Tag: Uncategorized

  • Não existe ‘outro mundo para se construir’

    Entrevista com Alana Moraes

    Por: Patricia Fachin | 24 Outubro 2017

     

    O pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin e da geração do entre guerras é oportuno para refletir sobre o atual momento político do Brasil e sobre a crise da esquerda, porque essa geração, embora tenha sido “atormentada pela emergência do fascismo”, “se deu conta de que a ideia de um tempo histórico acumulativo que nos guiaria sempre ao ‘progresso’ não passava de uma ficção”, diz a antropóloga Alana Moraes à IHU On-Line. Segundo ela, Benjamin pensa “em um modelo de história atravessado por tempos aleatórios e que, por isso mesmo, está aberta a todo tempo a uma erupção imprevisível do novo. Essa é a aposta otimista de Benjamin que precisamos resgatar: fomos derrotados, mas está tudo outra vez em aberto”, sugere.

    Ao analisar a situação da esquerda brasileira, Alana é enfática: “Não acredito nesse clamor atual por uma ‘unidade da esquerda’” e nem que “um unidade ‘programática’ seja possível nem desejável”. Ao contrário, expõe, “penso muito mais em alianças e essas alianças têm mais chance de acontecer em torno de uma causa situada, de um problema comum. Falo desde a experiências das ocupações urbanas. Elas nos colocam problemas muito concretos: como vamos cozinhar para tantas pessoas, como vamos fazer um banheiro, ter energia elétrica, cuidar das relações, dos sofrimentos uns dos outros? Acho que essa conjuntura de precariedades generalizadas vai nos impor, querendo ou não, esse desafio. Como vamos manter um posto de saúde funcionando? Como vamos garantir o funcionamento das escolas no bairro que estão ficando sem merenda, sem materiais básicos? O ‘diálogo’ vai ter que se dar no terreno da prática, da nossa sobrevivência”.

    Alana Moraes também aposta num “trabalho intenso de pesquisa para entender as ‘novidades’ de organização e resistência do ponto de vista das lutas”, porque “só as lutas, o movimento, a experimentação é que vão nos restituir a potência e nos fazer escapar desse lugar de espectadores ou de comentadores da conjuntura”, afirma. Entretanto, adverte, “uma pesquisa-luta só pode ser feita com o corpo na rua. Não podemos desperdiçar nossas experiências de auto-organização e resistência, por menores que forem elas, não podemos deixar de pensar sobre elas e tentar intensificar suas possibilidades. Precisamos voltar a estar alguns passos à frente. O comitê invisível fala de uma ‘inteligência partilhada da situação’. Eu acho esse um bom caminho para voltarmos a nos organizar de outras formas. O lugar da ‘pesquisa-luta’ é um lugar interessante, ele dessacraliza, por um lado, a ideia de um ‘saber autorizado’ e especializado e, por outro lado, afirma a importância de pensar com a luta e não para ela”.

    Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, a antropóloga também enfatiza que “a proliferação recente de coletivos, movimentos, e novas lutas no Brasil precisavam se encontrar mais. Estamos tendo um problema muito básico que tem a ver com a ausência de espaços de encontro. (…) O movimento Parque Augusta está impedindo há 4 anos a construção de grandes empreendimentos imobiliários em uma área verde da cidade. Temos centenas de coletivos periféricos que também estão discutindo o território a partir de outras chaves: militarização, racismo de Estado, produzindo novas linguagens”. Diante desse cenário, frisa, “difícil convencer alguém que vivemos em uma ‘crise das lutas’. Talvez a gente viva numa crise do encontro”.

    \"\"\"\"Alana | Foto: Paolo Colosso

    Alana Moraes é graduada em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestra em Sociologia e Antropologia pela mesma universidade, e atualmente cursa doutorado no Programa em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ. É feminista e integrante do coletivo Urucum pesquisa-luta.

    Alana Moraes estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU na próxima quarta-feira, 25-10-2017, participando do 2º Ciclo de Estudos A reinvenção política no Brasil contemporâneo. Limites e perspectivas, onde ministrará a palestra Movimentos tradicionais e movimentos autonomistas. Possibilidades à reinvenção da política e da esquerda no Brasil, das 16h às 17h15min.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – Há alguma novidade na cena política desde a nossa última entrevista, em abril?

    Alana Moraes – Estamos todos compartilhando uma sensação de viver em um tempo acelerado, cheio de labirintos. Eu tenho gostado de pensar com Walter Benjamin e com toda essa geração do entre guerras que levou muito a sério o problema do tempo histórico, as possibilidades de transformação, a importância de uma certa virada estética e de sensibilidades para sobreviver em um mundo de catástrofes. Foi uma geração também muito atormentada pela emergência do fascismo e que se deu conta de que a ideia de um tempo histórico acumulativo que nos guiaria sempre ao \”progresso\” não passava de uma ficção. Benjamin começa a pensar, falando de forma simplificada, em um modelo de história atravessado por tempos aleatórios e que, por isso mesmo, está aberta a todo tempo a uma erupção imprevisível do novo. Essa é a aposta otimista de Benjamin que precisamos resgatar: fomos derrotados, mas está tudo outra vez em aberto. Mas é preciso que tenhamos faro histórico também, voltar a exercer nossa sensibilidade. Nesse fluxo contínuo de informações, nossas intuições ficam anestesiadas.

    Não nos faltam \”novidades\”. Do ponto de vista do poder, o governo e o congresso nunca estiveram tão autonomizados da vontade popular. Isso é uma diferença com o fascismo, aliás, que ainda se esforçava para fabricar seu populismo. É o que o Trump tenta resgatar nos EUA. Mas aqui no Brasil, as reformas trabalhistas, da previdência, as movimentações para blindar algumas figuras acusadas de corrupção, as imagens de malas, as escutas divulgadas que envolvem diretamente Michel Temer, nada é suficientemente forte para desestabilizar o governo. Esse é o grande golpe da governamentalidade neoliberal: nos tornar meros espectadores dos jogos de poder, suprimir nossa potência de auto-organização. É a gestão da crise permanente como técnica de governo. Por isso precisamos de um trabalho intenso de pesquisa agora para entender as \”novidades\” de organização e resistência do ponto de vista das lutas. Só as lutas, o movimento, a experimentação é que vão nos restituir a potência e nos fazer escapar desse lugar de espectadores ou de comentadores da conjuntura. Uma pesquisa-luta só pode ser feita com o corpo na rua. Não podemos desperdiçar nossas experiências de auto-organização e resistência, por menores que forem elas, não podemos deixar de pensar sobre elas e tentar intensificar suas possibilidades. Precisamos voltar a estar alguns passos à frente. O comitê invisível fala de uma \”inteligência partilhada da situação\”. Eu acho esse um bom caminho para voltarmos a nos organizar de outras formas. O lugar da \”pesquisa-luta\” é um lugar interessante, ele dessacraliza, por um lado, a ideia de um \”saber autorizado\” e especializado e, por outro lado, afirma a importância de pensar com a luta e não para ela.

    IHU On-Line – A esquerda já dá sinais de recuperar a melancolia?

    Alana Moraes – Estamos em plena reconfiguração do que entendemos por \”esquerda\”. Eu acho que as respostas interessantes cada vez menos virão da esquerda partidária, por exemplo. A esquerda partidária, mesmo em crise, continua pensando em termos de monopólio, quer reivindicar uma certa autenticidade: \”nós sabemos o que é ser organizado, eles não\”, \”militância de internet não é militância\”, \”esse feminismo não é suficientemente anti-capitalista\”, \”o movimento negro não é suficientemente anti-capitalista\”. Não entendo bem esse movimento de um time que está perdendo e se esforça para liquidar qualquer perspectiva de reforço, renovação.

    Por outro lado, tem a energia daqueles e daquelas que já estão experimentando. Penso que precisamos recuperar a ideia de \”formas de vida\” para a superação da melancolia. Isso quer dizer que não existe um \”outro mundo para se construir\”, existem outras relações que vamos produzir nesse mesmo mundo, outros modos de vida. Essa constatação nos exige estar presentes, nos exige pensar em como vamos escapar das armadilhas neoliberais para conseguirmos criar tempos de experimentação e nos implicar em uma nova coreografia que tem menos a ver com \”sujeitos políticos\” prontos, mas com a feitura de nós mesmos em interdependência. Henrique Parra vem falando sobre \”Política do Protótipo\”. Cito ele: \”A realização de um protótipo envolve, primeiramente, a decisão de substituir a adesão a um projeto idealizado e acabado de um modo de vida ou sociedade futura, pela decisão de experimentar construir no aqui-agora, sempre parcialmente, aquela mudança que se deseja\”. Isso tudo nos exige pensar e agir de maneira situada.

    Os homens brancos de esquerda, se quiserem sair desse lugar melancólico do poder perdido, precisam se situar, \”construir o aqui e agora\”, fazer um corpo que não seja um corpo que se pensa \”neutro\”, vão precisar fazer uma política do cotidiano, do cuidado, da reprodução da vida

    Toda confusão e escândalo feito pelos homens brancos da esquerda em relação ao “lugar de fala”, um pouco, tem a ver com a dificuldade que eles possuem de pensar a partir do corpo. O lugar de fala pode ser uma postura ético-política de assumirmos um determinado lugar pelo qual somos afetados, atravessados e interpelados pelo mundo que habitamos. Não é um lugar de \”substância\” ou \”identidade\”, mas é um lugar pelo qual nosso corpo sente e reage ao mundo. A denúncia do racismo, nesse sentido, não se constitui como um espaço de \”autoridade de fala\” – como costumam acusá-lo, mas é um lugar onde corpos são afetados, mortos, expulsos. Os homens brancos de esquerda, se quiserem sair desse lugar melancólico do poder perdido, precisam se situar, \”construir o aqui e agora\”, fazer um corpo que não seja um corpo que se pensa \”neutro\”, vão precisar fazer uma política do cotidiano, do cuidado, da reprodução da vida. E para isso precisam abandonar essa ficção de vanguarda iluminada.

    IHU On-Line – Depois de uma onda de manifestações no início do ano, não se viu mais grandes manifestações no país. Como você explica a falta de manifestações na atual conjuntura? Por que elas diminuíram nos últimos meses?

    Alana Moraes – Esse é justamente o poder atuando em sua forma drástica de despotencialização dos corpos. De certa forma, o Brasil talvez nunca tenha vivido um período tão intenso de grandes mobilizações. As pessoas estão indo para a rua desde 2013. O golpismo foi sagaz de produzir uma leitura pacificada dos conflitos sociais: de um lado as manifestações dos verde-amarelos, de outro as manifestações dos vermelhos. \”Nós vamos fazer um Brasil de todos\”, eles dizem. Esse discurso tem sido usado muito bem pelo Dória: \”Vamos entregar São Paulo para os paulistanos\”. Precisamos saber recuperar o conflito a nosso favor, não negá-lo. O lulismo foi também uma boa pedagogia de domesticação dos conflitos. Como elaborar uma nova radicalidade que não seja aquela óbvia de uma vanguarda que se pensa sempre à frente e dirigente dos processos de luta? Esse é o desafio.

    Os rapazes do Movimento Brasil Livre – MBL estão restituindo a potência de alguns corpos atingidos pela crise da masculinidade, pela perda de alguns privilégios. Eles restituem a potência pela aniquilação do outro, pela misoginia que promete o poder da virilidade perdida. São machinhos histéricos em busca de satisfação por uma dominação que eles nunca tiveram. Citando outra vez o comitê invisível, eles terminam o livro \”Aos nossos amigos\” afirmando que \”tornar-se revolucionário é se entregar a uma felicidade difícil, mas imediata\”. A nossa nova radicalidade está aí, eu penso. Precisamos entender outras formas de restituir nossa potência que não seja via grandes manifestações. Eu encontro essa felicidade quando vou em uma batalha de Slam na rua, por exemplo, ou numa performance dos secundaristas que ocuparam suas escolas e hoje retomam a frase da Emma Goldman \”não me convide para uma revolução em que eu não possa dançar\”, quando estou compartilhando uma refeição numa ocupação de sem-tetos.

    Parte da esquerda mais tradicional agora inventou uma cruzada contra o que eles chamam de \”cirandeiros\”. O que são os cirandeiros? Seriam corpos felizes, em festa, celebrando a importância de estarmos juntos, criando novas poéticas de resistência? Eu fico com a felicidade. Quem aposta na mobilização do ressentimento é o fascismo, nossa aposta tem que ser justamente oposta. Os povos indígenas e muitos povos da África sempre souberam da potência da festa como forma de permanecermos em guerra. \”O corpo que dança e luta é campo de batalha\” escreveu a Julia Ruiz em um texto do Urucum.

    IHU On-Line – Tem havido um diálogo entre velhos e novos movimentos sociais? Sim ou não e por quê? Quais diria que são as vias possíveis de diálogos entre eles e quais são as dificuldades de estabelecer esse diálogo?

    Alana Moraes – Acredito que tenham algumas brechas abertas e interessantes e elas estão sendo feitas no nível do território. Compartilhar um território em comum e pensar a sobrevivência dele, pensar em como vamos nos implicar com um funcionamento de um mesmo espaço, como vamos produzir juntos um modo de vida, acho que esse é o terreno possível de diálogo. Não acredito nesse clamor atual por uma \”unidade da esquerda\”. Não acredito que uma unidade \”programática\” seja possível nem desejável. Eu penso muito mais em alianças e essas alianças têm mais chance de acontecer em torno de uma causa situada, de um problema comum. Falo desde a experiências das ocupações urbanas. Elas nos colocam problemas muito concretos: como vamos cozinhar para tantas pessoas, como vamos fazer um banheiro, ter energia elétrica, cuidar das relações, dos sofrimentos uns dos outros? Acho que essa conjuntura de precariedades generalizadas vai nos impor, querendo ou não, esse desafio. Como vamos manter um posto de saúde funcionando? Como vamos garantir o funcionamento das escolas no bairro que estão ficando sem merenda, sem materiais básicos? O \”diálogo\” vai ter que se dar no terreno da prática, da nossa sobrevivência. Temos que retomar a capacidade de produzir nossas infraestruturas e não sermos mais dominados pelos \”modos de fazer\” do capital. Isso vale pra internet ou para a gestão dos nossos bairros.

    IHU On-Line – Nos últimos anos, foi feita uma crítica ao PT e aos próprios movimentos sociais que ficaram subordinados ao partido e foram aparelhados. Diante disso, como é possível reinventar a política e os movimentos sociais a partir de agora? De que modo os movimentos autonomistas poderiam contribuir para reconstruir a esquerda, por exemplo, e que tipo de relação deveria existir entre os movimentos e um novo possível governo de esquerda?

    Alana Moraes – Não gosto do termo \”aparelhados\”. Os movimentos sociais fizeram uma aposta em um projeto político e coletivo, isso é legítimo. Esse projeto se esgotou e foi derrotado. Mas também teve sucesso em algumas apostas, como a ampliação drástica do ensino superior, para ficar num exemplo emblemático. Abalou de algum modo a estrutura de classes no Brasil – sem isso, o golpe não teria sentido algum. Mas precisamos saber extrair conhecimento desse esgotamento. Não dá para o PT continuar achando que estava fazendo uma revolução. Os movimentos e forças políticas que estiveram dentro desse projeto, dentro dos governos, poderiam fazer um esforço teórico e político agora de abrir as engrenagens internas do sistema, de apontar as contradições. Ninguém entende melhor como as classes dominantes funcionam como o PT. Precisamos entender como o sistema político se manteve todo esse tempo com Joesley e Odebrecht dando as cartas. No fundo, o que Junho de 2013, entre outras coisas, exigia do PT era isto: se o PT era refém das regras do jogo porque não estar do lado de quem quer destruí-las?

