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  • A distração de Eco

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    Alex Cabanel, 1874 — Eco

    de Juliana Meira

    Quando alguém fala de distração, penso nos movimentos que parecem difusos… Em pequenas fugas regidas por coisas que carregamos e perderam a conexão com o tempo presente… Mas que ainda revelam, a partir do agora, o magnetismo que as coisas do mundo tem sobre nós e nos dão algumas pistas, como um mapa no mundo, dos nossos afetos, ou da nossa capacidade afetiva construída através do tempo.

    Por exemplo, a borboleta que está trabalhando nas flores novas do abre-caminho no quintal de casa… Isso é trabalho da vida, mas também associo silenciosamente à distração… pelo modo como ela vai, volta… salta pra outra planta, pra outra flor, some de vista. Retorna. Sobrevoa meu corpo deitado ao Sol, volta pra flor.

    Associo então, esse trabalho à distração pelo efeito do voo polinizador da borboleta sobre mim, por minha aptidão em acompanhá-la visualmente em seu trabalho que é sua vida.

    Noto, dentro da distração que penso ‘trabalho’ na relação entre a flor a borboleta. Sobreponho isso a vida da borboleta. O que me parecia natural passou por um estranhamento no espaço da distração. Por que pensar isso como trabalho… ou como distração?

    Percebo que em mim a distração normalmente ocorre num espaço que é ao mesmo tempo dentro e fora. E sobre isso, hoje, me atento às experiências que faço com a fala em diferentes espaços, públicos e privados, ou alguma coisa entre isso… e como elas me tornam ora potente, ora enfraquecida. No propósito, na abertura, na inadequação… A potência na maior parte das vezes encontra-se na escuta, e as vezes mais especificamente na evidência da escuta entre as falas, no abrir e orientar sentidos. Se tem eco… tem eco

    Não tem… tem

    Se antes pensava na distração como bifurcação. Agora, ou aqui em isolamento, ando pensando na distração como espaço, brecha, borda,… espaço de suspensão e ao mesmo tempo de contato.

    … Era pra ser um texto sobre ecologia, mas encontrei uma frase que ecoou:

    “Eco amava os bosques e os montes, onde muito se distraía”…

    Me dei conta de que muito se fala da ninfa Eco pela repetição, mas pouco pela distração. A distração de Eco nesses espaços: nas montanhas, bosques, cavernas e grutas (onde as oréades habitavam)… relacionada a seu amor pela vida que ali se expressava, tinha um revés que emergia como (d)efeito sobre alguns seres, os humanos e os deuses antropomorfisados… O defeito de Eco era o de falar demais. Queria saber em que momento emergiu a evidência de que a fala de eco havia passado dos ‘limites’. Se essa inadequação do quantum de fala era algo relacionado com o efeito no ambiente, nos corpos, com o efeito do que ela trazia, apresentava como conteúdo… Fazia emergir das próprias pessoas.

    A ninfa gostava de dar a última palavra. Se a última palavra fosse uma afirmação, Eco encerrava a conversa. Se a última palavra fosse uma questão, havia continuidade.

    Qual ‘a diferença entre’ a repetição e a distração? ‘a diferença entre’… Fico na ‘diferença entre’.

    Não tenho resposta. Dou passagem

    “Dar passagem”… é uma expressão usada em alguns terreiros para a se referir a incorporação da entidade pelo médium. “Sua pombagira está pedindo passagem, você quer dar passagem? Precisa de ajuda?” … Me parece mais fácil senti-la quando estou só. Tamanha a tensão que fico quando alguém me diz algo assim… A observação dos sinais no corpo. Sinto, permito com a mente, mas o corpo resiste. … é numa espécie de rápida distração que algo acontece.

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    Talvez repetição seja uma ‘distração de si’ acoplada ao mundo, ao tempo do mundo… que não tem muito espaço nos “entres”. Uma repetição que quanto mais rápida… menos espaço há para sentir ou para notar o que se sente. No ritmo do mundo, no propósito da produção, não é possível pensar pela distração, observar o que evidencia o corpo distraído. Aqui ela aparece como dissociada da vida, mas quando ‘a vida’ é trabalho-produção.

    Sem espaço não tem Eco. E se o eco lembrara repetição, digo que já não me parece o caso.

