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  • Revolta dos exilados: Paris 8 ocupada!

     

    Desde o dia 30 de Janeiro, um prédio da Universidade Paris 8 está ocupado.

    Estudantes, imigrantes, refugiados permanecem no prédio denunciando a política migratória racista da França. O prédio agora também aloja migrantes que estavam dormindo nas ruas sem qualquer proteção ou auxílio.

    A página do movimento de ocupação dos exilados já foi bloqueada pelo Facebook. Os ocupantes se organizam para recolher alimentos e já preparam refeições todos os dias no prédio. No dia de hoje, 5 de fevereiro, a programação da ocupação anuncia uma discussão sobre universidade, racismo e solidariedade no contexto pós-colonial.

    50 anos depois do Maio de 68 francês, momento no qual a aliança entre universidade e fábrica potencializava o grito por liberdade e melhores condições de vida, a \”ocupação dos exilados\” reanima a possibilidade de resistência contra os avanços neoliberais e também tece novas alianças.

    São eles e elas que carregam no corpo as marcas de um renovado modo de dominação do capital em seu mais novo ciclo colonial e racista.  Todxs xs exiladxs, aqueles que circulam e não possuem o direito de permanecer, aqueles que são apagados dos pactos nacionais de cidadania, todos os precários, gente das cozinhas, os continuamente explorados nas sombras de um capitalismo que promete eficiência e liberdade mas entrega uma polícia cada vez mais poderosa, aqueles que denunciam a violência das fronteiras e de um padrão de acumulação que se alimenta do desespero e fragilidade. Os exilados escancaram um regime potencializado nos seus dispositivos de disciplina, um regime que  produz, continuamente, seu projeto de comunidade nacional sob os pilares do medo, do ódio ao outro, ódio à diferença.

    Reproduzimos aqui o manifesto da ocupação dos exilados:

     

     

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    Pessoas exiliadas ocupam Paris 8

     

    Ao povo francês, aos estudantes, às pessoas que dormem na rua, às pessoas solidarias, às pessoas torturadas pelo regulamento de Dublin*,

     

    Somos pessoas migrantes do mundo inteiro, dublinados/as, migrantes com o estatuto na rua.

    Nos recusaram o asilo, atravessamos o mar, somos menores e sem papeis. Ocupamos a Universidade Paris 8 no dia 30 de janeiro 2018. Porque fizemos esta ação ? Nos últimos meses a França deportou muitas pessoas. Muitos entre nós, se suicidaram.

    Há três meses um amigo dublinado, em depressão, se deitou nos cais do trem e foi atingido. Faz dez dias em Calais, a policia bateu e lançou gás contra alguns migrantes que dormiam na rua. Um jovem foi desfigurado por um tiro da policia. Um amigo que tinha um encontro na prefeitura, foi preso e colocado num centro administrativo de detenção, antes de ser deportado na Itália. A policia francesa com suas suas sirenes e gases, mas sem fé nem lei.

    O que o sistema da imigração francês espera de nós são impressões digitais, não a gente. O arbitrário e o aleatório fazem parte do nosso cotidiano, da l’OFPRA (gestão institucional dos/as migrantes), da corte nacional do direito de asilo e da prefeitura. Ao término das práticas administrativas e jurídicas, alguns/mas são recusados/as, dublinados/as, em prisão domiciliar, deportados mas sem nenhuma lógica.

     

    Reivindicamos :

     

    Documentos para todos/as

    Moradias decentes e sustentáveis 

    Poder aprender o francês e continuar os nossos estudos

    Fim  do dispositivo de avaliação dos estrangeiros 

    Fim imediato das deportações para os outros países, na Europa e em outros lugares

     

    Nós esperamos que as pessoas migrantes continuem lutando em toda parte na França contra a opressão e a injustiça e contra as práticas violentas da poliícia na rua.

    Ao povo francês : Vocês que fizeram a revolução que estudamos nos livros de historia, retomem-na !

    Agradecemos a população por todo o seu apoio. Ao contrario do que pretende o governo, ainda há solidariedade. A administração da universidade tem sido ambigua nas negociações: ora flexível, ora violenta. Algumas pessoas falam que vão oferecer outro lugar na universidade, outros ameaçam de maneira escondida e dizem que vão mandar a policia. Pedimos aos estudantes e aos professores de Paris 8 apoio às nossas reivindicações.

    Agradecemos e pedimos para permanecer conosco até o fim. Somos hoje a  luta dos estudantes sem documentos da Universidade Paris 8.

    Aos e às nossas/os amigas/os quem atravessam o mar

    Que se suicidaram Mortas/os pelas fronteiras

    No deserto

    Violentadas na Lybia

    Nós não vamos esquecer vocês!

    Os e as migrantes de Paris 8.

    * O regulamento de Dublin é responsável pela expulsão de migrantes nos arredores da Europa e os/as obriga a dormir nas ruas, sofrerem com o frio e com a violência policial.
    Nos próximos meses, o governo francês promulgará a lei \”Asilo e imigração\”. Com o pretexto de melhorar a recepção de uma pequena porcentagem de requerentes de asilo, esta lei ainda condena a maioria dos exilados à deportação, confinamento ou clandestinidade

     

     

     

  • Carta de um homem trans ao Antigo Regime sexual

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    Paul Preciado

    tradução: Tatiana Bustamante

    fonte foto: http://www.ellenjames.net/blog/interview-with-beto-preciado

     

    \”Senhoras e Senhores e outros,

    No meio do fogo cruzado acerca das políticas sobre assédio sexual, eu gostaria de me manifestar enquanto contrabandista entre dois mundos: o \’dos homens\’ e o \’das mulheres\’ (dois mundos que poderiam muito bem não existir, mas que alguns se empenham em manter separados por um tipo de muro de Berlim), para dar-lhe notícias a partir da posição de \’objeto encontrado\’, ou melhor, de \’sujeito perdido\’ durante a travessia.

    Não falo aqui como um homem que pertenceria à classe dominante, daqueles aos quais se atribui o gênero masculino no nascimento e que foram educados como membros da classe governante, àqueles a quem se concede o direito ou de quem se exige (e é uma chave interessante de análise) que exerça a soberania masculina. Tampouco falo como mulher, visto que eu, voluntariamente e intencionalmente, abandonei essa forma de encarnação política e social. Expresso-me aqui como um homem trans. Portanto não reivindico, de forma alguma, a representação em qualquer coletivo. Não falo nem posso falar como heterossexual, nem como homossexual, embora conheça e viva ambas as situações, uma vez que, quando alguém é trans, tais categorias tornam-se obsoletas. Falo como desertor de gênero, um fugitivo da sexualidade, um dissidente (às vezes desajeitado, já que desprovido de códigos pré-estabelecidos) do regime da diferença sexual.

    Como uma auto-cobaia da política sexual que experimenta, ainda não tematizada, viver de cada lado do muro e que, ao atravessá-lo diariamente, começa a cansar-se, senhoras e senhores, da rigidez recalcitrante de códigos e desejos que impõe o regime hetero-patriarcal.

    Deixe-me dizer-lhes, do outro lado do muro, que o quadro é muito pior do que a minha experiência como lésbica me permitiu imaginar. Desde que vivo como-se-eu-fosse-homem no mundo dos homens (consciente de encarnar uma ficção política) consegui verificar que a classe dominante (masculina e heterossexual) não abandonará seus privilégios por que enviamos muitos tweets ou demos alguns gritos. Desde os tumultos da revolução sexual e anti-colonial do século passado, os patriarcas heterodoxos embarcaram em um projeto de contra-reforma – ao qual agora se juntaram vozes \’femininas\’ que desejam continuar a ser \’importunadas /perturbadas\’. Esta será a Guerra dos Mil Anos – a mais longa, sabendo-se que afeta políticas e processos reprodutivos através dos quais um corpo humano constitui-se como sujeito soberano. De fato, será a mais importante das guerras, porque o que está em jogo não é nem o território nem a cidade, mas o corpo, o prazer e a vida.

     

    ROBOCOP E ALIEN
    O que caracteriza a posição dos homens em nossas sociedades tecnopatriarcais e heterocêntricas é que a soberania masculina se define pelo uso legítimo de técnicas de violência (contra mulheres, contra crianças, contra homens não-brancos, contra animais, contra o planeta como um todo). Poderíamos dizer, ao ler Weber com Butler, que a masculinidade é para a sociedade o que o estado é para a nação: o titular e o legítimo usuário da violência. Essa violência se expressa socialmente sob a forma de dominação, economicamente sob a forma de privilégio, sexualmente sob a forma de agressão e estupro. A soberania das mulheres, ao contrário, está ligada à sua capacidade de gerar. As mulheres são subjugadas sexual e socialmente. Somente as mães são soberanas. No âmbito desse regime, a masculinidade se define necropoliticamente (pelo direito dos homens de dar a morte), ao passo que a feminilidade se define biopoliticamente (pela obrigação das mulheres de dar a vida). Pode-se dizer que a heterossexualidade necropolítica é algo como a utopia da erotização do acoplamento entre Robocop e Alien, pensando que, com um pouco de sorte, um dos dois se satisfaça.

    A heterossexualidade não é apenas, como demonstra Wittig, um regime de governo: é também uma política do desejo. A especificidade do regime é encarnar um processo de sedução e dependência romântica entre agentes sexuais \”livres\”. As posições de Robocop e Alien não são escolhidas individualmente, nem são conscientes. A heterossexualidade necropolítica é uma prática de governo que não é imposta por aqueles que governam (os homens) às governadas (as mulheres), mas uma epistemologia que determina as respectivas definições e posições de homens e mulheres por meio de regulação interna. Esta prática de governo não toma a forma de lei, mas de uma norma não escrita, uma transação de gestos e códigos cujo efeito é o de estabelecer na prática da sexualidade uma divisão entre o que se pode e o que não se pode fazer. Esta forma de servidão sexual baseia-se em uma estética da sedução, uma estilização do desejo e uma dominação historicamente construída e codificada, erotizando a diferença de poder e perpetuando-a. Esta política de desejo é o que mantém vivo o antigo regime de sexo-gênero, apesar de todos os processos legais de democratização e empoderamento das mulheres. Este regime necropolítico heterossexual é tão degradante e destrutivo quanto foram a vassalagem e a escravidão na época do Iluminismo.

    É PRECISO MODIFICAR O DESEJO
    O processo de denúncia e visibilidade da violência que vivemos faz parte de uma revolução sexual inevitável e também lenta e sinuosa. O feminismo queer situou a transformação epistemológica como condição para a possibilidade de mudança social. Tratava-se de questionar a epistemologia binária e a naturalização dos gêneros, afirmando que existe uma multiplicidade irredutível de sexos, gêneros e sexualidades. Entendemos hoje que a transformação libidinal é tão importante quanto a transformação epistemológica: o desejo tem que ser modificado. É preciso aprender a desejar liberdade sexual.

    Faz anos que a cultura queer tem sido um laboratório de invenção de nova estética da sexualidades dissidentes, face a técnicas de subjetivação e aos desejos da heterossexualidade necropolitica hegemônica. Muitos de nós já abandonaram a estética da sexualidade Robocop-Alien há muito tempo. Aprendemos com as culturas butch-fem e BDSM, com Joan Nestle, Pat Califia e Gayle Rubin, com Annie Sprinkle e Beth Stephens, com Guillaume Dustan e Virginie Despentes, que a sexualidade é um teatro político em que desejo, não a anatomia, escreve o roteiro. É possível, dentro da ficção teatral da sexualidade, desejar lamber as solas dos sapatos, querer ser penetrado por cada abertura ou caçar o amante em um bosque como se fosse uma presa sexual. No entanto, dois elementos diferenciais separam a estética queer daquela da normalização hetero do antigo regime: o consentimento e a não-naturalização das posições sexuais. A equivalência dos corpos e a redistribuição do poder.

