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  • Violência, pobreza, cultura e potência. A periferia e as tentativas de transformação da realidade. Entrevista especial com Tiaraju D’Andrea

    Por: Patricia Fachin, entrevista Tiaraju D\’Andrea

    fonte: http://www.ihu.unisinos.br/568429-o-sujeito-periferico-e-suas-tentativas-de-transformar-a-realidade-entrevista-especial-com-tiaraju-d-andrea

     

    “A periferia paulistana passa por um período de transição”. Esse é um dos diagnósticos do sociólogo Tiaraju D’Andrea, que acompanha as transformações nas periferias nos últimos 25 anos. Segundo ele, embora o lulismo tenha representado “uma melhoria nas condições de vida” na periferia, “o desemprego ronda esta população, sendo as condições de trabalho uma preocupação concreta”, e “há uma descrença generalizada nos partidos políticos e no sistema representativo como um todo”.

    Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, D’Andrea explica as principais transformações ocorridas na periferia paulistana em duas décadas e meia, como o surgimento do Primeiro Comando da Capital – PCC, o crescimento dos evangélicos e a explosão de coletivos artísticos. “Esses três fenômenos foram saídas encontradas pela própria população da periferia para superar o contexto de violência e pobreza da década de 1990. Foram formas de superar o esgarçamento do tecido social e criar uma ética regulatória em um contexto de crise”, avalia.

    Além disso, pontua, três outros fenômenos que não estavam presentes na década de 1990 ajudam a compreender as transformações nas periferias. “Uma narrativa, ou a tentativa da periferia de contar a sua própria história e sem depender de mediadores, uma subjetividade, ou o fato de os moradores da periferia passarem a ter orgulho dessa condição, e o lulismo, como forma de governo, baseado no aumento dos direitos sociais e do consumo”. Na atualidade, frisa, “pode-se observar o crescimento de tendências conservadoras, assim como na sociedade em sua totalidade”.

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    Tiaraju D’Andrea | Foto: Arquivo pessoal

    Tiaraju D’Andrea é doutor em Sociologia da Cultura, mestre em Sociologia Urbana e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Atualmente é pesquisador convidado da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris.

     

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – Um dos temas problematizados na sua tese é o sentido e o significado do termo ‘periferia’. O que entende por ‘periferia’ a partir das suas pesquisas?

    Tiaraju D’Andrea – Historicamente, sempre houve uma disputa entre distintos agentes sociais para obter a preponderância para definir o que era ou o que é um fenômeno social de nome periferia. Denominamos aqui “discurso preponderante” aquele que possui maior abrangência e aceitação social para a explicação de um determinado fenômeno, mas isso não quer dizer que não existam outras explicações concorrentes.

    De acordo com a tese, de mais ou menos 1960 até 1993, a academia possuía a preponderância da explicação do fenômeno periferia. Eram intelectuais de distintas áreas como sociologia, antropologia, geografia, economia, história e urbanismo que conflitavam entre si para obter a explicação mais aceita, mas tudo se passava dentro das formulações da academia. A partir de 1993, com o lançamento de um CD do grupo de rap Racionais MC’s de nome “Raio-X Brasil”, a preponderância passa para moradores de bairros periféricos, cuja eficácia da expressão ocorreu pela via artística, e não pela via científica. Esse CD apresentou ao mundo raps como: “Fim de Semana no Parque” e “Um Homem na Estrada”, dentre outros. Esses raps foram tão impactantes que mudaram a forma de se pensar e enxergar a periferia. A preponderância periférica sobre o fenômeno periferia durou mais ou menos até o ano de 2002, quando o lançamento do filme “Cidade de Deus” fez com que a Indústria do entretenimento passasse a possuir a preponderância das representações sobre o que seja a periferia. Esse filme abriu as portas para uma série de produções cinematográficas e televisivas sobre o assunto. A partir de 2002 a produção da periferia sobre o fenômeno periferia passa a ter um concorrente de maior peso social: a indústria do entretenimento.

    IHU On-Line – Quais são as principais mudanças sociais, culturais e econômicas ocorridas nas periferias paulistanas desde os anos 1990 até os dias de hoje?

    Tiaraju D’Andrea – Certamente, um território amplo como o que denominamos periferia é múltiplo sincronicamente, assim como diacronicamente foi passando por mutações. Creio que nos últimos 25 anos é possível enumerar alguns fenômenos que não existiam antes dos anos 1990. São eles:

    1) o surgimento do PCC,

    2) o crescimento dos evangélicos e

    3) uma explosão de coletivos artísticos.

    Estes três fenômenos foram saídas encontradas pela própria população da periferia para superar o contexto de violência e pobreza da década de 1990. Foram formas de superar o esgarçamento do tecido social e criar uma ética regulatória em um contexto de crise.

    Outras duas tentativas de superação da violência foram provenientes de agentes externos à periferia. Foram elas:

    4) O crescimento da presença de ONGs (Organização Não Governamental) nessas regiões e

    5) o aumento da presença estatal.

    Por fim, outros três fenômenos que não existiam até a década de 1990, passaram a ocorrer nessas regiões. São eles:

    6) uma narrativa, ou a tentativa da periferia de contar a sua própria história e sem depender de mediadores;

    7) uma subjetividade, ou o fato de os moradores da periferia passarem a ter orgulho dessa condição; e

    8) o Lulismo, como forma de governo, baseado no aumento dos direitos sociais e do consumo.

    Na atualidade, pode-se observar o crescimento de tendências conservadoras, assim como na sociedade em sua totalidade. Ainda é cedo para saber se esse fenômeno é conjuntural ou estrutural.

    No que tange à produção artística, e aqui me aterei à música, é interessante notar como nos anos 1980 houve uma preponderância do samba e do rock nacional. Nos anos 1990 o gênero hegemônico foi o rap. A partir dos anos 2000 o funk passou a tomar a cena. Também não podemos esquecer o sertanejo e suas distintas variações, dado que é o gênero mais escutado no Brasil como um todo, inclusive nas periferias paulistanas.

    IHU On-Line – Na sua tese você analisa a “explosão de atividades culturais na periferia nos últimos 20 anos”. Quais atividades são essas e a que atribui esse cenário?

    Tiaraju D’Andrea – Trata-se de uma série de atividades artísticas e culturais que ganharam impulso a partir dos anos 1990 e foram agraciadas com uma série de financiamentos públicos a partir dos anos 2000. Nessas podem-se incluir os saraus, as comunidades de samba, as posses de hip-hop, os cineclubes audiovisuais, os grupos de teatro, os grupos de dança, a literatura marginal, dentre outras. Todas essas atividades são organizadas por coletivos artísticos.

    A explosão do número desses coletivos artísticos na periferia de São Paulo nos últimos vinte anos ocorreu por pelo menos cinco grandes fatores:

    a) Produção artística como pacificação: neste caso, a produção artística foi uma saída para a espiral de violência que se abateu sobre as periferias na década de 1990.

    b) Produção artística como sobrevivência material: neste ponto, a produção artística foi uma forma de auferir renda em um contexto de pobreza. Isto ocorre pelo crescimento de financiamentos e de mercado para esta produção. Obter renda por meio de produção artística era uma forma de escapar de duas soluções pouco interessantes: de um lado o mundo do trabalho capitalista stricto sensu, que sempre representou exploração, baixos salários e humilhação para a população mais pobre; por outro lado, a possibilidade dada a jovens de baixa renda de auferir recursos por meio de atividades ilícitas.

    Entre o mundo do trabalho e o mundo do crime, construiu-se uma terceira opção: a produção artística como forma de sobrevivência material. Cabe destacar que a partir do ano 2000 aumentou exponencialmente o número de financiamentos para esse tipo de atividade.

    c) Produção artística como participação política: na década de 1990, em um contexto de crise das formas clássicas de participação política expressa em partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, os coletivos de produção artística passaram a reaglutinar os indivíduos que buscavam intervir politicamente.

    d) Produção artística como emancipação humana: neste caso, a produção artística foi uma forma de moradores de bairros periféricos sentirem-se vivos e se humanizarem em um contexto de múltiplas violências, humilhações e estigmas.

    e) Produção no local como resposta à segregação socioespacial: neste ponto, avalia-se a multiplicação de atividades artísticas na periferia como forma de dotar o local, levando-se em conta que na cidade de São Paulo os equipamentos culturais concentram-se mormente na região central e no quadrante sudoeste.