    No trânsito da voz trocamos sentidos. A voz como som se propaga pelo espaço, no tempo. Como a borboleta, constrói o sentido de seus movimentos difusos nas relações que estabelece entre as flores que visita. Da sua vida entrelaçada com a continuidade de outras. A natureza como um todo tem mecanismos que impedem ou dificultam uma polinização que não efetue troca de material genético. A vida sabe que precisa da diversidade para continuar para além dos indivíduos, de sua transitoriedade. A diversidade é resiliente. A vida resiliente é diversa. Nesse caso, a diversidade fala sobre uma distribuição de características dentre os indivíduos, ‘soles’, que podem se manifestar como potências ou vulnerabilidades a depender da ameaça emergente. A variabilidade vai em direção a uma melhor resposta do todo. Que todo? O corpo? A casa? A cidade? Biomas? Ecossistemas?

    Lembrei que no começo do texto só queria entender melhor a etimologia de Eco. Talvez encontrar algum sentido que teria passado despercebido.

    Parece que enfim cheguei a ecologia.

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    Se você conhece o mito de Eco, talvez se lembre também do encontro entre Eco e Narciso. Ele teria rejeitado a ninfa. Inclusive encontrei uma versão que a era o contrário, a Ninfa teria rejeitado Narciso. Bem, na desilusão ante a não-correspondência ela o amaldiçoa a nunca possuir o objeto de seu amor. O que tem algo a ver com a fixação de Narciso na própria imagem. A fala e a imagem. Fala como projeção de si.

    Eu gosto da distração? Precisei repetir isso em voz alta para perceber que estava ali.

    … Não tem eco … tem eco.

    O que a distração me permite acessar sobre a vida que me atravessa…

    O que a distração me permite acessar?

    Essa semana, ressurgiu o pensamento sobre a relação entre rejeição e fixação em mim mesma… sobre como me projeto através da fala nos grupos, nas ações… na capacidade de escuta… Tem coisas com as quais concordo racionalmente, mas não desejo ecoar. Tem coisas que desejo ecoar. Mas não consigo… Tem coisas que ecoo sem perceber. Traduzo…

    Há fatos que nos escapam tamanha é nossa capacidade de absorção em relação ao processamento das experiências, das interações. Continuo sendo afetada por coisas que vivi há muitos anos atrás, ou ontem… E essa continuidade me distrai. Como se tudo ainda estivesse acontecendo em outras dimensões. Essa continuidade me distrai. As vezes a distração sou apenas eu resgatando o que perdi enquanto estava focada e não necessariamente atenta. As vezes é ressentimento… sentir, ressentir, buscar alguma diferença entre ecos de algo que já senti mas não lembro ao certo o que é… que me ‘marcou’.

    Em algumas situações percebo em mim uma espécie de tristeza em figuras de destaque que tentam, cedo demais, amarrar os sentido do que ainda estamos vivendo.

    Não sei como pensar num futuro sincero à vida, sem levar em consideração o efeito das imagens que acessamos dos animais que ganharam as ruas e outros espaços antes habitados quase exclusivamente por humanos. Que espaço é esse? Que brecha é essa que uma pandemia, associada ao nosso desejo de continuar/medo de sumir possibilitou? O que o silêncio das cidades permitiu emergir?

    … Quando vi os golfinhos nos canais de Veneza e as manchas de sardinhas na costa em Recife-Pernambuco, nas ruas em tantos lugares, Gambás, Cangurus, Veados … Um para e olha seu reflexo no vidro de uma loja em algum país no norte global. Capivaras… Macacos… pequenos macacos descansando em um imenso corrimão em Iguaçu. Eles não sabem que aquilo não é um galho, nem que a piscina do condomínio no Rio de Janeiro não é um lago.

    Não existe uma palavra para descrever o que senti vendo cada uma dessas imagens… coisas boas e ruins se juntaram… vontade de rir, de chorar, de querer sumir… de querer ficar e ver.

    Algumas respostas vem cedo demais. Outras demoram um bocado…

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    Só poder falar repetindo o que os outros dissessem foi um castigo de Hera à ninfa Eco, por um uso inadequado de sua fala. Mas Hera não imaginava que Eco contava com o ar. Ela não repete como uma máquina. Nos distrai com nossa própria voz deslocada, pelo espaço-tempo… Tomada por outros corpos. Tempo suficiente para nos desencontrarmos do que é “Eu” em cada fala e nos reencontrarmos com o que é Eu nas falas dos outros… E pensar no fluxo de Eco como um caminho entre mundos (dentro e fora) a ser percorrido. No limiar de algo. Nossa fuga em função do encontro. A distração como aquilo que abre a possibilidade de habitar a vida, viver, a partir do que o mundo registrara como vulnerabilidade, como falta ou problema.