    Por outro lado, a proliferação recente de coletivos, movimentos, e novas lutas no Brasil precisavam se encontrar mais. Estamos tendo um problema muito básico que tem a ver com a ausência de espaços de encontro. Essa é a principal vitória do neoliberalismo, na minha opinião. Só para ficar com o exemplo de São Paulo. Aqui hoje temos coletivos que estão atuando contra as apropriações privadas dos espaços da cidade. O movimento Parque Augusta está impedindo há 4 anos a construção de grandes empreendimentos imobiliários em uma área verde da cidade. Temos centenas de coletivos periféricos que também estão discutindo o território a partir de outras chaves: militarização, racismo de Estado, produzindo novas linguagens.

    Coletivos que estão na cracolândia denunciando o novo higienismo urbano e tendo que dar conta do desmonte de toda uma rede de assistência. Temos o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST sustentando ocupações nas periferias, coletivos de arte, midialivrismo, segurança e ativismo nas redes, grupos lutando contra monopólios de todo o tipo, rede de advogados ativistas, redes de agroecologia, temos a experiência do MPL no debate sobre mobilidade urbana, clínicas públicas de psicanálise, uma aldeia indígena lutando pela sua sobrevivência, um quilombo urbano.

    Difícil convencer alguém que vivemos em uma \”crise das lutas\”. Talvez a gente viva numa crise do encontro. Nos organizar não tem a ver com estarmos em um partido, mas com a possibilidade de enxergarmos linhas de conexão entre nossas experiências de luta, de sabermos costurar nossos lugares, estarmos abertos a compreender outras situações. \”Pensar outramente\” – recuperar o projeto antropofágico de pensar com o outro, de se interessar profundamente por aquilo que não é seu e estar aberto a esses atravessamentos.

    IHU On-Line – Quais são as pautas que devem motivar os novos coletivos e movimentos à esquerda no país?

    Alana Moraes – São muitas, não dá para eleger em uma hierarquia de importância. Algumas questões me tocam mais, acho que elas trazem caminhos interessantes. Por exemplo: como vamos viver juntos? Como vamos retomar a possibilidade de, em alguma escala, organizar nossas próprias vidas? Nós, mulheres, nunca deixamos de pensar essa questão. Sempre estivemos vinculadas, querendo ou não, a esse espaço de reprodução básica da vida. Vamos precisar deslocar o tema do \”cuidado\” para o centro do debate político. Cuidado com as relações, cuidado com os nossos corpos, cuidado com as experiências das nossas lutas. Junto a isso, acho que temos que levar mais a sério a noção de tecnologia.

    A Isabelle Stengers propõe a noção de “tecnologia” em contraposição à ideia de “verdade”. É uma distinção ética baseada no postulado de que a “tecnologia” possui um “senso de responsabilidade” do qual a “verdade” sempre escapa. A verdade dos programas, a verdade de uma esquerda que se pensa pura. Ou seja, precisamos elaborar e organizar nossas tecnologias de fazer mundos, de possibilitar modos de vida dissidentes e é isso que vai nos implicar, criar pertencimentos. É o problema da infraestrutura, não podemos deixá-lo escapar. Os governantes querem nos convencer que eles têm o monopólio técnico e especializado de resolver nossos problemas. Por fim, tem o tema urgente da militarização, da repressão, da polícia. Os 18 jovens que estão sendo agora criminalizados por terem feito uma reunião. Intervenções militares em Vitória, no Rio de Janeiro. Isso tudo é muito grave e precisamos nos proteger. Isso nos exige uma contra cartografia de como age o poder hoje, os monopólios, as forças policiais. Não podemos ser ingênuos.

    IHU On-Line – Qual tem sido o impacto político dos últimos acontecimentos ao PT, como o depoimento do Palocci, a reação do PT em relação ao depoimento e a carta dele enviada ao partido?

    Alana Moraes – Eu acho que o PT está muito anestesiado. É quase um choque pós-traumático, não consegue produzir muitas reações. Não vejo muita discussão interna no partido, o Lula hoje é a única coisa que mantém o PT. Se o Lula não consegue manter a candidatura, não sei como o PT conseguirá se manter como partido.

    IHU On-Line – Recentemente uma pesquisa realizada pelo Datafolha indicou que mais de 60% dos possíveis eleitores de Bolsonaro numa futura campanha presidencial, seriam jovens. Como você lê esse tipo de resultado?

    Alana Moraes – Acho que essa não é a melhor leitura da pesquisa. O Hugo Albuquerque chamou a atenção para essa sutileza. Quem lidera a eleição presidencial entre os jovens na pesquisa do Datafolha é o Lula. Ainda que o Bolsonaro tenha um eleitorado mais jovem do que a média, ele não é o líder nesse segmento. Penso, como o Hugo, que a melhor chave de leitura dessa pesquisa continua sendo a de classe. O possível eleitorado do Bolsonaro é formado por pessoas ricas e com ensino superior. Sobre pesquisas geracionais, eu fico com aquelas que analisaram as manifestações de Junho de 2013 em comparação com as manifestações pelo impeachment de 2015: aí o corte etário é brutal. Junho foi predominantemente jovem enquanto as manifestações pelo impeachment foram muito velhas e brancas. Acho essa cisão etária mais interessante para pensarmos novos caminhos.

    IHU On-Line – Que alternativas à esquerda vislumbra para as próximas eleições de 2018? Hoje especula-se em torno dos nomes de Lula, Ciro Gomes, Guilherme Boulos. Qual seria o significado dessas possíveis eleições para a esquerda?

    Alana Moraes – Está tudo ainda em aberto. A candidatura do Lula está ainda muito ameaçada pelas forças do golpe de impugnação. O Lula é o nome mais forte, sem dúvida, para enfrentar a direita ainda que o problema de uma recomposição de lulismo seja de difícil resolução. Lula vai ser a figura de reconciliação do sistema ou vai assumir um lugar de ruptura? É possível refazer a aliança de classes do lulismo? Lula vai ser capaz de ser afetado por uma nova geração politica que se expressou em junho e que deseja uma outra radicalidade nos modos de fazer política para além do jogo da \”participação\” definido pelo PT? Eu tenho dúvidas.

    Mas o outro lado está também ainda muito confuso, me parece que eles ainda não têm uma estratégia comum. O Bolsonaro virou um monstro que parte da direita não consegue controlar, inclusive os poderes midiáticos. Não estamos levando em conta que parte da direita vai tentar, a todo custo, tirar o Bolsonaro do jogo. O PSDB vai entrar em uma disputa interna explosiva se o Alckmin não conseguir controlar o Dória, e o Aécio já começou a ser rifado também. O MBL está se colocando como um ator que pode operar uma certa reconfiguração com Dória, agronegócio e evangélicos, mas acho que eles não têm cacife para isso. Não se organiza caciques mafiosos, uma casta política completamente integrada ao sistema com gritos histéricos. O MBL vai ter que oferecer algum plano mais seguro, garantias. Enfim, o cenário também não está simples para eles.

    Tem alguns atores e atrizes do nosso lado interessantes, que podem entrar nesse jogo na \”erupção imprevisível do novo\”, como dizia Benjamin: O Guilherme Boulos do MTST e a Áurea Caroline, vereadora de Belo Horizonte. Imagina uma mulher negra e feminista em um debate contra o Bolsonaro! Mas acho que temos que seguir em 2017 e pensar uma temporalidade mais de médio prazo. O estrago foi grande, vamos ter que reconstruir toda uma existência e não podemos ser engolidos pela conjuntura eleitoral – precisamos pensar apesar dela. Eu acredito mais no programa em curso das lutas e das experimentações que já acontecem do que na expectativa eleitoral de 2018.

    É importante voltar a pensar nas eleições como uma expressão do incontornável de um processo em curso, de um acúmulo de lutas e proposições. Por isso é importante buscarmos os interstícios, os lugares de respiro. Vai ser muito importante tentar criar um novo campo de conflitualidade que escape do enquadramento da polarização desejada pela direita e fabricada pelo antagonismo petismo versus antipetismo. Ao mesmo tempo, não acredito em apelos republicanos à uma esfera pública na qual possamos pacificar o conflito. O conflito está instaurado e a luta de classes nos exige uma coreografia mais intensa, apaixonada. Se o fascismo tem conseguido mobilizar as paixões para um projeto autoritário de dominação, nossa matéria prima terá que ser de natureza radicalmente diferente: uma paixão de liberdade. 2018 também é o ano em que vamos comemorar 50 anos de 68.

  • Soberania e interdependência: polarização política e o comum

    por Henrique Parra @ Pimentalab 

    Há dois meses vivendo em Madrid, tenho procurado conversar com muitas pessoas, acompanhando movimentos e lendo o que posso para buscar diferentes perspectivas sobre a atual crise política. Com a crescente polarização, a cada dia fica mais difícil escrever algo que não seja tomado como mais uma opinião a inundir os feeds efêmeros. Com todos que conversei pude sentir muita dor, tristeza e indignação. E todas essas dores são legítimas; solidarizo-me com \”nosotros\”.

    ***

    Com todas as diferenças, há algo partilhado entre a crise política vivida na Espanha, em torno do referendo sobre a independência da Catalunia e o atual processo político brasileiro. Arriscaria dizer que este problema está presente em muitos regimes democráticos.

    Refiro-me ao fato de que estamos enredados em diversos mecanismos que intensificam as dinâmicas de polarização, que sequestram o mundo comum e bloqueiam a própria Política. Diante da concentração de poder nas mãos da classe política, dos meios corporativos de comunicação e de uma elite econômica (finanças e industrial), nossas instituições já não capazes de criar canais de mediação das vontades, demandas e conflitos à altura dos problemas que enfrentamos. O sistema está fazendo água por todos os lados em todos os lugares.

    Também constatamos que os próprios mecanismos de produção de maioria produzem \”minorias\” de igual dimensão. Em seus extremos, cada pólo é fabricado através de diversos artifícios de simplificação e redução de sua diversidade. A todo momento uma imagem ou discurso parcial desloca-se e se transforma numa representação do todo, silenciando a multiplicidade. Ninguém se sente exatamente representado e, ainda assim, todos participam da retro-alimentação dessas imagens homogêneas.

    Neste processo, a possibilidade de construção de novos sentidos comuns são destruídos em nome do cálculo para obtenção de regimes de maioria. É sempre um jogo de tudo ou nada, intensificação dos conflitos, esgarçamento do tecido social, ruptura de relações interpessoais, produção de estereótipos, moralização das condutas e discursos. No final, todos são empurrados a tomar partido diante da ameaça do \”mal\” que o outro representa, ainda que não se sintam plenamente representados por cada um dos polos.

    No Brasil este processo é bem conhecido desde que se iniciou o golpe parlamentar-jurídico-midiático. A destruição de outros devires políticos pela esquerda e pela direita é continuamente operada pela exigência de se partidarizar a favor ou contra qualquer coisa. Qualquer argumento que escape ao jogo amigo-inimigo será atacado. As disputas sobre Junho de 2013 ainda são um bom exemplo deste fenômeno.

    O processo em torno do referendo da Catalunia é desafiador porque é também revelador dos limites das formas atuais de nossas instituições políticas. O mais dramático, a meu ver, foi a maneira como um conflito muito complexo foi gradualmente reduzido a um jogo binário, em parte conduzido pela disputa política-partidária que forçou uma polarização na população e, com apoio dos meios de comunicação, sequestrou o campo político.

    Nos últimos dias vem surgindo tentativas de romper esta dicotomização, como a campanha #Hablemos #Parlem (veja artigo Bernardo Gutierrez) e outras mobilizações de base que se formaram no processo de organização comunitária para viabilizar a realização do referendo na Catalunia, criando uma certa hipótese de transbordamento (veja artigo de Emmanuel Rodriguez).

    O paradoxo democrático que aí se instalou é também exemplar: o referendo, conforme as regras constitucionais é ilegal; ao mesmo tempo, a mobilização popular manifesta no processo é legítima, tornando a realização do referendo uma reivindicação democrática (veja artigo do Boaventura Souza Santos). Mas quando o jogo se transforma num campo de força real, como na repressão policial do estado Espanhol à realização do referendo, aprende-se rapidamente que o Estado (democrático ou não) é isso aí, força bruta e, no limite, estado de exceção (veja Imagens).

    Porém, o problema não se resolve com o referendo. O que fazer com a outra metade da população da Catalunia que é contra a separação? Ou ainda com todo o restante da população fora da Catalunia que não deseja a separação? Velhos problemas sobre a relação território, nação, unidade, identidade entram em cena. E neste tipo de situação as máquinas identitária e securitária (o desejo de unidade e segurança) produzem os piores monstros em todos os lados. Além do esgarçamento do tecido social, é muito mais fácil produzir um intolerante do que alguém que seja tolerante e sensível ao outro.

    Assim, nos damos conta que mais importante e desafiador que o dia em que nos tornamos independentes, é o dia seguinte e todos os outros que virão na sequência. Da maneira como a produção e reprodução da vida está hoje organizada em nosso planeta, o problema desloca-se da independência para os modos de interdependência que construímos.

    Pensemos, por exemplo, no que fora concebido como a vontade do indivíduo soberano num sistema político democrático. Nos dias de hoje, quais são as alternativas disponíveis quando a manutenção da vida cotidiana está delegada a arranjos estatais-corporativos (das finanças às redes elétricas) complexos? 

    Alternativamente, como podemos partir do comum e ordinário, daquilo que diz respeito a todos, daquilo que nos implica mutuamente? A produção e manutenção da vida em comum (compartilhada e implicada) nos obriga a pensar nos vínculos que tecem o cotidiano. Como irei conviver com este outro? Deslocamo-nos, portanto, do campo discursivo mais ideológico para construir práticas de outros modos de vida. Como desmontar as máquinas opressoras de produção de maiorias, os sistemas de vanguarda e de condução das populações? Como partir de um plano imanente à vida e aí mesmo no mais ordinário ir constituindo e ampliando as infraestruturas e instituições de suporte a outros modos de vida, mais solidários e emancipadores?

    Eu arriscaria dizer que a imagem da soberania de territórios-independentes-autosuficientes se esgotou. Mas ela ainda seguirá operando por muito tempo. A construção de uma Política do Comum exige outras instituições para as quais já temos muitas experiências inspiradoras na história, onde se praticaram outros marcos jurídicos, códigos e instituições de regulação da vida em comum. Há muito o que se investigar e experimentar.

    O que está em jogo em nosso planeta são as condições de produção e reprodução da vida em comum, em direção à modos de vida mais emancipatórios e solidários num mundo de relações interdependentes. Falar de uma política do comum me faz pensar numa política do/pelo meio. Meio como ambiente e também como \”entremundos\”. Ir aos poucos modificando o próprio meio em que estamos imersos de maneira a torná-lo mais favorável às relações que estamos constituindo. Evidentemente, isso não significa negligenciar a importância das atuais instituições e as disputas sobre seu governo. Trata-se, talvez, de uma outra noção de estratégia, uma outra forma de reticulação e propagação de novas estruturações em níveis subsequentes, numa relação imanente ao mundo existente (incluso estado, mercado etc).

    A impressão que tenho é que este impasse político está utilizado como um verdadeiro teste para as recentes experimentações municipalistas da Espanha. A depender da maneira como o conflito evoluir, e de qual será o papel dos governos municipalistas no seu interior, é possível que algo de inesperado surja como alternativa à atual polarização e fortalecimento dos nacionalismos identitários. Ou então, o que surgiu como novas experimentações institucionais pós-15M corre o risco de ser   tragado para dentro desta armadilha, perdendo seu atual protagonismo político. Fico pensando o que significa levar a sério a proposta #RefugeeWelcome do ponto de vista de uma política do comum?

     

    PS 1: Atualização: Ontem a noite (10/10) o governador da Catalunia, conforme previsto no referendo, declarou o resultado da votação ratificando a independência da Catalunia, para em seguida propor a suspensão dos seus efeitos visando o estabelecimento de um diálogo com o governo Espanhol. As vezes a política está no detalhe e no simbólico, é puro dissenso: declarou ou não a independência? Hoje o governo Espanhol solicita esclarecimentos e ativa o dispositivo jurídico (art.155) para preparar uma intervenção na Catalunia. Poderíamos dizer que o governo Catalão fez um movimento de recuo e destencionamento, mas alguns interpretaram essa ação como reiteração de polarização com o Governo espanhol, que responde reafirmando sua posição inicial. Em suma, a tensão segue inalterada.

