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  • Pensar: uma necessidade contemporânea

    Artigo de Amador Fernández-Savater, publicado no blog Interferências, no periódico El Diário (Espanha), em 21/09/2018. Tradução: Vapor ao Vento.

    Agradecimentos à tradutora anônima do Vapor ao Vento!

    Imagem: Colaborabora

    A catástrofe da sociedade contemporânea é produzir um tipo de relação com o mundo: a posição de espectador e de vítima. Não se trata de oferecer novos conteúdos mas de sair dela.

    Em A Sociedade do Espetáculo, um livro que desde seu aparecimento em 1967 se converteu num clássico (ou seja, um livro sempre contemporâneo), o pensador francês Guy Debord afirma que a verdadeira catástrofe da sociedade moderna não é um acontecimento por vir, nem sequer um processo em marcha (mudança climática etc), mas um tipo de relação com o mundo: a posição de espectador, a subjetividade espectadora.

    Em que sentido? O espectador não entra em contato com o mundo, ele o vê frente a si. De um “mirante” (o espetáculo) que concentra o olhar: centraliza e virtualiza, separa da diversidade de situações concretas que compõem a vida. O espectador é incapaz de pensamento e de ação: limita-se ao juízo exterior (bem/mal), às generalidades e à espera. É uma figura do isolamento e da impotência.

    O espectador de Debord não foi superado nem mesmo pela “interação” das redes sociais: converteu-se simplesmente no “opinador” de nossos dias, que sempre tem algo a dizer sobre o que passa (na tela), porém não tem nenhuma capacidade de mudar nada.

    O espectador é uma categoria abstrata não alguém concreto. É por exemplo qualquer um que se relacione com o mundo opinando sobre os temas midiáticos, sem se dar a si mesmo nenhum meio adequado para pensar ou atuar a respeito. Qualquer de nós pode se colocar na posição de espectador e também qualquer um pode sair. Isso é o que nos interessa agora: Como sair?

     

    O espectador assombrado

    Acaba de aparecer na Argentina La brujería capitalista (Hekht libros), um livro da filósofa Isabelle Stengers e do editor Philippe Pignarre que nos permite avançar nessas questões. Inclusive por caminhos diferentes dos de Guy Debord. Que quero dizer?

    Para Debord, o espectador é um ser enganado e manipulado. Ele explica isso muito claramente, sobretudo, em seus Comentários sobre a sociedade do espetáculo, o livro que escreveu em 1988. Stengers e Pignarre, deslocam essa questão: não se trata de mentiras ou ilusões, mas de “feitiçaria” (1). Ou seja, o problema é que nossa capacidade de atenção está capturada e nossa potencia de pensamento está bloqueada. Portanto, a emancipação não passa por ter ou dizer a Verdade, mas por gerar “contra-feitiçaria”: transformações concretas da atenção, da percepção e da sensibilidade.

    Vejamos isso mais devagar. O espectador é pego uma e outra vez no que os autores chamam “alternativas infernais”. Por exemplo: ou bem levantam cercas altas e pontiagudas ou se produzirá uma invasão migrante. Ou bem se baixam os salários e desmantelam os direitos sociais ou as empresas marcharão para outro lugar com o trabalho. Isolado em frente a sua tela, o espectador é refém da alternativa entre dois males. Como escapar?

    Não se trata de “crítica”. De fato, o espectador pode ser muito crítico, assistir por exemplo indignadíssimo – como todos nós hoje – ao espetáculo da corrupção, gozar vendo rodar as cabeças dos poderosos etc. Porém isso não muda nada. Seguimos na posição espectadora: vítimas da situação, reduzidos ao juízo moral, às generalidades (“são todos corruptos”, a “culpa é do sistema”) e à espera de que alguém “solucione” o problema.

    Saímos da posição espectadora quando nos tornamos capazes de pensar e atuar. E nos tornamos capazes de pensar e atuar produzindo o que os autores chamam um “agarramento” ou um “ponto de apoio”. Ou seja, um espaço de pensamento e ação a partir de um problema concreto. Nesse momento já não estamos diante da tela, opinando e à espera, mas envolvidos numa “situação de luta”. Tanto hoje quanto ontem, são essas situações de luta que criam novos enfoques, novos possíveis e põem a sociedade em movimento.

    Sem pensamento nem criação é impossível que haja alguma mudança social substancial e o mal (a corrupção ou qualquer outro) reproduzirá seus efeitos mais tarde ou mais cedo. Nesse sentido, enquanto bloqueia o pensamento e a criação, a sociedade do espetáculo é uma sociedade presa, um caracol infinito dos mesmos problemas.

     

    Situação de luta

    Não se abre uma situação de luta porque se sabe, mas precisamente para saber. Não se cria uma situação de luta porque tomamos consciência ou finalmente aberto os olhos, mas para pensar e abrir os olhos em companhia. A luta é uma aprendizagem, uma transformação da atenção, da percepção e da sensibilidade. O mais intenso, o mais potente.

    Os autores apresentam vários exemplos: por exemplo, a luta dos medicamentos anti-AIDS. Em 2001, 39 empresas farmacêuticas mundiais, sustentadas por suas associações profissionais, abrem processo contra o governo sul-africano que garantia a disponibilidade a custo moderado de medicamentos para a AIDS. A alternativa infernal então dizia: ou tem patentes e preços altos ou é o fim da pesquisa. O progresso tem um custo e um custo.

    Porém as associações de pacientes de AIDS saem de seu papel de vítimas e politizam a questão que lhes afeta: pesquisa, disponibilidade dos medicamentos, direitos dos enfermos, relação com os médicos. Pensam, criam, atuam. Suscitam novas conexões com associações humanitárias, outros afetados, empresas farmacêuticas sensíveis, Estados favoráveis como o Brasil etc. Porque o mapa de uma situação de luta (os amigos e os inimigos) nunca está claro antes que se abra, senão que a luta o redesenhe.  Não há “sujeito político” a priori, a situação de luta o cria.

    A alternativa infernal perde força e os industriais acabam retirando sua demanda. Não porque os afetados lhes tenham oposto bons argumentos críticos, mas porque criaram nova realidade: novas legitimidades, maneiras de ver, sensibilidades, alianças. Numa situação de luta, nos dizem os autores, os diagnósticos críticos são “pragmáticos”, ou seja, inseparáveis da questão das estratégias e dos meios adequados. É definitivo, só se sai das alternativas infernais “pelo meio”: através de situações concretas, por meio de práticas, desde a vida.

    Podemos pensar o mesmo sentido das lutas dos últimos anos: da PAH até o Eu Sim Saúde Universal, passando pelos movimentos de aposentados e de mulheres. Uma situação de luta é o “intelectual” mais potente: não só descreve a realidade, como a cria, suscitando novas conexões, problematizando novos objetos, inventando novos enunciados. De fato, os intelectuais-portavozes (novos e velhos) surgem, muitas vezes, na ausência de situações de luta, para representar aos que não pensam.

    Sem situações de luta não há pensamento. Sem pensamento não há criação. Sem criação somos pegos pelas alternativas infernais e espetaculares. A representação se separa da experiência social. Só ficam os juízos morais, as generalidades e a espera. O zunzum cotidiano do espetáculo midiático e político, assim como nossas redes sociais.

     

    Que as pessoas pensem

    Hoje vemos crescer, um pouco por todas as partes, movimentos ultraconservadores. Como combate-los? A subjetividade que todos estes movimentos interpelam é a subjetividade espectadora e vitimista: “o povo sofrido”. A vítima critica, porém não empreende um processo de mudança; considera a algum Outro culpado de todos os seus males; delega suas potencias a “salvadores” em troca de segurança, ordem, proteção.

    Escutamos hoje em dia as pessoas de esquerda dizer: disputemos o vitimismo à direita. Façamos como Trump ou Salvini, porém com outros conteúdos, mais “sociais”. É uma nova alternativa infernal: fazer como a direita para que a direita não cresça. Um modo de reproduzir a catástrofe que, como dizíamos a princípio, está inscrita na própria relação espectadora e vitimizadora com o mundo.

    Em 1984, a uma pergunta sobre o que é a esquerda, o filósofo francês Gilles Deleuze respondia: “a esquerda necessita que as pessoas pensem”. A estas alturas me parece a única definição válida e a única saída possível. Não disputar com a direita a gestão do ressentimento, do medo e do desejo de ordem, mas sair da posição de vítimas. Que as pessoas pensem e atuem, como se fez durante o 15M, a única barreira contra a direitização que funcionou durante anos neste país.

    Deixar de repetir que “as pessoas” não sabem, que as pessoas não podem, que não têm tempo nem luzes para pensar ou atuar, que não podem aprender ou produzir experiências novas, que só podem delegar e que a única discussão possível – entre os “espertos”, claro, entre os que não são “as pessoas” – é sobre que modos de representação são melhores que outros. Há muita direita na esquerda.