    Logo, retorna, como eco, a imagem da borboleta, que tem sua vida associada a falta de continuidade humana (‘borboletando’) porque não cumpre os pré-requisitos estéticos que construímos na história recente do planeta sobre o que é trabalho. Não podemos controlar o fluxo produtivo da borboleta. Dizer qual a próxima flor. E quais serão as trocas realizadas.

    Nós queremos durar sob uma forma, enquanto a borboleta tem uma vida individual muito curta.

    Há muito tempo que não consigo imaginar futuro. Agora ‘não consigo’ com muitas outras pessoas.

    Talvez a fala performática de Eco tenha muito a dizer. Talvez não queremos ver o que acontece nos espaços entre o que se ‘repete’. O que encontramos no que parece fuga. O pedido de escuta daquilo que está no que não é dito dentro da linearidade da linguagem estruturada. Às vezes a vida exige o risco da distração.

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    Echo, de Richard Serra (2019 no IMS São Paulo)

    Seguimos com Gaia, que tendo assimilado as partes de Eco espalhadas pela Terra (condenada e estripada por rejeitar Pã), passou a operar o efeito sonoro da ninfa. Se a distração depende da posição do meu olhar, pergunto: De que distração Gaia nos retorna a partir de seu eco, dessa brecha aberta para nos reencontrarmos com nós mesmos, e com o efeito de nossas neuroses,… nossos medos cristalizados no mundo? Ou que distração nos possibilita para podermos retornar à vida?

    Precisei ler sobre o mito de Eco e viver atentamente minhas distrações no isolamento provocado pela pandemia de Covid-19, para compreender de algum modo a obra de Richard Serra que encontrei no Instituo Moreira Salles. Meses e acontecimentos se passaram entre um momento e outro.

  • Sentidos do tempo presente, futuro em disputa

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    @nick.hanne

    de Angelina Peralva

    Sabemos que a experiência do tempo é multidimensional. São muitas as dobras e escalas e nem caberia aqui tentar explorar todas. Mas há que dizer pelo menos que o tempo é uma construção “social”, ou coletiva, envolvendo ritmos mais ou menos independentes de nós e que se impõem a nós: a hora em que professor e alunos entram em sala de aula; a hora em que, na Zona de Contágio, nos encontramos para cons_pirar (5a feira, 19 horas, a cada duas semanas). De outro lado, há também ritmos subjetivamente construídos, conforme um espaço de escolha – a “autogestão do sentido”, segundo a sugestiva expressão de Savater. De um lado, tempo imposto, ritmos obrigatórios. De outro, tempo escolhido. O tempo nos coordena, mas ele também nos obriga. Essa coordenação não é neutra – ela é atravessada por relações de poder.

    Qual o grau de obrigação e qual o espaço de escolha? Não há resposta única para isso. Tudo depende dos contextos específicos e das condições individuais. Sempre me pareceu que a universidade ainda é um espaço relativamente privilegiado do ponto de vista do grau de liberdade que ela deixa a cada um. Relativamente, porque as condições de trabalho pioram a cada dia. Em apenas um ano letivo, no meu departamento da Universidade de Toulouse, três professoras-pesquisadoras entraram em licença médica durante vários meses por burn out. Eram jovens mães, com filhos pequenos, em começo de carreira, que não aguentaram o ritmo. Para elas, o espaço de escolha foi praticamente zerado.

    No mundo capitalista, há dois vetores principais na construção coletiva do tempo imposto: o Estado e o “mercado”. Consta que Jules Ferry, pai da ensino público francês, gostava de olhar o relógio e dizer: neste exato momento, todas as crianças da República estão entrando na escola. Essa unidade temporal manifesta, nos quatro cantos do país, era expressão direta do poder do Estado em construir, através da escola, uma sociedade nacional.

    Os mecanismos de imposição do tempo a que recorre o “mercado” têm variado consideravelmente. Em L’Établi (1978), livro que teve à época uma recepção fulgurante, Robert Linhart mostrou de que forma os operários resistiam, nas linhas de montagem, aos ritmos de trabalho impostos pelas usinas fordistas. Com o declínio do assalariamento e sua substituição crescente pelo empreendedorismo como modo de construção da dependência econômica, os mecanismos de imposição do tempo passaram a ser outros – os da uberização do trabalho e as múltiplas formas de terceirização, como mostrou Ken Loach em “Você não estava aqui”. Outros, mas não menos brutais. O tempo escolhido do personagem de Ken Loach, como o das jovens professoras-pesquisadoras do meu departamento, foi praticamente zerado.