    ESTÉTICA DA HETEROSSEXUALIDADE
    Como um homem-trans, eu me desidentifico com a masculinidade dominante e sua definição necropolítica. O que é mais urgente não é defender o que nós somos (homens ou mulheres), mas rejeitá-lo, desidentificarmo-nos da coerção política que nos obriga a desejar o padrão e a reproduzi-lo. Nossa práxis política é desobedecer normas de gênero e sexualidade. Eu fui uma lésbica a maior parte da minha vida, e depois, trans nos últimos cinco anos, estou tão longe de sua estética da heterossexualidade como um monge budista levitando em Lhasa está do supermercado Carrefour. Sua estética do antigo regime sexual não me faz gozar. \’Importunar\’ alguém não me excita. Não me interessa escapar da minha miséria sexual pondo a mão na bunda de uma mulher no transporte público. Não sinto qualquer tipo de desejo pelo kitch erótico-sexual que vocês propõem: caras que se aproveitam da sua posição de poder para dar uma rapidinha e passar a mão em bundas. A estética grotesca e assassina da heterossexualidade necropolítica me enoja. Uma estética que renaturaliza diferenças sexuais e coloca homens na posição de agressores e mulheres na de vítimas (dolorosamente agradecidas ou felizmente incomodadas).\”

     

  • Ocupar, fazer funcionar e escapar: pensar com as mulheres sem-teto

    por Alana Moraes

    publicado na Revista DR em: http://www.revistadr.com.br/posts/ocupar-fazer-funcionar-e-escapar-pensar-com-as-mulheres-sem-teto

    As ocupações urbanas do MTST (movimento dos trabalhadores sem-teto) espalham-se hoje como rios insistentes nas brechas metropolitanas de São Paulo. Rios de crise, despejos, histórias de migrações, novos encontros. A nova ocupação em São Bernardo do Campo já reúne mais de 6 mil famílias. As barracas de lona traçam um novo desenho na paisagem urbana: vistos do alto, os pontos coloridos fazem linhas que quase sempre escapam de uma reta. O terreno vazio pertence à uma incorporadora e espera pacientemente, especulando, inventando valor. Ao lado, a fábrica da Scania. A mesma fábrica que, em 1978, era palco de uma grande greve de trabalhadores que mudaria a história do país – alguns dizem que foi o começo do fim da ditadura militar. Dois ciclos de luta, lado a lado, produzem a imagem perfeita de dois tempos históricos e suas aflições.

    Em 1978, a luta do chamado “novo sindicalismo” acontecia no coração da fábrica e ameaçava o ciclo de acumulação do capital bem ali na linha de montagem. Produzia um ruído que foi capaz de desestabilizar os consensos do regime militar e seus dispositivos autoritários. Em 2017, as ocupações urbanas nos apresentam essa cidade industrial despedaçada. O sonho da sociedade salarial mal havia começado. Tempos de “desmanche”, “reestruturação produtiva” o “trabalho perde a centralidade”, dizem alguns sociólogos. Mas que trabalho é esse que perde a centralidade?

    Em 1978, era o trabalho da produção que constituía-se como estratégico na luta contra o capital. Em 2017, as ocupações se erguem, no entanto, com o trabalho sempre invisível da reprodução da vida. Em 1978, era o capital produtivo dando as cartas. Em 2017 é o capital financeirizado, aquele que habita o vazio do terreno e que escapa para todas as dimensões da vida nos fazendo sujeitos endividados. Com a reestruturação da produção e os deslocamentos na relação capital-trabalho, a reprodução da vida nos parece hoje nosso campo de batalha, nossa última trincheira. Entre o capital financeirizado e o trabalho reprodutivo um novo campo de conflitualidade que se faz, muitas vezes, nos registros invisíveis do valor.

    A ocupação é o nosso começo de mundo e só é possível existir por conta daqueles trabalhos domésticos que sempre fizemos nas sombras: cozinhar, limpar, cuidar uns dos outros. O trabalho está aí, sempre esteve: não remunerado, exilado das zonas de importância da luta de classes. Mas não só isso.  Nas ocupações, é preciso também um constante esforço de produção de relações, manutenção de vínculos, fabricação de pertencimentos, escutas. “Na ocupação, pela primeira vez  me fizeram um bolo de aniversário”, me disse uma vez um homem quando conversávamos sobre sua vida. Quando não há mais nada: salário, emprego, hospitais públicos, o que fica somos nós, mulheres. O mundo da reprodução da vida é esse que vemos entre barracas e cozinhas coletivas. É o primeiro café feito na cozinha de lona que anuncia o momento de inauguração de uma nova ocupação: vemos a cozinha contra a propriedade privada.

    Ao contrário do que acontece no espaço doméstico, nas ocupações, a cozinha coletiva é um espaço de poder feminino: onde também circulam informações, reputações, onde se fortalecem as relações, onde é possível falar sobre o sofrimento ou sobre sexo ao mesmo tempo em que se faz o refogado do arroz. “Isso aqui me curou, antes era eu sozinha”, dizem muitas vezes as mulheres. A solidão das mulheres negras é ali também ocupada. São elas, quase sempre, as principais lideranças das ocupações. “Maria do ABC” é como é conhecida a Maria das Dores, uma das militantes da ocupação de São Bernardo. Mulher negra, forte, me disse uma vez: “Minha filha, o que tem que ter mesmo é coragem”.  Muitas mulheres se separam quando encontram-se muito envolvidas no cotidiano da ocupação: “ou a ocupação ou ele, foi o que ele me disse. Eu escolhi a ocupação”.

    Toda ocupação urbana cria uma poética da precariedade que longe de romantizar ou domesticar a pobreza afirma a possibilidade política de uma existência intrinsecamente relacional. Cuidar e relacionar. Produzir infraestruturas coletivas que funcionem para a manutenção da vida fora do espaço doméstico e suas obrigações. Espaços de cuidado das crianças, limpar, lavar – nas ocupações esses espaços constituem-se como parte  central da existência política do território, sem eles nada acontece.

    Frequentemente as lideranças das ocupações são também excelentes cozinheiras, as “Tias”. A cozinha é o lugar por excelência de um pensamento prático, experimental e é também o que move todo o trabalho coletivo necessário para a manutenção e construção dos barracões. Nos mutirões de trabalho, as pausas são sempre ao redor da cozinha, nas refeições compartilhadas, no bolo do final da tarde, nos cafés e as conversas que ali acontecem.  “Antes nada que a gente fazia tinha importância. Aqui tem, sabe?”, me conta Tia Angélica.  As cozinhas e também todos os espaços e momentos de cuidado em uma ocupação nos obrigam a pensar em uma dimensão fundamental da política: as tecnologias práticas de pertencimento. Cuidar das relações, estar implicado em obrigações cotidianas do viver junto.  As “Tias” das ocupações organizam assembleias, cozinham, se importam, ligam para aqueles e aquelas que se ausentam – aqui os novos parentescos criados por elas funcionam como idiomas de conexão.  “Eu sempre chegava mais tarde na ocupação, porque estava fazendo faculdade. Chegava na ocupação meia-noite e a cozinha já estava fechada, mas a Tia Cida deixava uma marmitinha pra mim e eu ficava muito emocionada com isso, nunca vou esquecer. É um amor que eu nunca vi”, contava Débora.

    A divisão sexual do trabalho se mantém mais ou menos definida nas ocupações.  “Os homens não podem ficar na cozinha, só atrapalham!”, dizem as mulheres. As tarefas masculinas tem a ver com a construção e manutenção dos espaços coletivos, com o funcionamento da água e da energia elétrica, com a segurança de todos. O capitalismo não inventou a divisão sexual do trabalho, mas o que fez o trabalho assalariado e a expropriação dos modos coletivos de reprodução da vida foi instaurar uma hierarquia definitiva entre trabalho pago (produtivo) e trabalho não pago (reprodutivo). Nas ocupações vemos operar a divisão sexual do trabalho, no entanto, todos os trabalhos não são pagos e funcionam a partir de outras dinâmicas que tem a ver com implicações, responsabilidades e prestígios. Nesse outro regime de organização da vida coletiva, o trabalho feminino aparece em toda sua importância. A cozinha é um espaço privilegiado de feitura de lideranças. A política e a vida encontram-se confundidas. “Aqui está o povo sem medo de lutar!” anuncia o canto coletivo. Sem medo porque experimenta a possibilidade de outra vida.

    Na fábrica, o trabalhador assalariado que produz mercadoria aparecia aos olhos da sociedade capitalista envolto em uma ilusão de que a “força de trabalho” estava sempre “pronta”. Nas ocupações, ao contrário, vivemos a experiência da feitura cotidiana de nós mesmos. Não só alimentação, limpeza, cuidados básicos mas é também nesse espaço em que se vive coletivamente a busca por problemas comuns que antes eram ilhados no espaço doméstico: sofrimentos, violência sexista, problemas com o álcool, desemprego. As relações vinculadas à reprodução da vida revelam de maneira brutal que a precariedade corpórea, quando expostas em um território político, nos obriga a pensar pela interdependência. Uma outra imagem: em uma ocupação da Zona Leste, a cozinha principal tem como paredes antigos quadros de organização de uma linha de montagem fabril que foram reaproveitados e transformados em matéria prima de construção. Dois registros de mundos, o da fábrica e o da ocupação que encontram na cozinha a referência mais constante dessa feitura coletiva.

    Trata-se de pensar, em nossa opinião, esses saberes e capacidades, os quais, segundo Raquel Gutiérrez, são fundamentais para a produção dos momentos mais visíveis do antagonismo social, as tramas que geram mundos. De um terreno baldio, emerge uma ecologia de práticas que pode fazer funcionar a vida em comum, restituir capacidades. \”Agora não tenho mais medo\” é uma frase que sempre ecoa nos relatos.

    O que as ocupações produzem, além de novas relações é uma zona de tempo livre. Não mais o tempo livre produzido pelo desemprego, pela incessante busca da sobrevivência, o tempo livre entre as virações que, de algum modo, é sempre um tempo livre suspenso pela angústia do fracasso, pela instabilidade. O tempo livre das ocupações é preenchido por atividades, engajamentos, festas, assembleias, conversas, fofocas – é um tempo livre mas que, no entanto, produz uma multiplicidade de sentidos que garantem a própria vida. Estar implicado em uma tarefa do cotidiano é tornar-se alguém que importa. “Na igreja a gente se acalma, conversa com Deus, mas aqui a gente pratica o tempo todo”

    Não é por acaso o fato de muitas lutas hoje no mundo assumirem a “forma-ocupação” como forma privilegiada de enfrentamento e resistência. O que se realiza nessa forma de luta é, entre outras coisas, a coletivização das formas de reprodução antes encerradas nos contornos da domesticidade: alimentação, limpeza, formas diversas de cuidados. É uma “forma” de luta que, do ponto de vista do repertório, desloca para o centro da coletividade a questão primordial da reprodução: como manter a vida possível? Trata-se mesmo, e assim observamos nas ocupações, de uma “domesticação” da política, na qual a mobilização coletiva só é possível a partir de uma linguagem doméstica da reprodução da vida e cuidado com as relações.

    Como gosta de lembrar o antropólogo David Graeber, a “maldição” da classe trabalhadora é “se importar demais” . Para ele, a “classe trabalhadora” nunca foi majoritariamente a classe operária fabril. A experiência de classe mais compartilhada no tempo é o cuidado. A classe trabalhadora é a “classe que cuida”, aquela que sempre se ocupou dos trabalhos de cuidados dos outros: alimentação, limpeza, cuidados com velhos e crianças, cuidados da saúde, segurança etc. No caso das mulheres, o “se importar” demais adquire, obviamente, uma dimensão muito mais constitutiva de experiência. As mulheres das ocupações são empregadas domésticas, faxineiras, diaristas, cuidadoras, cozinheiras. A classe que cuida é também aquela que nos interpela sobre a potência de pensar a política pela cozinha. Nos parece, portanto, incontornável do ponto de vista de qualquer análise sobre a nova configuração de classes na sociedade brasileira contemporânea compreender os modos de produção política, em todos os seus atravessamentos, desse sujeito que emerge em um dos maiores movimentos urbanos do Brasil de maneira definitiva: a mulher  negra, trabalhadora doméstica, periférica e evangélica. “Firme e forte que nem mulher do norte!”, como muitos dizem em forma de saudação nas ocupações.