    Que as pessoas pensem: não convencer ou seduzir as pessoas, consideradas como “objeto” de nossas pedagogias e nossas estratégias. Abrir processos e espaços onde apresentar juntos nossos próprios problemas, tecer alianças inesperadas, criar novos saberes. Aprender a ver o mundo por nós mesmos, ser os protagonistas de nosso próprio processo de aprendizagem.

    Pensar é o único contra-feitiço possível. Implica ir mais além do que se sabe e começa por assumir um “não saber”, arriscar-se a duvidar ou vacilar. É a arte de liberar a atenção de sua captura e volta-la para a própria experiência. Por no corpo, precisamente o que falta à posição de espectador, de tertuliano, de comentarista da política, de polemista nas redes sociais.

    Seguramente necessitamos uma nova poética política. Por exemplo, uma palavra nova para falar de luta, que associamos muito rapidamente à mobilização, à agitação ativista, a um processo separado da vida etc. Reinventar o que é lutar. Na realidade uma luta é um presente que nos damos: a oportunidade de mudar, de nos transformar ao mesmo tempo que transformamos a realidade, de mudar de pele. Não há muitas.

    Uma situação de luta não é nenhum caminho de salvação. Assim só a vê o espectador, que se relaciona com tudo de fora. De dentro, é uma trama infinitamente frágil, muito difícil de sustentar e avivar. Mas também é esse presente. A ocasião de aprender, junto a outros, de que está feito o mundo que habitamos, de estendê-lo e nos estender, de prova-lo e nos provar. Para não viver e morrer idiotas, ou seja, como espectadores.

    (1) x tradutxr do texto do Amador optou por traduzir \”feitiço\” por \”fascínio\”. Alteramos aqui para o conceito originalmente adotado por Stengers e Pignarre, \”feitiço\” e \”feitiçaria\”.

  • Não existe ‘outro mundo para se construir’

    Entrevista com Alana Moraes

    Por: Patricia Fachin | 24 Outubro 2017

     

    O pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin e da geração do entre guerras é oportuno para refletir sobre o atual momento político do Brasil e sobre a crise da esquerda, porque essa geração, embora tenha sido “atormentada pela emergência do fascismo”, “se deu conta de que a ideia de um tempo histórico acumulativo que nos guiaria sempre ao ‘progresso’ não passava de uma ficção”, diz a antropóloga Alana Moraes à IHU On-Line. Segundo ela, Benjamin pensa “em um modelo de história atravessado por tempos aleatórios e que, por isso mesmo, está aberta a todo tempo a uma erupção imprevisível do novo. Essa é a aposta otimista de Benjamin que precisamos resgatar: fomos derrotados, mas está tudo outra vez em aberto”, sugere.

    Ao analisar a situação da esquerda brasileira, Alana é enfática: “Não acredito nesse clamor atual por uma ‘unidade da esquerda’” e nem que “um unidade ‘programática’ seja possível nem desejável”. Ao contrário, expõe, “penso muito mais em alianças e essas alianças têm mais chance de acontecer em torno de uma causa situada, de um problema comum. Falo desde a experiências das ocupações urbanas. Elas nos colocam problemas muito concretos: como vamos cozinhar para tantas pessoas, como vamos fazer um banheiro, ter energia elétrica, cuidar das relações, dos sofrimentos uns dos outros? Acho que essa conjuntura de precariedades generalizadas vai nos impor, querendo ou não, esse desafio. Como vamos manter um posto de saúde funcionando? Como vamos garantir o funcionamento das escolas no bairro que estão ficando sem merenda, sem materiais básicos? O ‘diálogo’ vai ter que se dar no terreno da prática, da nossa sobrevivência”.

    Alana Moraes também aposta num “trabalho intenso de pesquisa para entender as ‘novidades’ de organização e resistência do ponto de vista das lutas”, porque “só as lutas, o movimento, a experimentação é que vão nos restituir a potência e nos fazer escapar desse lugar de espectadores ou de comentadores da conjuntura”, afirma. Entretanto, adverte, “uma pesquisa-luta só pode ser feita com o corpo na rua. Não podemos desperdiçar nossas experiências de auto-organização e resistência, por menores que forem elas, não podemos deixar de pensar sobre elas e tentar intensificar suas possibilidades. Precisamos voltar a estar alguns passos à frente. O comitê invisível fala de uma ‘inteligência partilhada da situação’. Eu acho esse um bom caminho para voltarmos a nos organizar de outras formas. O lugar da ‘pesquisa-luta’ é um lugar interessante, ele dessacraliza, por um lado, a ideia de um ‘saber autorizado’ e especializado e, por outro lado, afirma a importância de pensar com a luta e não para ela”.

    Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, a antropóloga também enfatiza que “a proliferação recente de coletivos, movimentos, e novas lutas no Brasil precisavam se encontrar mais. Estamos tendo um problema muito básico que tem a ver com a ausência de espaços de encontro. (…) O movimento Parque Augusta está impedindo há 4 anos a construção de grandes empreendimentos imobiliários em uma área verde da cidade. Temos centenas de coletivos periféricos que também estão discutindo o território a partir de outras chaves: militarização, racismo de Estado, produzindo novas linguagens”. Diante desse cenário, frisa, “difícil convencer alguém que vivemos em uma ‘crise das lutas’. Talvez a gente viva numa crise do encontro”.

    \"\"\"\"Alana | Foto: Paolo Colosso

    Alana Moraes é graduada em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestra em Sociologia e Antropologia pela mesma universidade, e atualmente cursa doutorado no Programa em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ. É feminista e integrante do coletivo Urucum pesquisa-luta.

    Alana Moraes estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU na próxima quarta-feira, 25-10-2017, participando do 2º Ciclo de Estudos A reinvenção política no Brasil contemporâneo. Limites e perspectivas, onde ministrará a palestra Movimentos tradicionais e movimentos autonomistas. Possibilidades à reinvenção da política e da esquerda no Brasil, das 16h às 17h15min.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – Há alguma novidade na cena política desde a nossa última entrevista, em abril?

    Alana Moraes – Estamos todos compartilhando uma sensação de viver em um tempo acelerado, cheio de labirintos. Eu tenho gostado de pensar com Walter Benjamin e com toda essa geração do entre guerras que levou muito a sério o problema do tempo histórico, as possibilidades de transformação, a importância de uma certa virada estética e de sensibilidades para sobreviver em um mundo de catástrofes. Foi uma geração também muito atormentada pela emergência do fascismo e que se deu conta de que a ideia de um tempo histórico acumulativo que nos guiaria sempre ao \”progresso\” não passava de uma ficção. Benjamin começa a pensar, falando de forma simplificada, em um modelo de história atravessado por tempos aleatórios e que, por isso mesmo, está aberta a todo tempo a uma erupção imprevisível do novo. Essa é a aposta otimista de Benjamin que precisamos resgatar: fomos derrotados, mas está tudo outra vez em aberto. Mas é preciso que tenhamos faro histórico também, voltar a exercer nossa sensibilidade. Nesse fluxo contínuo de informações, nossas intuições ficam anestesiadas.

    Não nos faltam \”novidades\”. Do ponto de vista do poder, o governo e o congresso nunca estiveram tão autonomizados da vontade popular. Isso é uma diferença com o fascismo, aliás, que ainda se esforçava para fabricar seu populismo. É o que o Trump tenta resgatar nos EUA. Mas aqui no Brasil, as reformas trabalhistas, da previdência, as movimentações para blindar algumas figuras acusadas de corrupção, as imagens de malas, as escutas divulgadas que envolvem diretamente Michel Temer, nada é suficientemente forte para desestabilizar o governo. Esse é o grande golpe da governamentalidade neoliberal: nos tornar meros espectadores dos jogos de poder, suprimir nossa potência de auto-organização. É a gestão da crise permanente como técnica de governo. Por isso precisamos de um trabalho intenso de pesquisa agora para entender as \”novidades\” de organização e resistência do ponto de vista das lutas. Só as lutas, o movimento, a experimentação é que vão nos restituir a potência e nos fazer escapar desse lugar de espectadores ou de comentadores da conjuntura. Uma pesquisa-luta só pode ser feita com o corpo na rua. Não podemos desperdiçar nossas experiências de auto-organização e resistência, por menores que forem elas, não podemos deixar de pensar sobre elas e tentar intensificar suas possibilidades. Precisamos voltar a estar alguns passos à frente. O comitê invisível fala de uma \”inteligência partilhada da situação\”. Eu acho esse um bom caminho para voltarmos a nos organizar de outras formas. O lugar da \”pesquisa-luta\” é um lugar interessante, ele dessacraliza, por um lado, a ideia de um \”saber autorizado\” e especializado e, por outro lado, afirma a importância de pensar com a luta e não para ela.

    IHU On-Line – A esquerda já dá sinais de recuperar a melancolia?

