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  • Violência, pobreza, cultura e potência. A periferia e as tentativas de transformação da realidade. Entrevista especial com Tiaraju D’Andrea

    Por: Patricia Fachin, entrevista Tiaraju D\’Andrea

    fonte: http://www.ihu.unisinos.br/568429-o-sujeito-periferico-e-suas-tentativas-de-transformar-a-realidade-entrevista-especial-com-tiaraju-d-andrea

     

    “A periferia paulistana passa por um período de transição”. Esse é um dos diagnósticos do sociólogo Tiaraju D’Andrea, que acompanha as transformações nas periferias nos últimos 25 anos. Segundo ele, embora o lulismo tenha representado “uma melhoria nas condições de vida” na periferia, “o desemprego ronda esta população, sendo as condições de trabalho uma preocupação concreta”, e “há uma descrença generalizada nos partidos políticos e no sistema representativo como um todo”.

    Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, D’Andrea explica as principais transformações ocorridas na periferia paulistana em duas décadas e meia, como o surgimento do Primeiro Comando da Capital – PCC, o crescimento dos evangélicos e a explosão de coletivos artísticos. “Esses três fenômenos foram saídas encontradas pela própria população da periferia para superar o contexto de violência e pobreza da década de 1990. Foram formas de superar o esgarçamento do tecido social e criar uma ética regulatória em um contexto de crise”, avalia.

    Além disso, pontua, três outros fenômenos que não estavam presentes na década de 1990 ajudam a compreender as transformações nas periferias. “Uma narrativa, ou a tentativa da periferia de contar a sua própria história e sem depender de mediadores, uma subjetividade, ou o fato de os moradores da periferia passarem a ter orgulho dessa condição, e o lulismo, como forma de governo, baseado no aumento dos direitos sociais e do consumo”. Na atualidade, frisa, “pode-se observar o crescimento de tendências conservadoras, assim como na sociedade em sua totalidade”.

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    Tiaraju D’Andrea | Foto: Arquivo pessoal

    Tiaraju D’Andrea é doutor em Sociologia da Cultura, mestre em Sociologia Urbana e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Atualmente é pesquisador convidado da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris.

     

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – Um dos temas problematizados na sua tese é o sentido e o significado do termo ‘periferia’. O que entende por ‘periferia’ a partir das suas pesquisas?

    Tiaraju D’Andrea – Historicamente, sempre houve uma disputa entre distintos agentes sociais para obter a preponderância para definir o que era ou o que é um fenômeno social de nome periferia. Denominamos aqui “discurso preponderante” aquele que possui maior abrangência e aceitação social para a explicação de um determinado fenômeno, mas isso não quer dizer que não existam outras explicações concorrentes.

    De acordo com a tese, de mais ou menos 1960 até 1993, a academia possuía a preponderância da explicação do fenômeno periferia. Eram intelectuais de distintas áreas como sociologia, antropologia, geografia, economia, história e urbanismo que conflitavam entre si para obter a explicação mais aceita, mas tudo se passava dentro das formulações da academia. A partir de 1993, com o lançamento de um CD do grupo de rap Racionais MC’s de nome “Raio-X Brasil”, a preponderância passa para moradores de bairros periféricos, cuja eficácia da expressão ocorreu pela via artística, e não pela via científica. Esse CD apresentou ao mundo raps como: “Fim de Semana no Parque” e “Um Homem na Estrada”, dentre outros. Esses raps foram tão impactantes que mudaram a forma de se pensar e enxergar a periferia. A preponderância periférica sobre o fenômeno periferia durou mais ou menos até o ano de 2002, quando o lançamento do filme “Cidade de Deus” fez com que a Indústria do entretenimento passasse a possuir a preponderância das representações sobre o que seja a periferia. Esse filme abriu as portas para uma série de produções cinematográficas e televisivas sobre o assunto. A partir de 2002 a produção da periferia sobre o fenômeno periferia passa a ter um concorrente de maior peso social: a indústria do entretenimento.

    IHU On-Line – Quais são as principais mudanças sociais, culturais e econômicas ocorridas nas periferias paulistanas desde os anos 1990 até os dias de hoje?