    As ocupações nos mostram que se de fato há uma crise do emprego e do trabalho assalariado, por outro lado, existem já outros caminhos sendo experimentados. O trabalho da reprodução da vida, o trabalho não pago, os cuidados e toda uma ecologia de práticas que só podem funcionar na interdependência de novas relações, no trabalho constante de produzir implicações e pertencimentos. Essa outra politicidade, uma política no feminino, revela o problema da própria manutenção da vida, dos vínculos e dos cuidados como eixos centrais da mobilização e ação coletiva. Talvez a “forma perdida” da classe esteja, mais do que nunca, no trabalho da reprodução e na tarefa de tecer as relações que possam nos mover de forma mais eficaz.

  • Sobre “Arte em Fuga” de Joana Zatz Mussi

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    por Henrique Parra

    7 de dezembro de 2017.

    Participei por  videoconferência da banca de defesa de doutorado da Joana Zatz Mussi. O título da sua tese – Arte em Fuga. A banca foi composta pela orientadora Vera Pallamin e demais examinadores Celso Favareto, Silvia Viana, Pedro Cesarino. Transcrevi abaixo as notas da minha arguição. Muito em breve a tese estará disponível online, recomendo a leitura do trabalho da Joana!

    Quero agradecer ao convite da Joana Zatz e de sua orientadora Vera Pallamin para participar dessa banca, e pelo esforço organizacional para viabilizar a arguição à distância. Avisei a Joana que isso implicava em alguns riscos para a realização da banca, mas ela estava confiante de que tudo correria bem e seguimos com a proposta. Agora, ouvindo a Joana apresentar a tese e vendo os colegas ai do lado, apesar da distância, sinto-me muito próximo, ouvindo vocês de pertinho.

    Recebi e li a tese da Joana na versão digital. A versão impressa enviada pelo correio ficou retida na anfandega espanhola. O instituto de pesquisa onde estou trabalhando recebeu 4 notificações de urgência alertando sobre um material (não descrito) destinado a mim que fora retido no aeroporto. Como eu não tinha certeza do se tratava, nem tinha recebido qualquer informação de quem era o emissor do pacote (a anfandega nao dizia isso), achei melhor não ir buscar a encomenda e fiquei apenas com a leitura digital. Mas de volta ao Brasil quero sim a versão impressa da tese.

    É muito bom quando podemos acompanhar o desenvolvimento de um trabalho de pesquisa. Parcipei da banca do mestrado da Joana há alguns anos, e agora, vejo um novo trabalho que segue aprofundando e dando mais consistência para suas práticas e criações. Esta tese, neste sentido, delinea muito bem o próprio percurso da Joana.

    Sua forma de produção de conhecimento e seu prática como pesquisadora, artista e ativista estão muito bem sintonizadas. A redação da tese e estrutura escolhida destacam alguns elementos que atravessam todo seu percurso: a tensão entre arte-política, uma certa concepção de espaço e território, a centralidade do corpo e sua dimensão experiencial, a tensão entre instituição e o seu fora; as relações com a cidade.

    Esses elementos são abordados de uma perspectiva teórica bem específica. As escolhas da Joana inscrevem o seu trabalho numa rede de filiações teóricas e políticas, uma família não-sanguínea de autores: Foucault, Deleuze, Agamben, Lefefbre, Harvey, Comite Invisível, Rolnik, Lazaratto, Ranciére e agora Laval e Dardot, entre outros. São todos autores que, apesar de suas diferenças, proporcionam uma certa mirada sobre as dinâmicas de composição do social, sua estética e sua política, e cuja interpretação está implicada numa certa proposta de intervenção no mundo. Mas há tensões importante entre eles tambem.

    O trabalho da Joana (pesquisa, pratica artistica, ação politica) faz esse entrelaçamento de forma imanente, realizando na sua própria prática um pouco daquilo que esses autores também apontam como modo de conhecer e agir. Ela realiza um modo de conhecer através de uma pesquisa-situada, uma pesquisa-implicada (que significa um outro modo de relação entre aquele que investiga e o mundo) que envolve também uma articulação entre o processo de investigação e sua forma de visibilidade. Portanto, movemo-nos dentro de uma certa episteme e de uma certa comunidade de práticas.

    E este modo de conhecer mobiliza um vocabulário que atravessa toda a escrita da tese. São palavras-conceitos importantes: limiar, desvio, corpo, experiência, fabulação, imaginário, prática, minoritário, espaço, vulnerabilidade, local, comum, superfície, vida cotidiana…

    No atual contexto político que vivemos, esse trabalho procura criar um caminho alternativo à configuração hegemônica dos modos de se fazer política. As formas de produção de maioria, os mecanismos de pensamento identitário e de criação de oposições binárias, as formas de disputa macropolítica, são exatamente as dinâmicas que Joana procura evitar. O jogo que ela propõe (e sua rede de autores e de praticas a que ela está vinculada) é totalmente diverso. Este plano (ou superfície) em que a Joana se move tem outras preocupações.

    Ainda assim, estamos todos num mesmo planeta (ainda que dentro dele caibam muitos mundos, e essa possibilidade de existência diversa é inclusive parte da luta). Mas isso significa também que essa forma de ação política não está completamente isolada daqueles outras dimensões.

    Suas perguntas: como criar e sustentar outros modos de existência? como transformar os regimes de sensibilidade e percepção? como se relacionar com o instituído e abrir as brechas para o instituinte? Como provocar acontecimentos? Como criar situações insurrecionais? Como articular a existência cotidiana com a produção do novo?

    São todas grandes pesguntas, e sua tônica aponta sempre para o “como fazer”, ao invés do habitual “o que fazer?”. Criação de ações conjuntas, experimentando e acompanhando formas de produção de novos corpos coletivos, cuidando, provocando outras sensações e imaginações, Joana seleciona um conjunto de práticas “minoritárias”, ações de “desvio” que compõem uma ampla rede de situações micropolíticas. Como fazer proliferar e crescer essa rede? É outra pergunta que ela lança.

    Parece-me todavia, que já não podemos nos concentrar exclusivamente em um dos pólos da situação. Assim como já não é suficiente pensarmos em termos exclusivamente macropolíticos ou micropolíticos. Estamos vivendo um momento crítico que exige muita imaginação e ação prática experimental, e sobretudo uma capacidade de construir pontes, de pensarmos em termos de interdependencia, mais do que em independencia/autonomia, de ultrapassarmos os bloqueios colocados por uma certa concepção geográfica e de escala (microXmacro, localXglobal). Se podemos facilmente reconhecer o fracasso da política instituída e do modos atual de governo (sistemas da democracia representativa do estado-nação), também me parece importante reconhecer os limites das práticas alternativas que são experimentadas há pelo menos 30 anos. Só o chamado ciclo das lutas anticapitalistas ou alter-mundialistas do pós-Seatlle já tem quase 20 anos. E neste período muita coisa aconteceu. Em certo sentido, a sensação que tenho é de que houve uma aceleração e intensificação das crises (ambiental, política, subjetiva…) que há 20 anos já estavam em nosso horizonte.

    Por isso, a proposta de pensarmos e praticarmos uma mesopolítica, uma política do “meio” (par le millieu), uma política do “entre”, exige outras composições, outras imaginações e práticas que provoquem uma outra partilha do sensivel. O trabalho da Joana aponta algumas experiências, práticas, tecnologias de ação e organizaçao que podem ajudar a compor um repertório dessas outras formas de luta. Porém, esta dimensão “mesopolítica” do comum está mais nas entrelinhas do seu trabalho. Talvez, essa articulação que estou propondo seja apenas uma mudança na topografia selecionada pela Joana, pois de certa forma essas coisas já estão lá, mas também poderia ser um possível desdobramento do trabalho atual.

    Vou lançar agora duas questões, provocações para pensarmos juntos, a partir de alguns elementos do seu trabalho que ajudam a evidenciar essa tensão que estou falando. Selecionei 2 tensões onde vejo uma possibilidade de explorarmos outras composições através de uma política do “entre”:

     

    1. Tensão entre a dimensão da vida cotidiana e a dimensão do acontecimento.

    As práticas que vc realiza e investiga destacam os mecanismos de reprodução do “sistema” no interior da própria vida cotidiana. Por isso, a importancia dada à produção de outros modos de existência que promovam outros mundos possíveis.

    Você fala da arte (da arte-política) como esta prática capaz de “traduzir a própria vida cotidiana em forma de ação insurrecional”. A dimensão do “acontecimento”, nesta perspectiva, está ligada a uma certa imagem de “insurreição”. As citações que você utiliza do Comitê Invisível reforçam essa interpreção.

    Porém, quando se pensa numa política do cotidiano, o foco desloca-se do “extra-ordinário” para o “ordinário”, para o comum, para aquilo que ocorre na existência de todos, entre-todos, o aparentemente banal. Neste sentido, uma intervenção no âmbito desta política objetiva criar as condições e os meios de sustenção para uma outra condição de existência.

    O problema da insurreição é outro, o foco da ação está direcionado à produção de uma situação inesperada, insustentável. É ultrapassar um limiar.

    Portanto, não seria mais adequado interrogarmos esse imaginário insurrecional? Uma vez que ele parece dar sobrevida a uma certa “imagem do pensamento”, uma imagem de mudança social ou de revolução que acaba por inscrever essa prática política no tabuleiro que ela pretendia escapar?

    Diz o Comite Invisível: “não vão nos obrigar a governar”. Ou, como dizia o MPL, a revolta popular como tática.

    De uma duas, ou abandonamos essa imagem da insurreição/revolução para dar lugar a outras políticas, ou partimos da possibilidade desses momentos e, portanto, temos que levar isso a sério e assumir as suas consequências. Em suma, se aceitamos pensar na insurreição não podemos nos furtar de pensar nos nas forças que a produzem, e sobretudo, não podemos deixar de pensar no dia seguinte. Como vamos viver juntos? É outra pergunta que atravessa a tese.

    Ou, alternativamente, podemos sim abandonar essa imagem da insurreição e nos dedicamos à construção de uma política cujo foco estaria na produção de comunidades (não-identitárias), de suas instituições, das suas tecnologias, e dos meios de vida que dão suporte a um outro mundo comum, sem nos submeter àquela imagem de insurreição/revolução. Assim, como habitar os limiares?

    Como você pensa essas questões a partir dessas práticas que analisa?

     

    2. Tensão entre produção de subjetividade e a produção material.

    É um problema importante porque você articula produção simbólica, sensível, a fabulação, com a produção da cidade, com os corpos e com toda a materialidade que isso implica. O simbólico e o material não estão separados. A cultura e a técnica não está dissociadas; a natureza e a cultura não são instâncias separadas (essas composições são parte do referencial teórico que você adota).

    Pensemos na situação que você descreve sobre o teatro do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. É uma relato trágico. Ainda que eles tenham sido capazes de ressignificar e politizar o processo, de criar uma mobilização política que impulsionou uma nova forma de patrimonio imaterial no plano diretor da cidade, a força dos poderes instituídos foi/é muito violenta. Não se trata se pensar aquela situação como uma derrota. A luta deles provoca transformações importantes que continuam reverberando.

    Ao mesmo tempo, como não pensar na cidade que produzimos todos os dias? Pegando o exemplo do teatro, como pensar a resistência aos processos de gentrificação que nos ultrapassam, quando nós somos também partícipes das mutações desse território?

    Novamente, como pensar as condições de produção e sustentação do ambiente que abriga essas experiências políticas? Parece-me importante pensar (retomando a questão anterior), quais são as infraestruturas, as práticas, os protocolos que necessitamos para dar sustentação, resiliência aos modos de vida que desejamos propagar.

    Numa citação do Comitê Invisível eles falam sobre a política feita de ferro e cimento. Contra um muro o que pode ser feito? Eles respondem: destruí-lo ou pixá-lo. Convenhamos, são duas ações que provocam efeitos muito distintos no mundo.

    Em uma das falas de um entrevistado (Eugenio) do NBD, ele aponta os limites da forma público-estatal. O teatro tinha uma dimensão pública, mas isso não foi suficiente. Mas de repente, nos damos conta que o público-estatal, lá no fundo, coincidia com o privado-corporativo. E o teatro veio abaixo. E aí, ele fala da importância de pensarmos o teatro enquanto um comum.