    Alana Moraes – Estamos em plena reconfiguração do que entendemos por \”esquerda\”. Eu acho que as respostas interessantes cada vez menos virão da esquerda partidária, por exemplo. A esquerda partidária, mesmo em crise, continua pensando em termos de monopólio, quer reivindicar uma certa autenticidade: \”nós sabemos o que é ser organizado, eles não\”, \”militância de internet não é militância\”, \”esse feminismo não é suficientemente anti-capitalista\”, \”o movimento negro não é suficientemente anti-capitalista\”. Não entendo bem esse movimento de um time que está perdendo e se esforça para liquidar qualquer perspectiva de reforço, renovação.

    Por outro lado, tem a energia daqueles e daquelas que já estão experimentando. Penso que precisamos recuperar a ideia de \”formas de vida\” para a superação da melancolia. Isso quer dizer que não existe um \”outro mundo para se construir\”, existem outras relações que vamos produzir nesse mesmo mundo, outros modos de vida. Essa constatação nos exige estar presentes, nos exige pensar em como vamos escapar das armadilhas neoliberais para conseguirmos criar tempos de experimentação e nos implicar em uma nova coreografia que tem menos a ver com \”sujeitos políticos\” prontos, mas com a feitura de nós mesmos em interdependência. Henrique Parra vem falando sobre \”Política do Protótipo\”. Cito ele: \”A realização de um protótipo envolve, primeiramente, a decisão de substituir a adesão a um projeto idealizado e acabado de um modo de vida ou sociedade futura, pela decisão de experimentar construir no aqui-agora, sempre parcialmente, aquela mudança que se deseja\”. Isso tudo nos exige pensar e agir de maneira situada.

    Os homens brancos de esquerda, se quiserem sair desse lugar melancólico do poder perdido, precisam se situar, \”construir o aqui e agora\”, fazer um corpo que não seja um corpo que se pensa \”neutro\”, vão precisar fazer uma política do cotidiano, do cuidado, da reprodução da vida

    Toda confusão e escândalo feito pelos homens brancos da esquerda em relação ao “lugar de fala”, um pouco, tem a ver com a dificuldade que eles possuem de pensar a partir do corpo. O lugar de fala pode ser uma postura ético-política de assumirmos um determinado lugar pelo qual somos afetados, atravessados e interpelados pelo mundo que habitamos. Não é um lugar de \”substância\” ou \”identidade\”, mas é um lugar pelo qual nosso corpo sente e reage ao mundo. A denúncia do racismo, nesse sentido, não se constitui como um espaço de \”autoridade de fala\” – como costumam acusá-lo, mas é um lugar onde corpos são afetados, mortos, expulsos. Os homens brancos de esquerda, se quiserem sair desse lugar melancólico do poder perdido, precisam se situar, \”construir o aqui e agora\”, fazer um corpo que não seja um corpo que se pensa \”neutro\”, vão precisar fazer uma política do cotidiano, do cuidado, da reprodução da vida. E para isso precisam abandonar essa ficção de vanguarda iluminada.

    IHU On-Line – Depois de uma onda de manifestações no início do ano, não se viu mais grandes manifestações no país. Como você explica a falta de manifestações na atual conjuntura? Por que elas diminuíram nos últimos meses?

    Alana Moraes – Esse é justamente o poder atuando em sua forma drástica de despotencialização dos corpos. De certa forma, o Brasil talvez nunca tenha vivido um período tão intenso de grandes mobilizações. As pessoas estão indo para a rua desde 2013. O golpismo foi sagaz de produzir uma leitura pacificada dos conflitos sociais: de um lado as manifestações dos verde-amarelos, de outro as manifestações dos vermelhos. \”Nós vamos fazer um Brasil de todos\”, eles dizem. Esse discurso tem sido usado muito bem pelo Dória: \”Vamos entregar São Paulo para os paulistanos\”. Precisamos saber recuperar o conflito a nosso favor, não negá-lo. O lulismo foi também uma boa pedagogia de domesticação dos conflitos. Como elaborar uma nova radicalidade que não seja aquela óbvia de uma vanguarda que se pensa sempre à frente e dirigente dos processos de luta? Esse é o desafio.

    Os rapazes do Movimento Brasil Livre – MBL estão restituindo a potência de alguns corpos atingidos pela crise da masculinidade, pela perda de alguns privilégios. Eles restituem a potência pela aniquilação do outro, pela misoginia que promete o poder da virilidade perdida. São machinhos histéricos em busca de satisfação por uma dominação que eles nunca tiveram. Citando outra vez o comitê invisível, eles terminam o livro \”Aos nossos amigos\” afirmando que \”tornar-se revolucionário é se entregar a uma felicidade difícil, mas imediata\”. A nossa nova radicalidade está aí, eu penso. Precisamos entender outras formas de restituir nossa potência que não seja via grandes manifestações. Eu encontro essa felicidade quando vou em uma batalha de Slam na rua, por exemplo, ou numa performance dos secundaristas que ocuparam suas escolas e hoje retomam a frase da Emma Goldman \”não me convide para uma revolução em que eu não possa dançar\”, quando estou compartilhando uma refeição numa ocupação de sem-tetos.

    Parte da esquerda mais tradicional agora inventou uma cruzada contra o que eles chamam de \”cirandeiros\”. O que são os cirandeiros? Seriam corpos felizes, em festa, celebrando a importância de estarmos juntos, criando novas poéticas de resistência? Eu fico com a felicidade. Quem aposta na mobilização do ressentimento é o fascismo, nossa aposta tem que ser justamente oposta. Os povos indígenas e muitos povos da África sempre souberam da potência da festa como forma de permanecermos em guerra. \”O corpo que dança e luta é campo de batalha\” escreveu a Julia Ruiz em um texto do Urucum.

    IHU On-Line – Tem havido um diálogo entre velhos e novos movimentos sociais? Sim ou não e por quê? Quais diria que são as vias possíveis de diálogos entre eles e quais são as dificuldades de estabelecer esse diálogo?

    Alana Moraes – Acredito que tenham algumas brechas abertas e interessantes e elas estão sendo feitas no nível do território. Compartilhar um território em comum e pensar a sobrevivência dele, pensar em como vamos nos implicar com um funcionamento de um mesmo espaço, como vamos produzir juntos um modo de vida, acho que esse é o terreno possível de diálogo. Não acredito nesse clamor atual por uma \”unidade da esquerda\”. Não acredito que uma unidade \”programática\” seja possível nem desejável. Eu penso muito mais em alianças e essas alianças têm mais chance de acontecer em torno de uma causa situada, de um problema comum. Falo desde a experiências das ocupações urbanas. Elas nos colocam problemas muito concretos: como vamos cozinhar para tantas pessoas, como vamos fazer um banheiro, ter energia elétrica, cuidar das relações, dos sofrimentos uns dos outros? Acho que essa conjuntura de precariedades generalizadas vai nos impor, querendo ou não, esse desafio. Como vamos manter um posto de saúde funcionando? Como vamos garantir o funcionamento das escolas no bairro que estão ficando sem merenda, sem materiais básicos? O \”diálogo\” vai ter que se dar no terreno da prática, da nossa sobrevivência. Temos que retomar a capacidade de produzir nossas infraestruturas e não sermos mais dominados pelos \”modos de fazer\” do capital. Isso vale pra internet ou para a gestão dos nossos bairros.

    IHU On-Line – Nos últimos anos, foi feita uma crítica ao PT e aos próprios movimentos sociais que ficaram subordinados ao partido e foram aparelhados. Diante disso, como é possível reinventar a política e os movimentos sociais a partir de agora? De que modo os movimentos autonomistas poderiam contribuir para reconstruir a esquerda, por exemplo, e que tipo de relação deveria existir entre os movimentos e um novo possível governo de esquerda?

    Alana Moraes – Não gosto do termo \”aparelhados\”. Os movimentos sociais fizeram uma aposta em um projeto político e coletivo, isso é legítimo. Esse projeto se esgotou e foi derrotado. Mas também teve sucesso em algumas apostas, como a ampliação drástica do ensino superior, para ficar num exemplo emblemático. Abalou de algum modo a estrutura de classes no Brasil – sem isso, o golpe não teria sentido algum. Mas precisamos saber extrair conhecimento desse esgotamento. Não dá para o PT continuar achando que estava fazendo uma revolução. Os movimentos e forças políticas que estiveram dentro desse projeto, dentro dos governos, poderiam fazer um esforço teórico e político agora de abrir as engrenagens internas do sistema, de apontar as contradições. Ninguém entende melhor como as classes dominantes funcionam como o PT. Precisamos entender como o sistema político se manteve todo esse tempo com Joesley e Odebrecht dando as cartas. No fundo, o que Junho de 2013, entre outras coisas, exigia do PT era isto: se o PT era refém das regras do jogo porque não estar do lado de quem quer destruí-las?

    Por outro lado, a proliferação recente de coletivos, movimentos, e novas lutas no Brasil precisavam se encontrar mais. Estamos tendo um problema muito básico que tem a ver com a ausência de espaços de encontro. Essa é a principal vitória do neoliberalismo, na minha opinião. Só para ficar com o exemplo de São Paulo. Aqui hoje temos coletivos que estão atuando contra as apropriações privadas dos espaços da cidade. O movimento Parque Augusta está impedindo há 4 anos a construção de grandes empreendimentos imobiliários em uma área verde da cidade. Temos centenas de coletivos periféricos que também estão discutindo o território a partir de outras chaves: militarização, racismo de Estado, produzindo novas linguagens.

