitos. Entrevista especial com Humberto Ribeiro Júnior” in http://www.ihu.unisinos.br/publicacoes/159-entrevistas/564467-aumento-da-populacao-carceraria-implica-aumento-da-violacao-de-direitos

    Nota 5: Veja também o relato de Lívia de Cássia Godoi Moraes. “Esta noite dormiremos temerosos: sobre o caos nas cidades capixabas” in http://www.esquerdadiario.com.br/Esta-noite-dormiremos-temerosos-sobre-o-caos-nas-cidades-capixabas

  • dos muitos golpes no Brasil: a situação atual da violência de Estado

    Acácio Augusto

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    O principal agente da violência nas sociedades modernas é o Estado. Ele se define e mantém sua dominância pelo exercício dela. Ao contrário do que se imagina, devido ao estereótipo vinculado ao futebol e ao carnaval, o Brasil é um país extremamente violento. Esta violência está diretamente ligada a uma polícia com alto grau de letalidade. Só em 2015, foram 58.383 pessoas assassinadas[1], 160 mortos por dia. Isso, segundo dados oficiais do governo apurados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2016. Destas mortes, 3.345 são atribuídas diretamente à polícia, mas deve-se considerar uma série de fatores que ligam as outras mortes indiretamente à ação policial. Em geral, essa letalidade é aplaudida pela grande maioria da população, que há muito tempo se regozija com um populismo punitivo alardeado pelas mídias e outros setores da sociedade.

    Além da violenta e predatória história colonial e o fato do Brasil ser o último país das Américas a abolir a escravidão, fatores recentes contribuem para essa extrema letalidade e uma violência social letal praticamente naturalizada. Em 1964 o país sofreu um golpe civil-militar que inaugurou a série de golpes na América do Sul com ingerência dos EUA como forma de garantir a zona de influência em um contexto de Guerra Fria. No entanto, quando o regime civil-militar teve fim, em 1985, a chamada “transição lenta, gradual e segura” não extirpou da vida pública os diversos agentes sociais que sustentaram e se beneficiaram do período de exceção: de grandes conglomerados comunicacionais até setores das oligarquias regionais rurais, além de uma pequena elite urbana de hábitos colonizados. A chamada abertura política e/ou democrática foi resultado de um pacto entre as elites, ainda que atendendo às demandas da chamada sociedade civil organizada. Este pacto corresponde às novas diretrizes planetárias, sintetizadas pela ONU e suas agências, em contexto de derrocada do mundo soviético ao leste do planeta e sob o signo do que se chamou de “nova ordem mundial”.

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    No ocaso do século XX, mais precisamente na abertura do século XXI, o Brasil viverá um ciclo de governos chamados progressistas. Inaugurado por dois mandatos de um sociólogo de tendências marxistas, vinculado a um partido de nome “socialdemocrata” mas de política neoliberal, e seguido por um ex-líder sindical e uma ex-guerrilheira vinculada à luta contra a ditadura civil-militar, ambos pertencentes ao PT (Partido dos Trabalhadores), que gaba-se em ser o maior partido de massas das américas. Essa sequência de governos em uma democracia formal e sem ingerência dos militares na vida política inaugurou um ciclo de prosperidade, despertando fortes esperanças tanto interna quanto externamente: um país que finalmente “estaria dando certo” ou no caminho de ser grande. O recente processo de impeachment, concluído no segundo semestre de 2016, que derrubou o segundo mandato da presidente eleita pelo voto direto e majoritário criou uma fissura, em alguma medida inesperada, que acabou interrompendo esse ciclo progressista de governos, mas não alterou a racionalidade governamental dominante. Isto faz com que muitos no Brasil, em especial os setores próximos ao governo deposto, gritem que foi um golpe! Seguido de algum adjetivo: parlamentar, midiático, judicial ou os três juntos.