    Nessa perspectiva, como voce imagina as técnicas, os procedimentos, as tecnologias de produção do comum? Pergunto isso, por que no caso do projeto de vocês com os secundaristas, sua análise foco mais na reflexão sobre os resultados do percurso, e menos nas práticas que foram desenvolvidos para tornar o projeto possível: quais os modos de escuta, os modos de interação e estar juntos; os modos de pertencimento…Mas como voce argumenta pela importância do processo, seria importante destacar como foi a relação com a instituição, com o MASP, como foi a relação com as escolas? Com os coletivos de estudantes? Quais os conflitos e as formas de resolução encontradas? Como você pensa que essas práticas analisadas relacionam-se com esta dupla articulação material-simbólica na produção de outros “dispositivos” capazes de dar sustentação a essas novas práticas? Acredito que as técnicas, os procedimentos, as soluções encontradas por vocês nesse percurso, são um repertório importante de tecnologias de pertencimento, de tecnologias de produção do comum, por isso, seria interessante descreve-las e torna-las mais visíveis.

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  • Apontamento sobre o encontro #OcupaPolítica

    por Rodrigo Nunes

    Alguns apontamentos sobre o encontro #OcupaPolítica, ocorrido no fim de semana passado em Belo Horizonte.

    Nossa conjuntura atual nos coloca entre um processo destituinte que não foi concluído e um processo constituinte que (ainda) não se abriu. Isso nos impõe uma urgência, um problema, uma dificuldade e um risco. A urgência é óbvia: se o governo Temer fez o que fez em tempo tão curto e tão turbulento, o que mais não se fará em quatro anos, com maiorias parlamentares ainda mais acachapantes, no nível federal e nos estados? É preciso construir uma presença legislativa capaz, no mínimo, de barrar maiores retrocessos e, se possível, de articular alguma coisa nova, distinta tanto da rapinagem atual quanto do neodesenvolvimentismo tacanho da segunda metade do ciclo petista. O problema é: como fazer isso, se não só a esquerda institucional colapsou, como não existe ainda uma energia social mobilizada na direção de constituir algo novo? A dificuldade, por sua vez, é que é impossível transformar a representação política desde dentro da própria representação; a representação é uma relação entre representantes e representados, e o único jeito de realmente mudar seu funcionamento (para além das várias reformas possíveis e necessárias) é se os representados são mais fortes que os representantes e são capazes de impor-se sobre eles. O risco, finalmente, é que essa energia social constituinte venha a ser mobilizada de cima para baixo, seja pela constituição de um novo pacto de centro-direita, seja por uma esquerda ou centro-esquerda preocupada menos com um projeto de transformação efetiva que com a simples ocupação de espaços no tabuleiro político existente.

    O Ocupa Política aponta uma possibilidade, ainda incipiente e talvez inevitavelmente transicional: a aposta em candidaturas que, ao invés de serem tentativas por parte de atores políticos já estabelecidos de capitalizar em cima do quadro descrito acima, são impulsionadas por forças sociais mobilizadas localmente em territórios ou em torno de temas e bases sociais pontuais (feminismos, diversidade sexual e de gênero, universidade pública, direitos indígenas, commons digitais etc.). Como tudo neste lusco-fusco em que estamos vivendo, a fórmula “renovação da política” já parece nascer velha, apropriada que ela é por “novos” (e “podemos”) que são apenas embalagens diferentes para mais do mesmo. Mas, no caso da aposta delineada em BH – experimentada hoje em experiências como as Muitas da capital mineira e a Bancada Ativista em São Paulo –, a “renovação” tem o potencial de ir bem além de uma simples troca de nomes ou rostos, porque incorpora uma lógica diferente de ocupação da política representativa.

    Esta lógica é diferente em pelo menos cinco sentidos. Primeiro, ela é coletiva: é a construção de mandatos a partir de bases mobilizadas que tentam manter uma máxima capacidade de “dirigir” os representantes desde baixo, impedindo que estes se autonomizem demais; trata-se, como confluências municipais espanholas como o Barcelona en Comú já o disseram, de uma tradução da ideia zapatista de “mandar obedecendo”. Segundo, ela é não-competitiva: ao invés de uma disputa em torno de cadeiras, ou da subordinação de todos os interesses ao imperativo de “construir o partido”, ela pensa em termos de visibilizar e fortalecer um campo político, transversal a diferentes candidaturas e partidos, que opere segundo essa mesma lógica. Isso faz com que, terceiro, sua relação com os partidos seja distinta. O vetor da relação não é de dentro para fora – as estruturas partidárias buscando bases para representar –, mas de fora para dentro: grupos organizados efetivamente “ocupando” o partido como veículo institucional, fazendo o seu próprio jogo sem subordiná-lo àquele das estruturas partidárias. Isso equivale a uma quebra de monopólio (ou, para usar uma metáfora computacional, uma “quebra de código”) da representação política; e acredito que este campo político como um todo deva assumir o compromisso levar esta lógica às últimas consequências, assumindo como pauta uma reforma da lei eleitoral que quebre o monopólio dos partidos de vez, possibilitando a existência de “candidaturas cidadãs”. Quarto, embora lide com pautas que identificamos como sendo “da esquerda”, ela está menos investida em falar uma língua ou corresponder a uma identidade já estabelecida do que seria “a esquerda” e mais preocupada com construir novos consensos sociais em torno destas pautas, o que supõe escuta e acolhimento a outras realidades (evangélicos, empreendedorismo popular, os medos e anseios das classes C e D que muitas vezes são capturadas pela direita etc.) Quinto, ela é (por falta de palavra melhor) “excêntrica”, no sentido literal de “fora do centro”: desde o princípio ela dá por entendido que renovar a representação política não é só mudar os representantes, mas modificar a própria lógica de quais pessoas podem aparecer como líderes ou representantes. Neste sentido, o encontro de Belo Horizonte foi impressionante, com presença e protagonismo massivo de mulheres, negros e negras, indígenas, moradoras e moradores de periferias, LGBTQ etc.

    Cada um destes pontos envolve perigos. A ênfase nos grupos subalternizados pode se transformar num fetiche que faz de um Outro o portador inconteste da verdade (o que se vê quando muitos seguem dando carta branca a um individuo por haver sido um grande líder operário). A abertura pode virar oportunismo e falta de nitidez de propósitos. A não-competitividade está sempre potencialmente ameaçada pelas demandas próprias à lógica eleitoral. A coletividade só se mantém se há uma base que permanece ativa, mobilizada e aberta à escuta da sociedade em geral. A relação com os partidos “hospedeiros”, finalmente, exige destes a capacidade de leitura da realidade, a inteligência e sensibilidade políticas de abrirem-se a esta outra lógica sem tentar fagocitá-la ou instrumentalizá-la: tentar transformar um jogo de ganha/ganha num de ganha/perde só pode acabar por criar uma situação em que todos saem perdendo. Exige também, por óbvio, a capacidade dos “ocupantes” de navegar a relação com os “hospedeiros” sem nem submeter-se à lógica destes, nem reproduzí-la em seus próprios grupos. Esta tensão entre duas lógicas não deixou de estar visível em alguns momentos do OcupaPolítica.

    A urgência da atual conjuntura justifica considerar que estes são perigos que vale a pena correr? Evidentemente, esta era a ideia de quem estava em Belo Horizonte. Mas o cálculo parece carregar, para além dessa consideração conjuntural, um reconhecimento desassombrado da natureza fundamentalmente conflitiva (portanto tensa e arriscada) da política. Como bem disse Gustavo, integrante da “gabinetona” das vereadoras Áurea Carolina e Cida Falabela em Belo Horizonte: “confluências não são dadas, confluências são esforço”.

    Em diferentes momentos do ano passado estive jogando com dois conceitos, “transbordamento” (http://bit.ly/2jTWtEl) e “promiscuidade virtuosa” (http://bit.ly/24vPAfe). “Transbordamento”, inspirado no “desbordamiento” de que se falava no 15M espanhol, nomeava quatro coisas: a tática possível num momento em que o ocaso das grandes organizações de massa coincidia com condições técnicas que possibilitam a núcleos organizativos relativamente pequenos produzir efeitos em grande escala (um “movimento de massa sem organizações de massa”); o fato de que ninguém é capaz de determinar estes efeitos por completo ou controlar os resultados que seguem dele; o fato de que parte desse descontrole está em conectar-se com pessoas e desejos que estão para além do gueto da identidade de esquerda, o que cria a possibilidade de superar identidades coletivas já constituídas e plasmar identidades novas (por exemplo, aquilo que os espanhóis chamaram de “cidadanismo”); e, finalmente, a aceitação disto como uma condição positiva a ser abraçada – a possibilidade de uma “política de código aberto”, que vai se transformando no próprio processo colaborativo que institui. Já “promiscuidade virtuosa”, que acabou virando piada e até grupo do Telegram entre amigos, referia-se a duas ideias distintas. Primeiro, a necessidade de construir consensos pontuais e identidades comuns com gente que não pertence a ou não seria automaticamente percebida como pertencendo ao campo “da esquerda”; de pensar em termos não de converter as pessoas à nossa identidade, mas de criar as condições para fazer avançar as pautas que consideramos fundamentais no interior de uma situação de heterogeneidade social e política. Segundo, a necessidade de construir um outro tipo de relação com os partidos e a representação em geral, partindo ao mesmo tempo da ideia fundamental de que a única maneira de assegurar o bom funcionamento desta relação é fazer com que os representantes dependam mais dos representados que vice-versa (ou, dito de outro, modo, que as lideranças sejam sempre relativamente frágeis frente a suas bases), e da constatação que uma das coisas que fez desandar a relação entre bases e lideranças na experiência petista foi a aposta por construir uma relação exclusiva com um só partido, um só conjunto de lideranças e, no limite, um único líder. A primeira ideia critica, portanto, a endogamia da esquerda, sua tendência a relacionar-se sempre para dentro ao invés de para fora; a segunda critica a monogamia na relação entre representados e representantes, que tende a fortalecer os últimos em detrimento dos primeiros. Em ambos os casos, a promiscuidade é dita “virtuosa” não só por ser uma virtude, mas por ser praticada às claras, de forma não-manipuladora e não-competitiva; por ser questão de virtù (flexibilidade e desenvoltura para aproveitar as oportunidades que se apresentam); e por ser o melhor antídoto contra o vício próprio a cada tipo de relação (o fechamento e a autorreferência identitária, no caso da endogamia; a dependência unilateral e o abuso de poder, no caso da monogamia).

    É evidente que transbordamento e promiscuidade virtuosa são lados da mesma moeda: a prática da promiscuidade tem por fim abrir os partidos e a esquerda em geral à lógica do transbordamento; para poder realizar-se, porém, ela depende que algo desta abertura já exista. A tensão entre duas lógicas diferentes aparece aqui como, mais que uma circunstância temporária a ser resolvida futuramente, uma questão de fundo. Embora ambas partam da ideia de uma composição heterogênea de forças políticas e sociais, a própria noção de partido contém a ideia de que, pelo menos virtualmente, todas as diferenças poderiam se resolver ao serem incluídas numa mesma organização; por definição, cada partido é, para si mesmo, o único, de onde sua exigência instintiva de exclusividade. Substituir a política monogâmica por uma outra, em que as relações são pensadas menos como compromissos eternos e mais como condicionadas pelo benefício mútuo (uma “política Tinder”?), implica abandonar de vez a ideia de uma homogeneidade a ser realizada no futuro e assumir a heterogeneidade como um dado inescapável. Isto significa deixar de pensar o problema da organização como se referindo à construção de uma organização capaz de tudo abarcar para pensá-la como sempre necessariamente envolvendo uma ecologia organizacional diversa na qual é preciso atuar.

    Mas qual vantagem haveria aí, então, para os partidos? Ora, em primeiro lugar, a de ver suas pautas avançarem na sociedade, mesmo que isso não venha necessariamente acompanhado da hegemonia do próprio partido. Mas sobretudo, segundo, a questão é que, nas atuais condições, abrir-se à possibilidade do transbordamento parece ser a única coisa capaz de devolver à esquerda a relevância e eficácia políticas perdidas. Pretender controlar ou hegemonizar o pouco que se tem equivale a condenar-se a continuar tendo muito pouco, certamente bem menos do que se precisa. É preciso assumir por completo o desafio de entrar na era daquilo que Jeremy Gilbert chamou de “política de plataforma” ( http://bit.ly/2uTvpLp) – da criação de estruturas e contextos de colaboração e concentração da atividade coletiva que (para adaptar uma formulação do Victor Marques) “possibilitam efeitos sem determinar resultados”.