    Coletivos que estão na cracolândia denunciando o novo higienismo urbano e tendo que dar conta do desmonte de toda uma rede de assistência. Temos o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST sustentando ocupações nas periferias, coletivos de arte, midialivrismo, segurança e ativismo nas redes, grupos lutando contra monopólios de todo o tipo, rede de advogados ativistas, redes de agroecologia, temos a experiência do MPL no debate sobre mobilidade urbana, clínicas públicas de psicanálise, uma aldeia indígena lutando pela sua sobrevivência, um quilombo urbano.

    Difícil convencer alguém que vivemos em uma \”crise das lutas\”. Talvez a gente viva numa crise do encontro. Nos organizar não tem a ver com estarmos em um partido, mas com a possibilidade de enxergarmos linhas de conexão entre nossas experiências de luta, de sabermos costurar nossos lugares, estarmos abertos a compreender outras situações. \”Pensar outramente\” – recuperar o projeto antropofágico de pensar com o outro, de se interessar profundamente por aquilo que não é seu e estar aberto a esses atravessamentos.

    IHU On-Line – Quais são as pautas que devem motivar os novos coletivos e movimentos à esquerda no país?

    Alana Moraes – São muitas, não dá para eleger em uma hierarquia de importância. Algumas questões me tocam mais, acho que elas trazem caminhos interessantes. Por exemplo: como vamos viver juntos? Como vamos retomar a possibilidade de, em alguma escala, organizar nossas próprias vidas? Nós, mulheres, nunca deixamos de pensar essa questão. Sempre estivemos vinculadas, querendo ou não, a esse espaço de reprodução básica da vida. Vamos precisar deslocar o tema do \”cuidado\” para o centro do debate político. Cuidado com as relações, cuidado com os nossos corpos, cuidado com as experiências das nossas lutas. Junto a isso, acho que temos que levar mais a sério a noção de tecnologia.

    A Isabelle Stengers propõe a noção de “tecnologia” em contraposição à ideia de “verdade”. É uma distinção ética baseada no postulado de que a “tecnologia” possui um “senso de responsabilidade” do qual a “verdade” sempre escapa. A verdade dos programas, a verdade de uma esquerda que se pensa pura. Ou seja, precisamos elaborar e organizar nossas tecnologias de fazer mundos, de possibilitar modos de vida dissidentes e é isso que vai nos implicar, criar pertencimentos. É o problema da infraestrutura, não podemos deixá-lo escapar. Os governantes querem nos convencer que eles têm o monopólio técnico e especializado de resolver nossos problemas. Por fim, tem o tema urgente da militarização, da repressão, da polícia. Os 18 jovens que estão sendo agora criminalizados por terem feito uma reunião. Intervenções militares em Vitória, no Rio de Janeiro. Isso tudo é muito grave e precisamos nos proteger. Isso nos exige uma contra cartografia de como age o poder hoje, os monopólios, as forças policiais. Não podemos ser ingênuos.

    IHU On-Line – Qual tem sido o impacto político dos últimos acontecimentos ao PT, como o depoimento do Palocci, a reação do PT em relação ao depoimento e a carta dele enviada ao partido?

    Alana Moraes – Eu acho que o PT está muito anestesiado. É quase um choque pós-traumático, não consegue produzir muitas reações. Não vejo muita discussão interna no partido, o Lula hoje é a única coisa que mantém o PT. Se o Lula não consegue manter a candidatura, não sei como o PT conseguirá se manter como partido.

    IHU On-Line – Recentemente uma pesquisa realizada pelo Datafolha indicou que mais de 60% dos possíveis eleitores de Bolsonaro numa futura campanha presidencial, seriam jovens. Como você lê esse tipo de resultado?

    Alana Moraes – Acho que essa não é a melhor leitura da pesquisa. O Hugo Albuquerque chamou a atenção para essa sutileza. Quem lidera a eleição presidencial entre os jovens na pesquisa do Datafolha é o Lula. Ainda que o Bolsonaro tenha um eleitorado mais jovem do que a média, ele não é o líder nesse segmento. Penso, como o Hugo, que a melhor chave de leitura dessa pesquisa continua sendo a de classe. O possível eleitorado do Bolsonaro é formado por pessoas ricas e com ensino superior. Sobre pesquisas geracionais, eu fico com aquelas que analisaram as manifestações de Junho de 2013 em comparação com as manifestações pelo impeachment de 2015: aí o corte etário é brutal. Junho foi predominantemente jovem enquanto as manifestações pelo impeachment foram muito velhas e brancas. Acho essa cisão etária mais interessante para pensarmos novos caminhos.

    IHU On-Line – Que alternativas à esquerda vislumbra para as próximas eleições de 2018? Hoje especula-se em torno dos nomes de Lula, Ciro Gomes, Guilherme Boulos. Qual seria o significado dessas possíveis eleições para a esquerda?

    Alana Moraes – Está tudo ainda em aberto. A candidatura do Lula está ainda muito ameaçada pelas forças do golpe de impugnação. O Lula é o nome mais forte, sem dúvida, para enfrentar a direita ainda que o problema de uma recomposição de lulismo seja de difícil resolução. Lula vai ser a figura de reconciliação do sistema ou vai assumir um lugar de ruptura? É possível refazer a aliança de classes do lulismo? Lula vai ser capaz de ser afetado por uma nova geração politica que se expressou em junho e que deseja uma outra radicalidade nos modos de fazer política para além do jogo da \”participação\” definido pelo PT? Eu tenho dúvidas.

    Mas o outro lado está também ainda muito confuso, me parece que eles ainda não têm uma estratégia comum. O Bolsonaro virou um monstro que parte da direita não consegue controlar, inclusive os poderes midiáticos. Não estamos levando em conta que parte da direita vai tentar, a todo custo, tirar o Bolsonaro do jogo. O PSDB vai entrar em uma disputa interna explosiva se o Alckmin não conseguir controlar o Dória, e o Aécio já começou a ser rifado também. O MBL está se colocando como um ator que pode operar uma certa reconfiguração com Dória, agronegócio e evangélicos, mas acho que eles não têm cacife para isso. Não se organiza caciques mafiosos, uma casta política completamente integrada ao sistema com gritos histéricos. O MBL vai ter que oferecer algum plano mais seguro, garantias. Enfim, o cenário também não está simples para eles.

    Tem alguns atores e atrizes do nosso lado interessantes, que podem entrar nesse jogo na \”erupção imprevisível do novo\”, como dizia Benjamin: O Guilherme Boulos do MTST e a Áurea Caroline, vereadora de Belo Horizonte. Imagina uma mulher negra e feminista em um debate contra o Bolsonaro! Mas acho que temos que seguir em 2017 e pensar uma temporalidade mais de médio prazo. O estrago foi grande, vamos ter que reconstruir toda uma existência e não podemos ser engolidos pela conjuntura eleitoral – precisamos pensar apesar dela. Eu acredito mais no programa em curso das lutas e das experimentações que já acontecem do que na expectativa eleitoral de 2018.

    É importante voltar a pensar nas eleições como uma expressão do incontornável de um processo em curso, de um acúmulo de lutas e proposições. Por isso é importante buscarmos os interstícios, os lugares de respiro. Vai ser muito importante tentar criar um novo campo de conflitualidade que escape do enquadramento da polarização desejada pela direita e fabricada pelo antagonismo petismo versus antipetismo. Ao mesmo tempo, não acredito em apelos republicanos à uma esfera pública na qual possamos pacificar o conflito. O conflito está instaurado e a luta de classes nos exige uma coreografia mais intensa, apaixonada. Se o fascismo tem conseguido mobilizar as paixões para um projeto autoritário de dominação, nossa matéria prima terá que ser de natureza radicalmente diferente: uma paixão de liberdade. 2018 também é o ano em que vamos comemorar 50 anos de 68.

  • Marco Aurélio Garcia e a Oposição Metalúrgica de São Paulo

    de: Sebastião Neto

    O Marco Aurélio que conhecemos

    Para Pereirinha[1], Pedro Pereira Nascimento, que também se foi hoje e não pode ficar para hora extra

     

    1979, a ressaca da Greve dos Metalúrgicos da capital, aquela em que mataram o companheiro Santo Dias e prenderam no domingo a noite mais de 300 lideranças e ativistas. A mobilização não foi impedida. A Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSM-SP) tinha faro de classe, percebeu a temperatura nas fábricas, obrigou a diretoria a alugar subsedes em 10 dias, organizou a greve a partir de COMANDOS.