    IHU On-Line – Como os coletivos artísticos se manifestam na periferia e ressignificam o entendimento de periferia?

    Tiaraju D’Andrea – Para responder essa questão é necessário recuar no tempo. Em meados de 1990, o termo periferia passou a ser utilizado de maneira política pelos próprios moradores de periferia. Essa utilização fez com que o termo se popularizasse. Em um primeiro momento, essa utilização do termo periferia ocorreu pela ação do movimento hip-hop, depois passou a ser utilizado e disseminado por uma série de outras expressões culturais presentes nas periferias. Nesse primeiro momento de utilização do termo periferia, fundamentalmente nos primeiros anos da década de 1990, o termo tinha um caráter de denúncia, pois mostrava à sociedade a realidade ou a verdade, criticando com isso o pensamento hegemônico neoliberal de princípios dos 1990 que pregava o “fim da história” ou o “fim das classes”.

    Aquele mostrar a realidade em caráter de denúncia se apoiava na apresentação de duas características da periferia: a violência e a pobreza, como forma de criticar a sociedade, mostrando características presentes na realidade social que o pensamento hegemônico queria esconder. No entanto, afirmar-se enquanto periferia por meio dos elementos violência e pobreza era pautar um processo histórico de superação desses elementos. Logo, periferia continha e negava violência e pobreza. Assim sendo, a partir de meados da década de 1990 começa-se um processo histórico de superação desses dois elementos, do qual a produção artística dos bairros periféricos foi um dos principais articuladores. Hoje o significado do termo periferia foi alargado, sendo que o mesmo se entende contendo em seu âmago quatro significados: violência, pobreza, cultura e potência.

    Devido à fragilidade de expressões políticas tradicionais como partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, fundamentalmente a partir dos anos 1990, uma parte migrou para a produção cultural como forma de fazer protesto e se posicionar politicamente. Essa espécie de orfandade política das periferias fortaleceu o crescimento desses coletivos. Com o passar do tempo, coletivos de várias periferias se organizaram para atuar conjuntamente, fundando assim o Movimento Cultural das Periferias – MCP. Esse movimento formulou uma lei de iniciativa popular que após muita luta foi aprovada, intitulada Lei de Fomento às Periferias.

    Não foi à toa que João Doria (PSDB), ao assumir a prefeitura de São Paulo, reduziu em 43% a verba da cultura do município, atingindo a Lei de Fomento, dentre outras linhas de financiamentos de atividades artísticas nas periferias. Mais do que econômica, essa atitude foi política. Sabendo a importância desses coletivos, o sufocamento econômico é uma forma de desorganizar politicamente as periferias.

    IHU On-Line – De outro lado, a que você atribui o crescimento evangélico nas periferias paulistanas?

    Tiaraju D’Andrea – Creio que múltiplos fatores se somam para este fenômeno. Por um lado, há um conservadorismo crescente na sociedade, do qual os evangélicos são causa e consequência. Por outro lado, esse crescimento é também fruto da dinâmica violenta dos anos 1990. Cabe também ressaltar, a crise econômica faz a população buscar em comunidades religiosas algumas saídas. Tampouco se deve esquecer o eficiente trabalho proselitista dessas igrejas.

    IHU On-Line – Como a presença do PCC se manifesta nas periferias paulistanas? Hoje muitos especialistas em segurança falam que a atuação do tráfico se dá dentro e fora das prisões, inclusive em disputas entre facções fora das prisões. Como isso tem ocorrido nessas periferias?

    Tiaraju D’Andrea – O PCC segue presente nas periferias de São Paulo, mas tem menos impacto no que tange à regulação da violência se comparado a dez anos atrás. Este é um dos fatores do aumento da violência nas periferias nos últimos três anos.

    IHU On-Line – Quais são as principais questões que você tem abordado na sua pesquisa atual sobre “Periferia, Periférico e Sujeito Periférico”?

    Tiaraju D’Andrea – Tento entender quais foram os processos sociais que redundaram naquilo que denomino o ser periférico, que é uma espécie de orgulho de ser morador da periferia em resposta ao estigma que muitas vezes acompanha essa condição. No entanto, essa passagem do estigma ao orgulho só foi possível de acontecer historicamente com a percepção de que a situação urbana e social de um morador da periferia é uma situação distinta de outras situações urbanas e sociais. No entanto, o processo de identificação com essa condição e que redunda no ser periférico, por si só não basta. O sujeito periférico é aquele indivíduo que, por meio da percepção de sua condição e da superação do estigma, age politicamente para transformar a sua realidade, seja incidindo nas condições de moradia, por melhores condições de saúde, de educação, de transporte e de cultura. Cabe destacar, no entanto, que foi no campo da produção artística que se fortaleceu um certo orgulho de se morar na periferia.

    IHU On-Line – Qual seu diagnóstico acerca da atual situação da periferia paulistana, dada a atual crise brasileira?

    Tiaraju D’Andrea – A periferia paulistana passa por um período de transição. Se por um lado o lulismo representou uma melhoria nas condições de vida, se comparada à década de 1990, a crise econômica posterior foi um dos fatores que fez esta população retirar seu apoio ao PT. No entanto, ainda é cedo para se afirmar que a adesão a pautas conservadoras seja um fenômeno estrutural. Em todo esse quadro de incertezas, pode-se, ao menos, fazer duas afirmações: o desemprego ronda esta população, sendo as condições de trabalho uma preocupação concreta; e há uma descrença generalizada nos partidos políticos e no sistema representativo como um todo.

     

  • Movimentos tradicionais, autonomistas e um novo ciclo de lutas no Brasil. Entrevista especial com Alana Moraes

    Publicado por: http://www.ihu.unisinos.br/567067-movimentos-tradicionais-autonomistas-e-um-novo-ciclo-de-lutas-no-brasil-entrevista-especial-com-alana-moraes

    Por: Patricia Fachin | 28 Abril 2017

    A crise petista transformou a esquerda em um “lugar de muita melancolia”, que produz uma “fixação” por “Bolsonaros”, ao invés de criar “afetos mais potentes para continuar caminhando, pensando novas possibilidades, criando brechas”, avalia a socióloga Alana Moraes na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ela, as tentativas de resposta à crise vêm “clamando por fórmulas que simplificam a questão”, seja no discurso que defende a “unidade das esquerdas”, no grito “Fora Temer” ou no discurso do “pacto pela estabilidade democrática”.

    Ao invés de procurar respostas simples e simplistas, defende, a esquerda precisa se perguntar “o que é ser de esquerda no Brasil hoje”. Ser esquerda, questiona, “é nos mobilizarmos para ter um candidato ‘viável’ para 2018? É nos afetarmos com a prisão dos muitos ‘Rafaéis Bragas’, com os massacres contra camponeses, indígenas, contra os pobres na periferia, contra as mulheres, que acontecem cotidianamente neste país? Construir redes mais eficazes contra a violência estatal? Esse é o momento de perseguirmos essas questões mais de fundo, de nos definirmos mesmo, em comum”. Antes de aderir a uma “unidade das esquerdas”, sugere, é preciso “pensarmos que esquerda somos e o que realmente queremos ser depois dessa experiência do ciclo petista”. E dispara: “2018 será uma consequência feliz ou infeliz do que conseguimos juntos produzir de respostas”.

    Na entrevista a seguir, a socióloga comenta a atuação dos movimentos sociais autonomistas no país e frisa que “a dificuldade de mobilização” que existe hoje “é fruto de uma escolha política do PT e de muitos outros setores ligados ao partido que foram completamente enfeitiçados pela disputa eleitoral, pelos jogos que estavam colocados para que o PT pudesse permanecer no poder, pelos pequenos poderes dos gabinetes”. Apesar disso, Alana aposta que a greve de hoje, organizada pela Central Única dos Trabalhadores – CUT e as Centrais Sindicais, será “uma mobilização histórica”.