    PS 2: este post é parte da série de relatos que irei realizar durante o período de pós-doc em Madrid. Mais informações sobre o projeto atual: http://wiki.pimentalab.net/index.php?title=Projetos_Pesquisa

  • Autonomia e organização por Toni Negri

    Autonomia e organização

    por Toni Negri

    Assembléia na Casa do Povo em 2016

    publicado originalmente no Jornal Nossa Voz

    O projeto político do neoliberalismo, a partir dos anos 1970, é um projeto fundamentalmente relacionado a uma reorganização do trabalho e da força de trabalho ao redor do mundo. [Esse projeto] consiste em fazer trabalhar a sociedade como um todo, e não apenas as fábricas que, através da automatização e da robotização, são cada vez mais esvaziadas. Como se faz para lutar contra o fato de que o capital hoje retira, [o capital] extrai sua valorização de toda a sociedade, das relações sociais, da vida, da educação, da saúde, de qualquer lugar onde exista trabalho social (inclusive o trabalho das fábricas), enquanto integrante da sociedade? Como se faz para lutar contra isso? Eu já sou velho, e venho de uma experiência que foi aquela da autonomia nas fábricas; foi uma autonomia contra os patrões e contra os sindicatos para determinar uma ruptura frente ao sistema salarial que dominava a nossa vida, a vida dos trabalhadores. Hoje, o problema consiste em como fazer para ganhar essa batalha contra a exploração social. É por isso que movimentos como os de São Paulo sobre o transporte público [Movimento Passe Livre – MPL] são tão importantes. São lutas que sinalizam um lugar estratégico, que promovem uma ferida na acumulação capitalista.

    As experiências de lutas sociais são muitas e muito vivas. Pensem, por exemplo, naquilo que ocorreu a partir da primeira onda a colocar esses problemas, que começou em Seattle em 1999 e terminou em Gênova com um enfrentamento dos novos proletários contra os patrões do mundo – ou seja, o G8. A segunda onda é a que começou em 2011. Diante dessas situações temos uma série de respostas capitalistas cada vez mais fortes, cada vez mais duras. Por quê? Estamos no limite da capacidade capitalista de se reproduzir nas formas neoliberais. É verdade. É verdade que eles perderam… Eles, os patrões, eles, os capitalistas. Perderam a relação com a sociedade. A questão de um mecanismo de acumulação social se revelou muitíssimo mais difícil que aquilo que eles podiam pensar. Eles fecharam as fábricas porque elas foram tomadas por lutas cada vez mais intensas. Lutas marcadas pelas continuidades socialistas – ou melhor, na direção do comunismo. E a partir deste momento eles tentaram reconquistar o controle do sistema por meio da dominação financeira do mundo. Hojeem dia, aqueles que comandam as indústrias não são os industriais, nem os técnicos que sabem como fazer funcionar as fábricas. São os chefes da moeda, os patrões do dinheiro, os patrões financeiros. E aqueles que comandam as cidades são as mesmas pessoas, são simplesmente os especialistas na lógica de acumulação, ou seja, de extração do lucro da cidade imobiliária, fundiária. Eis quem são os que dominam.

    É evidente que o socialismo em todo o mundo terminou. Terminou suas funções de representação das classes trabalhadoras, das classes subordinadas. Não existe mais para o socialismo a possibilidade de ser a representação do que hoje é a classe trabalhadora: a classe dos trabalhadores materiais, operários, e classe dos trabalhadores intelectuais, cognitivos. O fato de que cada vez mais pessoas vão à escola é uma coisa boa, mas deve-se ter claro que eles estão se tornando cada vez mais a força de trabalho fundamental. É ótimo que existam essas lutas nas escolas, mas é necessário relacionar esta luta à perspectiva de suas vidas futuras, em que estes estudantes serão operários. Se a vida se tornou um trabalho, deve-se compreender como se pode lutar contra o trabalho na vida

    Porque este é um problema enorme. Não podemos partir da autonomia. A autonomia ainda não é uma posição política. Se a social-democracia acabou, deve-se encontrar um método para reinventar a esquerda. Eu sou contra aqueles que dizem que já não existe esquerda nem direita. Sempre haverá uma esquerda e uma direita. Uma direita fascista, no limite, e uma esquerda libertadora. Enquanto houver relações de força, existirá relações de luta. Hoje devemos dizer que a esquerda socialista acabou. Mas devemos reconstruir a esquerda, temos que erguê-la, e temos que fazê-lo juntos, determinar uma força, uma força material. Mas como fazer isso? A coisa é bem simples: trata-se de fazer autonomia. E o que significa fazer autonomia? Significa trabalhar com as pessoas, próximo da população. Não se pode falar disso sem estar próximo da população, sem fazer pesquisa. Quando eu era jovem, dizia-se \’\’que quem não fez pesquisa [trabalho de campo], não tem direito de falar\’\’. Ou seja, ter contato direto com a classe trabalhadora, e a classe trabalhadora não é apenas aquela das fábricas, é a que está na fábrica, mas também nos transportes, nos hospitais, na escola, nos escritórios, etc. Então é necessário fazer pesquisa, ter contato.

    A cada dia podemos nos perguntar \’\’quem são meus vizinhos?\’\’, \’\’o que fazem meus vizinhos?\’\’. Esse discurso sobre os vizinhos é formidável, porque significa organizar, participar. Mas organizar não é algo que vem de cima, e sim algo que vem de baixo. É a capacidade de dizer coisas juntos, de construir momentos em comunidade. E isso é algo absolutamente fundamental, isso é \’\’fazer autonomia\’\’. E depois, devemos estudar quais são os momentos difíceis que encontraremos diante de nós. Construir um com o outro, se informar, ter a capacidade de se comunicar. Disseram [durante a assembléia] que existem escolas em luta, mas se as pessoas não sabem que estas escolas estão em luta, deve-se comunicar e superar a evidente falta de informação que o mundo capitalista determina.

    É necessário também refletir sobre o uso da força. A força foi fundamental em toda organização da autonomia. Não existe a possibilidade de lutar contra os patrões, de lutar contra o capital se não temos a força suficiente para fazê-lo. Organizar a força significa fazer greves, organizar lutas, organizar manifestações. Ser capaz de responder às provocações deles, às provocações dos patrões e do Estado. Devemos ser capazes de juntar a todo momento o nosso conhecimento acerca do inimigo e a reflexão sobre os elementos que constituem a nossa força. Porque nós somos a força: a autonomia é isso, nós somos a força.

    O movimento operário é essa coisa gloriosa que nos precede há anos e anos… há 150 anos. Como ele se formou? Ele se formou através das comunidades, das cooperativas, das associações, através das greves, através da greve geral, através do exercício da força. Depois, através da organização dos partidos. Nós ainda estamos nesta fase da autonomia. Devemos ser realistas: estamos no interregno, em um período de passagem entre a civilização tal qual a conhecemos e uma civilização porvir. Entre o capitalismo e aquilo que vem depois. Estamos em um período de crise, em que devemos inventar nosso futuro, nosso porvir. Mas trata-se de um período longo, e estamos aqui para construir essa coisa nova. Não devemos delegar o nosso poder aos outros, mas intervir de uma maneira direta.

    Em tudo isso existe o porvir, não apenas o presente. Mas para isso devemos fazê-lo do interior. A autonomia não é uma palavra; é fazer, fazer, fazer sempre. Construir sempre, é essa a coisa. Um trabalhador que foi demitido da fábrica, é necessário ajudá-lo a voltar, se possível. Senão, ajudá-lo a ir para outro lugar, organizar com ele outras formas de cooperação. Fazer isso em todos os níveis. Somos inteligentes, somos trabalhadores cognitivos. Podemos criar, por exemplo, plataformas informáticas que nos ajudem a reunir pessoas em colaboração. Porque os patrões criam o Uber e nós não somos capazes de organizar coisas assim? Esta é a passagem à organização. Devemos ser capazes de utilizar todos os instrumentos que existem. A luta, a autonomia, não é somente lutar e destruir, é construir uma nova imaginação, uma nova narrativa. E, sobretudo, novos meios de produção, novas formas de produção.

    Um programa é algo que se desprende das lutas, pois ele não é concebido previamente; é algo que emerge das lutas. Mas o que são, então, essas coisas que começam a surgir das lutas? Eu acredito que existem muitas coisas absolutamente fundamentais e que já emergiram, não apenas aqui, mas por todos os lugares onde existem essa novas construções de organizações revolucionárias. Isso não significa que fazemos a revolução com um fuzil. O fuzil é o momento em que eles usam a força. A revolução consiste em construir a força que não pode ser absorvida no capital. Então a primeira coisa é uma palavra de ordem: o comum. O comum vem antes de tudo, antes do mercado, e antes de todo o resto. Antes de tudo o comum é contra o privado. O comum é a forma na qual nós vivemos. Não existe possibilidade de apropriação capitalista e privada daquilo que nos congrega: as escolas, o sistema sanitário, tudo aquilo em que vivemos e em que nos construímos. Hoje, o capital quer absolutamente explorar e extrair o valor do comum que nós somos. Mas o comum vem antes da capacidade capitalista de se organizar. Uma cidade como São Paulo: quem a fez? Ela é horrível, não? Mas quem a constrói senão os encontros, o fato que as pessoas se juntaram? As pessoas, foram elas que construíram esta cidade, esta fábrica da qual são os [próprios] patrões. Compreender que o comum vem antes da organização capitalista da sociedade é um elemento absolutamente fundamental, irredutível. E isso não é apenas algo que nos consola, que nos sustenta, mas que devemos desenvolver nas proposições das lutas, nos programas, na nossa imaginação do porvir.

    Quando falamos do comum, devemos começar por recuperar os elementos que surgiram das discussões e das experiências dos movimentos. Entre estes está a questão da renda universal para todos. Nesta sociedade totalmente unificada pelo capital e pela exploração do capital – pois quando dizemos capital, dizemos exploração – a vida deve ser defendida e a forma pela qual se pode, de maneira realista, defender a vida é simplesmente monetizando-a com um valor salarial. É brutal o que eu estou dizendo, não é uma bela concepção da vida. A vida é o tempo comprado pelo capital. Na vida, todos temos que ter um salário. Dizem que temos que ter um salário apenas se somos pobres. Não! Todo mundo deve ter um salário como um direito originário, como uma possibilidade de ser livre. Por outro lado, se conquistarmos essa renda universal, teremos muitos menos ricos, pois para criar os meios de pagar o salário universal tem que se retirar dos ricos. Podemos criar uma atividade social imediata: um salário incondicional é algo que corresponde ao sistema de trabalho. Não podemos trabalhar sem ser pagos, isso se chama escravidão. Na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, essa reivindicação é um dos conteúdos fundamentais das lutas autônomas. Algo que aconteceu na Zucotti Square, com as pessoas do Occupy [Wall Street], que aconteceu também na Espanha, com o movimento do 15M etc. Está por todos os lados. Devemos lutar por esta proposta, inclusive com todas as ambiguidades ao redor dela, para estarmos aí, mas com a força e a capacidade de se contrapor.

    Em segundo lugar, a escola. Vejam bem, em todos os países nos quais o neoliberalismo comanda a escola tornou-se um elemento crucial. Em outras épocas eles não estavam nem aí para as escolas, faziam algumas para os operários e não passava disso. Hoje a escola é fundamental: deve-se fazer entrar na cabeça dos bebês que eles são construtores, empresários, pessoas que devem ter mérito para seguir em frente, que devem obedecer, e tudo isso. A escola tornou-se central; reformas estão sendo feitas por todos os lados. Eu não sei se as lutas que tem como lugar a escola no Brasil são lutas que já respondem a esse contexto mais geral. É evidente que existem diferentes posições e situações e que é perigoso unificar e homogeneizar as coisas, mas é claro que esta luta, ao redor da escola é uma das lutas presentes, imediatas e  fundamentais de hoje.

    Outro elemento central consiste em relacionar a luta da escola com a luta daqueles que realizam trabalho cognitivo. Eles são muitos, e hojeem dia trabalham todos em computadores, realizam pesquisas no contexto empresarial, nas universidades, nas cooperativas, em qualquer lugar. Estes trabalhadores devem unir-se e mostrar que, enquanto os patrões pouco se importam com o conhecimento, eles têm a possibilidade de se apropriar dele. Apropriar-se do conhecimento, não da ideologia do mérito do empresariado. É necessário desmistificá-la a fundo, e é possível fazer isso, porque hoje, a grande maioria das pessoas que realizam trabalhos deste tipo (ao menos na Europa e nos Estados Unidos) estão reduzidas à precariedade. E não podemos nos deixar iludir pela ideia de que saber é comandar, que saber é conquistar uma posição social que te dá a possibilidade de ser poderoso contra os outros. Isso é algo que está completa e definitivamente terminado. Saber é poder, mas a coisa fundamental é que o saber pode se tornar um elemento revolucionário. Pois é sobre o saber, sobre a capacidade de imaginação, sobre a capacidade de juntar as pessoas, de formar comunidades, e então de fazer autonomia que tudo isso pode ganhar sentido.

    Depois dos debates que tivemos aqui poderíamos falar durante horas e horas, pois surgiram uma série de assuntos de extrema importância. Mas as duas coisas que me parecem absolutamente centrais agora são, de um lado, a saída das mulheres de sua condição patriarcal, e fundamental, sobretudo, a questão negra. Eu pude observar na França, com o fim do fordismo, depois da grande crise do trabalho industrial, os operários árabes ou negros que foram \’\’guetificados\’\’ nas periferias da cidade, foram enclausurados sem trabalho nestas periferias, as chamados banlieues. E a esquerda faltou em absoluto quanto a esse fenômeno. Ela respondeu às necessidades da acumulação metropolitana em geral e os colocou para fora da cidade. Apartheid. Trata-se de um problema fundamental: na França é impossível reconstruir uma esquerda sem essas pessoas, que representam 10%, 12%, 15% da população.

    Do Brasil eu conheço coisas muito bonitas, mas também coisas cruéis e muito duras… mas é evidente que é intolerável, sobre todos os pontos de vista (para mim é mesmo impossível dizer, é algo indizível) ver outra forma de colonialismo e de racismo escravocrata … para mim é algo impossível. E isso existe ainda no Brasil. E eu não tenho ideia de como se poderia sair desta situação. O significado de ser autônomo aqui deve ter, como ponto de partida a questão negra, o problema dos pobres e dos trabalhadores. Eles não são pobres indecentes, mas cidadãos e trabalhadores. Eu termino por aqui porque… eu juro, a cada vez que eu venho ao Brasil, esse país magnífico, não é mesmo? A cada vez que eu venho falar com camaradas absolutamente formidáveis, percebo neles uma certa reticência quando falamos destas coisas. Sim, muitas vezes. Eu lhes falo de minha experiência, vocês podem dizer que eu sou um imbecil que não compreende em profundidade a história do Brasil, mas é isso.

    Tradução do francês por Fábio Zuker, antropólogo e ensaísta.