    Elegeu o Pereirinha na massa como coordenador das negociações. A greve foi histórica. Pouca gente leva em conta essa greve e a de 78 na capital quando fala em novo sindicalismo. Talvez porque ainda não enxergaram o que se tecia dentro das fábricas na escuridão da ditadura,talvez ainda ofuscados pelos holofotes da abertura democrática. Organizar os GRUPOS DE FÁBRICA, fazer formação e levar a reflexão (ver – julgar – agir – e viva Rossi e tod@s da JOC), fazer ver que os pelegos eram agentes, mas o problema era a ESTRUTURA SINDICAL.
    Se escondendo de diretores do Sindicato que eram colaboradores do DOPS da ditadura[2]; conquistando CIPAs, mudando de emprego, de região. Foi uma grande greve e o cortejo com o corpo de Santo Dias emocionou e envolveu a cidade. A classe operária de 1917, das greves dos anos 50 e 60 mostraram à cidade a sua cara. Na ressaca dessa greve, a gente contabilizava muito mais de 100 demitidos. Tínhamos a lista dos militantes, região por região. Chutando, eram perto de 200 identificados. Fora os milhares de grevistas que foram punidos.

    Em 78, o Brasil tinha conhecido a greve das \”Comissões de Fábrica\”. Foram mais de 200 Comissões que brotaram. Como a Oposição Metalúrgica puxou duas greves tendo contra a diretoria do Sindicato? Todo mundo queria saber quem era esse movimento. Em 78, as eleições foram fraudadas, anuladas e o ministro do Trabalho simplesmente deu posse aos pelegos. Anízio Batista, nosso candidato a presidente, volta ao trabalho paciente de organizar pela base. Lembrem: Santo era o candidato a vice na chapa de 78 (ver o filme Braços Cruzados, Máquinas Paradas, do Robert Gervitz. E rever!).

    Pois bem, nesse cenário de terra arrasada, os ânimos continuavam altos. As Associações de Trabalhadores (futuras sedes das CUTs zonais) lotadas de piqueteiros desempregados e de trabalhadores das fábricas ganhos para a luta. Decidimos fazer um curso de formação profissional e com muita formação política. Boa parte desses metalúrgicos tinham baixa qualificação e uma luminosa vontade de liquidar a pelegada e fazer uma revolução. As mulheres não tinham acesso a nenhuma ocupação qualificada. As nossas militantes foram ter formação profissional dada por nós mesmos. Uma mulher conseguir ser reconhecida na fábrica como trabalhadora qualificada era uma guerra inglória.

    Procuramos quem podia ajudar. A Maria Nilde Mascellani, através da RENOV, conseguiu um dinheiro para comida e transporte e nos repassou sem frescuras, com autonomia. E se dispôs a coordenar o curso para os desempregados.

    O local foi o atual CPA -Centro de Profissionalização de Adolescentes na Ragueb Chohfi, em São Mateus, que tinha bancadas, tornos, uma fresadora, uma plaina e espaço pra aulas e reuniões. E estava sem atividades durante o dia. Ponto pra gente.

    O padre Hugo cedeu às oficinas, um pouco ressabiado. A OSM-SP era um puta movimento, mas eram uns cabeças duras….O sangue irlandês dele se irmanou na rebeldia. Conseguimos o divisor da fresadora no Jardim Ângela (Jd.Thomaz) de outro curso que estava desativado… Mota e eu demos todas as garantias e explicações e, claro, devolvemos alguns cursos depois. A Maria Nilde era a nossa \”diretora\”. Fazia a liga. A equipe era Kopcak, Scapi, Maria Antonina, Paulo de Tarso Venceslau; dos metalúrgicos, Vito e Neto. O craque da mecânica nas oficinas era o Mota. E a gente mesmo dava as aulas profissionalizantes.

    Tudo muito coletivo, dinheiro contadinho, miserê danado, mas todo mundo comia e tinha condução. Gente de todas regiões. Critérios de admissão discutidos e votados naquela nossa cultura assembleária e conselhista. Nos acusavam, santa ignorância, de anarcosindicalistas (!!!). Visto hoje, é um elogio.

    Sabem a história do encontro do pensamento elaborado com os proletários? O Marco Aurélio tem a ver com isso.
    Professores? Além da Nilde, que parecia uma fada que arrumava soluções e puxava a orelha da nossa rudeza a cada dia, mais esses da coordenação e os catedráticos, por assim dizer, foram Éder Sader e Marco Aurélio Garcia e, de quebra, o professor visitante Chico de Oliveira. Chico falava imperturbável, sereno um par de horas enquanto fazia um círculo de guimba de cigarros aos seus pés. Tinha uma decisão coletiva de não fumar nas salas – e um acordo tácito de deixar quieto porque ele ensinava muito.

    A gente era turro, mas não era burro. Um clima de vida socialista no curso. Comida coletiva, transparência nas contas, muita literatura revolucionária. E muita cultura e diversão. Porta de fábricas nas madrugadas e dia inteiro de aulas e convivência. Cada turma de quatro meses assim. Amizade e companheirismo que duram até hoje. Imaginem um racha de futebol na hora do almoço e naquela disputa o cuidado de não machucar o Éder Sader que era hemofílico, mas fazia questão de jogar.

    Esses anos todos tenho dito que, dos professores, o mais sério e preocupado em interagir com os alunos foi o Marco Aurélio. Nos levava muito a sério. As aulas eram preparadas, a gente percebia. Discutíamos os temas, a grade, os objetivos da formação e ele cumpria.

    Para ele, era uma vida louca no seu fusquinha. Campinas, São Paulo, Pinheiros, São Matheus. 30 km do centro, trânsito do cão… E algumas poucas vezes ainda tinha a delicadeza de conversar na sua casa, onde não tínhamos noção clara de quem era a Beth Lobo, da sua importância, nem mesmo a do próprio Marco. Era um apoiador, como chamávamos quem não era metalúrgico, numa esquerda que queria revolução e não apenas o jogo institucional dito democrático. Pra gente tava de bom tamanho.

    Tivemos aulas de Manifesto Comunista com o Florestan Fernandes para a incrível vanguarda do MOSMSP na Zona Sul (salve Silva! salve Chico Gordo,salve Tranca e tant@s outr@s). O professor Florestan (lembra a Nadine) dizia: \”tem três questões centrais no Manifesto…\”, e a peāozada anotava, entendia e discutia. E repete até hoje. Enfim, não tínhamos a dimensão do que fazíamos. Tínhamos uma percepção do rumo.

    Quando soubemos do enfarte dele, matamos a charada. O Marco vivia estafado. Era um cara da revolução, da militância e do rigor téorico. Aquela bela foto grande na parede dum severo Trotsky que tinha em casa não era por acaso.Tinha pouco mais de 40 anos quando teve um problema no coração. Talvez a abreviação da vida dele agora tenha a ver com isso.

    Só o vi ocasionalmente depois que virou governo. Por acaso, em aeroportos. Mas o mesmo cara afável, do “apareça para conversar” e dava o celular, não se escondia atrás das telefonistas no Palácio. Sempre retornou. Delegações da Toscana. Emilia-Bologna, Veneto, Andalucía, crise da Parmalat, tudo que organizamos e tentamos teve seu incentivo e apoio. Deu apoio ao Fórum Mundial do Trabalho em Barcelona, organizado pelo Oriol Homs, que o IIEP fez a agenda aqui no Brasil, viabilizou o Graziano ministro ir, e foi também.

    É vero que tudo isso deu em nada. A inépcia governamental em cada ministério liquidou essas cooperações. Faz parte do LIVRO DAS OPORTUNIDADES PERDIDAS. Na semana que mataram o Tiro Fijo, me encontrei com ele por acaso e dei uma reclamada. Deu risada e sem ironia me disse: “vou te contar que é muito pior do que você reclama”. E dizia: “vamos conversar, vamos resolver”.

    Como navegou nos governos Lula e Dilma? Não sei. Só conheço o que é público. Sei que fez um esforço monumental. Quando antes secretário de relações internacionais do PT, sempre se podia conversar com ele sem muitas prosopopeias, sem gente vigiando horários. Ele desfiava análises sobre cada país da América Latina; apontava cenários. Era o cara pra dirigir a coisa. O formulador… Porque não lhe deram poder-poder eu não sei.
    Por último, Marco Aurélio ensaiou analisar as lutas operárias2. Outras tarefas o ocupavam. É um pensamento inconcluso no tema. Metalúrgicos de São Paulo x Metalúrgicos de São Bernardo objeto de tanta análise ligeira, mas o texto dele tem rigor conceitual. Transcrevo uma parte:

    \”Uma visão imediatista e, por vezes, superideologizada dos processos em curso em São Bernardo e São Paulo, apresentava o primeiro como exemplo negativo de concessão ao sindicalismo oficial e o segundo como paradigma de sindicalismo independente, construído pela base, a partir das comissões de fábrica.

    A realidade era bem diferente. São Bernardo, sobretudo a partir de 1979, começara a organizar suas ações utilizando centralmente o espaço sindical oficial (a greve saindo da fábrica e se transferindo para o estádio), o que poria em evidência, e de forma dramática, os limites mesmos do sindicalismo atrelado, mesmo quando ocupado por uma liderança combativa. A particularidade é que não só a liderança compreende estes limites, mas o próprio movimento passa a senti-los.

