Tag: movimentos sociais

  • Apontamento sobre o encontro #OcupaPolítica

    por Rodrigo Nunes

    Alguns apontamentos sobre o encontro #OcupaPolítica, ocorrido no fim de semana passado em Belo Horizonte.

    Nossa conjuntura atual nos coloca entre um processo destituinte que não foi concluído e um processo constituinte que (ainda) não se abriu. Isso nos impõe uma urgência, um problema, uma dificuldade e um risco. A urgência é óbvia: se o governo Temer fez o que fez em tempo tão curto e tão turbulento, o que mais não se fará em quatro anos, com maiorias parlamentares ainda mais acachapantes, no nível federal e nos estados? É preciso construir uma presença legislativa capaz, no mínimo, de barrar maiores retrocessos e, se possível, de articular alguma coisa nova, distinta tanto da rapinagem atual quanto do neodesenvolvimentismo tacanho da segunda metade do ciclo petista. O problema é: como fazer isso, se não só a esquerda institucional colapsou, como não existe ainda uma energia social mobilizada na direção de constituir algo novo? A dificuldade, por sua vez, é que é impossível transformar a representação política desde dentro da própria representação; a representação é uma relação entre representantes e representados, e o único jeito de realmente mudar seu funcionamento (para além das várias reformas possíveis e necessárias) é se os representados são mais fortes que os representantes e são capazes de impor-se sobre eles. O risco, finalmente, é que essa energia social constituinte venha a ser mobilizada de cima para baixo, seja pela constituição de um novo pacto de centro-direita, seja por uma esquerda ou centro-esquerda preocupada menos com um projeto de transformação efetiva que com a simples ocupação de espaços no tabuleiro político existente.

    O Ocupa Política aponta uma possibilidade, ainda incipiente e talvez inevitavelmente transicional: a aposta em candidaturas que, ao invés de serem tentativas por parte de atores políticos já estabelecidos de capitalizar em cima do quadro descrito acima, são impulsionadas por forças sociais mobilizadas localmente em territórios ou em torno de temas e bases sociais pontuais (feminismos, diversidade sexual e de gênero, universidade pública, direitos indígenas, commons digitais etc.). Como tudo neste lusco-fusco em que estamos vivendo, a fórmula “renovação da política” já parece nascer velha, apropriada que ela é por “novos” (e “podemos”) que são apenas embalagens diferentes para mais do mesmo. Mas, no caso da aposta delineada em BH – experimentada hoje em experiências como as Muitas da capital mineira e a Bancada Ativista em São Paulo –, a “renovação” tem o potencial de ir bem além de uma simples troca de nomes ou rostos, porque incorpora uma lógica diferente de ocupação da política representativa.

    Esta lógica é diferente em pelo menos cinco sentidos. Primeiro, ela é coletiva: é a construção de mandatos a partir de bases mobilizadas que tentam manter uma máxima capacidade de “dirigir” os representantes desde baixo, impedindo que estes se autonomizem demais; trata-se, como confluências municipais espanholas como o Barcelona en Comú já o disseram, de uma tradução da ideia zapatista de “mandar obedecendo”. Segundo, ela é não-competitiva: ao invés de uma disputa em torno de cadeiras, ou da subordinação de todos os interesses ao imperativo de “construir o partido”, ela pensa em termos de visibilizar e fortalecer um campo político, transversal a diferentes candidaturas e partidos, que opere segundo essa mesma lógica. Isso faz com que, terceiro, sua relação com os partidos seja distinta. O vetor da relação não é de dentro para fora – as estruturas partidárias buscando bases para representar –, mas de fora para dentro: grupos organizados efetivamente “ocupando” o partido como veículo institucional, fazendo o seu próprio jogo sem subordiná-lo àquele das estruturas partidárias. Isso equivale a uma quebra de monopólio (ou, para usar uma metáfora computacional, uma “quebra de código”) da representação política; e acredito que este campo político como um todo deva assumir o compromisso levar esta lógica às últimas consequências, assumindo como pauta uma reforma da lei eleitoral que quebre o monopólio dos partidos de vez, possibilitando a existência de “candidaturas cidadãs”. Quarto, embora lide com pautas que identificamos como sendo “da esquerda”, ela está menos investida em falar uma língua ou corresponder a uma identidade já estabelecida do que seria “a esquerda” e mais preocupada com construir novos consensos sociais em torno destas pautas, o que supõe escuta e acolhimento a outras realidades (evangélicos, empreendedorismo popular, os medos e anseios das classes C e D que muitas vezes são capturadas pela direita etc.) Quinto, ela é (por falta de palavra melhor) “excêntrica”, no sentido literal de “fora do centro”: desde o princípio ela dá por entendido que renovar a representação política não é só mudar os representantes, mas modificar a própria lógica de quais pessoas podem aparecer como líderes ou representantes. Neste sentido, o encontro de Belo Horizonte foi impressionante, com presença e protagonismo massivo de mulheres, negros e negras, indígenas, moradoras e moradores de periferias, LGBTQ etc.

    Cada um destes pontos envolve perigos. A ênfase nos grupos subalternizados pode se transformar num fetiche que faz de um Outro o portador inconteste da verdade (o que se vê quando muitos seguem dando carta branca a um individuo por haver sido um grande líder operário). A abertura pode virar oportunismo e falta de nitidez de propósitos. A não-competitividade está sempre potencialmente ameaçada pelas demandas próprias à lógica eleitoral. A coletividade só se mantém se há uma base que permanece ativa, mobilizada e aberta à escuta da sociedade em geral. A relação com os partidos “hospedeiros”, finalmente, exige destes a capacidade de leitura da realidade, a inteligência e sensibilidade políticas de abrirem-se a esta outra lógica sem tentar fagocitá-la ou instrumentalizá-la: tentar transformar um jogo de ganha/ganha num de ganha/perde só pode acabar por criar uma situação em que todos saem perdendo. Exige também, por óbvio, a capacidade dos “ocupantes” de navegar a relação com os “hospedeiros” sem nem submeter-se à lógica destes, nem reproduzí-la em seus próprios grupos. Esta tensão entre duas lógicas não deixou de estar visível em alguns momentos do OcupaPolítica.

    A urgência da atual conjuntura justifica considerar que estes são perigos que vale a pena correr? Evidentemente, esta era a ideia de quem estava em Belo Horizonte. Mas o cálculo parece carregar, para além dessa consideração conjuntural, um reconhecimento desassombrado da natureza fundamentalmente conflitiva (portanto tensa e arriscada) da política. Como bem disse Gustavo, integrante da “gabinetona” das vereadoras Áurea Carolina e Cida Falabela em Belo Horizonte: “confluências não são dadas, confluências são esforço”.