    Esta ideia nos serve, concluindo, para uma observação (parcialmente) crítica. O que esta noção de plataforma sugere é que abertura e estrutura não são o oposto uma da outra, antes pelo contrário: a segunda pode funcionar como condição da primeira. No #OcupaPolítica, os debates que melhor funcionaram foram aqueles que tinham formatos mais estruturados. O destaque, neste sentido, ficou com a mesa “Pé na Porta”, na última noite, em que quatro debatedoras (Nilma Gomes, Sonia Guajajara, Antonio Martins e Tatiana Roque) tinham cinco minutos para responder a perguntas propostas pela mediadora (Áurea Carolina), e havia quatro cadeiras à disposição para que pessoas do público viessem fazer comentários ou réplicas por três minutos. Com este formato, era possível sentir que havia uma discussão que avançava e, se não necessariamente formava consensos, pelo menos tornava mais claros quais e onde estavam os dissensos. As rodas com formatos aparentemente mais “abertos” frequentemente acabaram falhando em produzir conversas de verdade; sem pretender responder perguntas ou definir problemas comuns, elas por vezes produziam a sensação de que as diferentes falas não se comunicavam entre si, e abriam espaço à lógica estéril da disputa de espaços e da demarcação de territórios. É preciso urgentemente repensar os formatos de organização de encontros para que eles efetivamente conduzam à elaboração de pontos comuns e problematizações feitas em conjunto. Isso passa necessariamente por conceder a quem organiza estes eventos a confiança e a autonomia para propor formatos que sejam ao mesmo tempo estruturados e abertos, orientados por questões claras e concretas e, assim, realmente abertos à possibilidade de testar hipóteses e formular respostas coletivamente.

  • fogo e feitiço

     

    Fogo e Feitiço

     

    Por Clarissa Reche

    No começo do ano eu virei uma bruxa. A cerimônia ritual foi bem complexa e envolveu uma sorte de objetos como corante, pena, rato de plástico, glitter e até cera derretida de vela, tudo devidamente misturado em um caldeirãozinho de plástico.

    Quem conduziu o ritual foi a Isa Bella, minha auto-intitulada sobrinha de 5 anos. Ela ficou realmente desconcertada ao saber que eu, afinal, nunca tinha feito um feitiço. Resolveu dar um basta nesta situação, expulsou todos do seu quarto e ficamos lá por uma meia hora. Para fazer o feitiço, a Isa interpretava com cuidado belíssimas aquarelas do seu livro de poções, feito com muito amor pelo seu pai e minha irmã. Se no desenho predominava a cor vermelha, ela colocava corante na mistura. Para as estrelas, glitter. Para o abutre feioso, uma pena saída sei lá da onde. Até que ela, sem nenhuma vergonha, mergulhou um copinho no caldeirão, estendeu a mãozinha até a altura do meus olhos e disse: \”bebe\”.

    Eu bebi, óbvio.

    Saindo do quarto mágico, a Isa foi correndo pra sala contar seu mais novo feito para sua avó. A Clari agora era bruxa. A senhora, uns 60 anos, motoqueira, cabelão preto, “A” de anarquia tatuado na mão, gargalhou alto e me disse \”bem vinda\”, saudação que foi coroada com um olhar daqueles olhares que dizem \”eu te reconheço como igual\”.

    Minha vó também era uma bruxa. Antes achava que era um tipo de anjo ou santa, mas a uns dois meses atrás juntei todos os pontos e agora estou convencida: ela era uma bruxona. Todas as memórias que tenho da vó Maria tem a ver com cura e cuidado. Ela era super católica e dedicou literalmente a vida para por em prática o que, para ela, significava isso. Ela dedicou a vida ao amor ao próximo. O vô David e a vó Maria trabalharam muitos anos junto com o padre Júlio Lancelote na pastoral \”do menor\” e contavam história que eu, criança (e não \”de menor\”), ouvia como verdadeiras histórias de horror.

    Ao mesmo tempo, numa aparente contradição, a vó Maria era também uma verdadeira ocultista. Lembro dela super magrinha depois de um tempo de dieta macrobiótica, das amigas espíritas que ela tinha, das caminhadas nos parques para colher folhas de eucalipto que ela usava para tratar a asma da minha prima, dos emplastos e álcool com mentruz que confortavam meus joelhos quando me ralava toda brincando, da babosa que plantava e colhia, com delicadeza, e forçava meu avô, com rispidez, a tomar desde que ele foi diagnosticado com câncer, dos cházinhos de dente de leão, que eram bons para quase tudo.  E da cura prânica, prática à qual minha vó se dedicou e estudou a fundo, se trancando todos os dias no quarto para cuidar de gente que ela nem conhecia.

    E ela não precisava conhecer para cuidar. Era sabido no bairro que a \”dona Maria\”  nunca negava um prato de comida pra ninguém. E que comida! Cozinhava tão bem, e quando dava preparava um bolo delicioso, simples e delicioso, que apelidou de \”bolo do véio\”, já que o vô adorava. A vó Maria amava tanto. Amava as plantinhas, os bichos, os netos, as pessoas, a vida. Ela vivia o amor.

    A vó Maria está agora na fase terminal do alzheimer, uma doença que a acompanha já faz mais de uma década. Quando a doença começou a aparecer e nós ainda não havíamos visto, ela já sabia, e durante muito tempo insistiu para que alguma das netas aprendesse seus conhecimentos, que aprendêssemos a curar e cuidar. Mas não aprendemos, e me arrependo de, adolescente, não ter ouvido a súplica de minha avó. Fico imaginando a dor do mundo que a vó Maria viu e viveu em sua caminhada e às vezes penso que seu corpo e sua mente de bruxa guerreira não suportaram tamanhas injustiças. Ela vivia o amor, mas o mundo é um moinho de ódio.

    Outro dia aqui na vizinhança queimaram uma mulher viva. Era uma filósofa estrangeira chamada Judith Buttler que, de passagem, teve que ver o seu rosto colado num corpo de bruxa em chamas. As pessoas que protagonizaram essa cena de violência e ódio diziam que fizeram tal ato em nome da Vida. Que essa mulher, com suas ideias, atentava contra a tal coisa que eles chamam de Vida. Que por isso mesmo ela era uma bruxa. Que por isso deveria ser morta, queimada viva. A maioria ali justificou isso supostamente em nome da mesma fé que a minha vó tinha, só que minha vó dava comida pra vagabundo e curava usando a energia da mão.

    Eles queimariam a vó Maria!

    No meio do ritual a porta se abriu. Fomos interrompidas pelo pai da Isa que, desavisado, perguntou qual era a finalidade do feitiço. A Isa, sem pensar duas vezes, respondeu que não podia falar e pediu para ele sair. Perguntei, logo que ele saiu, porque ela não quis contar para o pai que estava fazendo um feitiço para que eu virasse bruxa e, novamente sem pensar duas vezes, ela deu uma resposta contundente: o pai não podia saber pois ele era homem, e se soubesse que ela sabia fazer virar bruxa, ele iria querer ser bruxa, e homem não pode ser bruxa.

    Eles queimariam a Isa!

    Por que eles se incomodam tanto com mulheres falando? Por que eles se incomodam tanto com mulheres pensando, agindo, curando, cuidando, amando, lutando?

    Eles me queimariam.

    Eu tenho medo! Tenho medo por mim e por todas, um medo constante que existe desde que existo. Um medo presente e corporificado que me faz lembrar sempre que sou mulher. A violência e o ódio nos espreitam. A fogueira está sempre acesa.

    Tenho medo mas estou acordada. A força para me manter desperta vem, imagino eu, da própria vida. Mas a vida que a vó Maria me ensinou a amar, a vida que é com, por e pelo próximo, que brilha, arde, ilumina e transforma como o fogo, não aquela Vida que os queimadores de bruxas, que em vão usam o fogo, defendem, uma Vida que castra corpos e mata. A vida pulsa e resiste alegremente, não há espaço para melancolia quando se está bem próxima do chão, o suficiente para ver a beleza da florzinha que brota na rachadura da calçada.

    Minha irmã encontrou recentemente o livro que a vó Maria usou para estudar Prânica, cheio de anotações que ela fez. Ainda há tempo. Nós podemos retomar o que é nosso, apesar do trauma.

    Jah não pertenço à babilônia. Sou uma artista, sou uma filósofa.

     

    *  a imagem que ilustra o texto foi escolhida pela Isa. É de um livrinho dela. Foi também a imagem que ela usou para o feitiço.

     

  • Teat(r)o oficina: corpos livres em perigo

    Por Jean Tible*

    também publicado em: https://fpabramo.org.br/2017/11/17/teatro-oficina-corpos-livres-em-perigo/

    No país da história golpeada (1), estamos vivendo os nefastos desdobramentos da sua mais recente reedição, ocorrida em 2016, que reverbera em variadas esferas. Todas as conquistas e aspirações dos de baixo estão sendo questionadas: proteção social, educação pública de qualidade, saúde para todos, combate às desigualdades sociais e raciais, políticas culturais, o limitado voto… Nessa encruzilhada, estamos: sabe(re)mos resistir (o que significa, para a esquerda, re-existir)?

    É este o contexto da nova ofensiva contra o Teatro Oficina Uzyna Uzona (2), ativo há quase seis décadas na cidade de São Paulo, no bairro do Bixiga. No dia 23 de outubro, o Condephaat, após o golpinho da mudança de sua composição, reviu a decisão do ano passado que vetava a construção das três torres de dezenas de andares do Grupo SS. Se o Secretário Estadual de Cultura do Estado não vetar esse ataque ao teatro, que é estadual, restarão duas proteções: a municipal (Conpresp) e federal (Iphan) (3).

    Se Silvio Santos chegou, poucos anos atrás, a ceder em comodato a área em volta do mítico teatro (4) e mostrar-se favorável à permuta do terreno de sua propriedade por outro, nesse novo clima pós-2016, o chefe do Grupo SS não quer mais saber de conversa. Chegaram até a desmarcar a reunião que ocorreria na Prefeitura no dia 13 de novembro e ordenaram a destruição do sambaqui, “ícone vivo, histórico, do sítio arqueológico do Bixiga” (5) , situado no entorno do teatro. Antes, já faz muitos anos, até mesmo uma sinagoga situada nesse mesmo terreno havia sido demolida (6).

    Minha (mais uma!) propriedade privada antes de tudo, nos sugere Silvio Santos em vídeo revelador (7), fazendo-nos recordar a célebre fórmula do trabalhador anarquista francês Pierre-Joseph Proudhon – a propriedade é um roubo. Ao garantir seu sagrado direito à propriedade, privará a cidade de um laboratório de vida e de corpos livres atuando em conjunto e com poder/phoder de multiplicação. Esse vídeo (da reunião de Zé Celso com Silvio Santos e outros mais em outubro) nos mostra um tirano decadente, de constantes piadas sem graça (8). Um triste retrato do golpismo atávico das classes dominantes e da sua renúncia de um Brasil autônomo e democrático. O Rei da vela (peça escrita na década de 1930 por Oswald de Andrade, montada pela primeira vez 50 anos atrás e re-encenada no último mês) escancara toda a nossa atualidade colonial: o vídeo parece a peça, como bem disse Fernanda Torres (9).

    Por que esse ataque ao Oficina? Trata-se de um assalto ao bairro do Bixiga, como o indica o uso muito mais do que equivocado por parte do Grupo SS da palavra revitalização (?) ao se referir, justamente, a um dos bairros mais vivos da cidade. É uma investida contra o bairro preto, nordestino, boêmio, pobre. Bixiga das multiplicidades, das trabalhadoras, dos teatros, dos terreiros, do samba e da Vai-Vai, das associações e outros pontos de produção do comum, onde são experimentadas formas de vida inabituais. Da metrópole viva. Um teatro-rua, teatro-pista, do janelão de vidro em sua conexão com a cidade, atravessado pela cesalpina, árvore totem – que nasce dentro do teatro de Lina e vai pra fora. O transbordar de uma cosmopolítica; terra e democracia sendo semeadas (10).