    Tiaraju D’Andrea – Certamente, um território amplo como o que denominamos periferia é múltiplo sincronicamente, assim como diacronicamente foi passando por mutações. Creio que nos últimos 25 anos é possível enumerar alguns fenômenos que não existiam antes dos anos 1990. São eles:

    1) o surgimento do PCC,

    2) o crescimento dos evangélicos e

    3) uma explosão de coletivos artísticos.

    Estes três fenômenos foram saídas encontradas pela própria população da periferia para superar o contexto de violência e pobreza da década de 1990. Foram formas de superar o esgarçamento do tecido social e criar uma ética regulatória em um contexto de crise.

    Outras duas tentativas de superação da violência foram provenientes de agentes externos à periferia. Foram elas:

    4) O crescimento da presença de ONGs (Organização Não Governamental) nessas regiões e

    5) o aumento da presença estatal.

    Por fim, outros três fenômenos que não existiam até a década de 1990, passaram a ocorrer nessas regiões. São eles:

    6) uma narrativa, ou a tentativa da periferia de contar a sua própria história e sem depender de mediadores;

    7) uma subjetividade, ou o fato de os moradores da periferia passarem a ter orgulho dessa condição; e

    8) o Lulismo, como forma de governo, baseado no aumento dos direitos sociais e do consumo.

    Na atualidade, pode-se observar o crescimento de tendências conservadoras, assim como na sociedade em sua totalidade. Ainda é cedo para saber se esse fenômeno é conjuntural ou estrutural.

    No que tange à produção artística, e aqui me aterei à música, é interessante notar como nos anos 1980 houve uma preponderância do samba e do rock nacional. Nos anos 1990 o gênero hegemônico foi o rap. A partir dos anos 2000 o funk passou a tomar a cena. Também não podemos esquecer o sertanejo e suas distintas variações, dado que é o gênero mais escutado no Brasil como um todo, inclusive nas periferias paulistanas.

    IHU On-Line – Na sua tese você analisa a “explosão de atividades culturais na periferia nos últimos 20 anos”. Quais atividades são essas e a que atribui esse cenário?

    Tiaraju D’Andrea – Trata-se de uma série de atividades artísticas e culturais que ganharam impulso a partir dos anos 1990 e foram agraciadas com uma série de financiamentos públicos a partir dos anos 2000. Nessas podem-se incluir os saraus, as comunidades de samba, as posses de hip-hop, os cineclubes audiovisuais, os grupos de teatro, os grupos de dança, a literatura marginal, dentre outras. Todas essas atividades são organizadas por coletivos artísticos.

    A explosão do número desses coletivos artísticos na periferia de São Paulo nos últimos vinte anos ocorreu por pelo menos cinco grandes fatores:

    a) Produção artística como pacificação: neste caso, a produção artística foi uma saída para a espiral de violência que se abateu sobre as periferias na década de 1990.

    b) Produção artística como sobrevivência material: neste ponto, a produção artística foi uma forma de auferir renda em um contexto de pobreza. Isto ocorre pelo crescimento de financiamentos e de mercado para esta produção. Obter renda por meio de produção artística era uma forma de escapar de duas soluções pouco interessantes: de um lado o mundo do trabalho capitalista stricto sensu, que sempre representou exploração, baixos salários e humilhação para a população mais pobre; por outro lado, a possibilidade dada a jovens de baixa renda de auferir recursos por meio de atividades ilícitas.

    Entre o mundo do trabalho e o mundo do crime, construiu-se uma terceira opção: a produção artística como forma de sobrevivência material. Cabe destacar que a partir do ano 2000 aumentou exponencialmente o número de financiamentos para esse tipo de atividade.

    c) Produção artística como participação política: na década de 1990, em um contexto de crise das formas clássicas de participação política expressa em partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, os coletivos de produção artística passaram a reaglutinar os indivíduos que buscavam intervir politicamente.

    d) Produção artística como emancipação humana: neste caso, a produção artística foi uma forma de moradores de bairros periféricos sentirem-se vivos e se humanizarem em um contexto de múltiplas violências, humilhações e estigmas.

    e) Produção no local como resposta à segregação socioespacial: neste ponto, avalia-se a multiplicação de atividades artísticas na periferia como forma de dotar o local, levando-se em conta que na cidade de São Paulo os equipamentos culturais concentram-se mormente na região central e no quadrante sudoeste.