    Em diferentes momentos do ano passado estive jogando com dois conceitos, “transbordamento” (http://bit.ly/2jTWtEl) e “promiscuidade virtuosa” (http://bit.ly/24vPAfe). “Transbordamento”, inspirado no “desbordamiento” de que se falava no 15M espanhol, nomeava quatro coisas: a tática possível num momento em que o ocaso das grandes organizações de massa coincidia com condições técnicas que possibilitam a núcleos organizativos relativamente pequenos produzir efeitos em grande escala (um “movimento de massa sem organizações de massa”); o fato de que ninguém é capaz de determinar estes efeitos por completo ou controlar os resultados que seguem dele; o fato de que parte desse descontrole está em conectar-se com pessoas e desejos que estão para além do gueto da identidade de esquerda, o que cria a possibilidade de superar identidades coletivas já constituídas e plasmar identidades novas (por exemplo, aquilo que os espanhóis chamaram de “cidadanismo”); e, finalmente, a aceitação disto como uma condição positiva a ser abraçada – a possibilidade de uma “política de código aberto”, que vai se transformando no próprio processo colaborativo que institui. Já “promiscuidade virtuosa”, que acabou virando piada e até grupo do Telegram entre amigos, referia-se a duas ideias distintas. Primeiro, a necessidade de construir consensos pontuais e identidades comuns com gente que não pertence a ou não seria automaticamente percebida como pertencendo ao campo “da esquerda”; de pensar em termos não de converter as pessoas à nossa identidade, mas de criar as condições para fazer avançar as pautas que consideramos fundamentais no interior de uma situação de heterogeneidade social e política. Segundo, a necessidade de construir um outro tipo de relação com os partidos e a representação em geral, partindo ao mesmo tempo da ideia fundamental de que a única maneira de assegurar o bom funcionamento desta relação é fazer com que os representantes dependam mais dos representados que vice-versa (ou, dito de outro, modo, que as lideranças sejam sempre relativamente frágeis frente a suas bases), e da constatação que uma das coisas que fez desandar a relação entre bases e lideranças na experiência petista foi a aposta por construir uma relação exclusiva com um só partido, um só conjunto de lideranças e, no limite, um único líder. A primeira ideia critica, portanto, a endogamia da esquerda, sua tendência a relacionar-se sempre para dentro ao invés de para fora; a segunda critica a monogamia na relação entre representados e representantes, que tende a fortalecer os últimos em detrimento dos primeiros. Em ambos os casos, a promiscuidade é dita “virtuosa” não só por ser uma virtude, mas por ser praticada às claras, de forma não-manipuladora e não-competitiva; por ser questão de virtù (flexibilidade e desenvoltura para aproveitar as oportunidades que se apresentam); e por ser o melhor antídoto contra o vício próprio a cada tipo de relação (o fechamento e a autorreferência identitária, no caso da endogamia; a dependência unilateral e o abuso de poder, no caso da monogamia).

    É evidente que transbordamento e promiscuidade virtuosa são lados da mesma moeda: a prática da promiscuidade tem por fim abrir os partidos e a esquerda em geral à lógica do transbordamento; para poder realizar-se, porém, ela depende que algo desta abertura já exista. A tensão entre duas lógicas diferentes aparece aqui como, mais que uma circunstância temporária a ser resolvida futuramente, uma questão de fundo. Embora ambas partam da ideia de uma composição heterogênea de forças políticas e sociais, a própria noção de partido contém a ideia de que, pelo menos virtualmente, todas as diferenças poderiam se resolver ao serem incluídas numa mesma organização; por definição, cada partido é, para si mesmo, o único, de onde sua exigência instintiva de exclusividade. Substituir a política monogâmica por uma outra, em que as relações são pensadas menos como compromissos eternos e mais como condicionadas pelo benefício mútuo (uma “política Tinder”?), implica abandonar de vez a ideia de uma homogeneidade a ser realizada no futuro e assumir a heterogeneidade como um dado inescapável. Isto significa deixar de pensar o problema da organização como se referindo à construção de uma organização capaz de tudo abarcar para pensá-la como sempre necessariamente envolvendo uma ecologia organizacional diversa na qual é preciso atuar.

    Mas qual vantagem haveria aí, então, para os partidos? Ora, em primeiro lugar, a de ver suas pautas avançarem na sociedade, mesmo que isso não venha necessariamente acompanhado da hegemonia do próprio partido. Mas sobretudo, segundo, a questão é que, nas atuais condições, abrir-se à possibilidade do transbordamento parece ser a única coisa capaz de devolver à esquerda a relevância e eficácia políticas perdidas. Pretender controlar ou hegemonizar o pouco que se tem equivale a condenar-se a continuar tendo muito pouco, certamente bem menos do que se precisa. É preciso assumir por completo o desafio de entrar na era daquilo que Jeremy Gilbert chamou de “política de plataforma” ( http://bit.ly/2uTvpLp) – da criação de estruturas e contextos de colaboração e concentração da atividade coletiva que (para adaptar uma formulação do Victor Marques) “possibilitam efeitos sem determinar resultados”.

    Esta ideia nos serve, concluindo, para uma observação (parcialmente) crítica. O que esta noção de plataforma sugere é que abertura e estrutura não são o oposto uma da outra, antes pelo contrário: a segunda pode funcionar como condição da primeira. No #OcupaPolítica, os debates que melhor funcionaram foram aqueles que tinham formatos mais estruturados. O destaque, neste sentido, ficou com a mesa “Pé na Porta”, na última noite, em que quatro debatedoras (Nilma Gomes, Sonia Guajajara, Antonio Martins e Tatiana Roque) tinham cinco minutos para responder a perguntas propostas pela mediadora (Áurea Carolina), e havia quatro cadeiras à disposição para que pessoas do público viessem fazer comentários ou réplicas por três minutos. Com este formato, era possível sentir que havia uma discussão que avançava e, se não necessariamente formava consensos, pelo menos tornava mais claros quais e onde estavam os dissensos. As rodas com formatos aparentemente mais “abertos” frequentemente acabaram falhando em produzir conversas de verdade; sem pretender responder perguntas ou definir problemas comuns, elas por vezes produziam a sensação de que as diferentes falas não se comunicavam entre si, e abriam espaço à lógica estéril da disputa de espaços e da demarcação de territórios. É preciso urgentemente repensar os formatos de organização de encontros para que eles efetivamente conduzam à elaboração de pontos comuns e problematizações feitas em conjunto. Isso passa necessariamente por conceder a quem organiza estes eventos a confiança e a autonomia para propor formatos que sejam ao mesmo tempo estruturados e abertos, orientados por questões claras e concretas e, assim, realmente abertos à possibilidade de testar hipóteses e formular respostas coletivamente.

  • Violência, pobreza, cultura e potência. A periferia e as tentativas de transformação da realidade. Entrevista especial com Tiaraju D’Andrea

    Por: Patricia Fachin, entrevista Tiaraju D\’Andrea

    fonte: http://www.ihu.unisinos.br/568429-o-sujeito-periferico-e-suas-tentativas-de-transformar-a-realidade-entrevista-especial-com-tiaraju-d-andrea

     

    “A periferia paulistana passa por um período de transição”. Esse é um dos diagnósticos do sociólogo Tiaraju D’Andrea, que acompanha as transformações nas periferias nos últimos 25 anos. Segundo ele, embora o lulismo tenha representado “uma melhoria nas condições de vida” na periferia, “o desemprego ronda esta população, sendo as condições de trabalho uma preocupação concreta”, e “há uma descrença generalizada nos partidos políticos e no sistema representativo como um todo”.

    Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, D’Andrea explica as principais transformações ocorridas na periferia paulistana em duas décadas e meia, como o surgimento do Primeiro Comando da Capital – PCC, o crescimento dos evangélicos e a explosão de coletivos artísticos. “Esses três fenômenos foram saídas encontradas pela própria população da periferia para superar o contexto de violência e pobreza da década de 1990. Foram formas de superar o esgarçamento do tecido social e criar uma ética regulatória em um contexto de crise”, avalia.

    Além disso, pontua, três outros fenômenos que não estavam presentes na década de 1990 ajudam a compreender as transformações nas periferias. “Uma narrativa, ou a tentativa da periferia de contar a sua própria história e sem depender de mediadores, uma subjetividade, ou o fato de os moradores da periferia passarem a ter orgulho dessa condição, e o lulismo, como forma de governo, baseado no aumento dos direitos sociais e do consumo”. Na atualidade, frisa, “pode-se observar o crescimento de tendências conservadoras, assim como na sociedade em sua totalidade”.

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    Tiaraju D’Andrea | Foto: Arquivo pessoal

    Tiaraju D’Andrea é doutor em Sociologia da Cultura, mestre em Sociologia Urbana e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Atualmente é pesquisador convidado da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris.

     

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – Um dos temas problematizados na sua tese é o sentido e o significado do termo ‘periferia’. O que entende por ‘periferia’ a partir das suas pesquisas?

    Tiaraju D’Andrea – Historicamente, sempre houve uma disputa entre distintos agentes sociais para obter a preponderância para definir o que era ou o que é um fenômeno social de nome periferia. Denominamos aqui “discurso preponderante” aquele que possui maior abrangência e aceitação social para a explicação de um determinado fenômeno, mas isso não quer dizer que não existam outras explicações concorrentes.