    Por outro lado, apresentar a Oposição Sindical de São Paulo como estruturada essencialmente a partir das Comissões de Fábrica significava passar para a realidade o que estava ainda nas intenções.

    Não é verdade também que a O.S.M.S.P. tivesse um desprezo olímpico pela intervenção no espaço sindical. A campanha salarial (e a greve) de 1979 mostrou a vitalidade da oposição (a despeito da derrota do movimento) e sua capacidade de servir-se inteligentemente da estrutura sindical nas mãos de Joaquinzão.

    Na raiz desta tentativa de opor apressadamente São Bernardo a São Paulo está o vício de confrontar abstratamente duas experiências, sem levar em conta as condições de possibilidade de cada uma delas. Não é preciso ser especialista em movimento operário para constatar as profundas diferenças entre as categorias dos metalúrgicos de São Paulo e São Bernardo. Estruturas industriais radicalmente distintas, histórias sindicais próprias, enfim, um sem número de particularidades acabaram por distanciar política e organizacionalmente experiências que se encontravam tão próximas geograficamente, o que não quer dizer, no entanto, que não seja possível e até mesmo fértil a análise comparativa de ambas. Esta comparação passa, no entanto, pelo confronto das representações que o movimento foi produzindo num e noutro caso com as respectivas realidades destes movimentos.\”

    O Marco Aurélio Garcia retratado na grande imprensa hoje não é o que conhecemos. Na vida de cada revolucionário que nunca saiu da trilha há muitas fases. Muitos descobriram hoje que Marco Aurélio foi vereador pelo PCB. Poucos sabem da sua militância no Chile. Muitos o conheceram exilado em Paris. Muitos lembram do Marco Aurélio do Em tempo, do Arquivo Edgard Leuenroth, das secretarias da cultura… Nós o conhecemos como um dedicado e brilhante intelectual revolucionário, absolutamente solidário com uma peãozada que se construía como classe.

    Hasta siempre!

     

    [1] Militante histórico da Ação Popular (AP), baiano. Em toda a história do enfrentamento com os pelegos, foi o único metalúrgico da Oposição Sindical eleito para coordenar as negociações com os patrões, durante a greve de 1979

    [2] A cooperação da diretoria dos Metalúrgicos de São Paulo com a repressão política e a lista dos 334 presos em 79 está no livro Investigação operária: empresários, militares e pelegos contra os trabalhadores, publicado pelo IIEP em 2014.

  • Experimentações em Pesquisa-Luta

    fonte: post da Alana no FB:

    \”Nos momentos de neblina, o pensamento precisa saber criar novas formas. Formas capazes de produzir outros modos de enxergar; criar territórios existenciais atravessados pelo pensamento-luta, pelas lutas que fazem funcionar existências dissidentes e profundamente relacionais, corpóreas, atentas. Pensamento implicado. Não existem atalhos no caminho, estamos obrigados à experimentar.

    \"\"

  • A periferia contra o estado? Para escapar das ciências tristes! Criemos outras possibilidades

    Por Alana Moraes, Henrique Parra, Hugo Albuquerque, Jean Tible e Salvador Schavelzon | Imagem: Gavin Adams

     

    Cagaram mil e uma regras de conduta
    Eu mandei pra puta que pariu
    E sorri, feliz.
    Jenyffer Nascimento

     

    No último dia 25 de Março, a Fundação Perseu Abramo apresentou os resultados da pesquisa Percepções na periferia de São Paulo, trabalho que era destinado, nas suas próprias palavras a \”compreender, de forma profunda e detalhada, os elementos que têm formado a visão de mundo e o imaginário social nas periferias da cidade de São Paulo\”. Dentre suas conclusões, o estudo considerou que \”a mistura entre valores do liberalismo, do individualismo da ascensão pelo trabalho e do sucesso pelo mérito, com valores mais solidários e coletivistas relacionadas à atuação do Estado, à universalização de direitos, à ampliação da inclusão social, permeiam a visão de mundo e o imaginário dessa nova classe trabalhadora das periferias de São Paulo\”, gerando intensos debates e conclusões peculiares. A pesquisa da FPA foi movida por uma pergunta inicial: \”por que os pobres não votam mais no PT?\”.

    A pesquisa diz muito mais sobre si mesma e sobre a \”visão de mundo\” que a informa, do que potencializa novas perguntas e entendimentos sobre os processos sociais em curso. Curioso observar as leituras que surgiram dos resultados publicados. De uma lado, uma esquerda que se apresenta esgotada, sem assumir uma crise de paradigma constata que o território que pensava como próprio foi ocupado pelo inimigo.De outro lado, aparece uma direita triunfalista, que celebrou com matérias ou editoriais nos grandes jornais os resultados da pesquisa da FPA, no que aparece para eles como capitulação do estatismo de horizonte socialista frente a um liberalismo que é pano de fundo de uma sociedade aberta, do livre mercado, o mérito e o encerramento do conflito ideológico no campo social.

    A pesquisa serve a ambos os propósitos. Porém, outras possíveis leituras se abrem nas fissuras que permitem escapar de um mundo de binarismos, homogeneizações, e guerras culturais ancoradas nas disputas ideológicas do século 20. Esses lugares são os que mostram que a história não acabou, mesmo que algumas formas de construção política de fato não sejam mais possíveis. Bairros organizados para lutar por moradia e transporte, respostas políticas da população que não necessariamente se alinham com escolhas eleitorais. Um tránsito sinuoso, de ondulações e curvas, mostra também a possibilidade de outra ciência e outra política, que não pretende completar o trabalho da civilização ou do catequismo, e não assume como episteme as fronteiras impermeáveis de um indivíduo-cidadão, da sociedade organizada pelo Estado, nem do mercado, do trabalho e da propriedade privada como únicos, permanentes e estáveis de organização.

    Todo o debate gerado em torno da pesquisa, nos fez pensar também que disputar o que \”são\” os pobres é uma armadilha que só pode ser desativada por outras práticas de pesquisa, outros lugares de posicionamento. Essa inquietação a respeito do fundo no qual as questões foram postas nos parece um bom problema de partida: que modos de conhecer podem contribuir para a criação e potencialização de projetos coletivos de autonomia?

     

    Descer a torre e pensar pelas frestas: ritos de desautorização

    \”Por que os pobres não acreditam mais em nossa promessa de salvação?\”. É uma pergunta que ecoa através das décadas. Nas teorias clássicas do populismo, ao menos na sua primeira geração, os pobres eram \”cooptados\”, imersos em uma cultura rural e atávica cujo sentido era conferido pelas relações clientelistas. Estavamos fadados a ter uma classe trabalhadora vulgar, sem consciência, movida por interesses econômicos, quase sempre manipulada. As teorias sociológicas estavam lá para comprovar – isso, é claro, até migrantes nordestinos do ABC paulista restituirem de vez a dignidade da classe contra a teoria. Na cidade de São Paulo, o sindicalismo da oposição metalúrgica, nesse mesmo período, produzia intelectuais-operários e convocava intelectuais das universidades para pensar as possibilidades de luta e autonomia dentro das fábricas. A explosão do movimento operário nos anos 70/80 em São Paulo, assim como os movimentos populares de bairro, emergiam na cena política questionando a velha divisão entre sujeito e objeto, que em um dos seus desdobramentos, também se expressa na divisão que separa a vanguarda política da classe trabalhadora. O desejo de radicalização democrática se insurge também contra as fronteiras do pensamento e a autoridade de enunciação.

    De volta a um período de fechamento democrático, com intensificação das práticas autoritárias estatais, surge também uma necessidade renovada de pensar outras formas políticas que, dentre outros deslocamentos, consiga mais uma vez questionar as formas de produção de conhecimento. Nos deparamos hoje com um mundo em intensa transformação: as formas do trabalho mudaram radicalmente assim como as formas de representação, que hoje econtram-se em crise.

    O que propomos aqui é uma investigação coletiva que seja demandada pelos problemas que surgem de um novo ciclo de resistência, e que possa assim contribuir para desestabilizar a separação hierarquizante das formas de pensar e agir no mundo. Nossa proposta é simples: uma prática de pesquisa que atue pelas demandas concretas das resistências ao modo de vida neoliberal. É preciso também rejeitar a crítica ao \”pensamento intelectual\” que vem ecoando entre nós mesmos, lutadores e ativistas. Para superar esses impasses, nosso desafio é ainda maior: afirmar que é da luta e das criações de novas formas de vida que podem nascer reflexões intelectuais criativas e potentes. Da mesma forma, afirmar que não há potência de pensamento que não esteja fortemente implicado em processos coletivos de transformação. Não há pensamento criador sem luta, como não há luta sem produção de conhecimento.