    IHU On-Line – Como os coletivos artísticos se manifestam na periferia e ressignificam o entendimento de periferia?

    Tiaraju D’Andrea – Para responder essa questão é necessário recuar no tempo. Em meados de 1990, o termo periferia passou a ser utilizado de maneira política pelos próprios moradores de periferia. Essa utilização fez com que o termo se popularizasse. Em um primeiro momento, essa utilização do termo periferia ocorreu pela ação do movimento hip-hop, depois passou a ser utilizado e disseminado por uma série de outras expressões culturais presentes nas periferias. Nesse primeiro momento de utilização do termo periferia, fundamentalmente nos primeiros anos da década de 1990, o termo tinha um caráter de denúncia, pois mostrava à sociedade a realidade ou a verdade, criticando com isso o pensamento hegemônico neoliberal de princípios dos 1990 que pregava o “fim da história” ou o “fim das classes”.

    Aquele mostrar a realidade em caráter de denúncia se apoiava na apresentação de duas características da periferia: a violência e a pobreza, como forma de criticar a sociedade, mostrando características presentes na realidade social que o pensamento hegemônico queria esconder. No entanto, afirmar-se enquanto periferia por meio dos elementos violência e pobreza era pautar um processo histórico de superação desses elementos. Logo, periferia continha e negava violência e pobreza. Assim sendo, a partir de meados da década de 1990 começa-se um processo histórico de superação desses dois elementos, do qual a produção artística dos bairros periféricos foi um dos principais articuladores. Hoje o significado do termo periferia foi alargado, sendo que o mesmo se entende contendo em seu âmago quatro significados: violência, pobreza, cultura e potência.

    Devido à fragilidade de expressões políticas tradicionais como partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, fundamentalmente a partir dos anos 1990, uma parte migrou para a produção cultural como forma de fazer protesto e se posicionar politicamente. Essa espécie de orfandade política das periferias fortaleceu o crescimento desses coletivos. Com o passar do tempo, coletivos de várias periferias se organizaram para atuar conjuntamente, fundando assim o Movimento Cultural das Periferias – MCP. Esse movimento formulou uma lei de iniciativa popular que após muita luta foi aprovada, intitulada Lei de Fomento às Periferias.

    Não foi à toa que João Doria (PSDB), ao assumir a prefeitura de São Paulo, reduziu em 43% a verba da cultura do município, atingindo a Lei de Fomento, dentre outras linhas de financiamentos de atividades artísticas nas periferias. Mais do que econômica, essa atitude foi política. Sabendo a importância desses coletivos, o sufocamento econômico é uma forma de desorganizar politicamente as periferias.

    IHU On-Line – De outro lado, a que você atribui o crescimento evangélico nas periferias paulistanas?

    Tiaraju D’Andrea – Creio que múltiplos fatores se somam para este fenômeno. Por um lado, há um conservadorismo crescente na sociedade, do qual os evangélicos são causa e consequência. Por outro lado, esse crescimento é também fruto da dinâmica violenta dos anos 1990. Cabe também ressaltar, a crise econômica faz a população buscar em comunidades religiosas algumas saídas. Tampouco se deve esquecer o eficiente trabalho proselitista dessas igrejas.

    IHU On-Line – Como a presença do PCC se manifesta nas periferias paulistanas? Hoje muitos especialistas em segurança falam que a atuação do tráfico se dá dentro e fora das prisões, inclusive em disputas entre facções fora das prisões. Como isso tem ocorrido nessas periferias?

    Tiaraju D’Andrea – O PCC segue presente nas periferias de São Paulo, mas tem menos impacto no que tange à regulação da violência se comparado a dez anos atrás. Este é um dos fatores do aumento da violência nas periferias nos últimos três anos.

    IHU On-Line – Quais são as principais questões que você tem abordado na sua pesquisa atual sobre “Periferia, Periférico e Sujeito Periférico”?