    De acordo com a tese, de mais ou menos 1960 até 1993, a academia possuía a preponderância da explicação do fenômeno periferia. Eram intelectuais de distintas áreas como sociologia, antropologia, geografia, economia, história e urbanismo que conflitavam entre si para obter a explicação mais aceita, mas tudo se passava dentro das formulações da academia. A partir de 1993, com o lançamento de um CD do grupo de rap Racionais MC’s de nome “Raio-X Brasil”, a preponderância passa para moradores de bairros periféricos, cuja eficácia da expressão ocorreu pela via artística, e não pela via científica. Esse CD apresentou ao mundo raps como: “Fim de Semana no Parque” e “Um Homem na Estrada”, dentre outros. Esses raps foram tão impactantes que mudaram a forma de se pensar e enxergar a periferia. A preponderância periférica sobre o fenômeno periferia durou mais ou menos até o ano de 2002, quando o lançamento do filme “Cidade de Deus” fez com que a Indústria do entretenimento passasse a possuir a preponderância das representações sobre o que seja a periferia. Esse filme abriu as portas para uma série de produções cinematográficas e televisivas sobre o assunto. A partir de 2002 a produção da periferia sobre o fenômeno periferia passa a ter um concorrente de maior peso social: a indústria do entretenimento.

    IHU On-Line – Quais são as principais mudanças sociais, culturais e econômicas ocorridas nas periferias paulistanas desde os anos 1990 até os dias de hoje?

    Tiaraju D’Andrea – Certamente, um território amplo como o que denominamos periferia é múltiplo sincronicamente, assim como diacronicamente foi passando por mutações. Creio que nos últimos 25 anos é possível enumerar alguns fenômenos que não existiam antes dos anos 1990. São eles:

    1) o surgimento do PCC,

    2) o crescimento dos evangélicos e

    3) uma explosão de coletivos artísticos.

    Estes três fenômenos foram saídas encontradas pela própria população da periferia para superar o contexto de violência e pobreza da década de 1990. Foram formas de superar o esgarçamento do tecido social e criar uma ética regulatória em um contexto de crise.

    Outras duas tentativas de superação da violência foram provenientes de agentes externos à periferia. Foram elas:

    4) O crescimento da presença de ONGs (Organização Não Governamental) nessas regiões e

    5) o aumento da presença estatal.

    Por fim, outros três fenômenos que não existiam até a década de 1990, passaram a ocorrer nessas regiões. São eles:

    6) uma narrativa, ou a tentativa da periferia de contar a sua própria história e sem depender de mediadores;

    7) uma subjetividade, ou o fato de os moradores da periferia passarem a ter orgulho dessa condição; e

    8) o Lulismo, como forma de governo, baseado no aumento dos direitos sociais e do consumo.

    Na atualidade, pode-se observar o crescimento de tendências conservadoras, assim como na sociedade em sua totalidade. Ainda é cedo para saber se esse fenômeno é conjuntural ou estrutural.

    No que tange à produção artística, e aqui me aterei à música, é interessante notar como nos anos 1980 houve uma preponderância do samba e do rock nacional. Nos anos 1990 o gênero hegemônico foi o rap. A partir dos anos 2000 o funk passou a tomar a cena. Também não podemos esquecer o sertanejo e suas distintas variações, dado que é o gênero mais escutado no Brasil como um todo, inclusive nas periferias paulistanas.

    IHU On-Line – Na sua tese você analisa a “explosão de atividades culturais na periferia nos últimos 20 anos”. Quais atividades são essas e a que atribui esse cenário?

    Tiaraju D’Andrea – Trata-se de uma série de atividades artísticas e culturais que ganharam impulso a partir dos anos 1990 e foram agraciadas com uma série de financiamentos públicos a partir dos anos 2000. Nessas podem-se incluir os saraus, as comunidades de samba, as posses de hip-hop, os cineclubes audiovisuais, os grupos de teatro, os grupos de dança, a literatura marginal, dentre outras. Todas essas atividades são organizadas por coletivos artísticos.

    A explosão do número desses coletivos artísticos na periferia de São Paulo nos últimos vinte anos ocorreu por pelo menos cinco grandes fatores:

    a) Produção artística como pacificação: neste caso, a produção artística foi uma saída para a espiral de violência que se abateu sobre as periferias na década de 1990.

    b) Produção artística como sobrevivência material: neste ponto, a produção artística foi uma forma de auferir renda em um contexto de pobreza. Isto ocorre pelo crescimento de financiamentos e de mercado para esta produção. Obter renda por meio de produção artística era uma forma de escapar de duas soluções pouco interessantes: de um lado o mundo do trabalho capitalista stricto sensu, que sempre representou exploração, baixos salários e humilhação para a população mais pobre; por outro lado, a possibilidade dada a jovens de baixa renda de auferir recursos por meio de atividades ilícitas.

    Entre o mundo do trabalho e o mundo do crime, construiu-se uma terceira opção: a produção artística como forma de sobrevivência material. Cabe destacar que a partir do ano 2000 aumentou exponencialmente o número de financiamentos para esse tipo de atividade.

    c) Produção artística como participação política: na década de 1990, em um contexto de crise das formas clássicas de participação política expressa em partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, os coletivos de produção artística passaram a reaglutinar os indivíduos que buscavam intervir politicamente.

    d) Produção artística como emancipação humana: neste caso, a produção artística foi uma forma de moradores de bairros periféricos sentirem-se vivos e se humanizarem em um contexto de múltiplas violências, humilhações e estigmas.

    e) Produção no local como resposta à segregação socioespacial: neste ponto, avalia-se a multiplicação de atividades artísticas na periferia como forma de dotar o local, levando-se em conta que na cidade de São Paulo os equipamentos culturais concentram-se mormente na região central e no quadrante sudoeste.

    IHU On-Line – Como os coletivos artísticos se manifestam na periferia e ressignificam o entendimento de periferia?

    Tiaraju D’Andrea – Para responder essa questão é necessário recuar no tempo. Em meados de 1990, o termo periferia passou a ser utilizado de maneira política pelos próprios moradores de periferia. Essa utilização fez com que o termo se popularizasse. Em um primeiro momento, essa utilização do termo periferia ocorreu pela ação do movimento hip-hop, depois passou a ser utilizado e disseminado por uma série de outras expressões culturais presentes nas periferias. Nesse primeiro momento de utilização do termo periferia, fundamentalmente nos primeiros anos da década de 1990, o termo tinha um caráter de denúncia, pois mostrava à sociedade a realidade ou a verdade, criticando com isso o pensamento hegemônico neoliberal de princípios dos 1990 que pregava o “fim da história” ou o “fim das classes”.

    Aquele mostrar a realidade em caráter de denúncia se apoiava na apresentação de duas características da periferia: a violência e a pobreza, como forma de criticar a sociedade, mostrando características presentes na realidade social que o pensamento hegemônico queria esconder. No entanto, afirmar-se enquanto periferia por meio dos elementos violência e pobreza era pautar um processo histórico de superação desses elementos. Logo, periferia continha e negava violência e pobreza. Assim sendo, a partir de meados da década de 1990 começa-se um processo histórico de superação desses dois elementos, do qual a produção artística dos bairros periféricos foi um dos principais articuladores. Hoje o significado do termo periferia foi alargado, sendo que o mesmo se entende contendo em seu âmago quatro significados: violência, pobreza, cultura e potência.

    Devido à fragilidade de expressões políticas tradicionais como partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, fundamentalmente a partir dos anos 1990, uma parte migrou para a produção cultural como forma de fazer protesto e se posicionar politicamente. Essa espécie de orfandade política das periferias fortaleceu o crescimento desses coletivos. Com o passar do tempo, coletivos de várias periferias se organizaram para atuar conjuntamente, fundando assim o Movimento Cultural das Periferias – MCP. Esse movimento formulou uma lei de iniciativa popular que após muita luta foi aprovada, intitulada Lei de Fomento às Periferias.