    A importância do Oficina se dá também pela sua existência como território livre e pela sua força de conexão com outros lugares de experimentação. O Oficina participa ativamente de uma cartografia do contrapoder. No Bixiga, como vimos, no Brasil (territórios indígenas, quilombos, ocupações, assentamentos e muitos outros) e no planeta. Mundos. Subversão em ato de corpos elétricos no terreyro eletrônico. Nesses dias que comemoramos o centenário da revolução de 1917, refaz e recria os elos, indissolúveis, entre ética e estética (“sem forma revolucionária, não há arte revolucionária”, Maiakovski), dos poetas e criadores que anunciaram a esplêndida revolução e cujo fim indicou, já precocemente, seu triste declínio. Corpos não domesticados e descolonizados. Quando alguns querem (de forma infértil e impotente) opor “classe” e “diferença”, o Oficina, e seu emblema, a bigorna (remetendo ao ofício teatral e proletário) ativa um devir-indígena (11), um devir-negro; uma transesquerda (Zé Celso).

    No tal vídeo, Silvio Santos pergunta para Zé Celso o que ele quer fazer com o terreno. Frente ao interesse estreito e individual (suposto pelo empresário), um espaço para a coletividade-cidade (a-anhangá-anhangabaú-da-feliz-cidade) responde o homem de teatro. Em oposição à avidez, um laboratório da felicidade guerreira, alimentada pela potente linhagem da antropofagia. Num planeta onde tudo parece e é complexo, a reunião citada escancara o dilema de Rosa Luxemburgo um século atrás: socialismo ou barbárie. Ou a fartura do comum de Artaud contra o mundo miserável do capitalismo. A política como invenção, criação, provocação, devoração. Teatro-vida da presentação e não da representação, afirmação de uma vida outra. Luta e alegria.

    –Notas–

    1. Douglas Belchior, http://negrobelchior.cartacapital.com.br/historia-golpeada-do-brasil/

    2. O Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico de São Paulo (Condephaat) aprovou, na última quinzena de outubro, o projeto do Grupo SS, de Silvio Santos, de construção de três torres de 28 andares no terreno do entorno do Teatro Oficina. O teatro, bem como o entorno, são reconhecidos como patrimônio cultural nos níveis federal, estadual e municipal. Para a execução do projeto serão necessárias ainda as aprovações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp).

    3. dois textos recentes do Oficina sobre o assunto (http://teatroficina.com.br/urgente-nota-publica-de-esclarecimento-ficaoficina/ e http://teatroficina.com.br/movimento-vetaastorres-ficaoficina/) e uma matéria com Camila Mota (https://revistacult.uol.com.br/home/somos-cascudos-e-aguentamos-a-luta-diz-vice-presidente-do-oficina/).

    4. Vídeo de 2011: https://www.youtube.com/watch?v=XMPi3mQ3b9I

    5. https://www.facebook.com/uzynauzona/videos/vb.1152781641431789/1592918854084730/?type=2&theater)

    6. http://www.gazetadigital.com.br/conteudo/show/secao/4/materia/81645

    7. Na íntegra (https://www.youtube.com/watch?v=yRlPmIgc6UY) e na versão editada pela TV Folha (https://www.youtube.com/watch?v=S-k4CcFgmJo)

    8. http://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2017/10/1930968-vou-transferir-a-cracolandia-pra-la-diz-silvio-santos-a-ze-celso-em-reuniao-com-doria-sobre-o-oficina.shtml

    9. https://revistatrip.uol.com.br/tpm/fernanda-torres-novo-livro-a-gloria-e-seu-cortejo-de-horrores-a-solidao-de-escrever-e-arte-no-brasil

    10. Vejam o forte diálogo entre Sonia Guajajara, Guilherme Boulos e Zé Celso ocorrido ano passado no Oficina: https://www.youtube.com/watch?v=_rf89zFaNT8

    11. Segundo Eduardo Viveiros de Castro, “se você olhar a composição étnica, cultural, da pobreza brasileira, você vai ver quem é o pobre. Basicamente índios, negros. O que eu chamo de índios inclui africanos. Inclui os imigrantes que não deram certo. Esse pessoal é essa mistura: é índio, é negro, é imigrante pobre, é brasileiro livre, é o caboclo, é o mestiço, é o filho da empregada com o patrão, filho da escrava com o patrão. O inconsciente cultural destes pobres brasileiros é índio, em larga medida” https://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/29/opinion/1412000283_365191.html

    *Jean Tible é professor de Ciência Política da USP e Conselheiro do CSBH

  • amor, matéria de fim de mundo

     

    Lina, amor

    te escrevo rápido entre milhares de coisas.
    A boa notícia é que deixei meu emprego, entreguei o velho apartamento, dei minha bicicleta.
    Já nada me conecta a esse lugar. Me sinto flutuando, exílica. Volto para te encontrar e estarmos juntas.
    Estou cheia de ideias, me derretendo de amor e com muito tesão de que façamos tudo que estamos planejando faz tempo em segredo.
    Eu quero tudo que você quer, esse desejo me livra dos abismos. Os cartazes; lambes, como você quiser, amor.
    O grupo de estudo, leiamos Nietzsche. Dançar; vou voltar a dançar, amor. Nosso filme e as canções que tocam sempre naquela oficina mecânica perto da sua casa.
    Te beijar muito, fechar os olhos como fazíamos naquele dia, domingo cedinho enquanto descobríamos uma ruazinha sem saída  cheia de palavras pelos muros.
    Suas formas mágicas em que quero voltar a me desfazer enquanto você me chupa e nos entregamos em abraços que descem se transformando em carnaval. E o zine, claro. Ainda é tempo para zines, não?
    Mudando de nome em cada número e com fotos de nossos corpos nus, muita revolução molecular, máquinas de guerra, perfumes de flor, minha flor.
    E queria que o zine tivesse seu cheiro. Do gozo e da revolução que é nosso encontro. Pego o ônibus amanhã 6 da manhã, acredito que chego aí já de noite. Queria entrar voando pela sua janela. Deixa ela aberta pra eu conseguir entrar. Te amo. Te mando com essa carta alguns desenhos. Te sinto até me dissolver.
    Zine anônimo, tá? Eu gosto do nosso anonimato, nos protege do fim do mundo. Gostei desse primeiro que você fez com ele. Já chego amor, deixa as cortinas abertas, sempre. Não continua se escondendo do sol, nem das noticias do dia. Vamos precisar atravessar tudo.
    As bruxas se apaixonam?
    Preciso aprender a ser mulher, mesmo que já esteja cansada demais. Agora gostei de ser menina, raio, gozo, planta, rio, bruxa, lingua, lágrimas negras e cachoeira de água fria pra entrar. Como revolucionária você tem que aprender a viver num tempo de catástrofes, amor.Desastres incontornáveis existem, mas sobretudo, existe o amor. E por isso estamos vivas.
    Beijos da sua amada, R.
  • 100 anos da Revolução Russa: um olhar.

    Por Salvador Schavelzon.

     

    Hoje, 7/11/2017, há cem anos da Revolução russa, alguns nos perguntamos por uma leitura desse acontecimento mais do que comemorativa, interessada na atualidade que essa revolução possa ter num momento em que custa encontrar caminhos eficazes de contestação do poder constituído e de construção de um mundo novo. Para os que se mobilizaram e organizaram em 1917 essas duas coisas pareciam possíveis. Eles estavam melhor que nós e não contavam com os fracassos das experiencias socialistas do século XX nem com o esgotamento da própria proposta política da esquerda. Era só questão de avançar pelo caminho que estava dado.

    O projeto de esquerda construído nos cem anos anteriores a 1917, enquanto o mundo liberal burguês se consolidava na Europa, entusiasmava espíritos sensíveis e críticos da sociedade. Hoje esses espíritos preferem fazer outra coisa, ou não fazer nada. Se esse projeto fracassou, no entanto, junto com a ideia de ciência e de sociedade que carregava, estamos também melhor que os bolcheviques. Imaginem se fôssemos capazes de voltar ao momento da revolução russa, mas dessa vez com um século de experiencia política nas costas. Possivelmente pensaríamos antes em ação do que em comemoração, em mudar a vida antes do que em mudar o mundo. Tentaríamos ficar abertos e sensíveis ao que acontece ao nosso redor, mais do que em tentar transformar os outros, leva-los como base ou objeto da nossa revolução.

    Mesmo que tomemos distancia de tudo o que foi feito pelos revolucionários russos naquela ocasião, e especialmente pela esquerda que trouxe até hoje essa referência do \”quê\” e do \”como\” fazer luta política, há algo desse acontecimento que sobrevive a todo revisionismo e tentativa de explicação redutora. Algo muito forte acontecia pela força da organização autônoma que se opôs à ordem conservadora-burguesa então dominante, deixando o comando na classe trabalhadora que havia feito possível a revolução. Os que não tinham nada conseguiram virar o jogo e desarmar o sistema de dominação do modo como estava estabelecido pelo império e sua continuidade liberal progressista.

    Comecemos com assumir que Kronstadt e o gulag fazem sempre parte da discussão aberta pela revolução. Até porque tem revolucionários que foram massacrados e que merecem ser lembrados. Não se acomodaram ao regime, que sempre oferece a possibilidade de se deixar assimilar. Podemos fazer uma evocação romântica que silencie todo desvio para ficar com a imagem gloriosa de 1917, sem manchas. O Lenin cristificado, o Trotsky fundamental injustiçado ou ainda os sovietes anarquistas que foram reprimidos ou aniquilados. A esquerda ocidental já tentou atribuir os erros da revolução à tradição despótica asiática, ou às características da psicologia pessoal do Stalin. Não é suficiente. Apreender a densidade da revolução exige assumir a experiencia política completa, com tragédia, farsa e toda uma problemática, como dificuldades que não se resolvem num racha que proponha começar de um novo lugar, separando o bem do mal e se colocando a salvo do conflito. Assim nos conectamos com o acontecimento e não com ela como ideia. E assim fazemos dela um problema político que se conecta com os de qualquer época: o problema de quando a ruptura com a ordem se torna uma ordem nova, a revolução se burocratiza, seus precursores são excluídos enquanto autoridades se impõem de forma parecida ao que motivou a revolução. O problema pode levar ao fatalismo. Mas o desafio é entender como a luta política deve sempre encontrar novas formas e caminhos.

    Se os bolcheviques expressavam rasgos asiáticos, sejam eles bem-vindos, porque precisamos de diferença quando é o excesso de aridez ocidental hoje aqui nosso problema. Tragam xamãs da estepe russa, nômades afegãos ou os métodos comunitários dos camponeses eslavos que sem dúvida enriqueceram as estruturas de poder dual dos sovietes em Outubro. Os problemas da esquerda e da direita do poder, são hoje bem ocidentais. Como foram também para a União Soviética. O stalinismo é a exacerbação da repressão política da dissidência, opositores políticos purgados e enviados a fazer trabalho forçado como no tempo do Czar. E isso aconteceu na revolução francesa, com o macarthismo nos Estados Unidos, e nas ditaduras latino-americanas. Hoje nos Estados Unidos, na Rússia ou no Brasil, um regime prisional perverso se constitui como forma de governo dos pobres e marginais. Mas o stalinismo é mais do que isso. Sem socialismo soviético, a Rússia se encontra com Europa e Estados Unidos em mais coisas do que se separa. Não é por acaso. Foi construído lá, em nome da revolução, um sistema de trabalho e produção que caminhou em paralelo aos de ocidente. Um sistema social, com populações enquadradas e socializadas no consumo e sonhos de bem-estar familiar, que passaria também pela flexibilização do burocratismo fordista para hoje se integrar no neoliberalismo global sem nação nem Estado, como devia ter sido o poder proletário. Controle policial interno e geopolítica da guerra de nações militarizadas no âmbito externo, já no caminho empreendido pelos bolcheviques depois da revolução, como novo poder estatal dos sovietes incorporados como órgãos de gestão desse mesmo sistema de trabalho.