    Tiaraju D’Andrea – Tento entender quais foram os processos sociais que redundaram naquilo que denomino o ser periférico, que é uma espécie de orgulho de ser morador da periferia em resposta ao estigma que muitas vezes acompanha essa condição. No entanto, essa passagem do estigma ao orgulho só foi possível de acontecer historicamente com a percepção de que a situação urbana e social de um morador da periferia é uma situação distinta de outras situações urbanas e sociais. No entanto, o processo de identificação com essa condição e que redunda no ser periférico, por si só não basta. O sujeito periférico é aquele indivíduo que, por meio da percepção de sua condição e da superação do estigma, age politicamente para transformar a sua realidade, seja incidindo nas condições de moradia, por melhores condições de saúde, de educação, de transporte e de cultura. Cabe destacar, no entanto, que foi no campo da produção artística que se fortaleceu um certo orgulho de se morar na periferia.

    IHU On-Line – Qual seu diagnóstico acerca da atual situação da periferia paulistana, dada a atual crise brasileira?

    Tiaraju D’Andrea – A periferia paulistana passa por um período de transição. Se por um lado o lulismo representou uma melhoria nas condições de vida, se comparada à década de 1990, a crise econômica posterior foi um dos fatores que fez esta população retirar seu apoio ao PT. No entanto, ainda é cedo para se afirmar que a adesão a pautas conservadoras seja um fenômeno estrutural. Em todo esse quadro de incertezas, pode-se, ao menos, fazer duas afirmações: o desemprego ronda esta população, sendo as condições de trabalho uma preocupação concreta; e há uma descrença generalizada nos partidos políticos e no sistema representativo como um todo.

     

  • Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército

     

    Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército

    acácio augusto

     

    O Espirito Santo é um dos estados mais violentos da federação. Há décadas figura nas primeiras posições em taxa de homicídios, taxa de encarceramento e assassinato de mulheres. Basta consultar os últimos Atlas da Violência, Mapa do Encarceramento e Mapa Violência. Essa violência, como não poderia ser diferente, remonta ao estilo de colonização da região. A colonização pela espada e pela cruz esteve orientada aqui para que o estado servisse de barreira de proteção às riquezas das minas gerais. E mesmo recentemente, quando no começo dos anos 2000, os índios Tupinikin e Guarani resolveram enfrentar a multinacional Aracruz Celulose (hoje FIBRIA), foram duramente reprimidos pela Polícia Federal e por tratores, no sangrento janeiro de 2006. Em resumo, a violência é regra e não exceção no estado. Há menos de um ano, o assassinato de um jovem em Jardim da Penha, Vitória, despertou alguns poucos que ainda se incomodam com isso [nota 2].

    Recentemente o estado tem sido lembrado como exemplo de superação em relação à política penitenciária. Após abrir os famosos “micro-ondas”, carceragens de zinco em formato de contêineres, e ser denunciado no CIDH, a política de superencarceramento do Espírito Santo ganhou aporte federal. Hoje, passados quase 10 anos e a propósito das cabeças que rolaram ao norte do país, a imprensa nacional olha para o Espírito Santo como modelo a ser seguido. Seu secretário de Justiça hoje, Walace Tarcísio Pontes, integrante da equipe de Paulo Hartung, mesmo governador da época dos contêineres, se gaba de ter zerado as mortes e controlado o “caos prisional” no estado. Em matéria da BBC Brasil, ele declara que sua palavra-chave é “arquitetura-prisional” e após investir mais de R$ 500 milhões, o estado passou de 13 par 35 unidades prisionais [nota 3]. Descentralizadas e inspirada em prisões estadunidenses que impedem a comunicação entre pavilhões e proíbe a entrada de comida e material de higiene trazidos pela família, essas modernas instalações substituem os chamados cadeiões com eficácia, como se orgulha o ilibado gestor. No entanto, pesquisadores que acompanham de perto essa política de aprisionamento da miséria no estado, mostram que nem tudo são flores e que a “arquitetura-prisional” foi erigida com violentos procedimentos de tortura sistematizada [nota 4].