    Não foi à toa que João Doria (PSDB), ao assumir a prefeitura de São Paulo, reduziu em 43% a verba da cultura do município, atingindo a Lei de Fomento, dentre outras linhas de financiamentos de atividades artísticas nas periferias. Mais do que econômica, essa atitude foi política. Sabendo a importância desses coletivos, o sufocamento econômico é uma forma de desorganizar politicamente as periferias.

    IHU On-Line – De outro lado, a que você atribui o crescimento evangélico nas periferias paulistanas?

    Tiaraju D’Andrea – Creio que múltiplos fatores se somam para este fenômeno. Por um lado, há um conservadorismo crescente na sociedade, do qual os evangélicos são causa e consequência. Por outro lado, esse crescimento é também fruto da dinâmica violenta dos anos 1990. Cabe também ressaltar, a crise econômica faz a população buscar em comunidades religiosas algumas saídas. Tampouco se deve esquecer o eficiente trabalho proselitista dessas igrejas.

    IHU On-Line – Como a presença do PCC se manifesta nas periferias paulistanas? Hoje muitos especialistas em segurança falam que a atuação do tráfico se dá dentro e fora das prisões, inclusive em disputas entre facções fora das prisões. Como isso tem ocorrido nessas periferias?

    Tiaraju D’Andrea – O PCC segue presente nas periferias de São Paulo, mas tem menos impacto no que tange à regulação da violência se comparado a dez anos atrás. Este é um dos fatores do aumento da violência nas periferias nos últimos três anos.

    IHU On-Line – Quais são as principais questões que você tem abordado na sua pesquisa atual sobre “Periferia, Periférico e Sujeito Periférico”?

    Tiaraju D’Andrea – Tento entender quais foram os processos sociais que redundaram naquilo que denomino o ser periférico, que é uma espécie de orgulho de ser morador da periferia em resposta ao estigma que muitas vezes acompanha essa condição. No entanto, essa passagem do estigma ao orgulho só foi possível de acontecer historicamente com a percepção de que a situação urbana e social de um morador da periferia é uma situação distinta de outras situações urbanas e sociais. No entanto, o processo de identificação com essa condição e que redunda no ser periférico, por si só não basta. O sujeito periférico é aquele indivíduo que, por meio da percepção de sua condição e da superação do estigma, age politicamente para transformar a sua realidade, seja incidindo nas condições de moradia, por melhores condições de saúde, de educação, de transporte e de cultura. Cabe destacar, no entanto, que foi no campo da produção artística que se fortaleceu um certo orgulho de se morar na periferia.

    IHU On-Line – Qual seu diagnóstico acerca da atual situação da periferia paulistana, dada a atual crise brasileira?

    Tiaraju D’Andrea – A periferia paulistana passa por um período de transição. Se por um lado o lulismo representou uma melhoria nas condições de vida, se comparada à década de 1990, a crise econômica posterior foi um dos fatores que fez esta população retirar seu apoio ao PT. No entanto, ainda é cedo para se afirmar que a adesão a pautas conservadoras seja um fenômeno estrutural. Em todo esse quadro de incertezas, pode-se, ao menos, fazer duas afirmações: o desemprego ronda esta população, sendo as condições de trabalho uma preocupação concreta; e há uma descrença generalizada nos partidos políticos e no sistema representativo como um todo.

     

  • Cracolândia, Redenção, Ocupa Brasília e a militarização da política

    texto por Edson Teles

    foto: Centro de Mídia Independente: https://midiaindependente.org/?q=node/298

    fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2017/05/31/cracolandia-redencao-ocupa-brasilia-e-a-militarizacao-da-politica/

    A securitização das práticas sociais tem sido recorrente nos vários modos de governo da vida. Se nas principais potências militares do planeta isto se dê sob a alegação de guerra ao terrorismo, aqui no Brasil a justificativa é o combate à criminalidade e à violência urbana.

    Em São Paulo, neste mês de maio, tentaram legitimar uma ainda maior militarização da cidade. Foi a operação visando acabar com a “anormalidade” dos usuários de drogas na Cracolândia. Mais conhecido como “política higienista”, o “Projeto Redenção” da Prefeitura de São Paulo, cuja parte de suas reuniões, não sem propósito, ocorreram na Secretaria de Segurança Pública, visa “erradicar” – arrancar pela raiz, eliminar, extirpar – o tráfico de drogas e “revitalizar” a distribuição da posse imobiliária da região.

    As cenas que se seguiram à determinação do prefeito, juntamente com o governador e por meio de suas forças policiais, foram de violência indiscriminada. Bombas, tiros, ameaças, destruição de imóveis provocando o “fluxo” desesperado de centenas de paulistanos, abandonados pelas instituições que deveriam lhes garantir direitos. É como se fosse necessário, para este modo fascista de governo, transformar seres humanos em bando, os excluindo do acesso à lei, para acionar os mecanismos inscritos na mesma lei e que visam lidar com possíveis situações emergenciais. O bando é a própria condição da efetividade de um poder autoritário e discricionário, cujos instrumentos devem ser os equipamentos do Estado.

    Os fluxos resultantes da repressão policial produziram outras cracolândias pelo Centro de São Paulo. São cenas conhecidas do paulistano. Em janeiro de 2012, Prefeitura e Estado haviam “deflagrado” a “Operação Dor e Sofrimento”, cuja síntese funcional era inflingir dor e sofrimento aos usuários, mediante a falta da droga e a dificuldade de fixação, obrigando-os a solicitarem ou aceitarem ajuda (leia-se: “internação”). Agora, em 2017, a agressão do Estado foi mais longe e pretende, com autorização judicial, abordar, deter e internar compulsoriamente os indivíduos considerados perigosos para a “ordem pública” na região.

    Mas de qual “ordem pública” se está falando? Por que a garantia da lei e da ordem exige zonas de indistinção entre o lícito e o ilícito, o democrático e o fascista? A que visa a política de produção dos “bandos”?

    Sem dúvida que no caso da Cracolândia um dos principais objetivos específicos da ação criminosa das instituições do Estado é a tentativa de erigir a “Nova Luz”, projeto de especulação imobiliária para a construção de torres de apartamentos e de centros comerciais sob a direção das já excessivamente delatadas construtoras. A alegação de lugar degradado não se deve à presença de usuários de drogas, mas à negligência do poder público em cumprir funções e serviços básicos como coleta de lixo, manutenção dos espaços comuns, cuidado com os bens históricos e culturais do bairro. Soma-se ainda o fechamento de um grande centro comercial, em 2007, e a demolição deste e de outros imóveis nos anos seguintes, espaço para onde se deslocaram com mais intensidade os abandonados e esquecidos.

    Contudo, há nestas ações a articulação de uma militarização da vida urbana, ou ainda, da política. Atos de governo para a manutenção da ordem – higienistas, como na Cracolândia, ou repressivas, como na violência contra as manifestações do “Ocupa Brasília” – não objetivam somente os “criminosos”, “traficantes” e “vândalos”. Estariam na mira das forças da ordem todos os que podem ser de alguma forma perturbadores da normalidade hegemônica submetida a poderes econômicos, oligárquicos e políticos.

    Quando em 2007 o então ministro da Defesa Nelson Jobim anunciou que a presença das tropas brasileiras em solo haitiano seria um bom treino para a garantia da lei e da ordem no Brasil, já se visava agredir com esta força militar os atos de protesto e movimentos de resistência, desde os mais críticos às políticas neoliberais até os coletivos de luta contra a gentrificação e em defesa de direitos humanos. No manual do ministério da Defesa, de execução da “Garantia da Lei e da Ordem”, de 2013, pode-se ler que seu uso se destina, como uma de suas principais funções, ao emprego das Forças Armadas quando houver o “esgotamento” dos órgãos de segurança pública para conter os “movimentos contestatórios”. No cenário do treino descrito no “Manual” se descreve como “forças oponentes” os “elementos integrantes de movimentos sociais reivindicatórios, de oposição ou protesto, comprometendo a ordem pública”.