  • Cinema de urgência e o festival Brésil en Mouvement

    Cinema de urgência e o festival Brésil en Mouvement

     

    Entrevista com Érika Campelo e Beatriz Rodovalho sobre o festival Brésil en Mouvement (BEM) 

    por Frederico Lyra

     

    Entre os dias 27 de setembro e 01 de outubro ocorrerá em Paris a 12ª edição do festival de cinema Brésil en Mouvement (BEM, Brasil em Movimento). O BEM é essencialmente um festival de filmes documentários políticos que, além da exibição de filmes, conta com toda uma série de debates ligados diretamente à programação. Com uma programação divida em várias sessões diárias, de filmes agrupados em torno de temáticas semelhantes (dentre elas as lutas dos povos indígenas, lutas das mulheres, lutas no campo, política e religião) o BEM busca mostrar construir uma constelação de filmes que possam transmitir uma ideia das diversas e complexas lutas que atravessam o Brasil, e que se agravaram ainda mais na situação atual de pós-golpe. No entanto, não são todas as ideias que são exibidas. O festival tem um posicionamento claro e não busca uma, por assim dizer, hipotética neutralidade na sua programação. O festival assume de que lado da luta está. Decidimos então iniciar as nossas contribuições ao blog Urucum (que irão girar em torno da discussão e análise do contexto politico francês e franco-brasileiro, como é o caso aqui) com uma entrevista com duas camaradas envolvidas diretamente no festival: uma das idealizadoras, Érika Campelo (VoxPublic), e uma das curadoras, Beatriz Rodovalho (doutoranda em cinema na Université Paris-Nouvelle 3) – ambas também compõem parte da diretoria da associação Autres Brésils (Outros Brasis) que por sua vez organiza o festival.

    Não iremos nos estender na apresentação da entrevista, mas cremos que as respostas das camaradas contém ao menos dois prismas fundamentais para pensar o que é a militância, arte e política neste tempo presente: primeiramente, a importância que eventos como este tem para dar a real dimensão internacional, muitas vezes esquecida, que as lutas que ocorrem em território brasileiro possuem, e a dificuldade (impossibilidade?) de se pensar, num mundo quase que completamente subsumido ao poder do capital, a distinção clara entre política e arte. O que Érika e Beatriz nos convidam a pensar é que sob as coordenadas atuais do sistéma esta distinção se torna cada vez mais meramente formal e que dificilmente as escolhas estéticas podam ainda ser evacuadas do posicionamento político daqueles que as tomam. A fronteira é tênue e deve ser pensada.

    1) Vocês poderiam descrever o que é o BEM e contar um pouco da historia de um festival que já chega na sua 13 edição? Como ele surgiu? Como evoluiu o seu formato e programação?

    Érika Campelo – O festival BEM (Brasil em Movimento) começou em 2005 no ano do Brasil na França. O ano do Brasil na França foi um ano cultural e o Brasil estava como convidado de honra. Os membros da associação, os membros fundadores que participavam da associação Autres Brésils acharam que as temáticas e a programação do ano do Brasil na França eram temáticas muito culturais mas pouco politicas e que as questões sociais do Brasil, que sempre foram muito forte: a questão do acesso à terra, a luta por moradia, os catadores, todos esses movimentos sociais, nada disso estava representado neste ano do Brasil na França. Então a gente resolveu criar o festival com temáticas politicas. O formato evoluiu. Eu acho que continuamos passando filmes e principalmente os debates com uma conotação politica muito forte. Queremos mostrar o que está acontecendo no Brasil, com a sociedade brasileira, mas também fazendo um eco com a sociedade francesa. A gente vive num mundo globalizado e as questões sociais e ambientais são as mesmas e se impõem para as duas sociedades – francesa e brasileira – então essa questão do paralelo  entre os dois países é muito importante. O formato evoluiu pois a gente agora tem uma preocupação mais estética, que no começo agente não tinha, de cinema. Só queríamos passar filmes militantes. A gente continua passando filmes militantes, mas com uma preocupação estética maior.

    2) Como foi pensada a programação desta edição de 2017?

    Beatriz – A programação do Festival Brésil en Mouvements baseia-se sobre uma chamada para filmes aberta e um trabalho de curadoria. A edição de 2017 estruturou-se a partir de Martírio (Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho, Tita, 2016). Depois de Corumbiara (2009), Martírio dá continuidade ao projeto cinematográfico de Carelli, fundador do projeto Vídeo nas Aldeias – – hoje interrompido por falta de financiamento. Martírio trata da história do massacre dos povos Guarani e Kaiowá por seus perpetradores: os latifundiários e o Estado (que se confundem). Acredito que Martírio seja um filme-monumento, mas um momento para o presente, um monumento urgente. Mesmo que Martírio tenha sido concluído antes, desde o golpe de Estado de 2016, a perseguição aos povos autóctones se intensificou, e eles estão cada vez mais vulneráveis. As ameaças, as expulsões, as torturas, os assassinatos, os massacres aumentam, legitimados pelo Estado.

    Essa urgência orientou a programação deste ano. Diante dos retrocessos e dos desmontes da consolidação do golpe, diante da exposição da farsa que é a nossa democracia, o cinema documentário se torna um cinema de urgência. Perguntamo-nos: o que pode o cinema?

    O filme de Carelli é uma profissão de fé – teimosa, tola talvez – no poder do cinema (de certa forma, Brésil en Mouvements também o é). Tanto que ele o conclui citando Rithy Panh, cineasta cambojano que desenterra os mortos do seu genocídio: \”mais do que criar, filmar é ‘estar com’, de corpo e alma… Tomar deliberadamente partido por acreditar que nada é imutável\”.

    Carelli foi criticado por Eduardo Escorel ao retirar a frase de Panh de contexto (ele não a cita por inteiro). Pouco importa. Panh trabalha com espectros, Carelli, com o genocídio no presente, com os corpos ainda quentes.

    Assim, privilegiamos a temática indígena.

    Como Carelli aceitou nosso convite para ser padrinho do festival, dedicamos uma sessão a uma produção recente do projeto Vídeo nas Aldeias, junto de um debate sobre suas perspectivas.

    Temos também, por exemplo, Ava Yvy Vera, filme feito por um coletivo indígena em parceria com a UFMG, que trabalha os laços mágicos dos Guarani e Kaiowá com o território – e sua destruição pela monocultura da soja. A partir de imagens de arquivo, Grin (2016), de Roney Freitas e Isael Maxakali, por sua vez, faz a anamnese da Guarda Rural Indígena, uma das marcas mais sombrias da ditadura sobre os povos autóctones.

    De resto, escolhemos também filmes que tratam da luta de outras minorias políticas, como Precisamos Falar do Assédio (Paula Saccheta, 2016), que dá voz às mulheres vítimas de violências. No filme, as histórias íntimas de violência tornam-se políticas pelo testemunho.

    Há alguns anos, trabalhamos com filmes que diluem as fronteiras entre o documentário e a ficção (principalmente os do cineasta brasiliense Adirley Queirós). Em A Cidade do Futuro (Cláudio Marques, Marília Hugues, 2016) três jovens reencenam suas próprias vidas. A partir desse filme, debateremos sobre os desafios da juventude LGBT, sobretudo em situação precária.

    De qualquer forma, os temas – e essas constelações – surgem a partir dos filmes que recebemos e que chamamos.

    É o caso dos outros filmes sobre a resistência política – Resistência (Eliza Capai, 2017), Na Missão, com Kadu (Aiano Benfica, Pedro Maia de Brito, 2016), Lute Como uma Menina (Bia Alonso, Flávio Colombini, 2016), em que a forma militante é privilegiada.

     

     

    \"\"

     

     

    3) Qual a importância de um festival de cinema politico brasileiro na França em um momento como o presente?

    Érika – A importância de um festival politico brasileiro na França se da pelo fato do mundo passar por um momento muito difícil onde as forças reacionárias e neoconservadoras estão atacando a sociedade em todos os seus ganhos: liberdade de expressão, nos direitos, direitos das mulheres, direitos das minorias e a democracia mesmo estão todos sendo ameaçados. Assim, um festival como o nosso hoje aqui na França é importante por duas razões. Uma para o Brasil. Para agente falar desse momento conturbado e difícil pelo qual o Brasil está atravessando. Eu acho importante divulgar, é importante a solidariedade internacional. Eu acho que o festival é uma boa vitrine para mostrar que tem muita gente e muitos movimentos que estão no Brasil e que estão resistindo. A segunda é que eu acho que para a França também é importante. Os direitos na França também estão sendo atacados pelo sistema neoliberal com uma força enorme, então também se torna fundamental mostrar que na resistência no Brasil e que na resistência aqui na França o importante é a transversalidade das lutas. De como resistirem juntos: a sociedade civil e os movimentos sociais. A questão é essa.

    4) Pegando o gancho da resposta de Beatriz na segunda pergunta, quando ela se questiona: \”o que pode o cinema?\”, com a afirmação de Érika de que \”o importante é a transversalidade das lutas\”, eu lhes pergunto: o que pode o cinema para ajudar ou articular a transversalidade das lutas?

    Beatriz – A questão do poder de interferência do cinema na realidade política – na “partilha do sensível” (Rancière), na transformação concreta da realidade que ele representa – é complexa. Jacques Rancière, por exemplo, analisa profundamente a questão da política da estética e da estética da política. O cinema, de certa forma, não escapa às aspirações do seu tempo histórico – sejam elas libertárias ou reacionárias (vide o cinema de propaganda). Aliás, veja o estranho objeto cinematográfico contemporâneo que é Polícia Federal: A Lei é para Todos, filme de propaganda tosca – filme tosco de propaganda – \”baseados em fatos reais\” sobre a Lava Jato). Veja, ainda, a importância do cinema documentário profissional e militante/amador nos movimentos políticos dos anos 1970 (a partir de 1968) em todo o mundo. Antes, no Brasil, o próprio Cinema Novo nasce com um propósito de emancipação política e estética. Outros exemplos: o cinema soviético dos anos 1920, que é indissociável da revolução comunista. Ou o trabalho de D. W. Griffith que desenvolveu o cinema narrativo norte-americano exaltando valores conservadores nos anos 1910 – veja O Nascimento de uma Nação (1915), Intolerância (1916)… Ou mesmo John Ford… enfim.

    Para que serve o documentário? O documentário é principalmente um cinema sobre o Outro (ou o Eu enquanto Outro).

    Num plano muito concreto, pergunto-me qual é a responsabilidade ética de um documentarista que penetra (e na minha cabeça esse documentarista é sempre um homem) um determinado grupo (aqui, ao qual ele não pertence) para fazê-lo de objeto de seu filme. O que acontece quando ele sai? Muitas vezes, ele apenas passa e leva consigo muito, sem nada deixar.

    Se ele é estrangeiro ainda, pode levar muito mais, em seu encanto eurocêntrico com o outro do terceiro mundo. Permito-me dar outro exemplo: no fim do documentário, uma homenagem da cineasta francesa ao “Brasil que nunca desiste”.

    Em anos de Brésil en Mouvements pude ver alguns filmes de cineastas europeus que partem à descoberta de um certo Brasil, de comunidades que vivem subumanamente…
    Eles vêm, testemunham a miséria, encantam-se com a resiliência (teimosa vontade de sobreviver) de um povo abandonado pelo poder público, encantam-se com esse je ne sais quoi do subdesenvolvimento.
    No fim, partem com um filme que só afirma seu olhar eurocêntrico sobre essa gente. E o que deixam? Quantos não passam e não arrancam um pedaço (de imagem) desses brasileiros para levar para fora? Esse olhar é ainda míope – não se escavam as causas de tanta falta, não se confronta o Estado.

    Veja o filme de Daniel Cohn-Bendit, por exemplo, que exibimos na abertura da edição de 2015: Sur la Route Avec Sócrates (Niko Apel, Ludi Boeken, 2014). Para mim, trata-se de mais um europeu que penetra as comunidades mais pobres do Brasil sem questionar sua própria posição, seu próprio olhar (por outro lado, o filme coloca outras questões que a comissão de programação julgou relevantes).

    É claro que o cineasta brasileiro também pode fazer o mesmo, transitando entre esses abismos horríveis.
    Porém, como pode um cinema tão precário transformar vidas tão precárias? Como construir o olhar sobre o outro? E para quem?

    Quanto à questão da transversalidade das lutas: o cinema pode colaborar, primeiro, como práxis. Como uma prática democrática, capaz de construir uma comunidade e uma representação dessa comunidade, de suas lutas, de seus sonhos, de seus horizontes. Esse é o cinema que emerge dos coletivos. Tenho a impressão de que as mulheres são as primeiras que se confrontam à necessidade da transversalidade e da convergência das lutas. Um certo cinema feito por mulheres emerge dessa consciência. O cinema também pode apontar para a transversalidades das lutas pelo conteúdo e pela forma, é claro, que serão consequência da posição assumida pelos cineastas. A circulação dos filmes também pode estabelecer um diálogo, uma convergência dessas lutas diversas.

    5) E por fim, uma questão especulativa. Quais as expectativas para o impacto que o Golpe de 2016 pode ter na produção cinematográfica brasileira e, desta forma, influenciar, mesmo que indiretamente, as próximas edições do festival?

    Beatriz – Desde o Golpe de 2016, a classe cinematográfica têm-se mostrado bastante mobilizada (mas talvez não o suficiente). Por exemplo, sua reação contra o desmonte do Ministério da Cultura (que continua a existir como instituição, mas violentada por dentro, eu diria) foi decisiva. Em 2016, os grupos, principalmente os de mulheres do cinema, estavam mais articulados do que agora.

    As leis de incentivo fiscal que possibilitam a produção cinematográfica também se mantêm, e, ao que tudo indica, serão renovadas para 2018.

    Porém, as leis que exigem uma cota de produções brasileiras nos canais da televisão paga, que impulsionaram a criação de inúmeros programas e de séries brasileiras, correm um sério risco, e sua dissolução representaria um verdadeiro impacto no mercado.

    Não há como não se perguntar se o que se começou com o cinema da Retomada (desde 1994) não constituirá novamente mais um dos ciclos de ascensão, de ruína e de recomeço da produção brasileira. Esse fantasma histórico certamente ainda assombra desde os anos Collor.

    Uma questão recente que movimentou a classe foi a troca da presidência da ANCINE (Agência Nacional do Cinema), órgão que ganhou uma importância vital para o cinema brasileiro desde sua criação em 2001.

    Por outro lado, não houve mobilização para evitar os contínuos golpes contra a Cinemateca Brasileira, em São Paulo (houve uma ínfima reação da classe paulistana). A situação da preservação, da difusão, da exibição do patrimônio cinematográfico brasileiro é catastrófica. Não há política pública de preservação do cinema nacional (há, mas eu poderia dizer que é quase como se não houvesse). Essa também não é a prioridade dos cineastas brasileiros, que, no entanto, a tomam como símbolo.

    Outro problema autorizado pelo Golpe de 2016 é a volta da censura, por enquanto imposta principalmente por meio dos discursos promovidos pela sociedade civil e de ações pontuais da polícia militar – acabamos de ver uma performance teatral impedida, peças de teatro interrompidas ou ameaçadas… No entanto, isso começa a tomar uma forma institucional. Um juiz suspendeu a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu no Sesc de Jundiaí (São Paulo), porque um Jesus Cristo transexual seria uma representação “atentatória à dignidade da fé cristã” (aliás, é inacreditável o quanto esse tipo de “cristão” de ontem e de hoje é o avesso do que Jesus era – tanto o Jesus histórico quanto o que dele se narra na Bíblia; enfim, eles estupram tudo o que podem).

    No cinema, durante o processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, o filme Aquarius (Kléber Mendonça Filho) foi vítima de ataques violentos da direita raivosa que acha que Lobão e Roger são artistas – porque a equipe denunciou o golpe em Cannes. Justamente, nesse cenário, Lobão e Roger viram intelectuais.

    Essa censura pode vir também no momento da constituição das comissões dos mecanismos de fomento para o cinema (editais), tanto para produções de filme quanto de mostras, privilegiando-se certo projetos a outros. Em São Paulo, inclusive, isso já foi colocado em questão quanto ao resultado de um edital de fomento municipal. O Golpe, assim, que elegeu figuras como João Dória e Marcelo Crivella, também reforça políticas de desmonte da cultura tanto municipais quanto estaduais.

    O cenário político certamente legitima e promove discursos e ações reacionárias da qual o cinema é e será objeto.

    Como reação, desde o Golpe multiplicam-se produções independentes e feitas sob um certo modelo de cinema ou de vídeo de guerrilha – “na raça” – e que circulam por plataformas gratuitas como o Youtube.