    Apesar disso, a dialética entre tempo imposto e tempo escolhido permanece como um dos espaços através dos quais uma reflexão sobre o tempo se torna possível.

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    Hoje, no entanto, o grande arquiteto do tempo, o senhor dos relógios, já não é mais o Estado, e tampouco o capital, mas um vírus altamente contagioso e particularmente letal, que pôs em cheque os sistemas de saúde mundo afora. O virus criou a experiência do confinamento, impôs seu ritmo e suas exigências aos Estados e quebrou a economia capitalista em um grau jamais visto. Os mercados financeiros continuam a especular e há gente ganhando muito dinheiro com a especulação, como mostra o movimento das bolsas. Mas nada e ninguém é capaz de esconder as impressionantes imagens das filas de aviões estacionados em grandes aeroportos internacionais como Orly ou Barajas, o mergulho espetacular dos preços do petróleo ou os trinta milhões de desempregados nos Estados Unidos.

    O virus introduziu também uma incerteza duradoura em relação ao presente e ao futuro. Fazendo pairar sobre cada um de nós a sombra da morte, ele redefiniu nossas urgências subjetivas. Não se trata apenas, desta vez, de uma simples suspensão do tempo. Trata-se de uma incerteza radical em relação às nossas condições de existência e ao que será daqui para frente o normal das nossas vidas. Pelo menos até que uma vacina esteja disponível – isto é, daqui a um ano, um ano e meio, segundo as melhores previsões. Penso que isso nos empurrará – talvez – para comportamentos mais frugais. Somos mais facilmente levados a reconhecer a inutilidade de uma parte do que consumimos – a partir da simples consciência de que aquilo que deixamos de consumir, sem grande dificuldade, em verdade não nos faz falta; e a partir daquilo que o próprio poder público define como atividades “essenciais”, jogando todo o resto para o registro do “não essencial”.

    O confinamento tem favorecido uma volta à cozinha. Na França, falta farinha de trigo nos mercados porque as pessoas puseram-se a fazer pão. E o governo se inquieta com a sorte das 50.000 padarias artesanais desertadas pelos franceses em todo o país. Em São Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro, já não se encontram galinhas vivas para comprar porque os moradores do município (terceiro em população, no Estado) resolveram produzir seus próprios ovos. Maior frugalidade do consumo, produção doméstica de alimentos, interesse crescente pela permacultura – tudo isso aponta para uma redefinição de necessidades e uma reconfiguração dos comportamentos.

    Empurradas pelos efeitos duradouros da pandemia, pelo prolongamento do teletrabalho “sempre que possível”, inclusive em situações em que os governos falam de desconfinamento, essa redefinição de necessidades e essa reconfiguração dos comportamentos têm muita chance de se estabilizar. Tanto mais que a crise econômica será profunda e feroz. A ruptura com a “austeridade” (aquela imposta aos pobres), mola-mestra das políticas neoliberais e de seus impasses – que precederam a pandemia – foi imposta pelo virus como condição minimamente necessária para a gestão da crise ; e prosseguirá obrigatoriamente no momento da reconstrução e da busca das saídas de crise. Que governo poderá esquecer, em nome de um liberalismo agressivo, a importância dos sistemas públicos de saúde? Que coerência e que sentido poderá ter, para os fiéis das igrejas evangélicas, a ideia de prosperidade individual quando o virus nos impõe a solidariedade coletiva?

    Em Como a Democracia Chega ao Fim (2018), David Runciman cita o especialista em história antiga Walter Scheidel (2017) que afirma que, na história humana, nenhuma sociedade conseguiu corrigir a desigualdade crescente sem a intervenção da violência em grande escala. “Ela não precisa assumir a forma de uma guerra, diz Runciman. Uma revolução violenta, uma calamidade natural, uma epidemia ou uma peste podem bastar. Não precisam dar origem às formas de solidariedade social que surgem no caso das guerras de sobrevivência das nações. Basta que a experiência coletiva da violência seja suficientemente difundida para que todos sofram em relativa igualdade de condições. Uma calamidade que aniquile as propriedades e as vidas dos ricos no mesmo grau que afeta as dos mais pobres pode contribuir para o advento de uma sociedade mais igualitária. E também instalar um verdadeiro inferno na terra”…

    O futuro está em disputa. O virus não destruiu o capitalismo, mas embaralhou as cartas. Ele está nos dando uma chance de ampliarmos nossa compreensão e nossa definição do planeta que queremos.