    No movimento “Ocupa Brasília” se tentou, novamente como em outros momentos de produção de farsas da lógica da governabilidade, alegar a violência de alguns, os “vândalos” infiltrados nos movimentos sociais, para reprimir indiscriminadamente e em proporções obviamente desiguais e absurdas corpos em resistência. Esse parece ser o alvo: os corpos em luta, em especial os dos negros, dos pobres e das mulheres.

    Frequentemente, lanço meu próprio corpo às ruas em dias de manifestações. Desde 2013 não vou a elas sem um lenço para tapar o meu rosto. Eu sei que se for uma manifestação que apresente qualquer risco à “ordem”, as bombas e tiros virão. A “máscara” é o mínimo de proteção. E lá, no calor da correria, quando a polícia começa a agredir indiscriminadamente para intimidar o protesto, facilmente entendo e me solidarizo com os que têm a desproporcional coragem (em relação à força policial) para enfrentar as agressões. Não dá mais para apelar à lógica conciliatória diante do governo da vida descartável e matável. É claro que não se deve lançar-se contra o que irá nos ferir profundamente, é importante se preservar. Mas compreendo a revolta (e isso é também política, concorde-se ou não com o método) produtora dos ataques aos símbolos do capitalismo ou da burocracia e das instituições do Estado.

    Dor, sofrimento, redenção. Redenção, dor, sofrimento, repressão. Não, a redenção não aconteceu. Ninguém foi liberto, salvo ou reabilitado. Tal como no “Projeto Redenção” em São Paulo, a violência do Estado se repetiu, sob moldes parecidos, nas proximidades do município de Redenção, no interior do Pará. Dez pessoas foram executadas pela Polícia Militar, segundo os relatos dos sobreviventes colhidos pelo Ministério Público Federal. O que mais se pode ler nestes depoimentos transcritos é: “a polícia chegou atirando”, de modo semelhante a Cracolândia ou a Brasília, mas com munição letal. Redenção é uma localização próxima ao massacre de Eldorado dos Carajás, que completa 21 anos com profundos rastros de impunidade. É também a região onde, entre 1972 e 1974, cerca de 100 guerrilheiros de resistência à ditadura foram assassinados e, em sua maioria, continuam com os corpos desaparecidos até hoje.

    Brasília, Cracolândia e Redenção não são fatos isolados. Também não começaram a ser praticados ontem. São modelos de laboratório para a modulação de uma sociedade de controle. A sinergia entre estas operações de higienização, repressão a manifestações e eliminação de corpos em resistência é a característica e confirmação maior da militarização da vida, das subjetividades e da política. Essa nova política militar já vem sendo testada nos conflitos de terra, nas periferias das grandes cidades, nos entornos de campos de futebol, nos megaeventos esportivos por vários anos e, nestes dias, a vimos em plena potência. Esses modelos de “pacificação” e controle via a militarização vêm acompanhados de discursos de conciliação, consenso e manutenção da ordem. Trata-se de um tipo de biopolítica, praticada desde sempre, é verdade, mas que sofreu uma intensificação na última década (é só conferir relatórios de ONGs de direitos humanos) e sob os olhares atônitos ou de cumplicidade das instituições do Estado de Direito.

    São operações – termo apropriado ao discurso da guerra mobilizado (vocabulário utilizado também contra a violência urbana, o ataque à propriedade, os “vândalos”, mas que se soma à guerra contra o tráfico, alimentar, da saúde pública) – que desfazem as separações jurídicas e éticas entre o lícito e o ilícito, o legítimo e o ilegítimo. São cada vez mais localizadas, para não se tornarem alvo de denúncias do modelo bélico e ainda servirem como teste; e, permanentes, normalizando o que surge perante a opinião pública como exceção. Em vez dessa militarização da política se fundamentar nos direitos humanos, nas leis e na cidadania, tais formas de controle social emergem com base na construção dos perfis de indivíduos e de comportamentos, de territórios e coletivos, aos quais são atribuídos qualificações e graus de risco à ordem, bem como potências de resistência.

    A vigilância da vida (tanto as de resistência quanto as corriqueiras) tem como paradigma o controle dos espaços, comuns e privados, das estruturas e práticas sociais e da circulação dos corpos a partir da produção da ideia da guerra e da insegurança. Isso serve à militarização de discussões sobre a menoridade, o transporte, as paisagens e os espaços urbanos, mas também de questões amplas como a cultura popular. Os argumentos da guerra e da militarização se dirigem inclusive aos processos de produção de subjetividades. São nesses processos que se encontra a vida política mais profunda. E, também, são nessas ranhuras e porosidades do cotidiano que se criam as mais eficazes estratégias de resistência.

  • História em pedaços – Brasília, 24 de maio

    Publicamos aqui um relato de Gavin Adams sobre os acontecimentos do dia 24 de maio de 2017 em Brasília. Gavin tem realizado um rigoroso trabalho de observação, registro, coleta e interpretação de diversas manifestações de rua que vem ocorrendo desde o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Seus relatos são documentos preciosos sobre o atual momento histórico; uma observação fina no nível da rua, olhar de formiga construindo análises a partir de fragmentos. Na melhor tradição etnográfica ativista e num esforço benjaminiano, Gavin vai recolhendo tudo, como que tentando antecipar o pior porvir, deixando assim um rastro para o aprendizado de futuros intérpretes sobre nossa catástrofe.

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    24 de maio

    Cheguei no cruzamento central da cidade de Brasília a pé às 13:15h. O Shopping Conjunto Nacional estava à minha esquerda quando entrei e percorri o viaduto sobre o Eixo Monumental. Fui surpreendido pela multidão que já escoava pela avenida embaixo de mim. Esperava alcançar o Estádio Mané Garrincha para a concentração, mas a torrente era tal que fiquei para olhar. Tinha tanta gente que não deve ter cabido no estacionamento e acabou espirrando pela avenida, iniciando a passeata antes do horário previsto de início, que era 14h.

    Era muito bonito de ver e centenas de grupos, centrais e sindicatos caminhavam sob o forte sol, dos dois lados do viaduto. Muita bandeira, faixa e cartaz. Era uma verdadeira salada de frutas composta de inúmeros sindicatos e centrais. Tinha vários carros de som, e nesse segmento em particular predominavam os aventais amarelos da NCST. Muitos manifestantes sindicalistas estavam lá em cima do viaduto olhando a multidão também. Desci para a avenida e decidi caminhar um pouco em sentido contrário, na direção do estádio, para checar a passeata.

    Logo vi os Policiais Penitenciários, acho que carcereiros, de preto, talvez uns 300. São da Força Sindical. Vi a faixa “A reforma da Previdência é o fim da aposentadoria dos policiais”. Notei alguns dos numerosos balões da manifestação: CUT, CTB e CNTI. As centrais tinham trazido muita gente que vestia seus aventais e tremulava suas bandeiras. Eram muitos corpos em movimento.

    Tentei anotar os nomes dos sindicatos cujas faixas, camisetas ou bandeiras eu encontrava, mas eram tantos que apenas capturei algumas siglas. Alguns tinham nomes bem curiosos, e na hora achei que poderiam compor uma prateleira de remédios de uma farmacopéia laborista: APRASC, STICMA, ENESSO, FASUBRA, SINTRATECOB.

    Outras associações presentes ali naquele trecho: SINTHOTESB, SINDIRETA – DF, CSPB, CONTRATUTH, SINDUS, INTERSINDICAL, UGT, CTB, CONTAC, FORÇA SINDICAL, CGTB, MST, CSP-CONLUTAS, FSCM. Vi um grupo de uns 15 jovens negros com uma bandeira Quilombo. Bandeiras do Povo Sem Medo, das Brigadas Populares. Vi bandeiras do Brasil (umas seis), da Juventude do PT, do Pernambuco e Paraíba. Um moço vestia a camiseta com o rosto de Lula: “O cara está voltando!”.