    Nesse sentido, talvez Brésil en Mouvements volte a se aproximar mais do cinema militante. Mas se for o caso, eu preferia que isso acontece com uma reflexão sobre essa forma cinematográfica.

    O festival Brésil en Mouvements nunca fugiu de tomar posição e de afirmar essa posição. Uma possível conseqüência direta disso para as próximas edições pode acontecer no apoio financeiro que vem da Embaixada do Brasil na França, que sempre foi essencial. Contudo, a própria instituição confronta-se com uma redução orçamentária para a cultura, e Brésil en Mouvements não é a única vítima desses cortes. Se o Itamaraty tornar-se “menos democrático”, isso certamente influenciará sua política cultural na França. Mas não sei dizer como. De qualquer modo, BEM não é um festival partidário; os anos Lula e os anos Dilma, que marcam todo o período de existência do festival, foram objeto principal do olhar que constroem os filmes programados e os debates promovidos. Brésil en Mouvements situa-se ao lado, é claro, dos movimentos sociais e da criação cinematográfica.

  • O caminho esquecido contra o que ainda nos consome

    Por Salvador Schavelzon para Urucum

     

    Da ressaca de todas as crises da esquerda que atravessamos ficamos com algo: o mundo não é mais só um.

    Encontramos assim, por todo lado, fragmentos de um caminho que se perde entre grandes aparelhos que pretendem controla-lo tudo, mas que sempre reaparece, servindo de trilha para quem precisa fugir ou resistir em algum lugar.

    Tradutores com horta no quintal; alguém sempre pronto para panfletar; bioconstrutor que conhece os segredos das bananeiras; xamã que nunca mais vai voltar para o posto da FUNAI; professora que interrompe a lição para falar da morte do ex aluno na quebrada; pescador que conhece as estrelas; leitor do Castoriadis; zapatista; demitido sem direitos que joga uma pedra contra dependência estatal; assembleias de populações contra a mineração e rachas dissidentes que abandonam assembleias ou grupos para fazer alguma ação ou posicionamento junto a um rio, numa biblioteca ou no banheiro de um bar.

    No exato momento em que o patriarca empreitero confirma a colaboração da cúpula do PT com os empresários, que militantes de oposição sindical já advertiram faz tempo; ou quando se confirma que, no essencial, a forma em que a esquerda pensa o País e o administra não difere da dos seus rivais partidários, é preciso fazer uma marca no tempo e fazer algo para que também o restante da esquerda deixe de ficar pendurado com tristeza aos movimentos e estratégias desse projeto derrotado desde dentro. Nesse momento, as formas de fazer política, os fins da organização da esquerda e o sentido da luta deve ser re-avaliada. A cumplicidade com o discurso e ação do desenvolvimento; a adaptação ao autoritarismo do Estado e sua máquina repressiva e de controle social; a política e organização da vida deixada para uns poucos; faz necessário unir expressões dispersas de fora dessa política e civilização.

    É preciso alimentar contradições dentro das lógicas normalizadas em toda instituição, espaço social ou setor, com  novos feixes de conexões em contínua mutação e calibragem, que poderão resgatar a dignidade e construir alternativas de quem pôs o peito para as balas em conflitos do campo, de quem acredita que existem outras formas de lutar ou desertar, ou de quem simplesmente não abaixa os braços para o que seria o inexorável, o único possível, recusando assim as armadilhas da nação, da pacificação religiosa, da promesa de revolução que sempre será no futuro, ou da fraqueza, em formulações políticas que reproduzem entre nós lógicas da empresa, do neoliberalismo ou do Estado, e de quem faz tempo está do outro lado.

    A tradução política da derrota não tem uma única leitura possível. Ao contrário, o que está aberto hoje é um mundo político mais amplo, com mais vozes, com contribuições marginais, estéticas, de uma nova conceição do público que tem ferramentas para recusar um mundo bipolar: canteiros vivos contra a mercantilização da natureza, cooperação tecnopolítica aberta para resolver problemas práticos de infraestrutura, debate sobre caminhos que não assumem que devamos escolher entre neoliberalismo e neokeynesianismo, entre mercado e estado, entre fascismo e conciliação com os verdadeiros donos do poder ainda colonial.

    Ficamos sem escolha além da ruptura com todo aquele que em lugar de lutar contra a máquina, trabalhe para ela. Isso implica também recusar os marcos interpretativos com que as formações políticas que nos querem sempre atrás deles leem a realidade. Contituidos eles mesmos como máquinas também, que só olham para cima, levando tudo para as respostas institucionais que não dizem nada, e negando tudo que é invisível para um poder que eles escolheram representar, e cujos dispositivos adoptaram como modo de funcionamento.

    Sem heranças pesadas que devamos carregar de forma penitente pelo resto dos dias, se torna mais importante questionar e inventar, que obedecer e acompanhar. Espíritos de luta percebem nesse novo momento de refuncionalização das ferramentas, que quem não rompe e se movimenta se transforma em um deles, e que sair da casa dos que exigem lealdade até na traição, é preciso para não morrer como eles; para não ser cortejo fúnebre de um morto que ainda é capaz de nos chantagear, chamando para a praça vazia, centro de uma sociedade que não existe mais, centro de nada que eles ainda chamam de sociedade. Só a autonomia, como poder político que se mantém longe de cúpulas fechadas e detém a decisão na mão de todos, se mostra como caminho para quem não queira ser também parte desse mundo morto-vivo que pretende nos governar e dizer com quais palavras temos que falar.

    Esse mundo contra o qual lutamos se pretende universal, mas se constrói localmente como filial individualizadora e totalizante. Se apresenta, com versões de direita ou progressistas, como mundo de escolhas obrigatórias que elimina tudo que não consegue assimilar, numa limpeza ontológica que só sabe de uma política como esfera elevada e elitista, separada na transcendencia onde o pacto secreto, o sequestro das vontades majoritárias e o avanço que deixa diferenças no caminho são então permanentes.

    Nesse mundo contra o qual lutamos quem não se disciplina é apenas tolerado ou reconhecido como crença, cultura, festa, passado, identidade. Os mundo da terra, contra o estado, da luta que abre mundos e situações libertárias não acredita nessas hierarquizações deterministas e separações. Contra isso a luta inventa novas linguagens, hackeios e organiza também materialmente uma classe subalterna de diferenças e multidões. As está inventando com amnésia e memória em doses certas, como tecido nebuloso de organização fantasma que se ativa quando é necessário, preparando combatentes de um mundo novo que não separa o que pensa do que vive e, assim, reconhece vida e política onde eles apenas enxergam mercadoria e representação do mundo sob controle.

    No território arrasado pela extração de minerais, respira o fantasma de uma floresta. Esquecemos quem se coloca por cima de nós como líder  ou chefe, mas não de nossos mortos e de quem lutou ou não quis ser um dos outros. Com outra temporalidade, distinta da do progresso e da burocratização; num lugar que não é possível ser reduzido ao espaço que eles sabem vender ou tornar produtivo; continuaremos aqui, atrapalhando seus planos; inventando outras formas de falar e de ouvir o que para eles não existe. Nas greves que duram para sempre, abrindo assim novas possibilidades não capitalistas nem do trabalho; ou mesmo na autonomia de quem não consegue trabalho ou faz com ele o que quer, novos antagonismos revolucionários se pronunciam.

    Nas ruinas de Belo Monte, na memória esquecida de junho de 2013, nas guerras de mundos cosmopolíticos que libertará rios na cidade ou encontrará lugares além do agronegócio, como grito coletivo ou pelas bordas, imperceptivelmente, o comum e o não representável por igrejas, estados e partidos continuará falando para quem tenha vontade e vigor para continuar em pé.

     

    \"\"

  • Tessituras de uma cultura tecnopolítica

    de Henrique Parra – também publicado no Pimentalab

    Com um pequeno intervalo de 30 minutos, acompanhei no mesmo dia duas atividades que, no contraste de suas diferenças, indicam o tamanho do desafio que temos pela frente. A boa notícia é que não nos falta ação, mas sim capacidade de transversalidade e conexão. Um dos desafios, para além de superar nossa fragmentação, é compreender os agenciamentos do mundo sociotécnico em que estamos imersos e fomentar uma cultura técnica que dê suporte e amplifique os modos de vida que desejamos fazer proliferar.

    \"\"

    Dois seminários públicos: o primeiro, na sede da FUHEM Ecosol, ONGs de pesquisa social e formação, onde ocorreu o lançamento da publicação Estado do Poder 2017, cuja edição foi dedicada à cultura/ideologia e suas formas de participação nos mecanismos globais de dominação. No lançamento da publicação assisti a uma excelente intervenção da pesquisadora-ativista boliviana Elizabeth Peredo Beltrán (Poder e Patriarcado) sobre o chamado \”fim do ciclo progressista na América Latina\”, dentre outras apresentações.

    O segundo seminário foi um achado acidental. No dia anterior, trombei com uma propaganda de página inteira no jornal impresso que lia no café. A imagem da campanha me pareceu tão exótica que se não fosse minha curiosidade semiótica jamais teria chegado ao conteúdo textual que eles queriam difundir. Esta atividade era o lançamento de uma campanha nacional – Caminho do Sol  – de mobilização pelos direitos de pequenos produtores à geração e comercialização de energia solar (fotovoltaica).

    \"\"

     

    Imaginar outras infraestruturas tecnopolíticas

    O relato sobre a experiência política boliviana, insere-se num debate mais amplo sobre o chamado \”fim do ciclo progressista na América Latina\”. De certa forma, o discurso de \”fim do ciclo\” é um recurso performático que deseja traçar uma linha entre um antes e um depois, procurando ativar no presente outras interpretações, horizontes e projetos políticos. A própria idéia de \”fim de ciclo\” é tema de muitas controvérsias (experimente dar uma pesquisada no termo \”fim do ciclo progressista\”). Há uma versão de \”fim de ciclo\” proclamada pelas forças reacionárias e meios de comunicação corporativos que anunciam o esgotamento dos projetos da esquerda, e uma versão de \”fim de ciclo\” que pretende criar outras interpretações no campo da própria esquerda.

    Faço uma sinopse, muita imprecisa e simplificada, para destacar alguns argumentos. É elaborada uma reflexão crítica sobre os limites das experiências de governo da esquerda latino-americana (Bolivia, Brasil, Equador, Venezuela, Argentina…) desses últimos 15 anos. As análises recuperam a história de lutas sociais que antecederam esses governos, construções de amplos movimentos sociais e redes de organizações de base em ciclos de 15, 20, 30 anos (a depender do país) até que um grupo/partido político oriundo dessas construções chega ao poder em escala nacional. Em seguida problematiza-se as tensões e dilemas que emergiram entre a lógica de governo e as dinâmicas da prática política dos movimentos, lançam perguntas desafiadoras sobre os limites da ação governamental (na tomada do Estado), e as armadilhas que se instalaram para a ação política. Por fim, abrem-se novas perguntas sobre os possíveis caminhos de um novo ciclo de luta política, cujo foco estaria orientado para a construção de políticas não estado-cêntricas. O Estado é importante, mas sua ocupação-gestão não seria o principal espaço da construção dessas alternativas. Neste percurso é também elaborada uma crítica ao fato de que, as políticas de inclusão social apoiaram-se num modelo de crescimento econômico que era dependente de programas de desenvolvimento de caráter extrativista, concentradores de renda, com forte dependência e alianças espúrias com as grandes corporações e capital financeiro, combinação esta que mostrou-se insustentável. Certamente, os argumentos são muito mais complexos. Há boas referências sobre essa discussão [veja Raquel Gutierrez Aguilar. Horizontes comunitario-popular: producción de lo comun más allá de las politicas estado-centricas].

    Dentro deste amplo debate, comentarei apenas um ponto: as grandes obras de infraestrutura (usinas, estradas etc). Com frequencia as grandes obras de infraestrutura são vistas como um problema em razão do enorme impacto socioambiental no meio em que são inseridas. Porém, pouco se discute sobre a maneira como um determinado modelo de infraestrutura é o resultado de todo um arranjo sociotécnico que faz com que um certo projeto/desenho se apresente como a melhor resposta a um conjunto de variáveis: um desenho de uma hidroelétrica em oposição a outros modelos de hidroelétricas; o traçado da construção de uma rodovia, a cadeia de produção e distribuição alimentar, o fornecimento de água nas cidades etc.

    Evidentemente, há sempre alternativas e decisões políticas em jogo, mas com muita frequência escapa ao debate tanto a descrição do conjunto das determinações que \”elegem\” um modelo de infraestrutura, como a proposição de alternativas que sejam capazes de oferecer outras respostas, neste caso, com uma eficiência simultaneamente societal e tecnopolítica.

    Se pretendemos produzir energia para que a vida de muitas pessoas sejam melhores num determinado espaço tempo, como podemos fazê-lo? Se vamos abastecer com água ou alimentos uma cidade, como podemos fazer isso de maneira diferente, agora e para gerações futuras? Não podemos ignorar este problema se desejamos fazer política com/para os 99%.

    O desenho de uma infraestrutura não é neutro, e seus efeitos no mundo não poderão ser posteriormente controlados por um projeto ou ideologia política. Claro, há sempre uma margem de flexibilidade, mas ela tende a ser cada mais vez menor a medida que os efeitos desta infraestrutura se reticulariza e se inscreve em encadeamentos sociais e técnicos mais amplos.

    Por analogia, podemos pensar o Estado como uma tecnologia de poder. O desafio de governar essa máquina não pode ser reduzido a uma problema de governabilidade e nem transformado num desafio de escalabilidade da luta social. A mudança nos meios de ação (extra-Estado X Estado) e a dimensão da ação (local x nacional x mundo), implica em profundas transformações em todos os entes envolvidos nessa relação. Não se trata apenas de um aumento na complexidade no sistema. Nada se mantém o mesmo. Técnica e política estão sempre entrelaçadas em sua inscrição e efetivação no mundo. Por isso, a proposta de criar outros horizontes políticos para um novo ciclo de lutas, não poderá se limitar à disputa de narrativas ou visões de mundo. Precisamos de práticas, corpos, ferro, aço, água…

     

    Energia = natureza + cultura + técnica + política

    Os problemas indicados acima ficam evidentes quando você resolve experimentar na prática a construção dessas alternativas. Esta é a potência de um protótipo. Neste processo surgem conflitos com atores e forças que desconhecíamos e um novo universo de expropriação do comum se evidencia.

    A campanha \”Sol e Justiça\” surge da mobilização de 60 mil famílias que investiram suas economias em iniciativas coletivas de produção e comercialização de energia fotovoltaica e que atualmente sofrem com a mudança de prioridade do governo. O estado espanhol pretendia fomentar a diversificação da sua matriz energética, no sentido de reduzir o impacto ambiental do modelo atual. Porém, no momento em que começam a proliferar diversas iniciativas de autoconsumo, associações, cooperativas e pequenas empresas que produzem e comercializam enérgia elétrica, as forças em jogo ficam mais evidentes e a política de incentivo estatal muda radicalmente. No caso em questão, grandes empresas internacionais fornecedoras de energia eletrica lograram impor novas regras, através do governo Espanhol, que fossem mais favoráveis aos seus investimentos. Como resultado, as 60 mil famílias ficaram afogadas com dívidas assumidas para a construção de um modelo energético que seria alternativo.

    São muitas as variáveis que afetam as condições de viabilidade de uma nova tecnologia ou atividade econômica: os mecanismos de autorização e controle para instalação de placas solares nas residências devem respeitar determinados protocolos, com fiscalização inclusive das empresas privadas que fazem o fornecimento de energia elétrica nas residências; os critérios para financiamento publico são modificados e outras formas de apoio estatal são exclusivos para determinada escala de empreendimento, entre outros. Em suma, tudo é feito de forma que o modelo que irá se apresentar como o mais \”eficiente\” é aquele que fortalece uma certa configuração de mundo. Neste caso, compreendemos rapidamente como a luz solar deixa de ser um Comum e se torna um recurso que deve ser submetido a um regime de escassez e monetarização.