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    De fato, o processo que derrubou a presidente foi eivado de manobras jurídicas, jogos com a opinião pública e interesses mesquinhos dos representantes do poder legislativo e outros setores interessados. A operação de saneamento do Estado, encabeçada por um juiz de província elevado ao status de herói nacional, nomeada como Lava Jato foi o ponto de apoio dos setores da mídia e da massa conservadora da sociedade para colar no partido que até então ocupava o governo federal, o PT em aliança com o PMDB, o estigma de corrupto e tudo mais de abjeto que possa existir na política nacional. Somou-se a isso uma intensificação de posturas conservadoras e fascistas da sociedade, tanto nas classes médias quanto nas classes populares. Na última década, e junto ao histórico racismo de Estado, o ódio ao diferente tem ganhado campo amplo no país, se amplificando nas redes sociais digitais e encontrando representantes políticos que incorporam esse discurso. A ponto de se defender, abertamente, a volta dos militares ao comando do governo executivo. No entanto, seria equivocado, ou mesmo simplista, atribuir à deposição da presidente a culminância de uma escalada autoritária no país. Como se, após o chamado golpe, a democracia teria sido solapada e a política do país sofresse uma guinada de cento e oitenta graus. De uma perspectiva anarquista, o que se passa hoje no Brasil é consequência lógica de um regime democrático estatal representativo que só se mantém por uma extrema judicialização da vida e da política e uma prática de governo que se reduz cada vez mais a produção hiperbólica de segurança, a despeito de qualquer outro valor político e social, até mesmo em detrimento da democracia formal e dos valores elementares de uma sociedade moderna com o mínimo de liberdade individual, como amplo direito de defesa diante de um tribunal. A questão central é que isso não se iniciou com a deposição da presidente. Mesmo que a consumação desse fato tenha gerado, na linguagem dos constitucionalistas, uma insegurança jurídica e, com efeito, tenha legitimado setores conservadores que viam no governo do PT uma ameaça comunista, por mais absurdo que isso seja.

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    Os 13 anos do governo desposto se vangloria de ter atingido uma série de metas estabelecidas pelos organismos internacionais, em especial a ONU e suas agências como PNUD e UNICEF. A principal delas seria a erradicação da miséria extrema por meio de complementação de renda aos mais pobres, cobrando contrapartida como obrigatoriedade de matrícula escolar dos filhos e vacinação regular, ou seja, ampliando o controle estatal sobre os corpos, em especial, das crianças. Além disso, propagandeia uma série de políticas sociais ligadas à ampliação do crédito no varejo, programas de financiamento de casas populares e programas de crédito estudantil. Em resumo, o governo democrático de esquerda no Brasil promoveu uma política de inclusão pelo consumo que produziu uma massa de novos endividados, algo que os bancos, estatais e privados, agradecem. Além de favorecer, por meio dessas políticas, os valores característicos da racionalidade neoliberal, metamorfoseando proletários em proprietários, pobres em empreendedores de si. Mas não só. Este governo esteve à frente de megaprojetos desenvolvimentistas, como a construção da Usina de Belo Monte, com prejuízo aos povos indígenas e ribeirinhos. E como toda socialdemocracia no mundo pós-Muro de Berlim, investiu fortemente em segurança, como mostrou Loïc Wacquant em suas pesquisas sobre as prisões e política de segurança nos EUA, Inglaterra e França. O governo federal do PT criou uma nova polícia repressiva em 2004, a Força Nacional de Segurança; levou adiante um programa de superencarceramento já iniciado no governo anterior; despejou rios de dinheiro para a política de pacificação das favelas no Rio de Janeiro, as UPP (Unidades de Polícia Pacificadora), face interfronteiras da MINUSTAH, intervenção militar da ONU no Haiti capitaneada pelo exército brasileiro; enfim, um dos últimos atos da presidente desposta foi a criação de uma Lei Antiterrorismo (lei 13.2060/2016) que abre precedentes jurídicos brutais para criminalização dos movimentos sociais. Além do fato de que hoje, há menos de um ano do chamado golpe, o partido que se diz golpeado se vê às voltas com alianças junto aos partidos que perpetraram o tal golpe. Uma retórica, no mínimo, pouco convincente.

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    O ponit of no returne da política e das lutas no Brasil foram as jornadas de junho de 2013, manifestações inéditas e espetaculares em todo país. Iniciada em São Paulo, em meio aos protestos contra o aumento da tarifa do transporte coletivo, essas manifestações colocaram em xeque a narrativa do Brasil grande e do país que finalmente deu certo. Grandeza que seria confirmada com a recepção de megaeventos planetários como a RIO+20, da ONU, a Copa do Mundo de Futebol, da FIFA, e as Olimpíadas, do COI. Respectivamente programadas paras os anos de 2012, 2014 e 2016. Muitos do que foram às ruas alertavam que nesse Brasil grande pobres, pretos e indígenas seguiam sendo assassinados pelo Estado; que as desigualdades históricas seguiam reforçadas; que os antigos perseguidores do presidente sociólogo, do presidente sindicalista e da presidente guerrilheira, são agora seus aliados de governo. Metamorfosearam-se de perseguidos em perseguidores. A emergência do ingovernável nas ruas em junho de 2013, que seguiu adiante, principalmente contra a Copa e as Olimpíadas, expôs o intolerável de qualquer governo, a insuficiência da democracia, e abriu uma brecha para manifestações de revoltas antipolíticas que não cabiam em planos e planilhas dos atuais gestores da miséria no país.