    Ao caminhar vi os vários carros de som. Alguns tinham nomes como “Chumbo Grosso” e “Trio Laser”. Quando tem muita gente, o carro de som fica menos agressivo, e é possível buscar espaços mais vazios de som. O rumor geral das vozes era um oceano vivo. Mas os oradores estavam no modo sindical clássico. Apesar disso, o clima geral era de festa e carnaval. Um dos carros, inclusive, de Minas, trazia uns meninos que faziam um funk vocal, com beatbox e tudo. Naturalmente, muito Fora Temer e Diretas Já!. Uma outra palavra de ordem dizia “ô deputado, presta atenção, se você vota sim, a gente vota não!”. Um senhor de pé, parado na calçada, tinha um cartaz: “Precisa-se de presidente, governador e deputado para trabalhar na saúde, educação, segurança. Povo paga bem! Sem corruptos”. Um cartaz trazia “Liberte Rafael Braga”.

    Decidi voltar e caminhar na direção do fluxo. Passamos ao lado da Rodoviária e um orador anunciou 100 mil manifestantes. Outro mais adiante afirmou que a Globo tinha contado 25 mil (a PM deu 35 ao fim do dia). A contagem final na imprensa de esquerda deu um teto de 150 mil. Foi chamada de “a maior marcha da história” da esquerda em Brasília. Muita gente buscava refúgio debaixo da sombra das poucas árvores ao longo da avenida. Um orador em um carro de som rogou aos “companheiros de amarelo sentados na sombra, venham para a luta companheiros!”. Vi enfermeiras, aeroportuários, e depois os estivadores do Rio com suas camisetas “113 anos de luta e resistência”. Ao lado deles, os “Arrumadores de Itajaí”, com bandeira. Vi uma bandeira com o rosto do Che e “Juntos na Luta”, uma do PCdoB, da FENTECT, da FETRHOTEL, do CONEN, e outra do SINTUFF. Uma camiseta do Levante Popular da Juventude.

    Tinha muitos balões na passeata, contei mais de 100. Vi uma faixa “Volta Dilma – Anula o golpe”. Vi uma camiseta “Sou mais favela”, uma outra “Greve de 2006 – eu participei”, e uma bandeira do Rio Grande do Sul. Vi uma moça indígena de cocar.

    As palavras de ordem eram as clássicas e esperadas FT! E DJ!, além de “Golpistas, fascista, não passarão”. Teve muita chamada para a Greve Geral, que desta vez quer ser de 48 horas. O nome de Lula não foi chamado até onde ouvi. Fiquei de olho nas bandeiras do Brasil que eu via. Acho que até então umas 12, quase sempre aos ombros. Parei de contar aos 50.

    Entramos na Esplanada. Seguindo pela avenida, pela via da esquerda, notei um dragão inflável que estava sendo enchido. Ele tinha uns 10 metros e possuía três cabeças. Pude ver apenas duas palavras que nomeava cada uma delas: “juros” e “desemprego”. Mais adiante, uma pipa gigante, ainda no chão, com as cores LGBT e uma cauda que trazia um Fora Temer. Vi o Sindicato de Padeiros de São Paulo, uma bandeira do SINDUTE, do PSTU. Um ambulante vendia adesivos de unha no asfalto, muito buscado por manifestantes. Vi o Ivan Valente do PSOL e finalmente alcancei os policiais penitenciários que vira do viaduto.

    Ia chegando mais perto do fim da Esplanada, onde acabam os ministérios, tendo passado vários carros de som. Deu para ver gente voltando, e dava para sentir alguma atividade lá na frente e sentir um cheiro de gás lacrimogênio. Um helicóptero da PM sobrevoava o local. A partir daqui, coletei uma infinidade de pequenos eventos que só mais tarde compilei em um retrato narrativo mais coerente. Do nível do chão, era difícil ter uma visão mais geral. Nas muitas reportagens que vi depois, era muito fácil colar os fragmentos de maneira maliciosa.

    Vi três carros de som, que eram os que estava mais perto da barreira policial. Dois deles vinham perpendiculares à barreira policial, que bloqueava o acesso ao Congresso. Eles acompanhavam a multidão que vinha pela via da esquerda na Esplanada. Estavam parados a uns 500 metros da PM. O outro carro tinha chegado antes, creio, e estava transversal barreira policial, mais do lado da via da direita da avenida. Era o carro de som da Pública. Os carros mais próximos eram um do PSTU CONLUTAS e o outro da CUT/UGT/CTB/CSB. Um outro da Força ficou lá trás.

    Pareceu de começo que o PSTU estava chamando o povo para o confronto, e que a CUT pelegava. Mas depois percebi que o pau já estava comendo e os três carros no final estavam pedindo e participando da defesa à agressão policial. No geral estes três carros participaram da resistência e buscaram sensibilizar a PM, dizendo “voltem suas bombas para trás, contra Temer e o Congresso”. Além disso, faziam as chamadas de concentração e encorajavam a formação defensiva e de confronto.

    É importante aqui sublinhar que a ação repressiva policial NÃO FOI RESPOSTA A VANDALISMO. Nenhum prédio tinha sido tocado quando as bombas e balas começaram a chover. A ação foi claramente de dispersão e não de contenção de indivíduos violentos. Pelo menos um manifestante foi baleado com munição viva, de arma de fogo. Vi depois na televisão que havia uma fileira de PMs no começo da Esplanda que pretendia revistar uma a uma 150 mil pessoas. O povo avançou e furou a coluna. A PM reagiu então e depois. Não se tratou de vandalismo.

    Assim, cheguei ao fim da Esplanada em plena conflagração. Eram umas 14:15h talvez. Escorri pela direita, em direção à linha de frente. Colei atrás dos policiais penitenciários, que claramente estavam prontos para a briga, atraídos pelo confronto. Mas um megafone avisou-lhes que obedecessem à liderança e não brigassem. Segui então uma bandeira do MAIS que ia à linha de frente.

    Vi melhor a linha de confronto. Um gradil separava os muitos PMs. Contei ali, à vista, uns 500. Mas depois na TV vi mais de 500 à espera atrás de um edifício. Tinha cavalaria, uma dúzia deles. Uns 200 soldados de escudo, capacete e cassetete, com atiradores. Estes estavam bloqueando a via asfaltada, portanto à minha esquerda era o foco do embate. O gramado for reservado para a manifestação, e o espaço atrás das grades, guardado pela PM, nos era proibido. Os primeiros 100 metros de gramado em frente a grade era área de risco e de contato com projéteis.

    O dia todo pode ser resumido como um vai e vem do povo contra a barreira, seguida depois de uma lenta varredura pela PM do espaço da esplanada em direção ao estádio, de onde viéramos. Ao lado disso, a certa altura, uma meninada foi progressivamente atacando os ministérios, protegendo-se com barricadas para ir segurando a PM enquanto trabalhavam todos os edifícios até o fim da Esplanada.

    Então o povo ia chegando e enchendo o espaço. Quando juntava massa crítica, estourava uma onda que ia encarar os policiais. Acabavam por recuar, depois de mais ou menos resistência. Então tinha várias zonas dentro da manifestação sob ataque. O fogo do confronto na frente, uma linha intermediária e uma zona de retaguarda, onde as pessoas sentavam-se sobre a relva ou conversavam em grupos. As zonas se expandiram e contraíram ao sabor do embate. Mas a ação da PM não fazia muita distinção e frequentemente atacava todas as zonas, redesenhando subitamente o mapa da refrega.

    Andei um pouco pela zona intermediária e vi uma bandeira trazia “UERJ em luta”. Uma meninada do JUNTOS vieram de amarelo e de escudos feitos de câmara de pneu de caminhão e foram para a linha de frente. Vi uma leva de pessoas com bandeiras do PCB e da Unidade Classista. Muitos autonomistas presentes, inclusive Black Blocks que tiveram destaque depois. Um palhaço de nariz vermelho. Trazia um cartaz onde se lia “Não sou palhaço, não bati panela”. Um homem se fantasiara de vampiro grisalho e vestia uma faixa presidencial. Ele sorriu para mim.