    Ainda assim, a ação prática desses coletivos aprende com os bloqueios e passa a elaborar alternativas que, a despeito do ambiente inicialmente desfavorável, cria soluções e arranjos sociotécnicos que se relevam melhor adaptados, graças à uma combinação de engenhosidade técnica e estratégias de colaboração social.

    Os desdobramentos futuros desses arranjos é um campo de cultivos e batalhas. O campo dos \”estudos em inovação\” indicam que muitas inovações sociotécnicas que foram concebidas para transportar valores emancipatórios ou solidários, quando deslocadas ou apropriadas em outros arranjos, acabam frequentemente perdendo a capacidade de efetivação daqueles princípios políticos que desejavam difundir. Hoje temos comida orgânica tanto associada a modelos alternativos de vida (sistemas de produção local, com redes de consumo coletiva etc) como formas de produção e comercialização de orgânicos que fortalecem as estruturas tradicionais de concentração de renda e formação de oligopólios [veja alguns trabalhos de Adrian Smith].

    \"\"

     

    foto: Campanha Orgulho Solar

     

    Problema semelhante acontece com a produção fotovoltaica. Você pode fazer parte de uma rede autogerida que produz, distribui e utiliza energia solar (veja http://ecooo.es ), ou você pode ser o locatário de uma unidade de produção numa grande fazenda de produção de energia solar (veja https://www.cosol.com.br/ ). Cada um desses arranjos sociotécnicos mobiliza mundos e modos de subjetivação absolutamente distintos.

    \"\"

     

    foto:  COSOL – condomínio solar

     

    Tessituras de uma cultura tecnopolítica

    Terminei o dia com a sensação de que havia cruzado por dois mundos que pouco se comunicam. De um lado ativistas, sociólogos e ecologistas que lutam por um mundo socialmente justo e ambientalmente sustentável, sabem construir movimentos, organizações e comunidades, mas buscam formas para tornar durável as frágeis formas de vida que experimentam. De outro, engenheiros e economistas que criam tecnologias e iniciativas portadoras de novos arranjos socioeconômicos, que lutam para superar as adversidades (jurídicas, financeiras, culturais) que inviabilizam suas atividades. Tudo se passa como se fossem dois mundos a parte.

    Pergunto-me sob as possíveis formas de diálogo, aprendizados mútuos e alianças. Há, felizmente, sinais de que cada um desses mundos começa a se mover em direção ao outro. O fato de que as iniciativas comunitárias de energia solar estejam começando a se organizar como movimento social é um exemplo; o crescimento das redes de agroecologia e sua incorporação na pauta de distintos movimentos sociais também; a maior transversalidade do feminismo em diversas práticas sociais, entre outros casos.

    Talvez, um novo aprendizado diante da fragilidade institucional que nos assola neste momento, seja o reconhecimento da existência de outras formas de fazer política. A criação e o suporte de modos de vida em comum, exige também a produção deste comum. Para que este comum exista e possa se sustentar no tempo, começamos a reconhecer os diversos elementos e práticas, materiais e imateriais que lhe dão suporte. Técnica e cultura, política e tecnologia, valores e práticas caminham juntos, se entrelaçando. Uma tecnologia alternativa sem uma comunidade que lhe dê suporte não sobreviverá assim por muito tempo. Um coletivo que não cuida das infraestruturas que dão suporte a suas práticas não terá vida longa. Um movimento social que negligencia os corpos de seus participantes, não será capaz de criar uma comunidade política saudável.

    São essas diversas e interdependentes dimensões que talvez componham juntas outras cartografias políticas. Quais são as infraestruturas necessárias? Como criar e sustentar um corpo, individual e coletivo? Quais são nossos protocolos? Nossas tecnologias? Qual é a comunidade que dá existência e suporte à essas práticas? Quais são as práticas que produzem nossa comunidade? Quais são nossas formas de conhecer e de transmitir os conhecimentos? Tudo ao mesmo tempo agora.

    PS: este post é parte da série de relatos que irei realizar durante o período de pós-doc em Madrid. Mais informações sobre o projeto atual: http://wiki.pimentalab.net/index.php?title=Projetos_Pesquisa

  • Programa Junho e seus significados políticos

     

     

    Junho e seus significados políticos

    \"\"

     

    Jean Tible (DCP/USP) e Ramon Szermeta (pesquisador autônomo)

    Curso FESPSP

     

    Esse programa é um convite. Um convite à reflexão coletiva, à pesquisa-luta. A partir do Junho disruptivo, tenta pensar e imaginar políticas (existentes e por vir), organizando um debate plural. Todos/as, inscritos/as ou não, são bem-vindos/as.

     

    Dinâmica: Aulas expositivas e organização de debates em sala. Leitura de textos teóricos, etnográficos, posição e documentos de atores políticos e matérias nas diversas mídias. Participação de convidadas em algumas aulas.

     

    >>Será criado uma plataforma com os textos e documentos citados.

    >> 8 sessões de 4h

     

     

    >> 1ª sessão

    Democracia e Estado; representação, autonomia e movimentos

    Apresentação de cada um/a e conversa sobre a dinâmica do curso.

    Política selvagem e pesquisa-luta.

     

    Antonio Negri. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2002 [1992] (capítulo 7 “A constituição da potência”).

    Jacques Rancière. O ódio à democracia. São Paulo, Boitempo, 2014 (capítulo Democracia, república, representação).

    Marilena Chaui. Cultura e Democracia. São Paulo, Cortez, 2000 (capítulo Representação ou Participação?).

    Karl Marx. Guerra civil na França (1871). Parte 3.

    Alana Moraes, Henrique Parra, Hugo Albuquerque, Jean Tible e Salvador Schalvezon. “A periferia contra o Estado? Para escapar das ciências tristes! Criemos outras possibilidades”. Urucum, 24/4/17.

     

     

    >>2ª sessão

    Brasil pré-2013: democratização, consenso do lulismo, movimentos subterrâneos (os sintomas e os antecedentes)

     

    André Singer. “Raízes sociais e ideológica do lulismo”. Novos Estudos, n.85, 2009.

    Ralés, batalhadores e uma nova classe média. Entrevista especial Jessé de Souza. IHU, 23/1/01.

    Marcos Nobre. “O fim da polarização”. Revista Piauí n.51, dezembro de 2010.

    + matérias e documentos sobre lutas do período

     

     

    >>3ª sessão

    Junho como parte de um ciclo internacional?

    Junho e o contexto latino-americano. Junho e a conjuntura mundial.

     

    Oscar Vega Camacho. “Novas configurações”. Le Monde Diplomatique Brasil, 5/3/10.

    Gloria Muñoz Ramírez. EZLN: el fuego y la palabra. Buenos Aires, Tinta Limón, 2004.

    Colectivo Situaciones. 19y20: apuntes para un nuevo protagonismo social. Buenos Aires, Tinta Limón, 2002.

    comité invisible. Aos nossos amigos. São Paulo, n-1, 2016.

    David Graeber. Um projeto de democracia: uma história, uma crise, um movimento. São Paulo, Paz e Terra, 2015.

    Beatriz Preciado. Nós dizemos Revolução (2013).

     

     

    >> 4ª sessão

    A faísca: 13 de junho de 2013

    O que ocorreu naquele dia? A pauta do transporte no contexto de um capitalismo logístico. As revoltas da catraca e do buzu. A violência policial e repressão. São Paulo.

     

    MPL-SP. “Por uma vida sem catracas”.

    Peter Pal Pelbart. “Anota aí: Eu sou Ninguém”. Folha de São Paulo, 19/07/2013.

    Elena Judensnaider, Luciana Lima, Marcelo Pomar e Pablo Ortellado. Vinte centavos: a luta contra o aumento. São Paulo, Veneta, 2013.

    Sandro Mezzadra e Brett Neilson. “Extraction, logistics, finance: global crisis and the politics of operations”. Radical Philosophy, 178, 2013.

    + matérias e documentos sobre lutas do período

     

    Convidada: May Vivian (ativista, foi militante do MPL-SP)

     

    \"\"

     

     

    >>5ª sessão

    A explosão: os dias loucos (desdobramentos imediatos de Junho)

     

    Alana Moraes, Bernardo Gutiérrez, Henrique Parra, Hugo Albuquerque, Jean Tible, Salvador Schalvezon (Orgs). Junho: potência das ruas e das redes. Friedrich Ebert Stiftung, 2014.

    nota do MPL sobre reunião com Dilma.
    + matérias e documentos sobre lutas do período

     

    Convidada: Natalia Szermeta (coordenadora do MTST-SP)

     

     

    >>6ª sessão

    O levante da direita e impedimento de Dilma Rousseff

     

    Ana Beraldo de Carvalho, Breilla Valenna Barbosa Zanon, Giulliano Placeres. A direita no Brasil em um novo ciclo políco: uma análise sobre o Movimento Brasil Livre (MBL). UFSCAR.

    Marina Amaral. A nova roupa da direita. Agência Pública, 23/6/15.

    Lee Fang. Esferas de Influência: como os libertarians americanos estão reinventando a política latino-americana. The Intercept, 11/8/17.

    + matérias e documentos sobre essas mobilizações

     

     

    >> 7ª sessão

    Apresentação de seminários e discussão dos trabalhos finais

     

     

    >> última sessão

    Balanços e perspectivas: Democracia e novas subjetividades; Autonomia e comum

     

    Coletivo DAR (org.). Dichavando o poder: drogas e autonomia. São Paulo, Autonomia Literária, 2016.

    Beatriz Perrone-Moisés. Festa e guerra. Tese de livre docência, DA/FFLCH/USP.

    Alana Moraes, Jean Tible, Bruno Tarin (orgs.). Cartografias da Emergência: Novas Lutas no Brasil. Friedrich Ebert Stiftung, 2015.

    Leila Saraiva. Não leve flores: crônicas etnográficas junto ao Movimento Passe Livre-DF. Dissertação em Antropologia Social, UnB, 2017.

    José Celso Martinez Corrêa, Balbucio grávido de arte política. 31 de agosto de 2015.

    Mães de Maio: dez anos dos crimes de maio de 2006. André Caramante (org.). São Paulo, Editora nós por nós, 2016.

    Tatiana Roque. “Os novos movimentos se constituem a partir de diagramas (e não de programas)…”. DR, n.1.

    + matérias e documentos das “novas lutas”

     

    Convidadas a definir

     

     

    Bibliografia complementar

     

    aula 1 (introdução)

    Ernesto Laclau. “Representación y movimientos sociales”. Revista Izquierdas, n.15, abril 2013.

    \”¿No nos representan?\” Discusión entre Jacques Rancière y Ernesto Laclau sobre Estado y democracia por Amador Fernándes Savater. El Diario, 5/8/15.

    David Graeber. Um projeto de democracia: uma história, uma crise, um movimento. São Paulo, Paz e Terra, 2015

    Vários. Nociones comunes: experiencias y ensaios entre investigación y militancia. Madrid, traficantes de sueños, 2004.

     

    aula 2 (sintomas)

    André Singer. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.

    Jessé Souza. Os batalhadores brasileiros e A ralé brasileira. Belo Horizonte, UFMG, 2010.

    Marcos Nobre. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013.

     

    aula 3 (internacional)

    Manuel Castells. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro, Zahar, 2013.

    Javier Toret. Tecnopolítica del 15M: la insurgencia de la multitud conectada (2012).

    Judith Butler. “Bodies in Alliance and the Politics of the Street”. EIPCP, 09/2011.

    Occupy, Movimentos de protestos que tomaram as ruas – Vários Autores.
    Boitempo Editorial e Carta Maior, 2013.

    documentário: The Square (Jehane Noujaim, 2013)

     

    aula 4 (faísca) e aula 5 (dias loucos)

    Luiz Inácio Lula da Silva. “Novas vozes no Brasil”. New York Times, 16/07/2013.

    Pronunciamento da presidenta Dilma Rousseff. 21/06/2013

    Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro – O Globo, Editorial, 31/08/2013.

    André Singer. Brasil, junho de 2013: Classes e ideologias cruzadas -.
    Novos Estudos, CEBRAP nº 97 – Novembro de 2013.

    Marcos Nobre. Choque de Democracia: razões da revolta. São Paulo, Companhia das Letras, 2013.

    David Harvey. “El tipo de ciudad en que queremos vivir está ligado al tipo de personas que queremos ser” e “No hay nada malo en tener un huerto comunitario, pero debemos preocuparnos de los comunes a gran escala”.

    Paulo Spina. O Movimento Passe Livre São Paulo: da sua formação aos protestos de 2013. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, UNIFESP, 2016.

    Teresa Caldeira. \”Social Movements, Cultural Production, and Protests São Paulo’s Shifting Political Landscape\”. Current Anthropology Volume 56, Supplement 11, October 2015

    Marco Aurélio Nogueira. As ruas e a democracia, ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Contraponto, 2013.

    Cidades Rebeldes, Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil – Vários Autores. Boitempo Editorial e Carta Maior, 2013.

    Aldo Fornazieiri. Os protestos e a tragédia urbana – 14/06/2013.

    Bruno Cava. A Multidão foi ao Deserto. Editora Annablume, 2013.

    Paulo Arantes. Depois de junho a paz será total –. Artigo no Livro “O novo tempo do mundo”. Boitempo, 2015.

    Rosana Pinheiro-Machado. “Etnografia do \’rolezinho\’”. CartaCapital, 15/1/14.

    Leo Vinicius. A guerra da tarifa 2005: uma visão de dentro do MPL-Floripa. Faísca Publicações Libertárias, 2005.

    Documentários “Com Violência”, Coletivo Nigéria. Amanhã vai ser maior” (coletivo, 2005) e “Revolta do Buzú” (Carlos Pronzato, 2003).

    \”Amanhã vai ser maior\” (coletivo, 2005)

    “Revolta do Buzú” (Carlos Pronzato, 2003)

     

     

    aula 8 (perspectivas)

    Alana Moraes. “Da revolução feminista e o problema do futuro. Bruxas de todos os mundos: distribuí-vos!”. Urucum, 11/3/17.

    Antonia Campos, Jonas Medeiros e Márcio Ribeiro. Escolas de luta. São Paulo, Veneta, 2016.

    Benjamin Arditi. Las insurgencias no tienen un plan—ellas son el plan: performativos políticos y mediadores evanescentes. Disidencia, vol.10 n.2, 2013.

    Caetano Patta. Contestando a ordem: um estudo de caso com secundaristas da Zona Leste Paulistana. Dissertação de Mestrado em Ciência Política, USP, 2017.

    Comite de Resistência Curda (org.). A Revolução Ignorada – Liberação da mulher, democracia direta e pluralismo radical no Oriente Médio. São Paulo, Autonomia Literária, 2016.

    Daniel Guérin. Rosa Luxemburgo e a espontaneidade revolucionária. São Paulo, Perspectiva, 1971.

    Felix Guattari. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo, Brasiliense, 1981.

    Guilherme Boulos. Por que ocupamos? São Paulo, Autonomia Literária, 2016.

    Jo Freeman. “A Tirania das organizações sem estrutura” (1970).

    Martha Kiss Perrone e Fábio Zuker. “Por que ocupamos…”. Nossa Voz, agosto de 2016.

    Lincoln Secco. \”A escola retomada\”. CartaMaior, 22/11/15.
    Lincoln Secco. “Secundaristas”. Blog da Boitempo, 24/5/16.

    Lucas Keese. A Esquiva do Xondaro. Dissertação de Mestrado, DA/FFLCH/USP, 2017.

    Maria Galindo (entrevista por Alana Moraes, Mariana Patrício e Tatiana Roque). DR 3.

    Hakim Bey. TAZ: zona autônoma temporária. São Paulo, Conrad, 2011.

    Michael Hardt e Antonio Negri. Declaração: isto não é um manifesto. São Paulo, n-1 edições, 2014.

    Peter Pál Pelbart. Carta Aberta aos Secundaristas. São Paulo, 2016

    Revista Organismo Parque Augusta, n.1.