    No entanto, mesmo com um histórico deste, o estado ficou de fora da farra orçamentária da segurança pública que circundou a realização dos megaeventos. Como se sabe, especialmente estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, tiveram uma volumosa renovação de equipamentos, treinamentos, contratação de pessoal, etc., como resposta às revoltas de junho de 2013 e adaptação às exigências internacionais para realização dos megaeventos. Pois bem, o Espírito Santo ficou fora disso tudo e tem hoje uma PM pré-Copa. Militares são constitucionalmente impedidos de fazer greve. Mas seus familiares decidiram prostrarem-se diante dos quarteis da Polícia Militar reivindicando ajuste salarial (alegam que a categoria não o tem há 7 anos), plano de saúde familiar (alegam que o Hospital Militar está abandonado) e auxílio alimentação, uma promessa não cumprida pelo governo do estado. A mobilização dos familiares começou na noite de sábado, 4/2/17, mas foi na manhã de segunda que o discurso de pânico e desordem produziu seus efeitos. Via aplicativos de mensagens e redes sociais digitais, os relatos e vídeos de lojas saqueadas, carros roubados e violência generalizada foram se avolumando desde o final de semana, até que na tarde de segunda, 6/2/17, a Região Metropolitana da Grande Vitória se tornou uma cidade fantasma.

                         

    Deste momento em diante as coisas se passam como se fosse um resumo em ato das ficções jurídicas que justificam o Estado nos livros jusnaturalistas do século XVII e XVIII. A ausência de autoridade instala a “guerra de todos contra todos” e é preciso uma autoridade centralizada e forte que estabeleça a lei e a ordem. Foi o que o secretário de segurança do estado, André Garcia, fez: convocou o Exército Brasileiro e a Força Nacional de Segurança para (re)estabelecer a ordem. Em pouco tempo, as mensagens com relatos e vídeos de lojas saqueadas foram sendo substituídas por imagens de abordagens dos homens do exército e imagens apavorantes de corpos empilhados no DML (Departamento Médico Legal de Vitória), que teve sua capacidade excedida. No entanto, o que foi anunciado como guerra de todos contra todos, logo se tomou uma caçada de homens armados e fardados contra quem se aventurou a não respeitar o toque de recolher. No DML, as imagens dos corpos mutilados eram de corpos, como diz a canção, todos pretos, ou quase pretos de tão pobres. Para um paulistano vivendo em Vila Velha/ES, a lembrança do maio de 2006 [nota 1] e o massacre de 500 pessoas pela polícia e grupos paramilitares de extermínio foi imediata. Aqui, até o momento, os números oficiais falam em mais de 60 corpos.

    No entanto, tudo isso, infelizmente, não é novidade quando se pensa na repressão regular dos dispositivos de segurança do Estado. O que mais me impressionou foi que, no final da tarde de segunda-feira, conforme os carros e caminhões do Exército Brasileiro (a Força Nacional de Segurança diz chegar durante o dia 7/2/17) foram ganhando as ruas desertas, as pessoas saíam nas sacadas dos prédios para saudá-los, batendo palmas e gritando vivas. No exato momento me veio à mente a cena do filme do grego Costa Gravas, Missing, que em português recebeu o nome de Desaparecido, um grande mistério, de 1982, baseado em história real contada no livro de Thomas Hauser, The Execution of Charles Horman: An American Sacrifice, de 1978, que conta o desparecimento de um jovem jornalista estadunidense durante o golpe de Estado do General Augusto Pinochet, no dia 11 de setembro de 1973, no Chile. Neste filme, cada vez que os caminhões do exército passavam nas ruas, logo após o golpe, as pessoas saíam nas sacadas das mansões para aplaudir os militares. É claro que não quero comparar, muito menos mostrar similitude entre momentos dispares no tempo e no espaço. Na forma de relato expresso apenas uma memória imagética e cinematográfica que me acorreu ao ver as pessoas em suas sacadas, nas quais antes se batiam panelas, agora aplaudindo o exército tomando as ruas da cidade. No entanto, em ambos os casos fica claro uma coisa: não se condena a violência em si, mas apenas aquela violência que parece não estar a serviço de sua segurança e felicidade.

     

    Outra relação um pouco aflitiva com o filme retomado em minha memória imagética é que o protagonista do filme, Ed, pai de Charles Horman, vai ao Chile e procura mobilizar as autoridades de seu país natal para saber o que aconteceu com o jovem jornalista desaparecido. Ed, junto à esposa de Charles, Beth, corre delegacias, hospitais, embaixadas até descobrir que seu filho foi “desaparecido” por agentes do exército e se encontra emparedado no Estádio Nacional de Santiago, junto à outros opositores do Golpe. Essa lembrança me leva a pensar nos pais, mães, irmãs, esposas, irmãos que começarão a mesma jornada de reconhecimento de corpos e esclarecimento dos fatos com os possíveis “desaparecidos” desta noite de estado sítio no estado do Espírito Santo. Com a diferença de que seus filhos, irmãos e companheiros não são nem jornalistas nem cidadãos da nação mais rica e poderosa do mundo.