    Achei a coisa toda meio surreal, uma mistura de “fog of war” com carnaval veneziano sob o gás lacrimogênio. Os três carros de som irradiando vozes iradas que descascavam a ação da polícia, chamando a insurreição. As nuvens de gás varrendo a multidão. Gente em modo combate, outras relaxadas conversando, outras cuspindo e vomitando com o lacrimogênio e pimenta, de joelhos na grama. Acabei por lembrar de filmes como Kagemusha e outros filmes de guerra. Aqui do chão dava para ver grupos de bandeiras percorrendo o campo aberto por cima da cabeça das pessoas, indicando concentrações e dispersões de corpos. Tem algo de medieval nos embates de rua. Aqui, no espraiamento da Esplanada, era quase um xadrez.

    E, bem nessa hora, uma banda, no carro da Pública perto de onde eu estava, começou a tocar “Será?” do Legião Urbana. “Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer?”. Não posso dizer que sou fã do Legião, mas esta canção, no meio das bombas e gritos, bandeiras e palavras de ordem, no meio do Planalto Central do Brasil, comoveu. Que vida louca, eu com 50 anos e cabelos grisalhos ouvindo uma canção da adolescência perdida aqui nos campos da luta política atual. Nessa hora eu ainda era o jovem tímido esperando a vez de um futuro melhor, hoje cercado de meninas e meninos que iam confrontar a polícia e seus projéteis. A distância entre o país dos anos 1980 e esse Brasil do quase AI-5 colapsando em um motim sindical em frente ao Congresso Nacional.

    Eram 14:30h quando a cavalaria atacou. Eram uns 15 enormes cavalos cavalgando pelo gramado. Nessa hora tive medo. Uma coluna de soldados paramentados pode ser vencida na corrida. Mas a velocidade e inércia geradas por um grupo de cavaleiros é muito potente. Lembro-me dos motins contra o imposto individual na Inglaterra, o chamado poll-tax. Uma manifestação grande foi reprimida pela polícia, incluindo uma carga de cavalaria e seus longos bastões. Uma moça foi atropelada pela tropa montada e se machucou muito.

    Então eu corri. O orador no carro de som ficou revoltado e gritou muito contra a cavalaria. Só que aí a carga de cavalos hesitou e parou. O povo então se voltou contra os cavalos! Vi umas 2 mil pessoas correndo na direção da cavalaria gritando “pega eles! Fascistas!”. De onde eu estava vi também várias bandeiras tremulando nervosas voando em direção ao foco. A cavalaria recuou e se recolheu. Exultamos todos. Foi lindo.

    Nessa exata hora encontrei G do Arrua, o único conhecido que vi hoje. Conversamos um pouco. As bombas e balas de borracha continuavam a voar em nossa direção. Alguns atiravam pedras contra a polícia, às vezes algum rojão, mas a palavra “confronto” não é exata. Trata-se de tiro ao alvo, de agressão e repressão violenta. Não pude deixa de lembrar dos atos do MPL em São Paulo. A operação policial era idêntica: repressão ao direito de manifestação, provocação, perseguição pós-ato e atos ilegais como uso de arma de fogo, acompanhados de cobertura maliciosa da imprensa que fazia petistas… apoiar a ação policial! Lembro-me que ouvia então dos autonomistas “quando a PM bater em vocês amanhã nós também vamos ficar de lado olhando”. Hoje, estavam juntos. Aliás, acho que vi todas as centrais, partidos, grupos, coletivos e fracções de esquerda atuantes dos dias de hoje que conheço.

    Os dois carros de som que estavam ao lado vieram junto do carro da Pública, e formaram uma barreira contra os projéteis da polícia. A massa não parava de chegar, e novas ondas arremetiam contra o rochedo policial. Um menino negro avisava aos amigos “cuidado quando ouvir tiro, eu fui atingido por essa bala de borracha”, mostrando o projétil, chamado eufemisticamente de “elastômetro”. Vi duas bandeiras LGBT, uma da UJC. Vi uma camiseta com o rosto de Malcolm X, com o texto “Não há capitalismo sem racismo”, e outra camiseta com o Mandela. Vi ima bandeira do NOS, uma da ANEL, A banda toca Cazuza, “Que país é esse?”, mas não me toca. Não gosto muito dele.

    O carro de som cobra do comandante o respeito ao acordo firmado entre eles, de poder ocupar o gramado. O oficial responsável pela operação é chamado pelo nome muitas vezes. “Somos mais de 50 mil trabalhadores aqui, respeito! Exijo respeito!”. A certa altura, a multidão grita em uníssono, umas 5 mil pessoas: “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da policia militar!”. Vi banheiros químocos sendo rolados no chão para servirem de barricada contra os tiros. Teve uma hora quando a polícia atirava contra as pessoas no carro de som, o que não vinha fazendo.

    Uma moça do MTST distribuía uma máscara de boca. Pouco adiantava. No geral, é sempre possível observar onde detona a bomba de gás e sentir o vento. Muitos chutam o aparato de volta. Mas ficar de olho na direção da nuvem e se esquivar dá resultados. Mas nem sempre o vento colabora, e há nuvens invisíveis que te envolvem num aquário ardente. O rosto queima e os olhos e nariz ardem muito. Dá um desespero. Mas tem é que sair da nuvem e deixar queimar: arde mas passa, e não esfrega os olhos. Água não adianta.

    O gás foi muito usado, por mais de três horas. Muito agressivo. Um moço contou que o helicóptero da polícia não apenas atirava as bombas, mas também usava de suas hélices para espalhá-lo. Passei a reparar e acho que é verdade. Muita gente passou mal com a pimenta e lacrimogênio.

    A essa altura, manifestantes começaram a usar escudos. Valia tudo: uma placa “Nada temos a Temer”, uma placa redonda de trânsito E, faixas de pano. O orador no carro de som surtou “Vocês não vão impedir este ato! Quando a PM quer aumento vocês vão quebrar o Congresso! PM, fique quieta, recue! Vocês não têm a autoridade, vocês não têm o direito!”. Falou o deputado Vicentinho, o único orador de partido que ouvi, e rogou à PM que parasse a agressão. O povo cantava: “não adiante reprimir, o seu governo vai cair!”.

    Vi nessa hora o estandarte laranja do Rua, uma bandeira “Tribo UFRJ”, uma negra com o A anarquista, uma da LJR, uma vermelha e negra, “GT Antiracismo” da CUT, uma bandeira do sindicato dos Caravaneiros, uma de Minas Gerais, da LSR, UBES, UNE, Kizomba, Liga Operária, Enegrecer e FASUBRA. Vi uma camiseta “Morro do Timbó, Baixa do Sapateiro” e outra vermelha “Ajax Futsal”. Olhei para trás e vi balões até a altura do viaduto da Rodoviária. Vi também duas colunas de fumaça negra à nossa direita, contras as quais um drone branco se destacava. Depois vi que os fumos originavam de uns banheiros químicos e de um ministério cujo térreo ardia.

    Perguntei a um senhor a hora e eram 15:20h. Percorria agora a zona de retaguarda. Muitos jovens e coletivos, sentados e de pé. Certas agremiações são nacionais, e dava para notar que uns cuidavam dos outros e construíam intimidade na manifestação. Este é um espaço muito importante, o do encontro, que o carro de som (e a polícia) não deixa formar. A rua é educativa nesse ponto também, e “permanecer nas ruas” precisa significar formar fóruns de escuta e conversa. O púlpito precisa ser evitado. Vi um pessoal do Território Livre, da ADUSP e ANDES. Vi uma bandeira autonomista RECC, uma da JCA, uma do Faísca, do PSOL e outra do MTST. Vi um moço com a camisa do Santos FC onde pichara “Fora Temer!”, e outra camiseta “MLPS Vidreiros”. Muita camiseta preta também. Vi um batuque do Faísca e o pessoal do Arrua e do Levante popular da Juventude, alguns muito jovens, de 15-20.

    No geral da manifestação, achei muito diversa a composição das pessoas, e as idades iam dos 20 aos 50, bem equilibrado homem/mulher. Encontrei T, que disse que vira o Boulos.