    Tiarajú Pablo D´Andrea. A Formação dos Sujeitos Periféricos: Cultura e Política na Periferia de São Paulo. Tese, DS/FFLCH/USP, 2013.

    Henrique Parra. Política do protótipo: o caminho se faz caminhando. Milharal, 2017.

     

    \"\"
  • As estratégias fundamentais da violência e o genocídio do negro, do pobre e da mulher

    As estratégias fundamentais da violência e o genocídio do negro, do pobre e da mulher

    por: Edson Teles

    originalmente publicado em Le Monde Diplomatique

    foto: autoria desconhecida

     

    Muito se ouve, se fala e se sente acerca da violência em seus vários aspectos. O ódio se encontra disseminado entre as pessoas dissonantes, como se não pudéssemos habitar o mesmo espaço que o outro que pensa e age diferente. A violência institucional do Estado, seja na omissão de um sistema prisional, como os que produziram mortes em massa no início do ano, seja nas ações homicidas das polícias militares nas periferias e manifestações políticas de resistência. As práticas sociais agressivas, punitivistas e de linchamento não se resumem à tradicional oposição Estado versus sociedade. Entre cada indivíduo das comunidades, dos bairros, dos mesmos transportes públicos ronda o fantasma da violência.

    Certamente, as causas destes fenômenos são múltiplas, talvez tanto quanto o são suas ocorrências. Bem como são históricas e tradicionais. Sofrem mais do dinamismo da continuidade do que a sinergia das rupturas. Mas, apesar das várias facetas sob as quais poderíamos analisar a violência endêmica, há certos mecanismos e estratégias que se repetem. Como funcionam? Mais ainda, quais funções e dispositivos de manutenção destas práticas que se atualizam no mundo do trabalho, na sociabilidade desigual e na urbanidade precária?

    A continuidade, permanência e sofisticação dos modos da violência poderiam ser sintetizados, na experiência brasileira, em duas estruturas fundamentais e dominantes: o racismo e o machismo. Este binômio reúne, entre suas efetividades e discursos e em suas ramificações, os principais mecanismos de alimentação da lógica autoritária e agressiva das sociabilidades e dos sujeitos que nelas operam.

    Cerca de 60.000 pessoas sofrem homicídio no país a cada ano. São mortes que possuem características próprias, tanto em seus aspectos territoriais, quanto em relação à dimensão socioeconômica das vítimas. Algo que se torna absurdo se somar a estes dados de morte toda sorte de violência física e morais, psicológicas e de imposição de formas de dominação, tais como as sofridas em escolas, delegacias, sistema de saúde, transporte público precário, mundo do trabalho etc. Há que se considerar o histórico de grave desigualdade social, o qual somente se acentuou nos últimos anos – apesar da diminuição das pessoas em situação miserável, o abismo entre pobres e ricos somente aumentou, com o crescimento do primeiro grupo e concentração das riquezas em posse de poucos.

    Há, neste cenário, uma violência que se destaca negativamente nas estatísticas. É a cometida por agentes de segurança pública, justamente aqueles que deveriam ou poderiam atuar no sentido de diminuir a condição alarmante da violência. A polícia brasileira é a que mais mata no mundo, produzindo óbitos sem a mínima preocupação com a legalidade de seus atos. São inúmeros os casos de assassinatos – sem contar as chacinas em presídios ou as operadas por policiais sem farda, em espécies de “esquadrões da morte” – não computados, acobertados por outros servidores do sistema de segurança, com cena do crime adulterado e falseamento da narrativa dos casos. Tudo muito parecido com os procedimentos dos agentes da repressão política nos anos de ditadura militar (1964-1988).

    Vejamos o exemplo do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM, do Ministério da Saúde), que faz a computação de dados sobre mortes violentas intencionais registradas no sistema de saúde. Há, como forma de registro, as categorias Y35-Y36 do SIM sobre informações de “intervenções legais e operações de guerra”. Ter no Brasil uma base de registros oficiais para “operações de guerra” denota o quão bélico se encontra a sociedade. Talvez ainda mais grave é que nestas estatísticas sobre a violência policial apareça o registro de “0” ocorrências em alguns anos e em alguns estados da Federação. Ocorre, portanto, uma subnotificação da violência de Estado.

    Houve tentativas de algum controle mínimo da impunidade do Estado policial. Exemplo disto foi a criação do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (de 2013). Com cinquenta por cento e mais um de seus membros formados por representantes da sociedade e o restante de agentes do governo federal, tal instituição falhou em implementar ações concretas de contenção da tortura. O maior problema foi a ação corporativa dos representantes estatais, conforme denunciou a Pastoral Carcerária ao se retirar do Comitê: “o que deveria ser um sistema baseado na absoluta autonomia dos seus elementos, e preponderância da sociedade civil na condução dos trabalhos, eis que o Estado brasileiro era e continua sendo o maior dos torturadores, transformou-se em mais um aparelho burocrático, sob permanente tutela governamental” [“Carta de saída da Pastoral Carcerária do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura”, de julho de 2016].

    O quadro da violência no país indica como vítimas endêmicas jovens negros e pobres nas periferias, bem como mulheres, em especial a mulher negra. Genocídio do negro, feminicídio, somado ao etnocídio é a síntese de uma sociedade bélica, ainda que astuta o suficiente para se declarar respeitosa das diferenças e racialmente democrática. Se somarmos o fato de que o futuro breve das gerações de jovens será de graves dificuldades no acesso aos direitos trabalhistas, previdência social cada vez menos eficaz e mundo do trabalho escasso com aumento na demanda por produtividade, a violência tende a piorar.

    Tem-se, de fato, o genocídio em marcha. Pois, se aos números de homicídios, violências físicas e morais e psicológicas, somarmos o fato de que as vítimas destas formas de sociabilidades têm pouco acesso à educação, utilizam um sistema de saúde excludente e precário – no caso das mulheres a situação é ainda mais grave, com pouca ou quase nenhuma política pública de assistência à saúde da mulher para além de pensa-la como um elemento do processo reprodutivo.

    No caso do indivíduo afro-brasileiro a questão é ainda mais séria. Segundo o “Atlas da Violência” (Fórum Brasileiro de Segurança Pública e IPEA, 2016), um jovem negro ou pardo tem 147% mais chances de ser assassinado do que um branco ou amarelo. O país cordial e democrático, em seu cotidiano, tem três mulheres assassinadas por dia. E a maioria das vítimas é composta de mulheres negras (segundo pesquisa da Flacso, de 2015, entre 2003 e 2013 a morte violenta de mulheres negras aumentou 54%, enquanto a de mulheres brancas diminuiu 9,8% [“Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil”]).

    Como se pode falar em estado democrático e de direito quando este mesmo ente público é um dos principais agentes da violência? Por que é que os discursos e as subjetividades emergentes deste quadro apelam para esforços ainda mais agressivos, ao mesmo tempo em que se saúda a suposta existência de um único desejo de país – ou de um desejo binário, mas dentro de uma mesma ordem – e de um sujeito brasileiro universal? Como a produção de estratégias, mecanismos e funções de um país e de um povo universais afetam e incrementam a violência?

    Pois bem, se os negros habitam em condições precárias, certamente sofrerão discriminação no momento de almejar um emprego. Se a ausência de trabalho mais digno é causada pela carência de formação e preparo técnico, esta permanece precária pela inexistência de auxílio financeiro. O círculo vicioso – habitação, escola, saúde, trabalho – produz um racismo (e sexismo) naturalizado e estabelecido como a normalidade das práticas sociais. Assim, a forma violenta de sociabilidade, invertendo a análise dos dados e a abordagem histórica, configura-se no senso comum e no cotidiano das cidades como a normalidade. Se o normal é a violência, o racismo e o machismo, como a mulher ou o jovem negro podem experimentar uma autodefinição de sua existência, condição necessária para se repensar o quadro de violência.

    Nega-se a estas vítimas o direito de autodefesa – se o fizerem serão classificados como vândalos, elementos patológicos diante do normal e da ordem. Desta forma, se brada neste território: “somos todos brasileiros”. A violência, ao se tornar operativa de certa forma de governo da população, torna-se [1] mecanismo fundamental de manutenção das formas de controle e dominação, bem como [2] dispositivo de bloqueio e anulação das potências de resistência dos coletivos atingidos. A lei, a ordem e a normalidade social “acolhem” todos em seu aconchego “democrático” e nacional. Desde que não iniciam processos de ruptura ou criação de outras experimentações fora da ordem estabelecida.

     

    O discurso bélico

    Sendo a violência estrutural e o próprio dinamismo das sociabilidades de forte carga histórica, mas renovado, atualizado e transformado a cada nova demanda ou experimentação dos fenômenos do cotidiano, se poderia tomar como uma espécie de modelo de explicação qualquer acontecimento ou período. Assim, o atual estado de direito, inaugurado sob a herança de um regime ditatorial amplamente violento, tendo nascido sem processos de ruptura e como resultado de acordos silenciosos, fornece um quadro de como opera a violência em um aspecto importante, o da produção de subjetividades aptas e suscetíveis à violência, porosas às formas fundamentais do ódio do outro e da agressividade.

    O caráter originário do novo regime sucessor da ditadura no Brasil foi justamente o de ser a promessa de se interromper e reparar as violências vividas no passado. No Brasil pós ditadura nasceu certa democracia cuja legitimação central adveio do discurso de uma história de violações diante dos quais haveria a esperança de se desfazer do passado indesejado com políticas de diminuição dos sofrimentos sociais. A nova Constituição, de 1988, seria a promessa de outras práticas, de produção de sujeitos universais – mulher, índio, idoso, adolescente, quilombola, trabalhador – cujas naturezas eram a própria história de vitimizações contínuas. A nova lei, legitimada na fundamentação futura de uma outra vida, seria a redenção para estes sujeitos.

    A democracia ficou marcada, fato que repercutiu nos anos seguintes, por dois discursos principais fundantes de sua legitimação. Por um lado, um discurso do tipo soberano, totalizante e apostando na produção de um sujeito universal, o brasileiro, cujas subjetivações circulariam em torno da cordialidade, orgulho, felicidade, nacionalismo moderado e liberalismo político, entre outras características mais específicas do momento e do lugar. Por outro lado, marca-se o discurso bélico, da sociedade cindida, reconciliada forçosamente para evitar o pior, das subjetivações que se suportam, mas, até por isto, se odeiam, cujas relações seriam binárias e violentas. Se o primeiro discurso “unifica” no sujeito “brasileiro”, o segundo divide drasticamente esta outra subjetividade.

    No laboratório de experimentações de formas de vida foi justamente a junção dos dois discursos, aparentemente contraditórios, que produziu maiores e mais fortes efeitos de poder para o novo regime democrático. Se o bélico fundamenta a sociedade dividida, o processo de transição da ditadura para o estado de direito logo tratou de fabricar o discurso da reconciliação e do consenso. Pela lógica da diminuição do risco, sob a fórmula de se evitar os extremos, reúnem-se os elementos que orbitam mais ao centro, os quais seriam maioria e, sob a astúcia da racionalidade política, exclui-se os restos não “pacificados”. Produz-se o sujeito vitorioso do processo de criação do novo regime político.

    É neste ponto do experimento bem sucedido da democracia que se fundem os dois discursos. Com a narrativa de construção do estado democrático de direito, soberano, centralizado, formado pelos “brasileiros”, subjaz franco e atuante, ainda que silencioso e rasteiro, o discurso do conflito, do inimigo, das lutas que continuam, que permanecem enquanto constitutivas da existência do país. Os vivas à democracia, ao estado de direito, à Constituição, às leis e à ordem, convivem com o ódio ao outro, o racismo violento, o preconceito contra o nordestino, o desejo separatista, as homo trans lesbo fobias, o machismo, a perseguição à militância política. Poderíamos acrescentar: ao político, ao corrupto, ao craqueiro, ao drogado, ao pobre, ao vizinho, ao torcedor do outro time. Enfim, a ideia de sermos um único sujeito, universal, brasileiro, alegre e complacente, habita e, mais do isto, somente existe em sintonia, choque e aliança com a subjetividade do ódio, da diferença não tolerada, da consideração do outro, do estranho, estrangeiro, como aquele que não é “nós”.

    Via um deslocamento silencioso e astuto, o binário ou heterogêneo se reestrutura no homogêneo do brasileiro, cidadão de bem, pacífico. E o outro, inimigo ou desqualificado, nada mais será que um acidente a ser contido e eliminado. No mais das vezes, será considerado como um estorvo a ser suportado. Apesar de ser destas terras, é como se ele fosse um corpo contaminado, contagioso, estranho ao corpo social. Ou o estrangeiro historicamente explorador do que há de mais natural e próprio destas terras, o colonizador invasor. Ocorre neste modelo uma militarização do governo da vida e dos corpos.

     

    A violência e o uso ‘operativo’ da segurança pública

    Com este quadro de grave violência, assistimos à repetição de um forte discurso de alerta sobre a violência urbana, gerando o medo e a necessidade de medidas “fortes” visando combater a situação de insegurança vivida nas grandes cidades. Reduzir a idade penal para conter a presença dos adolescentes no crime; encarceramento em massa da população com aumento das penas; aquisição de armamentos novos e mais eficazes para as polícias militares; investimento em tecnologia de vigilância da população, criação de batalhão de policiais preparados para impedir manifestações de rua; uso de forças armadas para patrulhamento de espaços civis precarizados devido à ausência do Estado.

    Neste contexto, há a produção de eficientes máquinas de controle social fundamentadas no discurso da violência urbana e na legitimação de políticas de uso da força na segurança pública, o que tem alimentado uma violência desmedida e histórica por parte de agentes do Estado. Ano após ano, em continuidade à lógica de combate ao inimigo interno institucionalizada durante a ditadura, o estado de direito não tem obtido resultados positivos na diminuição da violência.

    Além de pouco modificar o quadro da forma de vida vulnerável nos grandes centros urbanos, as informações publicizadas indicam o aumento constante da violação de direitos por parte dos aparatos e agentes do Estado, com destaque para o crescimento das cifras de brasileiros assassinados por ações de instituições de segurança. A securitização das práticas sociais tem sido recorrente nos vários modos de governo da vida. Se nas principais potências militares do planeta isto se dê sob a alegação de guerra ao terrorismo, aqui no Brasil a justificativa é o combate à criminalidade e à violência urbana.

    Em São Paulo, no último mês de maio, tentaram legitimar uma ainda maior militarização da cidade. Foi a operação visando acabar com a “anormalidade” dos usuários de drogas na Cracolândia. Mais conhecido como “política higienista”, o “Projeto Redenção” da Prefeitura de São Paulo, cuja parte de suas reuniões, não sem propósito, ocorreram na Secretaria de Segurança Pública, visa “erradicar” – arrancar pela raiz, eliminar, extirpar – o tráfico de drogas e “revitalizar” a distribuição da posse imobiliária da região. As cenas que se seguiram à determinação do prefeito, juntamente com o governador e por meio de suas forças policiais, foram de violência indiscriminada. Bombas, tiros, ameaças, destruição de imóveis provocando o “fluxo” desesperado de centenas de paulistanos, abandonados pelas instituições que deveriam lhes garantir direitos. Há nestas ações a articulação de uma militarização da vida urbana, ou ainda, da política.

    A sinergia entre estas operações de higienização, repressão a manifestações e eliminação de corpos é a característica e confirmação maior da militarização da vida, das subjetividades e da política. Essa nova política já vem sendo testada nos conflitos de terra, nas periferias das grandes cidades, nos entornos de campos de futebol, nos megaeventos esportivos por vários anos. Os modelos de “pacificação” e controle via militarização vêm acompanhados de discursos de conciliação, consenso e manutenção da ordem. Trata-se de um tipo de biopolítica, praticada desde sempre, é verdade, mas que sofreu uma intensificação na última década.