    Assumir uma prática de pesquisa na qual estamos todos posicionados, implicados em causas e processos coletivos. Não nos é mais permitido fazer uma ciência ingênua. As feministas bem sabem que sem o corpo, sem a compreensão da economia de relações que fazem os próprios \”sujeitos\”, suas vulnerabilidades, sofrimentos e cotidianos não é mais possível fazer conhecimento, muito menos política. A crença na existência de sujeitos prontos – seja ele o sujeito da classe, seja ele o novo sujeito periférico é uma crença masculina que nunca leva em conta todo o trabalho anterior de relações, vínculos, alimentação, pertencimentos que produz pessoas, pensamentos, \”opiniões\”. Trabalho esse muito mais imprescindível em contextos populares. O movimento negro emergente no Brasil também tem produzido formulações imprescindíveis para pensar as formas de ciência. Pensar, por exemplo, como o racismo atua profundamente nas subjetividades, impedindo de forma violenta com que os sujeitos tenham acesso a sua própria fala: como levar à sério essas formulações nas práticas de \”aplicação de questionários\”, por exemplo?

    A dinâmica dos questionários pode ser muito cruel quando ele se torna uma inquisição averiguadora de \”valores\” dos pobres. Se a aposta for no mundo do discurso sobre a realidade, não tenham dúvida, ao menos no mundo ocidental, ele sempre estará do lado dos valores dominantes – da periferia de São Paulo ao Bronx. Uma política renovada precisa pensar outras formas de conhecimento sobre a realidade que não estabeleça tribunais, mas ao contrário, que se afete pelos interstícios, pelos escapes – que não negue a dominação, mas que consiga pensar apesar dela.

    Uma ciência que se compromete com a epistemologia das classes dominantes não pode ser outra coisa que não um retrato triste do pensamento colonial e da impotência política, ora pacificando as experiências dos pobres em categorias estranhas como o \”liberalismo popular\”, ora culpando os próprios pobres por não entenderem nunca as engrenagens da sua própria dominação. É também a expressão de um mundo intelectual que só consegue pensar a si próprio como a vanguarda iluminada da classe – distante, pedagógica, mas intacta em suas certezas.

    No entanto, a vanguarda nunca está lá – se estivesse, saberia, por exemplo que o apelo a imagem do \”empreendedorismo\” é evocada entre várias camadas de experiência: do pragmatismo das \”virações\” cotidianas de quem sempre foi excluído do assalariamento (especialmente mulheres) até o desejo de poder trabalhar sem um patrão. Quando a pesquisa identifica no \”empreendedorismo\” um \”liberalismo popular\” joga fora, de uma vez só, toda uma experiência de classe forjada entre migrações, industrialização e desindustrialização, desempregos constantes, assim como toda a dinâmica pragmática de uma economia popular feita por cabeleireiras, motoboys, faxineiras, ambulantes, as pessoas dos \”serviços gerais\”, a classe que vive do cuidado.

    A pesquisa dispensa também os intelectuais da classe que pensam a periferia porque sentem o que isso quer dizer e desobedecem, mais uma vez, as cercas que pretendem separar \”pensadores\” de \”objetos\” de conhecimento: movimentos populares, os artistas periféricos ou que constrõem relações com a periferia, as redes de cursinhos populares, movimento negro, feministas, secundaristas, aqueles que fazem as novas batalhas de slam, os saraus – deixam de pensar também a partir das tensões geracionais que hoje explodem dentro da própria classe. Uma pesquisa sobre os \”pobres\” que se pretende crítica dos poderes dominantes – da ciência ao golpismo – deveria convocar aqueles que estão produzindo pensamento na periferia, nos emaranhados de suas contradições e modos de vida, para pensar desde as hipóteses iniciais até às interpretações dos dados. Toda pesquisa deve ser também a possibilidade de encontros.

    Uma das consequências não previstas da ampliação do acesso à universidade no Brasil, com todos os limites desse processo, das transformações recentes na sociedade brasileira, foi a entrada massiva dos mais pobres, negros e mulheres nas universidades; a proliferação de coletivos feministas, coletivos negros, a luta por melhores condições nas universidades. Um processo não desprezível de tomada de assalto dos lugares de enunciação do conhecimento e que estabelece, pouco a pouco, ritos de desautorização da figura do homem branco intelectual portador da ciência. Desautorizam também as arenas de disputas em torno do que são ou devem ser os pobres. Nos convidam, mais uma vez, a embaralhar as fronteiras que separam pensamento e luta, transformar as práticas de fazer conhecimento.

    Não queremos afirmar a \”experiência\” como um lugar de autoridade: ela é um campo atravessado por inúmeros fatores e circunstâncias. Ela também é produzida por poderes e contra-poderes, violência, a vaga na creche que nunca chega, a passagem que aumenta novamente. No entanto, uma prática transformadora de conhecimento deve por isso apostar na fricção com a experiência ao mesmo tempo que deve também recusar, sempre que possível, a autoridade de um saber \”explicativo\” e especializado. A pesquisa do Eder Sader sobre a periferia de São Paulo nas décadas de 1970-80, por exemplo, já levava muitas dessas questões e era movida tambem por um espírito de criação emancipadora e coletiva que apostava na relação orgânica com a classe para pensar outros caminhos de ação. Aliás, naquela época, a desconfiança dos pobres em relação ao Estado já era evidente. No entanto, muitos intelectuais petistas como Eder Sader extraíam dessa desconfiança, proposições radicais sobre novas formas democráticas.

    Para derrotar o modo de vida neoliberal, precisamos voltar a perseguir problemas complexos. Eles estão por todos os lados, são produtos também das próprias praticas de resistência. Seria um problema muito mais interessante, por exemplo, pensar como é possivel que essa fração de classe que a pesquisa identifica como \”liberal\” e \”solidária aos seus empregadores\” seja também aquela que compõe a base social de movimentos sociais como o MTST. Pensar os problemas levantados pelas experiências de arranjos comunitários em curso: cozinhas coletivas, práticas de educação popular, produções artísticas que vem construindo novas linguagens e dispositivos de \”politização\” mais horizontais, as novas experiências de clínicas públicas de psicanálise, os coletivos de comunicação e midiativismos periféricos. É que as verdadeiras questões dão trabalho (nascem do trabalho de toda construção coletiva!) e, no fundo, precisamos escolher se vamos pensar com a classe (a classe preta, mulher, jovem, universitária), sobre ela ou contra ela. Pensar, finalmente, como a classe é feita e não dada.

     

    Para além do binarismo Estado X Mercado

    A esquerda que só se concebe do lado do Estado, e contra o mercado, também pode ser produtora de subjetividade neoliberal, criando condições para que, no final do caminho, o sujeito revolucionario transmutado em consumidor do mercado, dispense suas vanguardas e padrinhos, sem que a transição a um governo abertamente pro mercado, por mais diferente, não se constitua em clivagem determinante para a vida das famílias da periferia.

    O estudo da FPA conclui inequivocamente que a recusa ao Estado, e afirmação de alternativas a ele, são liberalismo. As massas pobres das periferias só poderiam estar alienadas, embebidas no sonho do mercado. A resposta, e antes dela, a pergunta, diz mais, novamente, sobre quem a fez do que quem a respondeu. Os pobres sujeitos à repressão sistemática do Estado mediante o aparato de segurança e, por outro lado, excluídos dos modos de autopreservação e cuidado público – a educação, a saúde etc – deveriam amar o Estado – e ainda que este funcione mal, talvez, deveriam ter a consciência do seu funcionamento ideal. Deveriam?

    A mesma conclusão esbarra em uma armadilha conceitual: como poderia o liberalismo ser contra o Estado? Não foi sob o regime neoliberal que se constituíram enormes redes de repressão policial, desenvolvimento bélico, apropriação dos fundos públicos e expropriação do patrimônio coletivo, espionagem de cidadãos e de fantásticos aparatos de aprisionamento e punição? O liberalismo, ainda que conteste o \”Estado grande\”, jamais atuou no sentido de sua abolição, tampouco advogou pela sua diminuição de garantidor da ordem capitalista.

    As multidões periféricas, ao conseguirem habitar, cuidar de sua saúde e se proteger da violência física perpetrada pelo Estado, podem ser mais anti-liberais do que as tais estruturas anti-liberais: a ideia vã de uma dicotomia entre Estado e Mercado, quase como uma batalha do fim do mundo, gera um sistema no qual em um polo está um Mercado planejado pelo Estado e, no outro, um Estado a serviço de um Mercado — a despeito dos arranjos e das gradações, Estado e Mercado estão sempre ali, interdependentes.

    O liberalismo pode ser inclusive interpretado como provocação e resposta dos pobres, frente ao Estado da esquerda que não oferece saídas políticas viáveis, nem projetos de sociedade sedutores, e menos ainda o mercado, frente ao qual os pobres sabem, sim, reivindicar o Estado ou, quem sabe, um outro lugar para além da representação e burocratização da vida.

    O binômio Estado X Mercado apresentado pela pesquisa perde de vista uma das principais engrenagens do modo de funcionamento do neoliberalismo que, para avançar, precisa que mercado e Estado produzam uma coexistência intrinseca: seja nas ações publicas orientadas por critérios de \”produtividade\” ou \”eficácia\”, a \”gestão de resultados\” ; seja no papel crescente das polícias como garantidoras extra-legais da propriedade privada, da especulação imobiliária e na criminalização dos movimentos questionadores da ordem de mercado.