    Liberais gostam de apresentar a União Soviética de Stalin como regime oposto à democracia liberal do livre mercado. Não é incorreto dizer que a Rússia soviética era um regime anti-marxista ou anti-comunista, e que incorporou muito dos dois regimes com os quais rivalizava: o ocidental liberal capitalista e o do Império autocrático que o antecedera. Já com Lênin, e nas propostas econômicas dos trotskistas, é adoptado o caminho modernizador da industrialização e crescimento econômico com produção rural de grande escala, modo escolhido de gerar riqueza e gerenciar a vida social, implantado sem evitar a violência e destruição de mundos que esses processos tiveram no ocidente e em todo lugar. Difícil pensar como poderia ter sido distinto, e as consequências de outra escolha em relação ao papel crucial da União Soviética na derrota do nazismo na segunda guerra mundial e o atendimento da nova população urbana  proletarizada. A URSS foi um grande Estado de Bem-Estar. Mas hoje é importante sim uma crítica que vem ganhando corpo a partir da década de ‘60, embora tivesse expressões minoritárias já na época da Revolução (com Bukharim, e outros), sobre a necessidade de pensar alternativas a um modelo que é ao mesmo tempo horizonte do desenvolvimento capitalista e, aqui entre nós, o programa da esquerda estatal e partidária latino-americana. O crescimento e a aliança com os industriais, e os empresários do agronegócio de expansão etnocida foi para vários economistas do PT no governo da Dilma, a alternativa para sair do modelo neoliberal mais ortodoxo. A retórica da industrialização, não realizada, foi também o que se constituiu como projeto político do Evo Morales depois de romper com os movimentos indígenas. Uma evocação da Revolução Russa hoje deve abordar o problema do modelo econômico, e também da democracia, aspecto inseparável e que também dirigentes como Trotsky e Luxemburgo alertaram (por exemplo a respeito da Assembléia Constituinte e necessidade de aprovação da tomada do poder pelos proletários).

     

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    A revolução russa, de fato, continua entre nós com suas tragédias, linguagens e possibilidades de ruptura. E se faz necessária de ser pensada para encontrar lugares políticos onde tudo parece fechado, nos debates da esquerda, ou quando mesmo fora do governo, vemos os projetos deste campo apoiados no soberanismo welfarista, no lugar em que depois da revolução internacionalista o processo revolucionário se encontra falando da pátria mãe, com aquela imagem do Stalin pilotando o barco que seria a URSS, e isso quando não é apresentada como inexorável a agenda liberal dos bancos, como em Brasil de 2015, a capitulização do Syriza e as tentativas de Podemos, na Espanha, para encontrar um atalho para o poder fazendo um acordo de governo com o PSOE, aceitando preservar os consensos de ‘78 contra os que nasceram em 2014. 1917 e a posição bolchevique no contexto da Europa é ruptura com respeito aos nacionalismos e as socialdemocracias acordistas, numa esteira internacionalista e proletária, que desconfia dos acordos com a burguesia nacional.

    Não é suficiente nos conformar com o mantra de “outro tempo, outra realidade”. Se resgatamos a Revolução Russa, é preciso nos conectar com sua potência que era derivada de situações políticas bem concretas. O poder dos sovietes e, ai sim, a abertura para o indeterminado e selvagem que dificilmente possamos traduzir. O poder para os sovietes, em 1917, não significava necessariamente coletivização forçada, industrialismo acelerado com metas alienantes, e carreira militarista com ocidente. Significava não apoiar o governo provisional formado por liberais e progressistas, a pesar de este ser um avanço a respeito das posições “fascistas” do czarismo mas como bloqueio do que Lênin e Trotsky, como jacobinos sensíveis, viram como tradução política do comunismo possível: o poder para os trabalhadores, para os de baixo, reorganizando o sistema e direcionamento social . A revolução mostrou assim um caminho que possivelmente hoje possa ser imaginado sem jacobinos, e sem proletários, como corpos e sociedades que se constituem como único poder político sem mediações e com autonomia. Mas era também a concreção do que antes apenas havia sido ensaiado sem sucesso ou imaginado.

    Se tivéssemos que ficar apenas com um gesto, um movimento para entender a essência da revolução de outubro, talvez possamos ir para uma situação política clara, onde o governo provisório se recusava a interromper a participação de Rússia na guerra, e atrasava as reformas e medidas sociais às que se havia comprometido. Os bolcheviques sabiam que os moderados nunca fariam as reformas prometidas, porque isso implicaria para eles perder o poder. A sacada, que era minoritária e contrária inclusive à posição adoptada pelo partido bolchevique, era não colaborar com esse governo e defender a posição que apostava nos soldados, operários e camponeses mobilizados. Num telegrama de março de 1917, Lênin era claro: “Nossa tática: absoluta desconfiança, nenhum apoio ao novo governo, suspeitemos sobretudo de Kerenski, armamento proletariado única garantia, eleição imediata Duma de Petrogrado, nenhuma aproximação de outros partidos…”. E a estratégia? Não importa, porque são as táticas certas as que conseguem as coisas.

    Trazendo para nossa realidade essa ruptura que abre para o imponderável, ainda com o risco de que todos os que defendem essa posição sejam fuzilados, lembramos dos debates brasileiros de 2016 em que tendências marxistas do PT raciocinavam como se Dilma Rousseff tivesse que se defendida porque fazia as vezes de Kerenski, sem quem uma posterior revolução não seria possível. Lembrando os raciocínios mecanicistas da ortodoxia marxista, a ideia é que a revolução se estuda passo a passo e sem Kerenski (Dilma) não poderia haver o avanço posterior necessário. No entanto a revolução é justamente se jogar num vácuo de insurreição que possa abrir o que está fechado, como golpe ao governo provisional, para os bolcheviques, mas também como junho de 2013 para a juventude do Brasil que sabia que o PT era um limite que não poderia deixar de agir de forma coordenada com a classe dominante, e os partidos conservadores com os que tinha aceito governar. A interrupção do governo com mecanismos ilegais, assim, entendidos como parte normal do funcionamento de um sistema de governança ao qual esquerda e direita se entregaram.

    Para além da idea PT, que ainda alguns seguram, mesmo fora do partido, o momento de ir além do governo provisional no Brasil foi não apenas desouvido, mas também reprimido pela esquerda no poder. A partir daí o consignismo apelativo “golpe”, “fora temer”, “diretas já”, “Lula 2018” aparece como um letargo discursivo, sem corpo, nem povo mobilizado que se proponha fazé-lo efetivo. Independentemente de poder ser assumido ou não como uma posição correta, em determinado momento, as consignas levadas pela esquerda e aparelhos da órbita lulista, se mostram como avesso do “Pão, Paz e Terra”, como lema que nomeava o que pouco antes era impossível (sair da guerra, resolver a fome), mas no entanto se realizava enquanto o mundo em que era impossível desababa, a partir de conectar, ao contrário dos slogans no Brasil, com as energias entorno da feitura de um “nós” coletivo que ao mesmo tempo nasceu de, e fez possível a revolução. Essas energias vitais faltam à esquerda que se projeta contra junho de 2013, na eleição de 2014, na Copa e hoje novamente em pactos eleitorais com a direita, reivindicando como lugar de poder o apelo a um direito adquirido de ser o Estado e a legalidade, no controle das narrativas da esquerda, mesmo que desse lugar não seja possível mudar os condicionantes do real.

    Essa leitura, que busca pontos de apoio nas lutas e comuns possíveis, era de consenso em 2013 e hoje divide a esquerda, com boa parte dela dependente das agendas eleitorais,  com poucos homens falando de cima e longe, no teatro das instituições que transformam eles mais do que permitem ser transformadas. O ciclo progressista sul-americano gerou uma mística que ainda cativa, com a imagem positiva, especialmente na distância, de Mujica, Chávez, Evo Morales, ou do governo Lula, no Brasil, que reunifica a esquerda do governo inclusive com seus críticos e dissidentes anteriores, na frente do avanço e vitória eleitoral de oposições de direita. Não analisaremos aqui essas experiencias de governo. Mas cabe notar que a ideia de revolução é apropriada pela experiencia progressista para descrever um ciclo de bonança económica que favoreceu bancos, grupos empresários e liberou um processo de intensificação da exploração de recursos minerais, da agricultura e do petróleo, com amplo impacto sobre populações e territórios, mas como base necessária para garantir estabilidade econômica para os negócios, que se traduzia em estabilidade política, e mesmo sem lugar para transformações estruturais, ou de profundidade, que por exemplo reorganizasse a educação, promovendo um sistema diferente, em lugar de ampliar a matrícula pelo caminho do suporte de universidades particulares de má qualidade; ou sem questionar a organização capitalista e segregadora da cidade; a segurança e violência policial como ferramenta de contenção social; ou um consenso de civismo que impeça a repressão e perseguição de ativistas e protestas sociais. Embora houve programas sociais amplamente expandidos, e diferentes níveis do governo puderam tender a promover um governo social, antes que neoliberal, o desafio político que uma experiencia política revolucionária de esquerda nos evoca, nos deve levar a decretar que o caminho progressista mostrou seu limite e, por tanto, dificilmente possa ser pensado hoje como solução eleitoral que deveria organizar em seu favor a toda a esquerda.

     

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    A defesa dos progressismos poderia dizer: isso é o que era possível, ser revolucionários nos anos 2000 foi fazer o que estes governos fizeram. Mas não, a revolução russa não foi apenas o aproveitamento pontual de uma conjuntura, que se alcancaria mais ou menos de acordo com a situação política ou alinhamento dos astros. O poder proletário, a revolução onde tudo se abre e passa a ser discutido foi um acontecimento único que mostrou que a história e o poder pode ser desafiado. Era possível, então, pedir mais para os governos progressistas latino-americanos. E exatamente isso foi junho de 2013 no Brasil; as marchas camponesas e de trabalhadores no Equador; as assembleias de 2002 na Argentina, depois do fracasso do governo que iria a tirar o país do neoliberalismo; ou a Bolívia da guerra da água e do desafio indígena ao poder estatal, inclusive, por alguns momentos, dentro do Estado.

    O final do progressismo, no Brasil e em outros lugares, é constatado na nostalgia e fraqueza política, que uma e outra vez é exposta no movimento pessado de uma esquerda de aparelhos e grupos que gritam no microfone e se colocam de forma autoflageladora, vitimizante e ao mesmo tempo arrogante, sem ter podido dar lugar a um ciclo de mobilização que se oponha ao frágil governo Temer, nem à uma mística de resistência para além de algumas expressões estéticas, mas bem longe de imaginar uma nova sociedade, como as artes e técnicas mostraram na Rússia da revolução, a pesar da repressão e represálias que viriam para os que ousaram pensar ou criar por fora dos canais autorizados da esquerda oficial, devenida Estado. Difícil não voltar então à tradição da esquerda que se referência na revolução russa, quando o que está em pauta, no Brasil e no mundo, é uma disputa que se continua dando na linguagem do século XX, e encontra de um lado uma direita furiosa que imagina uma esquerda socialista conspiradora, prestes a implementar um programa de comunismo de guerra (posição atribuída até para keynesianos ou nacionalistas estatistas); frente a uma reação da esquerda que responde atrincheirada nas bandeiras vermelhas, como se estivesse dentro de um filme de Eisenstein, ou então o avesso, na sua variante populista, se aproximando ao adversário da pátria e a ordem implementada de cima pra baixo, como se a forma de combater o xenófobo intolerante que na Grécia, Rússia e outros lugares mostra expressões abertamente nazistas, seja disputar os baixos instintos de um povo formatado pelo Estado; em lugar de desafiar o tempo, superar as formas dadas; multiplicar as lutas e desejos ali onde as esquerdas e direitas do Estado se ocupam em domesticá-las.

    No campo político ocupado pela direita social, dita liberal, e a esquerda velha e nova, em perfis identitaristas ou do Estado como resposta para tudo, vemos duas parcelas minoritárias de expressão política polarizada se reproduzindo de forma desconectada do dia a dia da população, como debate espetacular sem ancora na vida das pessoas e, no entanto, em uma ilusão de totalidade, como se estivéssemos de fato disputando a sociedade nessas discussões, numa batalha de Leningrado ou na resistência contra o nazismo, onde o tudo ou nada estaria em jogo, enquanto no campo das materialidades a esquerda que pretende salvar o Brasil do fascismo acabou de co-governar com seus inimigos. A pretensão de representar na pele o destino da nação, a esquerda não faz mais do que continuar assimilando formas de funcionar e de pensar das elites, como ficou claro na imposição de um projeto político que não foi votado e que não evitava a austeridade, o ajuste e o corte de direitos sociais, as alianças com pastores homofóbicos e a relação de proteção com a política que assassina. Em definitiva, com o que agora chamam de fascismo, que é também o que nos leva a recuperar a Revolução de Outubro.