    Além da mobilização organizada pelas Centrais, a socióloga menciona que “alguns processos interessantes estão também produzindo essa greve geral: coletivos que estão se reunindo na cidade para colar lambes de convocação como fez o Arrua em São Paulo; o próprio Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST fazendo assembleias em bairros na periferia de São Paulo para chamar as pessoas; os professores das escolas particulares enfrentando, muitas vezes, direções e pais conservadores e aderindo massivamente à greve; o movimento negro mobilizando e convocando para uma ala negra na marcha; os movimentos feministas também convocando bastante”.

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    Alana Moraes | Foto: Arquivo pessoal

    Alana Moraes é graduada em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestra em Sociologia e Antropologia pela mesma universidade, e atualmente cursa doutorado no Programa em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – Como você está avaliando o atual cenário político do ponto de vista das mobilizações sociais? O que tem sido significativo desse ponto de vista?

    Alana Moraes – É interessante porque o Brasil hoje vê desmoronar todo o arranjo institucional democrático representado pela Constituição de 1988, ao mesmo tempo em que a esquerda partidária e organizada também entra em uma crise profunda. Parece que agora vivemos em uma cidade de escombros, nada é muito reconhecível do ponto de vista das estruturas, mas alguns ainda acham que é possível reformar os edifícios, emendar os encanamentos, fiações. Eu sou daquelas que acham que temos que resgatar as coisas mais importantes, claro, mas é preciso não se ocupar muito com os escombros. Temos que construir uma nova cidade, viva, cheia de praças, para que a gente possa se encontrar e decidir juntos o que vai ser nosso projeto de emancipação.

    Tenho pensado muito numa frase do Marx em que ele diz que \”A situação desesperada da sociedade em que vivemos me enche de esperança\”. Penso que podemos e temos o dever de resgatar essa esperança. A esquerda hoje se tornou um lugar de muita melancolia: produzimos essa fixação com “Bolsonaros”, com nossas derrotas, mas precisamos de afetos mais potentes para continuar caminhando, pensando novas possibilidades, criando brechas. Por isso é importante estar conectado com as lutas que surgem hoje. A melancolia também é um efeito do neoliberalismo que nos paralisa, nos deixa doentes.

    Respostas à crise

    Muitos respondem a essa crise das esquerdas clamando por fórmulas que simplificam a questão: \”unidade das esquerdas\”, ou \”primeiramente fora Temer\”, \”pacto pela estabilidade democrática\”. É óbvio que a luta agora tem que ser no sentido de continuar denunciando o golpe e exigir o afastamento do governo ilegítimo, mas no fundo sabemos que o buraco é bem mais profundo. Temos um Estado racista que mata, encarcera, distribui desejo de punição. O Rafael Braga está preso porque carregava um Pinho Sol. Temos que nos perguntar o que é ser de esquerda no Brasil hoje. É nos mobilizarmos para ter um candidato \”viável\” para 2018? É nos afetarmos com a prisão dos muitos “Rafaéis Bragas”, com os massacres contra camponeses, indígenas, contra os pobres na periferia, contra as mulheres, que acontecem cotidianamente neste país? Construir redes mais eficazes contra a violência estatal? Esse é o momento de perseguirmos essas questões mais de fundo, de nos definirmos mesmo, em comum.

    Antes de “unidade das esquerdas”, sinto falta de pensarmos que esquerda somos e o que realmente queremos ser depois dessa experiência do ciclo petista. 2018 será uma consequência feliz ou infeliz do que conseguimos juntos produzir de respostas. Acho que precisamos abandonar a ilusão de que um novo programa de esquerda nascerá de uma ou duas reuniões com intelectuais ou dirigentes partidários. Penso que um programa, um plano de ação em comum, podem dar mais certo na medida em que conseguem produzir encontros, implicar pessoas vindas de lugares diferentes em práticas concretas.

    IHU On-Line – Alguns têm defendido – e até criticado – que o PT vem reconquistando sua hegemonia, inclusive de mobilização entre os setores de esquerda. Na sua avaliação, isso está acontecendo? Por quê?

    Alana Moraes – Acho que nem o PT acredita mais nessa hegemonia. Mas toda a dificuldade de mobilização que temos hoje, e o PT sabe bem disso, é fruto de uma escolha política do PT e de muitos outros setores ligados ao partido que foram completamente enfeitiçados pela disputa eleitoral, pelos jogos que estavam colocados para que o PT pudesse permanecer no poder, pelos pequenos poderes dos gabinetes.

    Esse não é só um problema do PT, é um problema da esquerda internacional. As apostas da social-democracia europeia hoje foram completamente absorvidas pelo sistema. A vida no neoliberalismo é insuportável. Nunca antes as pessoas estiveram tão medicalizadas e deprimidas, se sentem impotentes, não decidem nada das escolhas políticas que realmente afetam suas vidas. Óbvio que querem agora soluções mais radicais, que possam, de alguma forma, chacoalhar o sistema político. Não tem mágica aí: hoje os movimentos que mais mobilizam no Brasil, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST, conseguem fazer isso porque têm conexão com a prática, com o cotidiano das pessoas. O PT escolheu o caminho do Estado, da gestão e, é claro, muitas conquistas importantes surgem daí: a expansão das universidades, valorização do salário mínimo. Mas a experiência do PT no governo nos serve também para pensar sobre os limites de ocupar um Estado sem fazer da luta contra ele, contra essa forma atual de governamentalidade neoliberal que é uma camisa de força, uma máquina de moer tudo a serviço da financeirização e do processo contínuo de espoliação dos mais pobres.

    A esquerda que era oposição ao PT não parece pensar por outros caminhos também: ganhar eleições, construir mandatos, fazer políticas públicas. A receita é bem parecida. Precisamos de outras experiências de politização. Pensar e praticar o que seria modos de vida diferentes: redes de cooperação de trabalho que usem mais a tecnologia e a internet a favor dos mais pobres; novas redes de compartilhamento de cuidados; pensar com mais consistência a autoconstrução de moradias de qualidade contra a propriedade privada e os terrenos vazios para especulação; fortalecer as redes de midiativismo periférico que estão denunciando a violência policial, pensar sobre as disputas territoriais que nos façam ter mais controle de decisão sobre aspectos fundamentais da vida: as escolas, políticas de transporte, postos de saúde. Eu acredito que seja a partir dessas experimentações e da politização do cotidiano que vamos conseguir pensar um outro jeito de ser esquerda e de viver juntos. Isso não quer dizer que devemos abrir mão de disputar o que deveria ser público. As lutas hoje contra os desmontes dos direitos trabalhistas, a reforma da previdência são lutas incontornáveis. Mas uma esquerda que define seu sentido apenas pela disputa do Estado, desse Estado, é uma esquerda que está condenada ao definhamento.

    IHU On-Line – Qual é o impacto ou o legado de Junho de 2013 nos dias de hoje? Como os anseios expressos naquelas manifestações se manifestam ou repercutem ainda hoje?

    Alana Moraes – Os ecos de Junho estão aí quando nos deparamos com todo esse cenário de listas da Odebrecht, delações, acordos. Junho foi o grito ensurdecedor contra esse sistema. Ele começa com uma faísca simples, a indignação contra o aumento do transporte, mas foi a faísca suficiente para questionar toda a engrenagem. Junho sugeriu a possibilidade de radicalizar a luta contra o sistema que engoliu o próprio PT, mas naquele momento o PT quis se posicionar pela manutenção da ordem. Só que a \”ordem\”, demorando mais ou menos, estará sempre contra os de baixo. O PT e a esquerda de modo geral perderam a possibilidade de, com uma mobilização social histórica de 2013, fraturar e desmontar esse grande esquema de funcionamento da política no país. Outras forças se organizaram a partir desse vácuo e o \”Fora PT\” conseguiu responder aos anseios mais conservadores, mas, ao mesmo tempo, as mobilizações da direita tinham um perfil social e uma aparição política completamente diferente do que foi Junho. Junho pedia o fim da polícia militar, enquanto as manifestações da direita pediam mais polícia. A linha de corte é evidente.