    Parece esquizofrênico, mas quanto mais o Estado é violento, mais o quadro social se apresenta como de crise produzida pela violência urbana e mais se autoriza o investimento na capacidade de uso da violência por parte das políticas de segurança pública. Parece-nos que tal quadro não é o resultado de falhas ou má execução destas políticas. Ao contrário, há neste processo a eficaz produção de uma sociedade de controle, disciplinamento e punição, produzindo o cidadão domesticado e manso, para que assim ele seja ainda mais produtivo sem tomar em suas mãos a própria potência de agir politicamente. Do ponto de vista da eficácia desta política de segurança pública é mais importante uma situação de violência urbana do que de relações harmoniosas e ordeiras. Assim como é necessário a disseminação de subjetividades violentas, seja qual for o alvo (podendo ser até mesmo o próprio Estado e a ordem), para se manter o discurso da necessidade de controle e militarização da vida.

    Haveria a disseminação do terror mobilizando uma opinião pública com a sensação de vulnerabilidade e alimentando o jogo do medo, o que institucionalmente e em larga escala ocorre ao menos desde a ditadura. Neste contexto, pouco importa se as polícias têm a imagem de eficientes ou de serem completamente desestruturadas. O efeito é o de mostrar à população que a força aplicada será sempre que necessário acima da legalidade. Nesta prática de segurança pública a lei funcionaria somente como um parâmetro de medida da violência necessária por parte dos agentes de segurança pública para a contenção dos que saírem da normalidade social e política.

    Assim, cria-se o cidadão de bem, pacífico, trabalhador (ou proprietário) e ordeiro, e o vagabundo, vândalo, louco, drogado, arruaceiro, o indivíduo fora das bordas que delimitam o possível autorizado pela ordem. Desta forma, com a combinação do jogo do medo com a percepção de uma força acima das leis, a segurança pública em prática no país demonstra que o aparato institucional é insuficiente para proteger os cidadãos, demandando o acionamento do autoritário e violento para conter o “outro” perigoso.

    É por estas razões que campanhas pela diminuição da maioridade penal ou pelo recrudescimento das leis são vitoriosas mesmo quando não atingem seu objetivo aparente e discursivo. Não é necessário alterar a menoridade ou aumentar a pena por determinado crime, pois a pauta conservadora de seus debates já cria um imaginário e legitima a ação violenta e violadora de direitos. A norma se impõe pela força (e apoiada nas leis) e sua lógica é a da produção do anormal, do patológico, ao qual ela deveria, em tese, agir com rigor para curá-lo, eliminá-lo, ou, ao menos, anulá-lo.

    São operações que desfazem as separações jurídicas e éticas entre o lícito e o ilícito, o legítimo e o ilegítimo. São cada vez mais localizadas, para não se tornarem alvo de denúncias do modelo bélico e ainda servirem como teste. E permanentes, normalizando o que surge perante a opinião pública como exceção. Tais formas de controle social emergem com base na construção dos perfis de indivíduos e de comportamentos, de territórios e coletivos, aos quais são atribuídos qualificações e graus de risco à ordem, bem como potências de resistência.

    A vigilância da vida tem como paradigma o controle dos espaços, comuns e privados, das estruturas e práticas sociais e da circulação dos corpos a partir da produção da ideia da guerra e da insegurança. Isso serve à militarização de discussões sobre o transporte, as paisagens e os espaços urbanos, mas também de questões amplas como a cultura popular (por exemplo, projeto de lei para a censura do funk em discussão no Congresso Nacional). Os argumentos da guerra e da militarização se dirigem especialmente aos processos de produção de subjetividades. São nesses processos que se encontra a vida política mais profunda. E, por isto, são nessas ranhuras e porosidades do cotidiano que se criam as mais eficazes estratégias de resistência.

  • Política do protótipo: o caminho se faz caminhando

    de Henrique Parra no Pimentalab

     

    Acho interessante a maneira como, aqui na Espanha, a palavra \”protótipo\” está muito presente em diferentes iniciativas de coletivos ativistas (ambientais, urbanistas, hackers, culturais etc) e como este termo é utilizado por instituições públicas e não-governamentais. Investigar e problematizar a genealogia desse termo daria uma ótima tese (lançada a sugestão). Gosto da idéia de protótipo por algumas razões, por isso comecei a utilizá-la há algum tempo para descrever algumas práticas em que estou envolvido.

    Na minha experiência, se a memória estiver correta, comecei a escutar esse termo nos primeiros anos do século XXI (2003…2005?), em grupos da então chamada \”cultura digital\” (bons tempos com midiatática, submidialogia, metareciclagem, midiaindependente…). Naquele contexto, acho que a palavra vinha mesmo da turma que estava mais imersa na cultura de desenvolvedores de softwares (seja por experiência profissional ou de formação). Ali, a noção de protótipo trazia vínculos de origem com a criação de produtos ou serviços – empresarial, corporativa ou mesmo de programadores entusiastas do software livre – que deveriam ser colocados rapidamente em circulação para que pudessem ser testados e aperfeiçoados.

    Ao invés de ficar desenvolvendo um produto até sua conclusão, a ideia do protótipo valorizava o inacabado e a importância da abertura para que se receber rapidamente novos inputs e melhorias, dando relevância aos modos de uso e apropriação para experimentar suas possíveis trajetórias e adequações. Em suma, ele reúne elementos que reconhecem o caráter contextual de qualquer criação. Ao mesmo tempo, a maneira como o ambiente, as infraestruturas e as relações sociais participam do arranjo que surge com o protótipo em uso é parte indissociável do próprio protótipo. Isso que parece um pequeno detalhe faz muita diferença quando exploramos algumas das implicações políticas desta concepção. Talvez por isso, o termo tenha deslizado tão facilmente para outros contextos. Farei um pequeno comentário sobre os possíveis sentidos da noção de protótipo em dois campos: (1) produção de conhecimento; (2) prática política.

    \"\"

    (1) Prototipar como forma de conhecer

    Quando a ideia de protótipo refere-se a uma prática de conhecer surgem coisas interessantes. Em primeiro lugar, significa levar a sério o fato de que todo processo de produção de conhecimento é também um ato de intervenção no mundo. Uma pesquisa que se realiza através da criação de um protótipo deve incorporar na sua análise os efeitos e as consequências do que ela está produzindo. É também uma forma de conhecer baseada na indissociabilidade teoria e prática. A noção de experiência ganha força: conheço algo que me acontece; sou partícipe e implicado com este processo de conhecer.

    Ao prototipar colocamos em movimento o problema que está sob investigação. Ao fazer isso, criam-se novos problemas pelos quais somos responsáveis. Isso é interessante porque a dimensão ética de qualquer pesquisa torna-se ainda mais visível e urgente, obrigando os pesquisadores a serem mais humildes, cautelosos e lentos. Dessa forma, uma política do cuidado inscreve-se de maneira imanente ao processo de investigação e prototipagem.

    Mas a noção de protótipo também pode indicar uma outra topografia entre diferentes atores envolvidos num processo de investigação. O protótipo, nos casos que acompanhamos, baseiam-se em princípios de abertura e colaboração. Isso significa que distintos saberes (indivíduos/grupos) podem ser incorporados na produção e apropriação do protótipo. Produtores, pesquisadores, usuários, leigos e experts participam de formas distintas da trajetória do protótipo. A depender das condições de participação dos distintos públicos o protótipo terá características muito diferentes.
    Promover as condições de sua contínua apropriação e modificações implica portanto num outro regime de propriedade sobre o conhecimento produzido e sobre o processo: deve-se tratá-lo como um comum (commons). Por fim, essa abertura implica no reconhecimento do caráter sempre inacabado e transitório de todo processo de investigação e aprendizado.

    \"\"

    (2) Protótipo e ação política

    Quando a noção de protótipo é mobilizada por coletivos ativistas ela pode indicar outras formas de ação política, que também encontramos no repertório de alguns movimentos sociais. A realização de um protótipo envolve, primeiramente, a decisão de substituir a adesão a um projeto idealizado e acabado de um modo de vida ou sociedade futura, pela decisão de experimentar construir no aqui-agora, sempre parcialmente, aquela mudança que se deseja. Pode-se estabelecer aí uma relação com o conceito de política \”pré-figurativa\” tão presente em alguns movimentos contra-culturais (anos 60-70s) e nos movimentos alter-anti-globalização (2000\’s).

    É portanto uma política do cotidiano que busca introduzir modificações nas formas de vida existentes. Quando ativistas ambientais criam, por exemplo, uma ação prototípica de uma alternativa de transporte nas cidades, ela deve ser minimamente capaz de se efetivar no mundo atual. Ou seja, trata-se de uma ação que reconhece as forças em jogo e objetiva criar uma diferença capaz de resistir e persistir. Em alguns casos, a mera percepção da possibilidade de sua efetivação gera efeitos de modificação no horizonte de expectativas. Noutros casos, a construção de um protótipo pode estar orientada para modificar as condições do ambiente em que sua produção/reprodução ocorre. Novamente, essas condições \”ambientais\” ou contextuais, são consideradas parte deste protótipo político, indicando portanto a substituição da oposição meios X fins, pela necessária combinação dos meios e fins. Por isso, essa noção de protótipo pode ser portadora de uma política imanente ou de uma política pelo \”meio\” (pelo meio, par le millieu, mesopolítica, entre outros termos).

    A criação de protótipos nos \”laboratórios cidadãos\” é traduzida por Antonio Lafuente numa boa expressão: do protesto à proposta. Ou seja, ao se engajarem na produção de protótipos esses coletivos afirmam e experimentam positivamente a possibilidade de construção situada (contextualizada, implicada, parcial) de alternativas concretas para aquilo que reivindicam. Ao fazerem isso dão a ver de maneira mais clara o comum ameaçado, apropriado, e os mecanismos de reprodução social em sua micro e macro-política.

    A criação de um protótipo, no contexto de uma intervenção ativista, também indica a valorização de ações práticas, em detrimento das armadilhas das escolhas excessivamente ideologizados que se descolam das condições de ação no presente. Evidentemente, toda prática é portadora de princípios e valores, mas quando deslocamos o foco para a construção de uma ação prática somos obrigados a criar soluções que tornem aquela ação possível. É portanto, um outro estado de presença corporal, onde aprendemos a pensar e praticar uma política sensível com o corpo que temos no mundo que habitamos. Em suma, indica-se uma outra concepção de mudança social.

     

    Algumas referências:
    *Master em Comunicação, Cultura e Cidadania Digital: http://cccd.es/wp/
    *Prototype: coletivo de investigação e intervenção, urbanismo e antropologia: http://www.prototyping.es/
    *Diversos laboratórios realizados no âmbito do Medialab-Prado http://medialab-prado.es/
    *Inteligencia Colectiva: http://www.inteligenciascolectivas.org/category/prototyping/
    *Red de Huertos Comunitarios de Madrid: https://redhuertosurbanosmadrid.wordpress.com/2014/06/03/taller-de-autoconstruccion-de-cocinas-solares-en-cantarranas/
    *Exemplo de laboratório cidadão http://medialab-prado.es/article/proyectos-madrid-escucha
    *Hacklab da Ocupa Ingobernable: https://hacklab.ingobernable.net/

    Veja o artigo: 2016. Corsín Jiménez, Alberto & Adolfo Estalella. ‘Ethnography: a prototype.’ Ethnos, online first, DOI: 10.1080/00141844.2015.1133688. Special Issue, Obstruction and Intervention, edited by Rane Willerslev, Lotte Meinert and George Marcus. Pre-print available here

    PS: este post é parte da série de relatos que irei realizar durante o período de pós-doc em Madrid. Mais informações sobre o projeto atual: http://wiki.pimentalab.net/index.php?title=Projetos_Pesquisa

  • Paraíba-farol: Desfazendo Gênero

     

    Paraíba-farol: Desfazendo Gênero

     

    Por: Carlos Enrique Ruiz Ferreira

     

    Não são poucos os faróis da Paraíba que iluminam o Brasil e o Mundo. Falta-nos apenas valorizar mais nossas produções, feitos, líderes e intelectuais que abrilhantam a sociedade. Valorizar as boas iniciativas torna-se cada dia mais difícil, já que vivemos num status quo marcado pelo déficit de generosidade e solidariedade, pela cultura egóica, do hiperconsumo, do fast food e do “sucesso” a qualquer preço. Muitas vezes “passamos” por Augusto dos Anjos, José Américo, Zé Lins do Rêgo, Chateaubriand, Celso Furtado e não nos damos conta das inovações tecnológicas, artísticas e políticas que empreenderam. De igual forma, custa-nos inserir nos currículos escolares as resistências das e dos indígenas Potiguaras, dos quilombolas, as lutas das mulheres, pela reforma agrária, das nossas Margaridas Alves, dos Pedros Teixeras, dos Negos Fuba e tantas outras.

     

    Com uma literatura de cordel de qualidade artística ímpar (que nos lega o maior acervo de cordel do mundo, o Acervo que toma o nome do idiossincrático e brilhante Átila Almeida), com um gênero musical grandioso, que é o forró e suas variantes, com a energia e beleza das Rodas de Coco e dos terreiros de Jurema, a Paraíba avança em suas resistências. Que dirá dos músicos e músicas que aí estão a rodar e encantar o mundo.

     

    Passado e presente: são muitos os faróis que iluminam. Lembram-nos a imagem do Farol de Cabo Branco mas que, com uma vez disse o Embaixador Celso Amorim (em nossas terras) bem poderia chamar-se “Cabo Negro”.

     

    Outro farol para o país e para o mundo aparecerá em outubro, na rainha da Borborema, nossa querida Campina Grande. O terceiro seminário internacional Desfazendo Gênero diz em seu nome a que veio: “Com a diferença tecer a resistência”. (http://desfazendogenero.com/ ) Para nós, os nomes e as palavras importam: “com”, “diferença”, “resistência”, “tecer”. Por onde passo neste país deparo-me com a notoriedade e respeitabilidade do Seminário, que teve inicio em 2013, em Natal, teve sua segunda edição em Salvador, em 2015 (quando trouxe a expoente dos estudos de gênero, política e relações internacionais Judith Butler) e marcará nosso Estado com a terceira edição em Campina Grande.

    \"\"

    Aqui se falará não apenas dos preconceitos, sexismos e racismos incrustados na cultura oficial, conservadora, da Casa Grande, mas também dos mecanismos mais sutis do que o peruano Haya de La Torre uma vez chamou (na década de 30) de “coloniaje metal”. Quais as estruturas coloniais, no tocante aos hábitos, desde os políticos institucionais, até os culturais, familiares, afetivos, que preservamos e reproduzimos em nossos corpos e mentes? Como descortinar esses processos? Como descolonizar o pensamento e os corpos que tanto avassalam e, por que não dizer, atrasam nosso desenvolvimento em termos de potencialidades subversivas do saber-fazer? E, para esta tarefa, trata-se de articular, intercambiar, construir pontes, não só na esfera acadêmica e universitária, mas com as e os ativistas, com aquelxs que estão na luta cotidiana, que tanto sofrem os estigmas e marcadores sociais mas que também produzem tecnologias sociais para sobreviver e para sublevar o sistema heteronormativo, homogeneizador e produtor e mantenedor de desigualdades.

     

    Desta forma, o seminário também cumpre o papel fulcral da universidade – muitas vezes deixado em segundo plano – de estar em movimento e construir uma parceria direta com a sociedade civil. A Universidade, as produções de pesquisa, extensão e ensino, neste sentido, deve servir não só às Empresas e sua lógica produtivista, mas também à sociedade civil como um todo, às resistências sociais, aos combates das assimetrias históricas e contemporâneas, à descolonização das práticas e saberes.

     

    O desfazendo gênero vem para desfazer mas vem também para tecer. Oxalá os diversos atores sociais, políticos e educacionais, estejam atentos, presentes e participem desse processo de envergadura considerável para o saber-fazer das insurgências do século XXI. É por aí, acreditamos muitos, na trilha dos pensamentos de Darcy Ribeiro, Glauber Rocha e Oswald de Andrade, que a Paraíba e o país pode dar seu verdadeiro salto de desenvolvimento. Aquele tão esperado, do Farol do mundo.