    Se a romantização dos pobres e da pobreza é um equívoco, isso não pode ser dito nem pensado sem uma necessária desromantização do saber técnico, neutro e, literalmente, iluminado da ciência pura que se pressupõe, ainda hoje, uma espécie de demiurgo, de ente transcendental capaz de organizar o mundo a partir de seu local privilegiado de observação.

     

    Uma ciência comum para uma política do comum

    Toda ciência fabrica mundos. Um ato de descoberta científica produz novos objetos, novos processos, novos sujeitos e com eles surgem outras recomposições do mundo. É por isso que podemos dizer que a ciência é também política, no seu melhor sentido. Ela cria novas partições, novas dobras e novos pertencimentos com o real. Na sua versão etnocêntrica e colonial, no entanto, a ciência é política no mal sentido; ela fecha mundos, se interpõe sobre caminhos divergentes, ela \”limpa\”, \”barra\” as diferenças, classificando e organizando tudo no lugar narcisista do Eu. É política do poder, da ordem e do progresso.

    O desafio de construir outras formas de produção de conhecimento exige também a invenção de outras formas políticas. Como seria essa ciência comum potencializadora de outros mundos compartilhados? E o que pode acontecer se partirmos de uma perspectiva parcial, situada e incorporada e que fosse movida pelos problemas dos modos de existência? O que acontece se renunciarmos de partida às ambições projetivas e as totalidades pré-constituídas ou mesmo à eleição de um ponto de vista privilegiado a partir do qual explicamos todo o ordenamento do social? Se todo saber é também poder, como seria produzir um saber insurgente de uma forma política também desconhecida?

    Inspiramo-nos aqui na experiência de diversos movimentos sociais, comunidades afetadas (por problemas de saúde, desastres, conflitos etc), minorias organizadas que a partir de sua experiência e saberes produzem junto a outros atores cognitivos e políticos (pesquisadoras e pesquisadores profissonais ou amadores, ativistas, gestores engajados entre outros), novas formas de organização e luta simultaneamente à produção de conhecimentos contra-hegemônicos. Neste processo, surgem também novos sujeitos políticos. Encontros de saberes e formas diferentes de vida interessadas na co-criação de mundos. A experiência de mulheres que se organizam e que produzem saberes que interrogam as práticas e protocolos médicos, num ataque direto à biopolítica dos sistemas de saúde; os trabalhadores então invisibilizados ou silenciados que criam seus centros de pesquisa e documentação e confrontam as estatísticas oficiais (como foi a criação do Dieese); indígenas e quilombolas cujos saberes são indissociáveis da produção das formas de suporte à vida em comum; hackers e suas comunidades cujas práticas modificam o regime de visibilidade da vida contemporânea tecnicamente mediada, produzindo política através de tecnologias aparentemente neutras, criando clivagens que dão a ver os novos processos de produção de valor e as técnicas renovadas de governo das populações.

    Se criamos espaços de escuta novas linguagens podem ser inventadas (ao invés de ficarmos operando mediações que encaixam o pensamento dos outros em nosso mundo). Talvez seja mais do que tradução, mas a pura invenção de uma outra linguagem comum, por isso, também criadora de outras comunidades políticas. Os regimes de subjetivação que nos constituem são muito heterogêneos. Se desejamos criar novos entendimentos, capazes de fazer proliferar a multiplicidade do real, teremos que aceitar as indeterminações e os trajetos experimentais. Disputemos a imagem do laboratório! Ao invés da sala limpa, pensemos num laboratório contaminado. Nossa hipótese é de que podemos constituir um novo laboratório (que fabrica novos sujeitos, novos objetos, novos mundos) junto àqueles que estão produzindo novas formas de vida em comum, agindo contra o desmanche de algo que é comum e encontra-se ameaçado pelas forças em jogo. Porém, este comum não é necessáriamente conhecido ou visível. Ele é aquilo que é produzido entre todos, e não para todos. Mas justamente por isso, é frequentemente imperceptível. Ele pode ser o silêncio da noite, a qualidade do ar que respiramos, o tempo que temos para cuidar dos próximos, nossos trajetos na cidade e até o trabalho que temos (como é difícil definir hoje as bordas do trabalho e do não-trabalho!).

    Como seria a política dessa forma de conhecer? Talvez, ela também seja inventada justamente ali onde se produz a vida mais ordinária. Nossa hipótese, é que esta forma de conhecer surge simultaneamente à formação de novas comunidades políticas que, para além do regime da representação, produzem a política de forma imanente à vida. Se ela realiza no presente sua política, não é que ela seja prefigurativa da forma política a se construir noutras escalas. Sua política é da ordem de uma singularidade. Ela é menor, situada, parcial, incorporada, da mesma forma que o conhecimento que a produz.

    Apostamos que nesta forma de conhecer por meio desta política do comum, novas individuações coletivas – de ordem transindividual – podem emergir. Por isso, não há forma política a ser preenchida. E isso é o mais difícil no atual momento. Manter os canais de enunciação, de práticas cotidianas, de formas multiplas de pertencimento, todos abertos à proliferação de outras formas de vida (mais solidárias, mais emancipatórias, mais autônomas etc) também demanda a capacidade de lutar contra todas as formas de opressão, homogeneização, sujeição e exploração. Essa forma de conhecer que desejamos praticar com essa política, é sempre feita a favor de algo e contra algo.

     

    Conclusões tão precárias como a classe: por outras práticas de pesquisa-luta

    Uma ação política emancipatória que realmente queira sair de seu beco sem saída precisa, sem dúvida, atravessar os muros que nos separam não apenas fisicamente, mas os muros que interditam o desejo, o pensamento, as práticas de existência em comum

    O problema da liberdade e da emancipação coletiva, da construção de mundos que buscam superar opressões e muros, é um problema que nos situa, todos e todas, em um terreno comum. Isso quer dizer que, apesar de todas as experiências de lutas, das mais vitoriosas até as derrotadas, apesar de todas as teses, ensaios, questionários, não há fórmula-guia que possa nos confortar e mostrar a salvação. Não sabemos. Ou apenas sabemos que nosso saber não pode ser interposto a outros saberes. Não há um plano pronto a ser executado e nesse sentido, toda pesquisa que se pretende comprometida com um projeto de transformação deve conter, desde o início, a possibilidade de experimentações e criações. A relevância de uma pesquisa engajada pode ser testada pela possibilidade que ela oferece de fazer sentido para as pessoas, em suas vidas comuns, para a produção de novos mundos.

    Perseguimos a hipótese de que um conhecimento ativo pode ser produzido a partir dos ruídos com a experiência, extrapolando os lugares de autoridade e ser o resultado de alianças e relações entre diferentes saberes situados e desejantes de um projeto comum. Não é mais permitido (ou legítimo) produzir um saber sobre os \”outros\” de modo instrumental, reificado e não-solidário. Nossa prática de investigação se deseja híbrida e acontece no meio, no entre pesquisa-luta, sua terceira margem. Em certo sentido, é uma forma de conhecer antiga, mas que no atual contexto adquire novas configurações graças às metamorfoses nos regimes de poder e suas formas de saber: os antigos centros de produção de verdades e seus dispositivos, multiplicaram-se e há também novas concentrações, fazendo emergir novos campos de lutas.

    Um laboratório ocupado por corpos e saberes interpelados pelo problema da fabricação de um mundo em comum. Pesquisadoras, pesquisadores que sejam capaz de farejar onde estão as dobras que podem nos mover, as questões que os poderes dominantes tentam esconder a qualquer custo, que possam produzir interferências no sistema hierarquizado de saberes e que possam, de fato, sonhar com outros mundos mas também praticá-los. Enfim, abandonar o delirio de fazer uma ciência neutra que revele as \”percepções\” dos pobres (pra quê? pra quem?) e ensaiar novos laboratórios povoados de corpos, afetos, interferências.

    Fazer mundos exige escuta, é entender com outros, exatamente o que precisa ser feito: novas infraestruturas para a vida coletiva; espaços que possibilitem decisões coletivas sobre a vida comum, pensar o compartilhamento dos cuidados, gerir o problema do desemprego e produzir novas sustentabilidades, criar novas práticas de co-formação que possam se multiplicar, redes de proteção contra violência do estado, novas linguagens e, dessa forma, apontar para outras formas de vida que não estejam encerradas no binarismo Estado X Mercado. Pensar com outros – levar à sério as diferenças, suas contradições, formas de vida, práticas de existência. A classe sempre está por fazer-se, não há uma susbtância a ser revelada.

    Contra a melancolia da vida neoliberal e suas práticas de conhecimento impotentes, cultivemos os afetos alegres de uma ciência implicada e comprometida com a produção de formas de vida em comum, mais solidárias e emancipatórias.

     

    Publicado também em: http://outraspalavras.net/brasil/quer-dizer-entao-que-a-periferia-e-liberal/