    Agora estamos nos equilibrando num fio muito delicado: não podemos achar que a Lava Jato é, de fato, a solução para uma nova ordem democrática, isso é um erro gravíssimo. A Lava Jato expressa, justamente, o poder de outra casta, a do judiciário racista, a mesma que prende o Rafael, o único preso de 2013 hoje. Ao mesmo tempo, não podemos concordar com nenhum pacto de anistia de caixa 2 ou qualquer outro acordo que pretenda salvar esse sistema. Precisamos pensar outros caminhos, mas, enquanto isso, continuar nas ruas denunciando Temer, exigindo novas eleições. O golpe foi cruel porque ele desmonta, por dentro, tudo o que grande parte da esquerda brasileira construiu como estratégia: o pacto lulista, o nacional-desenvolvimentismo que se alimentava de propinas, o agronegócio, que além de destruir nossas florestas, de exterminar populações indígenas, terminaria votando pela família e por Deus contra o governo que mais o favoreceu. No fundo, a luta de classes prevalece, é o Martírio, filme impactante de Vincent Carelli, esse Brasil que permanece insubmisso, existindo pelas bordas.

    IHU On-Line – Muitos pesquisadores têm chamado a atenção para a mudança no modo de atuação dos movimentos sociais nos últimos anos, os quais já não seguem uma hierarquia e são mais difusos se comparados aos movimentos tradicionais. Nesse sentido, pode nos dar um panorama sobre o modo de atuação dos movimentos autonomistas nos dias de hoje? Que mudanças identifica entre antigos e novos movimentos, quem participa de movimentos sociais hoje, quais são as práticas desses movimentos e como eles se relacionam com a esfera pública?

    Alana Moraes – Gostando ou não dos governos petistas, ninguém diria que o Brasil de hoje é o mesmo de dezesseis anos atrás. As formas de pensar e fazer luta, de se organizar, também estão mudando, ainda que coexistindo com as tradicionais formas de representação, cada vez mais em crise, como os partidos e sindicatos. O próprio Movimento Passe Livre – MPL, aliás, passou por uma crise importante desde 2013, e os debates produzidos nessa crise por eles são bons debates para pensar os problemas desses caminhos mais autônomos também. É difícil definir o que são os movimentos autonomistas hoje, é uma constelação bastante diversa de pequenos grupos que vêm misturando debates sobre formas de organização mais horizontais com outros debates sobre concepção de luta revolucionária, sobre o papel da classe trabalhadora, formas de conscientização, trabalho de base, tática etc. Podem misturar, por exemplo, como influências de forma de organização o zapatismo, mas, do ponto de vista da relação com a classe trabalhadora, apostar em estratégias de \”proletarização\” de seus militantes, como os trotskistas faziam aqui na década de 1970 nas fábricas.

    Acho que vivemos em uma fase de experimentações políticas e isso é muito interessante, mas não gosto muito de saídas nostálgicas que fetichizam a classe trabalhadora ou que se colocam essa tarefa de \”conscientizar\” o outro, a \”classe\”. Acho que é a prática de uma vida coletiva em comum que pode criar pertencimentos e nisso acredito pouco nas receitas da ortodoxia marxista e muito nas práticas feministas.

    Coletivos

    Outra coisa que explode no Brasil hoje são os coletivos de negros e negras e os coletivos feministas. Isso representa uma mudança subjetiva avassaladora. Hoje não se faz mais um debate na esquerda ou na universidade só com homens ou um debate sobre periferia sem negros e negras, sem gente da periferia, não se pode mais fazer isso sem consequências. E aqui a esquerda tem caído em uma armadilha. Vejo muita gente, de autonomistas a leninistas, dizendo que as novas lutas negras e feministas estão \”dispersando\” a \”verdadeira luta de classes\”, que elas são \”cooptadas pelo sistema\”, são \”pós-modernas\”. Mas o que é a \”classe\” no Brasil? A classe é uma mulher negra que trabalha fora e dentro de casa cuidando de outros, mal paga. Não é possível falar do neoliberalismo hoje sem falar do encarceramento em massa de negros que ele produziu, sem falar do feminicídio que explode, sem falar de um modelo de exploração permanente do corpo e da vida das mulheres, que servem de colchão para toda crise econômica e social que o próprio sistema produz. Então, eu diria que nada é mais ameaçador para a ordem capitalista do que mulheres feministas e negros e negras que se organizam. Toda a concepção de trabalho, de valor, e até mesmo de quais as vidas merecem ser vividas no capitalismo é produzida com os pilares do patriarcado e do racismo.

    Existe uma desconfiança em relação à \”esfera pública\” generalizada. Entre aspas mesmo, porque sabemos hoje que ela não é democrática, pública, ou igualmente acessível a todos e todas. Talvez o que toda essa constelação de novos movimentos esteja produzindo, como ecologia política, seja novas possibilidades de radicalização democrática. Quando os secundaristas ocupam suas escolas, entre outras coisas, é para dizer que eles próprios devem poder decidir sobre suas vidas, sobre suas escolas, contra uma gestão autoritária e burocrática. A divisão existente em muitos partidos de esquerda, que separa dirigentes-formuladores de política daqueles que executam tarefas, essa divisão não faz o menor sentido para essa nova geração. Não podemos pensar uma nova institucionalidade que seja mais aberta, mais democrática, sem pensar as formas tradicionais de organização das esquerdas.

    IHU On-Line – Como a esquerda, em geral, reage diante desses movimentos difusos? Eles podem ser considerados como movimentos ligados à esquerda?

    Alana Moraes – Quando o chamado novo sindicalismo surgia nos anos 1970, 1980, fazendo grandes greves e depois durante toda a discussão de formar um novo partido da classe trabalhadora, o PCB, que era a \”esquerda tradicional\” da época, dizia que criar o PT seria um gesto inconsequente, que atrapalharia no processo da abertura democrática e que o verdadeiro partido da classe era o PCB. É muito curioso que agora muitos dirigentes do PT estejam falando a mesma coisa desses novos movimentos, coletivos, do próprio processo de mobilização de Junho de 2013. Eu acho que o binômio novo X velho talvez não nos ajude hoje, ainda mais nessa conjuntura de reação conservadora. Precisamos pensar juntos novas formas organizativas, e hoje eu não vejo nenhum partido de esquerda realmente aberto a isso.

    A esquerda cria um universo próprio, com um vocabulário próprio, é autorreferente; o marxismo, muitas vezes, é tristemente transformado em cartilhas. A derrota sofrida pelo PT no Brasil é uma derrota de toda a esquerda, e penso que se não estivermos suficientemente abertos para formas de organização mais porosas e democráticas, mais conectadas com os novos \”chãos de fábrica\”, escolas, universidades, agroecologia, ocupações urbanas, coletivos de arte, se o programa político não estiver fortemente vinculado com as lutas da vida real, com as possibilidades de construir espaços de resistência ao neoliberalismo, acho que vamos demorar ainda mais tempo para levantar da lona. Não tem atalhos.

    IHU On-Line – Que futuro vislumbra para os novos movimentos sociais? Que impacto eles podem ter no âmbito público, por exemplo?

    Alana Moraes – Acho que vivemos um novo ciclo de lutas. O MTST, os secundaristas das ocupações, os coletivos que discutem direito à cidade, os coletivos feministas, o novo movimento negro, os coletivos antiproibicionistas, a proliferação de coletivos periféricos, o midiativismo, os advogados ativistas, os movimentos de mães de vítimas de violência policial, os coletivos de arte que estão explorando outras linguagens e formas políticas, os hackers e aqueles que discutem hoje o problema da segurança na internet, de uma comunicação livre, de uma alimentação livre de veneno, enfim, acho todos esses compõem o que seria essa nova geração política.

    É claro que o sindicalismo mais tradicional combativo ainda é muito importante, mas hoje temos novos atores em cena e que colocam novas questões – nada nos autoriza a jogar fora as experiências passadas, assim como combater as novas experiências de luta. É uma ecologia política bem interessante e que fala muito sobre o novo Brasil. Com a crise da forma-partido enquanto forma de organização, o que precisamos pensar hoje é o que seriam os novos espaços de confluência para que essas experiências de resistência possam se encontrar mais; como podemos pensar mais ações conjuntas, nos fortalecer mutuamente, nos reconhecer e ir produzindo nossos vínculos porque eles não são imediatos, ao contrário, eles são fruto dos encontros, do trabalho de construção de novas comunidades políticas.