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    O governo, mesmo ungido pelo título de progressista, de esquerda e democrático, agiu como agiria qualquer Estado: reprimiu duramente os protestos, promoveu perseguições e investigações. Prontamente, a imprensa e diversos analistas políticos, à esquerda e à direita, produziram uma enxurrada de “análises”, diferenciando manifestantes “pacíficos” de “vândalos”, estes últimos identificados entre os anarquistas, autonomistas não ligados aos partidos e aos movimentos sociais não alinhados ao governo e, principalmente, praticantes da tática black bloc. Com os vândalos expulsos das ruas pelas bombas e cassetetes da polícia, e muitos respondendo a processos criminais, os chamados manifestantes pacíficos foram gradualmente ocupando essas ruas. Mas desta vez, vestidos com a bandeira do Brasil e pedindo maior moralidade dos governantes, maior punição a infratores da alta e da baixa política, e com demandas que iam da deposição da então presidente à pedidos de nova intervenção dos militares, além de regulares manifestações de ódio à gays, racismo institucionalizado e clamores por uma ordem mais rígida. Era comum entre esses manifestantes, ao invés do embate, a empatia com a polícia, tirando fotos para depois espalhar pelas redes sociais digitais. Enfim, a centralidade do Estado e sua violência foi reposta, após brutal repressão ao ingovernável e um conturbado processo eleitoral em outubro de 2014, começo da reação que visava conter a potência das ruas.

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    De uma perspectiva anarquista, não há o que lamentar desse processo, a não ser seguir lutando contra a violência do Estado e as explorações do capitalismo. No entanto, se hoje, janeiro de 2017, o país se encontra às voltas com um presidente que não foi eleito diretamente pelo voto, com o crescimento assustador de um discurso de ódio contra negros, gays, mulheres e todo tipo de manifestação de diferença e de contestação política, além de uma violência que se alastra por meio da polícia em manifestações de rua até decapitações em presídios de todos país, isso se deve ao fato de que, no momento em que a violência de Estado foi colocada em xeque nas ruas, as forças de esquerda que então ocupavam o governo fez de tudo para repor sua centralidade. Funcionou como aparador e contentor da revolta para depois ser chutada por seus próprios aliados e sócios nos negócios e negociatas do Estado. Hoje chora a falência de um Estado de Bem Estar Social que, a bem da verdade, nunca existiu aqui. A operação estatal mais bem sucedida como reposta às revoltas de junho de 2013 foi justamente a diferenciação entre vândalos e pacíficos, esta abriu caminho para um processo de pacificação brutal, todo efeito institucional a ser lamentado é posterior. E essa distinção foi operada pelo governo democrático e de que esquerda, reforçada a todo tempo por seus chamados \”intelectuais orgânicos\”, chegando ao absurdo de dizer que anarquia e fascismo eram equivalentes.

    Chamem de golpe ou impeachment, a atual situação política de instabilidade no Brasil é a sequência dos históricos golpes perpetrados aqui por oligarcas, militares e dirigentes/gestores políticos, de esquerda e de direita, que nunca vacilam em repor e reafirmar a centralidade e a violência do Estado. A despeito de questões conjunturais extremamente preocupantes, o Brasil segue, como antes, tendo a polícia que mais mata no mundo. E como sabe qualquer anarquista, a polícia é o golpe de Estado permanente.

    Não há solução diante disso, apenas a luta contínua, ou a pequena guerra (petite guerre), como chamava Proudhon a atividade de luta rebelde contra a miséria das guerras de Estado, travada além das fronteiras e contra aqueles declarados inimigos internos. Desde junho de 2013, as lutas autônomas e o interesse pela anarquia cresceu no Brasil, mas também surgiu um movimento conservador que, diferente de outros momentos da história do país, vai para rua e se organiza aos moldes de um “movimento social”, reivindicando seu espaço no espetáculo político da chamada opinião pública, esse consenso fabricado que acaba incidindo como ditadura da maioria em favor dos interesses da mesma minoria (neste caso, numérica, e não no sentido dado por Deleuze). Estes grupos, a partir do pedido de deposição da presidente eleita, conseguiram dar vazão à todo conservadorismo da sociedade brasileira.