    Por fim, sem a menor intensão de estar produzindo uma análise para além de um relato com impressões [nota 5], há uma última questão a ser levantada. Muito se falou que a partir da greve da PM no estado, a população do Espírito Santo ficou refém de “marginais” e da “criminalidade”, isso pode até ser verdade, durante algumas horas e/ou dias, mas podemos ver as coisas de outro jeito também. Quando aqui chegaram os colonizadores, eles diziam encontrar um povo “sem fé, sem lei e sem rei”. Pois bem, por meio da violência e de um brutal etnocídio instaurou-se aqui a fé, a lei e a autoridade centralizada (seja ela do rei, do povo ou da nação). Mais de 500 anos depois, uma simples greve daqueles que mantém a lei e a ordem pela violência, é capaz de instaurar a desordem, atiçar a ânsia em tomar na marra tudo aquilo que se repete a exaustão que se deve ter, mas não se pode comprar. Numa equação simples, se por horas ou dias a população ficou refém da criminalidade, por toda vida ela é refém da polícia. Assim, a força maior vem para pacificar e instaurar a ordem contra aqueles que ainda subsistem, aqueles que insistem em viver nessa civilização sem fé, sem lei e sem rei. O que mostra, a despeito de todas a explicações filosóficas, sociológicas e históricas, que vivemos sob uma autoridade que é tão brutal, na mesma medida em que é extremamente frágil, pois encontra-se em guerra permanente contra uma parte significativa da sociedade, enquanto a outra parte vive entre o pavor de ser expolida e a prontidão em aplaudir o massacre em nome de sua felicidade. Então, diante disso, eu pergunto: é de polícia que precisamos? Ou melhor: quem precisa de polícia? Para quê? Contra quem? Pra que serve a polícia? As respostas triviais não nos levarão a conclusões satisfatórias.

    De fato, como nos alertou Michel Foucault, “a política é a guerra continuada por outros meios”.

    Nota 1: Ver “Um breve histórico da luta e vitória das comunidades indígenas contra a gigante Aracruz Celulose no ES”, in https://prazeresdeamelie.wordpress.com/2009/02/27/um-breve-historico-da-luta-e-vitoria-das-comunidades-indigenas-contra-a-gigante-aracruz-celulose-no-es/

    Nota 2: Ver http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2016/10/grupo-sai-da-ufes-e-protesto-contra-morte-de-jovem-no-bairro-da-penha.html

    Nota 3: Camilla Costa. “Como o Espírito Santo conseguiu zerar mortes em prisões – e o que ainda não funciona em seu sistema”, in BC Brasil em São Paulo, 17 de janeiro de 2017, em http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38657173

    Nota 4: Ver “Crescimento da população carcerária implica aumento da violação de direitos. Entrevista especial com Humberto Ribeiro Júnior” in http://www.ihu.unisinos.br/publicacoes/159-entrevistas/564467-aumento-da-populacao-carceraria-implica-aumento-da-violacao-de-direitos

    Nota 5: Veja também o relato de Lívia de Cássia Godoi Moraes. “Esta noite dormiremos temerosos: sobre o caos nas cidades capixabas” in http://www.esquerdadiario.com.br/Esta-noite-dormiremos-temerosos-sobre-o-caos-nas-cidades-capixabas

  • Oaxaca, dez anos depois.

    Dez anos depois, Oaxaca resiste: 19 de junho de 2016.

    Em 2006, o povo do Estado de Oaxaca, fundou a Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO) . O povo tomou a cidade de Oaxaca e suas instâncias administrativas. Passou a controlar as rádios, as televisões, o transporte público e demais serviços. No entanto, mesmo frente ao desmando do então governador Ulysses Ruíz, foi brutalmente reprimida pela Polícia Federal Preventiva (PFP-MEX) e pelo Exército Mexicano.

    Mesmo assim, dez anos depois da brutal repressão, Oaxaca resiste. Veja o vídeo:

    https://www.youtube.com/watch?v=yQ7PTpQBcwU