    No final dos anos 1990, começo dos 2000, tínhamos o Fórum Social Mundial que, com todos os limites, nos permitia pensar juntos e nos formar também coletivamente. É preciso retomar esse fio e pensar o que seria hoje esse espaço, quais seriam as novas questões e possibilidades de atuar juntos. Não podemos perder também a possibilidade de criar redes internacionais de resistência, nos conectar com aqueles e aquelas que estão pensando o esgotamento do modelo progressista na América Latina, por exemplo. A recente convocação para a greve de mulheres, a campanha feminista do “ni una menos”, nos interpelam também para pensar desse lugar das alianças internacionais.

    IHU On-Line – Outro ponto da sua pesquisa é o estudo das novas configurações da classe trabalhadora no Brasil. Em que consistem essas novas configurações, como e desde quando elas estão ocorrendo?

    Alana Moraes – A classe trabalhadora no Brasil sempre foi muito heterogênea. Essa classe que imaginamos, masculina e industrial, ainda que muito relevante, só existiu de forma significativa em São Paulo. Nos últimos 30 anos, a forma de acumulação de capital mudou muito, assim como o trabalho. Com o domínio crescente do capital financeiro, as formas especulativas tornam-se cada vez mais importantes. A classe de assalariados transforma-se agora em uma classe de endividados. A tradicional relação capital-trabalho que se dava em um espaço delimitado (empresas, fábricas etc.) perde importância na produção de riqueza, o setor de \”conhecimento\” torna-se o setor mais dinamizado do capital e a classe trabalhadora desloca-se majoritariamente para o chamado setor dos \”serviços\” e dos cuidados. Esse deslocamento é o que faz também com que muitas pessoas procurem outras formas de sobrevivência, como os pequenos negócios, as pequenas produções familiares, o trabalho dos \”bicos\”.

    Com essa nova espacialidade do trabalho, com o fim das grandes fábricas e espaços de produção, fica mais difícil a organização dos trabalhadores nos locais de trabalho. Como diz o geógrafo David Harvey, toda a cidade se transforma agora em uma grande fábrica. Ainda temos um grande setor da classe trabalhadora que se relaciona com o desemprego constantemente. Junta toda essa fragilidade com uma vida impossível nas nossas cidades, com o déficit habitacional, o aumento dos aluguéis pela dinâmica da especulação imobiliária.

    A pergunta que ainda não sabemos responder é: se o sindicalismo correspondia, enquanto forma organizativa, a uma classe trabalhadora do começo do século XX, quais as formas possíveis de auto-organização da classe do começo do século XXI? A esquerda precisa pensar se a figura clássica do \”trabalhador\” pode ainda mobilizar essas novas subjetividades que emergem desde as dinâmicas neoliberais (e suas resistências cotidianas!) ou se a produção de identidades coletivas migrou também para outros lugares.

    É uma pergunta. Não sabemos bem, mas não podemos deixar de pensar nela e não podemos mais alimentar a nostalgia fordista querendo que as fábricas voltem para que nos situemos. A classe trabalhadora mudou radicalmente e pode não construir tanta identidade assim com o trabalho (já que os trabalhos \”que restam\” são trabalhos extremamente precários, extenuantes, pesados), mas com outras dimensões da vida, e por isso a igreja evangélica tem um papel fundamental. O combate ao neoliberalismo também passa por recriarmos formas de convivência, por exemplo, que produzam outras formas de solidariedade e cooperação, novos modos de existência.

    IHU On-Line – Sua pesquisa de doutorado trata sobre a produção da vida em comum e os caminhos da politização do cotidiano entre os sem-teto na periferia de São Paulo. Como a pesquisa está sendo desenvolvida?

    Alana Moraes – A minha pesquisa parte de uma pergunta simples, mas que hoje transformou-se quase em um não-problema para a esquerda e para a própria universidade: como se vive junto? Como é possível produzir uma vida em comum, um espaço compartilhado, pertencimentos coletivos em um mundo neoliberal marcado pelos processos constantes de esgarçamento dos tecidos sociais, pela transformação do mundo do trabalho, pela crise urbana?

    Na minha opinião, o MTST é um movimento incontornável para entender o Brasil de hoje. Ainda que seja um movimento de quase 20 anos, o MTST explode e emerge na cena política com mais protagonismo em Junho de 2013. Portanto, é também fruto de 2013, de algum modo. As ocupações de sem-teto nas periferias de São Paulo são um grande laboratório de produção da vida coletiva. Pensar a alimentação, cozinhas coletivas, como fazer as mediações de conflitos de todo o tipo, a limpeza, as inseguranças de falar em assembleia, o desemprego, separações conjugais, a relação com as crianças, com a fé.

    Na ocupação do Capão Redondo, fizemos uma rádio comunitária e temos também um cursinho popular para jovens, um salão de beleza autogerido, um bazar de roupas usadas. Construímos parede por parede, fiação por fiação. É um mundo extremamente feminino também. São as mulheres que cuidam das relações, as \”tias\” que, de alguma forma, também fazem novos parentescos, \”o movimento tem que entrar no sangue\”, como elas dizem. Na semana passada, fizemos uma roda de conversa só com mulheres sobre trabalho produtivo e reprodutivo na ocupação. Eram mais de 100 mulheres no barracão, e na hora da apresentação quase 90% das mulheres ali ou se apresentou como \”desempregada, do lar\”, ou \”faxineira\”, \”diarista\”, \”cuidadora\”, \”babá\”. Duas mulheres trans, em condição de prostituição, que trabalham à noite, também participaram da atividade. Fiquei pensando que se fosse uma reunião feminista na USP, teria um monte de tensão, mas ali no Capão, evangélicas, prostitutas, mulheres que cuidam, produziram um espaço incrível de formação coletiva e de convívio possível, pensando, por exemplo, o que fazemos com nosso escasso tempo livre. É muito importante pensar o tempo livre. As mulheres praticamente não têm esse tempo: estão sempre trabalhando, cuidando de tudo.

    Minha pesquisa segue os problemas colocados nessa feitura cotidiana das possibilidades coletivas, das práticas compartilhadas de trabalho e cuidados – elas são bem anteriores às cenas que costumamos ver como propriamente \”políticas\”: as manifestações, os embates públicos. Muitas pessoas chegam nas ocupações extremamente fragilizadas, quadros graves de depressão, ansiedades, insônias crônicas, alcoolismo. No entanto, a vida coletiva cura e estou muito interessada nisso também, em como podemos nos curar coletivamente. Eu me esforço muito para não elaborar um conhecimento sobre os sem-teto, mas um conhecimento com eles e elas, com a relação que estabelecemos nas tarefas e afetos de todos os dias. Nossas práticas de ciência precisam também estar situadas e posicionadas politicamente. Não é mais possível, nem desejável, produzir uma política ou um conhecimento de vanguarda, afastado dessas questões que só acontecem quando estamos implicados com algo, com relações, com uma causa coletiva. É um aprendizado de pensar a partir da demanda que a luta nos coloca.

    IHU On-Line – Qual é a expectativa para a greve geral anunciada para esta sexta-feira? Sendo a greve promovida pela CUT e pelas Centrais Sindicais, qual é a expectativa de adesão da população?

    Alana Moraes – Eu acho que vai ser uma mobilização histórica. Para mim, é um exemplo de como o processo prático de construção coletiva pode nos levar para lugares mais interessantes, podemos falar com mais gente. Alguns processos interessantes estão também produzindo essa greve geral: coletivos que estão se reunindo na cidade para colar lambes de convocação como fez o Arrua em São Paulo; o próprio MTST fazendo assembleias em bairros na periferia de São Paulo para chamar as pessoas; os professores das escolas particulares enfrentando, muitas vezes, direções e pais conservadores e aderindo massivamente à greve; o movimento negro mobilizando e convocando para uma ala negra na marcha; os movimentos feministas também convocando bastante.