    Favorecidos pela plataforma de disputa eleitoral e a difusão dessa oposição em compartilhamentos de redes sociais e plataformas de comunicação via celular, os herdeiros da revolução e do fascismo ou catolicismo conservador não se aproximam hoje da ruptura, mas do aperfeiçoamento da ordem, nas suas variantes progressista ou conservadora, numa bolha inflacionada de retórica e desonestidade política de parte da esquerda que pede o voto novamente. Existe fascismo na mesma medida em que a esquerda encarna revolução. Isto é, como gestos, desejos íntimos, propostas e visões de mundo, mas isso não significa que esse seja o quadro que descreva a ordem social possivel. O oposto de 1917, onde a nova ordem evitava o surgimento de um fascismo, a restauração autocrática ou uma república burguesa padrão.

    Quando uma formação política de esquerda se entrega à administração dos assuntos da burguesia, sem buscar alternativas políticas anti capitalistas ou anti neoliberais, apenas cabe o  rompimento, caminhar no deserto ou apostar em lutas vivas, mesmo que decretadas como menores, “apenas sociais” e não políticas, ou que não seriam estratégicas porque se opõem à máquina de desenvolvimento ou ao anseio de retomar o crescimento e avanço das empresas nacionais. A chantagem do \”possível\”, a esquerda com possibilidades de freiar o fascismo, é o obstáculo para outra política que supere o fascismo políticamente, na construção de um mundo onde ele não faça sentido.

    Em conseguencia, e honrando a vigência do corte no tempo aberto pela revolução de outubro, a esquerda demostra poder entrar novamente num modo de funcionamento stalinista, neutralizador das energias revolucionárias, burocratizante e autoritário.  Na frente do fascismo, às vezes explícito, às vezes projetado como ameaça e auto-legitimação para pedir apoio eleitoral ou chamar para uma praça que permanece vazia, a esquerda latino-americana vem mostrando reações desse tipo com vozes críticas. Assim são excluídas da imprensa progressista ou diretamente difamadas posições de ambientalistas ou organizações indígenas históricas na Bolívia e Equador, ou se reclassifica junho de 2013 no Brasil, impulso vital, transformado em responsável do ódio contra o PT, assim como já naquela época, grupos anarquistas e autônomos ou Black Blocs, foram criminalizados por referentes intelectuais de esquerda e membros do governo, como reação ao que viam corretamente como expressão política que os impugnava.

    A pergunta que fica no ar é até que ponto fascismo e stalinismo se precisam e constroem mutuamente. Pensando na União Soviética e aqui, quais caminhos políticos garantem combater o fascismo de forma mais eficiente? Quando dentro da esquerda encontramos tendências que por trás da oposição retórica mostram uma afinidade (industrialismo, nacionalismo, verticalismo, repressão da dissidência) vemos não só que se tivéssemos tido um governo de esquerda revolucionário, muitas ações poderiam ter sido feitas contra um fascismo micropolítico que evidentemente reflete o pensamento conservador de boa parte da população, e a subjetividade neoliberal que não é desarmada com as políticas públicas do progressismo. Se a nossa sensibilidade de esquerda nos mobiliza contra o fascismo, não era para ter buscado caminhos diferentes do que alianças com o grande capital financeiro? Com modelos de produção que destrói florestas e vida no campo? Com a ocupação do Haiti e uma relação de potência imperial com países irmãos?

    Em vista da situação, não é possível saber se é possível outra esquerda. Nem faz sentido se perguntar sobre quais posições são mais revolucionárias. Muitas revoluções foram feitas por acaso, por quem não devia ou estava preparado para assumir um papel revolucionário. A revolução muda as pessoas e o mundo, e por isso faz sentido hoje pensar a política como relacionada com outros mundos, esses que não separam natureza e sociedade e no pensamento indígena, mas também em projetos urbanos e na experimentação de laboratório mostram que a sociedade que os séculos XIX e XX imaginaram está sendo superada em vários lugares.

    Como pensar hoje o sujeito da revolução. Neste século houve mudanças no capitalismo, no trabalho, na subjetividade e na visão que temos sobre o mundo, existente e desejado, ao ponto de ser necessário abrir um debate não apenas sobre as condições para a revolução, mas também sobre quem, de fato, deveria fazer uma revolução hoje, caso isso seja politicamente necessário e possível. Não se trata apenas de adequar a ideia de classe às condições de trabalho fora da fábrica, como os teóricos do trabalho imaterial e o capitalismo cognitivo já fizeram. Se trata também de entender uma realidade onde a própria ideia de homem, se encontra transfigurada, afetada por tendências post-humanistas; de incorporação dos não humanos ao entendimento do jogo político; e da percepção de muitos de que o mundo; não é mais um ambiente físico inerte onde se desenvolveria a ação do homem como sujeito histórico e predestinado a algo, numa “sociedade” ou “civilização” que o conteria. Não há teleologia que possa ser sustentada hoje sem conflito, não há sujeito nem história que possa ser entendida de forma iluminista e estável. Isso nos leva, de um lado, para as margens, as comunidades, os sujeitos excluídos da narrativa moderna, por ser híbridos, desasujeitados, misturados, invisíveis para os códigos e formas de percepção anterior, inclusive ou especialmente da esquerda. Movimentos territoriais, étnicos, etc., não organizados a partir do local de trabalho, já têm sido incorporados pela teoria e prática da esquerda. Também a esquerda os tem capturado, manipulado ou utilizado como base para os mesmos fins que antes partidos de massa ou sindicatos foram burocratizados. A ideia de sujeito histórico, no entanto, inseparável da vanguarda que se torna esse sujeito, o conduz ou orienta, continua presente nas formas de ação política. Não buscamos aqui dar conta desse debate, mas é válido registrar que depois de cem anos da revolução russa, não apenas o conceito de revolução não descreve o tipo de transformação que muitos revolucionários estão buscando, mas também que o quem, como, para quê e aonde da revolução, estão hoje abertos e tensionados. Devires antes que movimentos e sentidos dos processos, conexões antes que organizações e agenciamentos vividos em lugar de marchas históricas. Em lugar de golpes e rupturas de violência militar a revolução se coloca como impossível se não é pensada como afetos, relações, contestação da ordem, não apenas político-econômica (como se fosse pouco!) mas também dos princípios autoritários de uma sociedade capitalista que separa muito do que pode permanecer junto, privatiza, mercantiliza e bloqueia fluxos vitais de um mundo que pode ser outro, ainda hoje.

    Sem clareza sobre o sujeito, o futuro, o espaço territorial da revolução, vejamos se, pelo menos, conseguimos pensar hoje esse poder social popular que foi a base da revolução de 1917. Os Sovietes, que não deixaram de encontrar internamente um esgotamento e refuncionalização, quando o poder do estado soviético os colocou para trabalhar. A falta de clareza, aqui, pode ser virtude e não diletantismo ou falta de compreensão dos devires sociais. A falta de clareza é adequada na falta de forma e caráter fluido que substitui as formas do trabalho, participação política, organização coletiva e afetiva. Esse poder de baixo, que nada consegue representar, menos ainda as formas republicanas e liberais voltadas para o indivíduo proprietário até agora. Sem uma forma de luta por caminhos previsíveis (aquele chamado eterno para uma greve geral revolucionária que quando acontece encontra fora dela à esquerda que sempre a procurou); sem chance nem vontade para um movimento que se oponha ao Estado no campo dos armamentos e dispositivos de repressão e segurança militar, o que temos é o que está acontecendo. As lutas. Comunidades quilombolas que se organizam contra agronegócio e mineradoras que invadem suas terras. Ocupações de escolas, de terrenos, de prédios, de espaços institucionais, de ruas, de propriedades ociosas, de lugares do Estado. A sexualidade vivida de uma nova maneira, ou a arte significativa fora dos circuitos comerciais. Territórios ancestrais, que são re-ocupados, ou ainda ocupados, com outras lógicas diferentes as que mandam os poderosos. Territórios que não se vendem, como a família de pastores que se recusa a entregar o último pedaço de terra no setor controlado pela empresa mineira Yanacocha, em Cajamarca, Peru. Criar poder territorial, e novas instituições, horizontais e livres, nos bairros, nas comunidades, na rede de computadores. Os sem teto ou estudantes que ocupando começam a construir a educação ou a cidade que querem. As fábricas, ainda, porque a revolução proletária ainda existe onde tem trabalho para ser reapropriado, ou interrompido por greves que certamente hoje estão muito mais abertas a virar lutas que se conectam com uma recusa do mundo da exploração do trabalho, com hortas comunitárias, lutas de periferias ou centros. Se partidos e nações fazem hoje algum sentido é para serem ocupados. Um problema dos progressismos latino-americanos é que perderam essa conotação. Não eram índios, trabalhadores, camponeses, mulheres, militantes de direitos humanos ocupando instituições. Se tornaram uma nova elite, geralmente branca, deixando a índios e sem terra bem longe das decisões, virando o Estado que muitos deles sempre foram, no pequeno poder de sindicatos, universidades, carreiras políticas. Outros deixaram de lutar aceitando a força de processos que, sem contrapoder e resistência, transforma até os melhores intencionados em peças de uma máquina de administração.

     

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    Os sovietes são trabalhadores organizados contra o patrão, ocupações libertárias e também uma plataforma online que consiga fazer confluir energias de ruptura. O desafio é sintonizar, todos com todos contra o poder, e ativando um poder multitudinário que mostrou, em vários lugares, que quando acorda pode tudo e depois permanecerá como marca. O poder dual dos bolcheviques, que se tornou um novo Estado, pode hoje estar num outro nível, porque o capitalismo está ao mesmo tempo mais distante, articulado globalmente com uma rapidez difícil de neutralizar pelos meios tradicionais, de forma imaterial e também mais perto, dentro de nós, com dispositivos de dívida, isolamento, e neoliberalismo nas relações, direitos e formas de vida. Em lugar de criar um Estado, um banco, um partido, conseguir estar além, e, no entanto, envolver nesse além nossas vidas, que possam começar a funcionar com outra lógica, do comum, das táticas que neutralizem o poder, mesmo na cidade e no centro da produção capitalista. A revolução russa teve sucesso em se impor como nova realidade para todos os que antes se acreditavam súbditos do czar. No mundo de hoje pensar para além da mercantilização da vida e o neoliberalismo dentro de nós é possível também.

    Como contra poder, com instituições novas do comum e armas para disputar uma subjetividade formatada pelo capital que constrói outro mundo, enquanto decreta a obsolescência do que o precedeu. O importante dos sovietes é como se constituem como nova realidade, antes invisível ou reprimida pelo poder anterior, mas se tornando fato quando passou a ter as respostas que os trabalhadores mobilizados queriam ouvir. Os sovietes seriam também reprimidos, invisibilizados, refuncionalizados depois de que se criara um poder soviético. E esse talvez seja o problema que se coloca para os espíritos libertários de hoje. É possível sovietes sem Estado soviético? Existe possibilidade de “todo o poder para os sovietes” sem que uma instância separada, autônoma do movimento, uma nova burocracia que diga os representar, mas tome seu lugar, seja possível?

    A revolução russa é criação de condições para que aconteça o impossível. Ela desafiou a história, e não era o produto de um processo que a tinha por fim. Aconteceu contra o mais esperável: o estabelecimento de uma república burguesa na Rússia, como as da Europa ocidental, ou a repressão do movimento radicalizado nas ruas, como ocorreu meses antes de Outubro, e em 1905. A revolução Russa é também a revolução que não aconteceu antes na Alemanha, e que também não foi estopim de uma revolução mundial. Ela aconteceu contra a repetição e o poder, e é isso que nenhum poder conseguirá fazer que não aconteça mais. Onde há poder há resistência, e todo poder em algum momento cai. O fascismo existe, mas nosso objetivo principal não é derrotá-lo. Nosso objetivo anterior é fazer a nossa revolução, e é isso que vai impossibilitá-lo.

     

    São Paulo,

    Terça-feira 7 de Novembro de 2017