    Os anarquistas seguem com suas lutas, enquanto a esquerda institucional luta por hegemonia, tentando reorganizar-se em torno da sua zona de influência juntos aos movimentos sociais domesticados e inscritos na gramática da luta política estatal por reconhecimento e direitos. Nós, anarquistas, seguimos nas ruas, com bandeiras e blocos negros, e nas universidades, com pesquisas e publicações que desafiam a ordem, enquanto minoria potente (essa sim, no sentido dado por Deleuze). Desacatamos a ordem durante o governo de esquerda que agia segundo a governança global da racionalidade neoliberal. Não será diferente agora, diante da nova conformação governamental dessa mesma racionalidade neoliberal que anuncia um ajuste conservador em todo planeta. Não nos interessa a conservação de direitos ou a defesa de um Estado de Bem Estar Social, que ao Sul nunca existiu e ao norte significou a contenção e normatização das lutas. Sabemos que todo direito implica dever para com o Estado, seja ele de que cor for. E quando dizem que a autogestão (mutualismo econômico) e a ação direta (associativismo e federalismo político) são utopias, o que temos a dizer é: utopia é essa busca por paz e segurança projetadas no Estado que habita os corações e as mentes desde a emergência da era moderna. O trabalho de um anarquista é outro. O anarquista é o artífice na construção da vida outra. A luta, para ele, é feita na transformação de si, na luta contra o que somos e em guerra contra a sociedade e o Estado.

     

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    nota: Este breve registro foi escrito originalmente para a edição #123, de fevereiro de 2017, do periódico Slingshot Collective de Berkeley, EUA (http://slingshot.tao.ca/). Não se trata de uma análise de conjuntura, mas um curto diagnóstico histórico-político da situação das lutas no Brasil para anarquistas de outros países. Reproduzo, com pequenas modificações, por dois motivos: 1. Me parece que há algumas questões pouco consideradas aqui sobre a situação política do país, vistas de uma perspectiva anarquista; 2. O periódico circula impresso e em outra língua, logo de difícil acesso ao leitor brasileiro.

     

    Legenda de imagens:

    Imagem 1 (Arquivo “ataque à polícia”): Um manifestante black bloc ataca a polícia em manifestação de junho de 2013 na cidade de São Paulo. Autor: Revista Vice Brasil.

    Imagem 2 (Arquivo: “antifa SP”): concentração para o Ato contra a tarifa do MPL, em janeiro de 2016, em frente ao Teatro Municipal de São Paulo. No destaque a bandeira do grupo Antifa SP. Autor: W. Raeder.

    Imagem 3 (Arquivo “BB Copa”): grupo de black blocs perfilados contra a polícia em Ato contra a Copa do Mundo de 2014 na cidade do Rio de Janeiro. Autor desconhecido.

    Imagem 4 (Arquivo “BBs”): grupo de black blocs com escudos em ato no centro da cidade de São Paulo em junho de 2013. Autor desconhecido.

    Imagem 5 (Arquivo “estudantes RJ”): Dois estudantes em uma escola ocupada do Rio de Janeiro em fevereiro de 2016, com a placa “Foda-se a PM” (polícia militar). Autor desconhecido.

    Imagem 6 (Arquivo “contra a olimpíada”): black blocs com sinalizadores em ato contra a abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro 2016 no centro da cidade em agosto de 2016. Autor desconhecido.

    Imagem 7 (Arquivo “flávio galvão”): grupos de black blocs destroem carro da polícia civil de São Paulo, na região da República em junho de 2013. Autor: Flávio Galvão, da ADVP (Ação Direta de Vídeo Popular).

    Imagem 8 (Arquivo “imagem oficina”): grupo de black blocs em junho de 2013 contra a polícia do Rio de Janeiro. Autor desconhecido.

    Imagem 9 (Arquivo “leviatã”): Tropa de Choque da PM de São Paulo perfilada para defender a vidraça de um cinema na Avenida Paulista, janeiro de 2016, ao fundo cartaz do filme “Leviatã”. Autor desconhecido.

    [1] Dados do 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado em 3 de novembro de 2016, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Disponível em http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/wp-content/uploads/2015/10/9-Anuario-Brasileiro-de-Seguranca-Publica-FSB_2015.pdf