    Por isso é importante que as estruturas sindicais repensem também o uso dos grandes carros de som que quase sempre impõem uma hierarquia muito grande nos atos e abafam qualquer possibilidade de outras expressões, impedem até que as pessoas conversem. Penso que nossas possibilidades de resistência estão muito vinculadas com a produção de outras espacialidades políticas também, espaços que permitam mais o encontro, que falem para mais gente e que permitam (e distribuam!) mais a própria condição da fala.

  • A periferia contra o estado? Para escapar das ciências tristes! Criemos outras possibilidades

    Por Alana Moraes, Henrique Parra, Hugo Albuquerque, Jean Tible e Salvador Schavelzon | Imagem: Gavin Adams

     

    Cagaram mil e uma regras de conduta
    Eu mandei pra puta que pariu
    E sorri, feliz.
    Jenyffer Nascimento

     

    No último dia 25 de Março, a Fundação Perseu Abramo apresentou os resultados da pesquisa Percepções na periferia de São Paulo, trabalho que era destinado, nas suas próprias palavras a \”compreender, de forma profunda e detalhada, os elementos que têm formado a visão de mundo e o imaginário social nas periferias da cidade de São Paulo\”. Dentre suas conclusões, o estudo considerou que \”a mistura entre valores do liberalismo, do individualismo da ascensão pelo trabalho e do sucesso pelo mérito, com valores mais solidários e coletivistas relacionadas à atuação do Estado, à universalização de direitos, à ampliação da inclusão social, permeiam a visão de mundo e o imaginário dessa nova classe trabalhadora das periferias de São Paulo\”, gerando intensos debates e conclusões peculiares. A pesquisa da FPA foi movida por uma pergunta inicial: \”por que os pobres não votam mais no PT?\”.

    A pesquisa diz muito mais sobre si mesma e sobre a \”visão de mundo\” que a informa, do que potencializa novas perguntas e entendimentos sobre os processos sociais em curso. Curioso observar as leituras que surgiram dos resultados publicados. De uma lado, uma esquerda que se apresenta esgotada, sem assumir uma crise de paradigma constata que o território que pensava como próprio foi ocupado pelo inimigo.De outro lado, aparece uma direita triunfalista, que celebrou com matérias ou editoriais nos grandes jornais os resultados da pesquisa da FPA, no que aparece para eles como capitulação do estatismo de horizonte socialista frente a um liberalismo que é pano de fundo de uma sociedade aberta, do livre mercado, o mérito e o encerramento do conflito ideológico no campo social.

    A pesquisa serve a ambos os propósitos. Porém, outras possíveis leituras se abrem nas fissuras que permitem escapar de um mundo de binarismos, homogeneizações, e guerras culturais ancoradas nas disputas ideológicas do século 20. Esses lugares são os que mostram que a história não acabou, mesmo que algumas formas de construção política de fato não sejam mais possíveis. Bairros organizados para lutar por moradia e transporte, respostas políticas da população que não necessariamente se alinham com escolhas eleitorais. Um tránsito sinuoso, de ondulações e curvas, mostra também a possibilidade de outra ciência e outra política, que não pretende completar o trabalho da civilização ou do catequismo, e não assume como episteme as fronteiras impermeáveis de um indivíduo-cidadão, da sociedade organizada pelo Estado, nem do mercado, do trabalho e da propriedade privada como únicos, permanentes e estáveis de organização.

    Todo o debate gerado em torno da pesquisa, nos fez pensar também que disputar o que \”são\” os pobres é uma armadilha que só pode ser desativada por outras práticas de pesquisa, outros lugares de posicionamento. Essa inquietação a respeito do fundo no qual as questões foram postas nos parece um bom problema de partida: que modos de conhecer podem contribuir para a criação e potencialização de projetos coletivos de autonomia?

     

    Descer a torre e pensar pelas frestas: ritos de desautorização

    \”Por que os pobres não acreditam mais em nossa promessa de salvação?\”. É uma pergunta que ecoa através das décadas. Nas teorias clássicas do populismo, ao menos na sua primeira geração, os pobres eram \”cooptados\”, imersos em uma cultura rural e atávica cujo sentido era conferido pelas relações clientelistas. Estavamos fadados a ter uma classe trabalhadora vulgar, sem consciência, movida por interesses econômicos, quase sempre manipulada. As teorias sociológicas estavam lá para comprovar – isso, é claro, até migrantes nordestinos do ABC paulista restituirem de vez a dignidade da classe contra a teoria. Na cidade de São Paulo, o sindicalismo da oposição metalúrgica, nesse mesmo período, produzia intelectuais-operários e convocava intelectuais das universidades para pensar as possibilidades de luta e autonomia dentro das fábricas. A explosão do movimento operário nos anos 70/80 em São Paulo, assim como os movimentos populares de bairro, emergiam na cena política questionando a velha divisão entre sujeito e objeto, que em um dos seus desdobramentos, também se expressa na divisão que separa a vanguarda política da classe trabalhadora. O desejo de radicalização democrática se insurge também contra as fronteiras do pensamento e a autoridade de enunciação.

    De volta a um período de fechamento democrático, com intensificação das práticas autoritárias estatais, surge também uma necessidade renovada de pensar outras formas políticas que, dentre outros deslocamentos, consiga mais uma vez questionar as formas de produção de conhecimento. Nos deparamos hoje com um mundo em intensa transformação: as formas do trabalho mudaram radicalmente assim como as formas de representação, que hoje econtram-se em crise.

    O que propomos aqui é uma investigação coletiva que seja demandada pelos problemas que surgem de um novo ciclo de resistência, e que possa assim contribuir para desestabilizar a separação hierarquizante das formas de pensar e agir no mundo. Nossa proposta é simples: uma prática de pesquisa que atue pelas demandas concretas das resistências ao modo de vida neoliberal. É preciso também rejeitar a crítica ao \”pensamento intelectual\” que vem ecoando entre nós mesmos, lutadores e ativistas. Para superar esses impasses, nosso desafio é ainda maior: afirmar que é da luta e das criações de novas formas de vida que podem nascer reflexões intelectuais criativas e potentes. Da mesma forma, afirmar que não há potência de pensamento que não esteja fortemente implicado em processos coletivos de transformação. Não há pensamento criador sem luta, como não há luta sem produção de conhecimento.

    Assumir uma prática de pesquisa na qual estamos todos posicionados, implicados em causas e processos coletivos. Não nos é mais permitido fazer uma ciência ingênua. As feministas bem sabem que sem o corpo, sem a compreensão da economia de relações que fazem os próprios \”sujeitos\”, suas vulnerabilidades, sofrimentos e cotidianos não é mais possível fazer conhecimento, muito menos política. A crença na existência de sujeitos prontos – seja ele o sujeito da classe, seja ele o novo sujeito periférico é uma crença masculina que nunca leva em conta todo o trabalho anterior de relações, vínculos, alimentação, pertencimentos que produz pessoas, pensamentos, \”opiniões\”. Trabalho esse muito mais imprescindível em contextos populares. O movimento negro emergente no Brasil também tem produzido formulações imprescindíveis para pensar as formas de ciência. Pensar, por exemplo, como o racismo atua profundamente nas subjetividades, impedindo de forma violenta com que os sujeitos tenham acesso a sua própria fala: como levar à sério essas formulações nas práticas de \”aplicação de questionários\”, por exemplo?

    A dinâmica dos questionários pode ser muito cruel quando ele se torna uma inquisição averiguadora de \”valores\” dos pobres. Se a aposta for no mundo do discurso sobre a realidade, não tenham dúvida, ao menos no mundo ocidental, ele sempre estará do lado dos valores dominantes – da periferia de São Paulo ao Bronx. Uma política renovada precisa pensar outras formas de conhecimento sobre a realidade que não estabeleça tribunais, mas ao contrário, que se afete pelos interstícios, pelos escapes – que não negue a dominação, mas que consiga pensar apesar dela.

    Uma ciência que se compromete com a epistemologia das classes dominantes não pode ser outra coisa que não um retrato triste do pensamento colonial e da impotência política, ora pacificando as experiências dos pobres em categorias estranhas como o \”liberalismo popular\”, ora culpando os próprios pobres por não entenderem nunca as engrenagens da sua própria dominação. É também a expressão de um mundo intelectual que só consegue pensar a si próprio como a vanguarda iluminada da classe – distante, pedagógica, mas intacta em suas certezas.

    No entanto, a vanguarda nunca está lá – se estivesse, saberia, por exemplo que o apelo a imagem do \”empreendedorismo\” é evocada entre várias camadas de experiência: do pragmatismo das \”virações\” cotidianas de quem sempre foi excluído do assalariamento (especialmente mulheres) até o desejo de poder trabalhar sem um patrão. Quando a pesquisa identifica no \”empreendedorismo\” um \”liberalismo popular\” joga fora, de uma vez só, toda uma experiência de classe forjada entre migrações, industrialização e desindustrialização, desempregos constantes, assim como toda a dinâmica pragmática de uma economia popular feita por cabeleireiras, motoboys, faxineiras, ambulantes, as pessoas dos \”serviços gerais\”, a classe que vive do cuidado.

    A pesquisa dispensa também os intelectuais da classe que pensam a periferia porque sentem o que isso quer dizer e desobedecem, mais uma vez, as cercas que pretendem separar \”pensadores\” de \”objetos\” de conhecimento: movimentos populares, os artistas periféricos ou que constrõem relações com a periferia, as redes de cursinhos populares, movimento negro, feministas, secundaristas, aqueles que fazem as novas batalhas de slam, os saraus – deixam de pensar também a partir das tensões geracionais que hoje explodem dentro da própria classe. Uma pesquisa sobre os \”pobres\” que se pretende crítica dos poderes dominantes – da ciência ao golpismo – deveria convocar aqueles que estão produzindo pensamento na periferia, nos emaranhados de suas contradições e modos de vida, para pensar desde as hipóteses iniciais até às interpretações dos dados. Toda pesquisa deve ser também a possibilidade de encontros.

    Uma das consequências não previstas da ampliação do acesso à universidade no Brasil, com todos os limites desse processo, das transformações recentes na sociedade brasileira, foi a entrada massiva dos mais pobres, negros e mulheres nas universidades; a proliferação de coletivos feministas, coletivos negros, a luta por melhores condições nas universidades. Um processo não desprezível de tomada de assalto dos lugares de enunciação do conhecimento e que estabelece, pouco a pouco, ritos de desautorização da figura do homem branco intelectual portador da ciência. Desautorizam também as arenas de disputas em torno do que são ou devem ser os pobres. Nos convidam, mais uma vez, a embaralhar as fronteiras que separam pensamento e luta, transformar as práticas de fazer conhecimento.

    Não queremos afirmar a \”experiência\” como um lugar de autoridade: ela é um campo atravessado por inúmeros fatores e circunstâncias. Ela também é produzida por poderes e contra-poderes, violência, a vaga na creche que nunca chega, a passagem que aumenta novamente. No entanto, uma prática transformadora de conhecimento deve por isso apostar na fricção com a experiência ao mesmo tempo que deve também recusar, sempre que possível, a autoridade de um saber \”explicativo\” e especializado. A pesquisa do Eder Sader sobre a periferia de São Paulo nas décadas de 1970-80, por exemplo, já levava muitas dessas questões e era movida tambem por um espírito de criação emancipadora e coletiva que apostava na relação orgânica com a classe para pensar outros caminhos de ação. Aliás, naquela época, a desconfiança dos pobres em relação ao Estado já era evidente. No entanto, muitos intelectuais petistas como Eder Sader extraíam dessa desconfiança, proposições radicais sobre novas formas democráticas.

    Para derrotar o modo de vida neoliberal, precisamos voltar a perseguir problemas complexos. Eles estão por todos os lados, são produtos também das próprias praticas de resistência. Seria um problema muito mais interessante, por exemplo, pensar como é possivel que essa fração de classe que a pesquisa identifica como \”liberal\” e \”solidária aos seus empregadores\” seja também aquela que compõe a base social de movimentos sociais como o MTST. Pensar os problemas levantados pelas experiências de arranjos comunitários em curso: cozinhas coletivas, práticas de educação popular, produções artísticas que vem construindo novas linguagens e dispositivos de \”politização\” mais horizontais, as novas experiências de clínicas públicas de psicanálise, os coletivos de comunicação e midiativismos periféricos. É que as verdadeiras questões dão trabalho (nascem do trabalho de toda construção coletiva!) e, no fundo, precisamos escolher se vamos pensar com a classe (a classe preta, mulher, jovem, universitária), sobre ela ou contra ela. Pensar, finalmente, como a classe é feita e não dada.

     

    Para além do binarismo Estado X Mercado

    A esquerda que só se concebe do lado do Estado, e contra o mercado, também pode ser produtora de subjetividade neoliberal, criando condições para que, no final do caminho, o sujeito revolucionario transmutado em consumidor do mercado, dispense suas vanguardas e padrinhos, sem que a transição a um governo abertamente pro mercado, por mais diferente, não se constitua em clivagem determinante para a vida das famílias da periferia.

    O estudo da FPA conclui inequivocamente que a recusa ao Estado, e afirmação de alternativas a ele, são liberalismo. As massas pobres das periferias só poderiam estar alienadas, embebidas no sonho do mercado. A resposta, e antes dela, a pergunta, diz mais, novamente, sobre quem a fez do que quem a respondeu. Os pobres sujeitos à repressão sistemática do Estado mediante o aparato de segurança e, por outro lado, excluídos dos modos de autopreservação e cuidado público – a educação, a saúde etc – deveriam amar o Estado – e ainda que este funcione mal, talvez, deveriam ter a consciência do seu funcionamento ideal. Deveriam?

    A mesma conclusão esbarra em uma armadilha conceitual: como poderia o liberalismo ser contra o Estado? Não foi sob o regime neoliberal que se constituíram enormes redes de repressão policial, desenvolvimento bélico, apropriação dos fundos públicos e expropriação do patrimônio coletivo, espionagem de cidadãos e de fantásticos aparatos de aprisionamento e punição? O liberalismo, ainda que conteste o \”Estado grande\”, jamais atuou no sentido de sua abolição, tampouco advogou pela sua diminuição de garantidor da ordem capitalista.

    As multidões periféricas, ao conseguirem habitar, cuidar de sua saúde e se proteger da violência física perpetrada pelo Estado, podem ser mais anti-liberais do que as tais estruturas anti-liberais: a ideia vã de uma dicotomia entre Estado e Mercado, quase como uma batalha do fim do mundo, gera um sistema no qual em um polo está um Mercado planejado pelo Estado e, no outro, um Estado a serviço de um Mercado — a despeito dos arranjos e das gradações, Estado e Mercado estão sempre ali, interdependentes.

    O liberalismo pode ser inclusive interpretado como provocação e resposta dos pobres, frente ao Estado da esquerda que não oferece saídas políticas viáveis, nem projetos de sociedade sedutores, e menos ainda o mercado, frente ao qual os pobres sabem, sim, reivindicar o Estado ou, quem sabe, um outro lugar para além da representação e burocratização da vida.

    O binômio Estado X Mercado apresentado pela pesquisa perde de vista uma das principais engrenagens do modo de funcionamento do neoliberalismo que, para avançar, precisa que mercado e Estado produzam uma coexistência intrinseca: seja nas ações publicas orientadas por critérios de \”produtividade\” ou \”eficácia\”, a \”gestão de resultados\” ; seja no papel crescente das polícias como garantidoras extra-legais da propriedade privada, da especulação imobiliária e na criminalização dos movimentos questionadores da ordem de mercado.

    Se a romantização dos pobres e da pobreza é um equívoco, isso não pode ser dito nem pensado sem uma necessária desromantização do saber técnico, neutro e, literalmente, iluminado da ciência pura que se pressupõe, ainda hoje, uma espécie de demiurgo, de ente transcendental capaz de organizar o mundo a partir de seu local privilegiado de observação.

     

    Uma ciência comum para uma política do comum

    Toda ciência fabrica mundos. Um ato de descoberta científica produz novos objetos, novos processos, novos sujeitos e com eles surgem outras recomposições do mundo. É por isso que podemos dizer que a ciência é também política, no seu melhor sentido. Ela cria novas partições, novas dobras e novos pertencimentos com o real. Na sua versão etnocêntrica e colonial, no entanto, a ciência é política no mal sentido; ela fecha mundos, se interpõe sobre caminhos divergentes, ela \”limpa\”, \”barra\” as diferenças, classificando e organizando tudo no lugar narcisista do Eu. É política do poder, da ordem e do progresso.

    O desafio de construir outras formas de produção de conhecimento exige também a invenção de outras formas políticas. Como seria essa ciência comum potencializadora de outros mundos compartilhados? E o que pode acontecer se partirmos de uma perspectiva parcial, situada e incorporada e que fosse movida pelos problemas dos modos de existência? O que acontece se renunciarmos de partida às ambições projetivas e as totalidades pré-constituídas ou mesmo à eleição de um ponto de vista privilegiado a partir do qual explicamos todo o ordenamento do social? Se todo saber é também poder, como seria produzir um saber insurgente de uma forma política também desconhecida?

    Inspiramo-nos aqui na experiência de diversos movimentos sociais, comunidades afetadas (por problemas de saúde, desastres, conflitos etc), minorias organizadas que a partir de sua experiência e saberes produzem junto a outros atores cognitivos e políticos (pesquisadoras e pesquisadores profissonais ou amadores, ativistas, gestores engajados entre outros), novas formas de organização e luta simultaneamente à produção de conhecimentos contra-hegemônicos. Neste processo, surgem também novos sujeitos políticos. Encontros de saberes e formas diferentes de vida interessadas na co-criação de mundos. A experiência de mulheres que se organizam e que produzem saberes que interrogam as práticas e protocolos médicos, num ataque direto à biopolítica dos sistemas de saúde; os trabalhadores então invisibilizados ou silenciados que criam seus centros de pesquisa e documentação e confrontam as estatísticas oficiais (como foi a criação do Dieese); indígenas e quilombolas cujos saberes são indissociáveis da produção das formas de suporte à vida em comum; hackers e suas comunidades cujas práticas modificam o regime de visibilidade da vida contemporânea tecnicamente mediada, produzindo política através de tecnologias aparentemente neutras, criando clivagens que dão a ver os novos processos de produção de valor e as técnicas renovadas de governo das populações.

    Se criamos espaços de escuta novas linguagens podem ser inventadas (ao invés de ficarmos operando mediações que encaixam o pensamento dos outros em nosso mundo). Talvez seja mais do que tradução, mas a pura invenção de uma outra linguagem comum, por isso, também criadora de outras comunidades políticas. Os regimes de subjetivação que nos constituem são muito heterogêneos. Se desejamos criar novos entendimentos, capazes de fazer proliferar a multiplicidade do real, teremos que aceitar as indeterminações e os trajetos experimentais. Disputemos a imagem do laboratório! Ao invés da sala limpa, pensemos num laboratório contaminado. Nossa hipótese é de que podemos constituir um novo laboratório (que fabrica novos sujeitos, novos objetos, novos mundos) junto àqueles que estão produzindo novas formas de vida em comum, agindo contra o desmanche de algo que é comum e encontra-se ameaçado pelas forças em jogo. Porém, este comum não é necessáriamente conhecido ou visível. Ele é aquilo que é produzido entre todos, e não para todos. Mas justamente por isso, é frequentemente imperceptível. Ele pode ser o silêncio da noite, a qualidade do ar que respiramos, o tempo que temos para cuidar dos próximos, nossos trajetos na cidade e até o trabalho que temos (como é difícil definir hoje as bordas do trabalho e do não-trabalho!).

    Como seria a política dessa forma de conhecer? Talvez, ela também seja inventada justamente ali onde se produz a vida mais ordinária. Nossa hipótese, é que esta forma de conhecer surge simultaneamente à formação de novas comunidades políticas que, para além do regime da representação, produzem a política de forma imanente à vida. Se ela realiza no presente sua política, não é que ela seja prefigurativa da forma política a se construir noutras escalas. Sua política é da ordem de uma singularidade. Ela é menor, situada, parcial, incorporada, da mesma forma que o conhecimento que a produz.

    Apostamos que nesta forma de conhecer por meio desta política do comum, novas individuações coletivas – de ordem transindividual – podem emergir. Por isso, não há forma política a ser preenchida. E isso é o mais difícil no atual momento. Manter os canais de enunciação, de práticas cotidianas, de formas multiplas de pertencimento, todos abertos à proliferação de outras formas de vida (mais solidárias, mais emancipatórias, mais autônomas etc) também demanda a capacidade de lutar contra todas as formas de opressão, homogeneização, sujeição e exploração. Essa forma de conhecer que desejamos praticar com essa política, é sempre feita a favor de algo e contra algo.

     

    Conclusões tão precárias como a classe: por outras práticas de pesquisa-luta

    Uma ação política emancipatória que realmente queira sair de seu beco sem saída precisa, sem dúvida, atravessar os muros que nos separam não apenas fisicamente, mas os muros que interditam o desejo, o pensamento, as práticas de existência em comum

    O problema da liberdade e da emancipação coletiva, da construção de mundos que buscam superar opressões e muros, é um problema que nos situa, todos e todas, em um terreno comum. Isso quer dizer que, apesar de todas as experiências de lutas, das mais vitoriosas até as derrotadas, apesar de todas as teses, ensaios, questionários, não há fórmula-guia que possa nos confortar e mostrar a salvação. Não sabemos. Ou apenas sabemos que nosso saber não pode ser interposto a outros saberes. Não há um plano pronto a ser executado e nesse sentido, toda pesquisa que se pretende comprometida com um projeto de transformação deve conter, desde o início, a possibilidade de experimentações e criações. A relevância de uma pesquisa engajada pode ser testada pela possibilidade que ela oferece de fazer sentido para as pessoas, em suas vidas comuns, para a produção de novos mundos.

    Perseguimos a hipótese de que um conhecimento ativo pode ser produzido a partir dos ruídos com a experiência, extrapolando os lugares de autoridade e ser o resultado de alianças e relações entre diferentes saberes situados e desejantes de um projeto comum. Não é mais permitido (ou legítimo) produzir um saber sobre os \”outros\” de modo instrumental, reificado e não-solidário. Nossa prática de investigação se deseja híbrida e acontece no meio, no entre pesquisa-luta, sua terceira margem. Em certo sentido, é uma forma de conhecer antiga, mas que no atual contexto adquire novas configurações graças às metamorfoses nos regimes de poder e suas formas de saber: os antigos centros de produção de verdades e seus dispositivos, multiplicaram-se e há também novas concentrações, fazendo emergir novos campos de lutas.

    Um laboratório ocupado por corpos e saberes interpelados pelo problema da fabricação de um mundo em comum. Pesquisadoras, pesquisadores que sejam capaz de farejar onde estão as dobras que podem nos mover, as questões que os poderes dominantes tentam esconder a qualquer custo, que possam produzir interferências no sistema hierarquizado de saberes e que possam, de fato, sonhar com outros mundos mas também praticá-los. Enfim, abandonar o delirio de fazer uma ciência neutra que revele as \”percepções\” dos pobres (pra quê? pra quem?) e ensaiar novos laboratórios povoados de corpos, afetos, interferências.

    Fazer mundos exige escuta, é entender com outros, exatamente o que precisa ser feito: novas infraestruturas para a vida coletiva; espaços que possibilitem decisões coletivas sobre a vida comum, pensar o compartilhamento dos cuidados, gerir o problema do desemprego e produzir novas sustentabilidades, criar novas práticas de co-formação que possam se multiplicar, redes de proteção contra violência do estado, novas linguagens e, dessa forma, apontar para outras formas de vida que não estejam encerradas no binarismo Estado X Mercado. Pensar com outros – levar à sério as diferenças, suas contradições, formas de vida, práticas de existência. A classe sempre está por fazer-se, não há uma susbtância a ser revelada.

    Contra a melancolia da vida neoliberal e suas práticas de conhecimento impotentes, cultivemos os afetos alegres de uma ciência implicada e comprometida com a produção de formas de vida em comum, mais solidárias e emancipatórias.

     

    Publicado também em: http://outraspalavras.net/brasil/quer-dizer-entao-que-a-periferia-e-liberal/