    Um carro de som diz “somos todos filhos de Zumbi”. Depois anunciou que havia um homem baleado ali perto, e pedia socorro aos bombeiros. Disse que ele fora atingido por arma de fogo, o que foi confirmado depois na imprensa. Daí subiu um policial civil que subiu o tom das falas. Ele falou duramente contra a ação da PM: “É covardia, o que que é isso, meu irmão? É por isso que o Brasil está nesse estado. Vocês estão fudendo com nós. Mire naqueles que estão atrás de vocês! A família da PM está sendo defendida aqui, respeita porra! Respeito! Cadê a disciplina militar? Cadê o comandante da PM?”. Vi essa atitude combativa quando policiais civis e penitenciários aplaudiam a ação de black blocks e demonstravam respeito à meninada que fazia barricada e enfrentava a chuva de balas e bombas. Eles avançavam pouco a pouco em direção à linha de atiradores e tentavam atingir os policiais com pedras e, vez ou outra, rojões.

    A certa altura a banda começou a tocar o hino nacional em ritmo de rock. Foi bizarro, agora a linha de frente contava com várias barricadas e o pau comia. Eram 16h e, apesar de muita gente espalhada e insistindo em ficar e realizar o ato, os oradores começaram a desescalar o evento. A PM vinha avançando em varredura e já não havia nenhum manifestante entre a grade e os carros de som, que por vezes ficavam totalmente envolvidos por fumaça tóxica. Os tiros vinham dos dois lados, além da frente do ato. Três helicópteros sobrevoavam o local e atiravam bombas na manifestação.

    A bomba de gás nem assusta muito, o pior é a de concussão. Mas quando o gentil arco do artefato cruza o ar em sua direção, não dá para saber se é de gás ou de explosão. Ele rola na grama graciosamente, como um fliperama sinistro. Mas o pior mesmo é a bala de borracha, que zune na altura dos olhos.

    Fomos saindo e, mesmo de costas, a fuzilaria continuava. Um orador no carro de som dizia que “estamos saindo deste ato com muito orgulho!”, e chamou a Greve Geral. Vi uma faixa da “INTRATEL”, cujo símbolo era um desses emojis da carinha sorridente, com um headphone. Deve ser dos trabalhadores do telemarketing. Vi um pessoal do SINDIPOL, que é da polícia civil. Vi uma camiseta com toda a letra do Raul Seixa, “Gita”. Um moço da Força sindical ajoelha, cuspindo e tossindo muito. Um grupo de policiais penitenciários fazia um sorridente selfie de grupo no meio do gramado agora meio vazio. Vi um grupo de petroleiros também fazendo sua selfie coletiva.

    Voltamos pelo lado dos Ministérios e vimos o estrago. O da Fazenda queimou bem, os outros menos. Nos edifícios estragados, vi as seguintes pichações, dentre outras: “Desgraça Punk”, “Não ao silêncio”, “Greve Geral”, “Morte à Burguesia”, “Porcos Safados”, “Favela vive!” com o A anarquista.

    Chegamos ao Museu Nacional, já na extremidade da Esplanada. Ouvimos umas mulheres gritando “vaza, vaza!”. Vimos então que uma coluna de 40 PMs enquadrou três desavisados adolescentes que pichavam “Fora Temer!” na parede do museu. Juntou gente (tinha muito manifestante) gritando “Não acabou, tem que acabar, EQOFDPM!” e “Fora Temer!”.

    Vimos a Força Nacional no caminho de volta, mas não o exército. Vários grupos de PMs estavam localizados em vários pontos da cidade. Depois vieram notícias da covarde atuação que é usual: a perseguição de grupos pequenos de manifestantes submetidos a todo o tipo de agressão.

    Subimos ao CONIC para uma merecida cerveja. A caminho do lugar, uma mulher cutista estava contando que sua irmã telefonara dizendo que Temer tinha decretado estado de sítio. Disse que ela chorava ao telefone. Assustamos um pouco, mas esperei para ver o que era, os boatos crepitam em manifestação de rua. Achamos um boteco repleto de sindicalistas, e também o G, que estava numa mesa. Ele esclareceu que de fato era um decreto presidencial chamando o exército a manter a ordem, mas com limite de data e circunscrito a Brasília. Depois o decreto foi anulado, dadas as críticas que recebeu. Mas uma linha importante foi cruzada e tenho certeza que, em outro ambiente político, de maior consenso ao redor de um presidente, a medida passaria por legal. O STF não peitaria e ficaria por isso mesmo.

    Vimos na tela dos botecos o programa do Datena, que mostrou uns BBs batendo em policiais, o que foi muito comemorado. Vimos imagens do Rio de Janeiro. Quando passou um grupo de 7 PMs, patrulhando aquele espaço, a galera explodiu em “Fora Temer!” e “Diretas Já!”. Os PMs voltaram e encararam com rosto fechado por um tempo e depois saíram.

    Vimos as notícias do dia depois. A PM do Pará fez 10 mortos em despejo. Vimos os seis tiros disparados por um PM na cidade. Essas irrupções de violência parecem convidar coordenação tenebrosa. Vimos as repercussões da Cracolândia, incluindo uma ocupação de secretaria municipal. O ato espontâneo da Paulista. Vimos os tumulto nos trâmites das reformas, o empurra-empurra e tapetão no Congresso. O JN comprando o discurso do caos e a necessidade da intervenção das Forças Armadas. O JN defende Reinaldo Azevedo de uma maneira que não fez por ocasião da divulgação do grampo de Lula e Dilma ou no caso de Eduardo Guimarães.

    foto: https://pbs.twimg.com/media/DArf1hLXYAA1AKb.jpg

     

  • O que é um centro social? Ou sobre a Ingobernable (artigo traduzido)

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    Texto original em espanhol publicado em 10 de maio de 2017 aqui:
    http://ctxt.es/es/20170510/Firmas/12653/ingobernable-centro-social-okupas-patio-maravillas-carmena.htm

    Tradução: @_urucum em 11 de maio de 2017

    O que é um centro social? Ou sobre a Ingobernable
    Emmanuel Rodríguez [*]

    Desentulhar, varrer, esfregar… E assim até dar conta de todos os 3.000 metros quadrados do edifício \”Gobernador\” 39, situado em frente ao Jardim Botânico de Madrid, a meros 200 metros da estaçao Atocha. O edifício foi okupado no último 6 de maio, durante uma manifestação convocada com um lema enfático: \”Madrid não se vende\”.

    Desde então, o edifício, há tempos abandonado, tem sido povoado por toda classe de tribos, jovens, advogados, curiosos, ativistas, que circulam por todos os lados atarefados, apreensivos em limpar e tornar o mais apresentável o possível um espaço… gigantesco. Desde então, também, diversas associações e coletivos solicitam cantos para reuniões, oficinas, discussões sobre a situação internacional, sobre a soberania alimentar, espaços para organizar iniciativas que enfrentem o problema dos aluguéis da cidade, que crescem a um ritmo de dois dígitos. Inclusive, muitos dos representantes da nova política, em atitude valente, e sobretudo inteligente (é o caso de Pablo Iglesias e de Alberto Garzón) vem dado boas vindas ao novo espaço.

    Um centro social é uma instituição anômala. Funciona de acordo com lógicas que não estamos acostumados. A vida de um centro social é regulada pelos próprios participantes lá mesmo, sem a mediação de administrações públicas e tão pouco de empresas comerciais. A responsabilidade é coletiva, a atividade é coletiva, a administração é coletiva. Também por isso, muitos centros sociais são realidades extremamente vivas. E podem assegurar isso quem conheceu as distintas sedes do Patio Maravillas, ou previamente dos chamados Laboratorios. Espaços onde todas as semanas passavam literalmente milhares de pessoas para organizar atividades das mais variadas: desde batalhas de rap até bailes de salão, desde assembleias políticas até noites flamencas. Seu êxito reside no fato de que não havia falta de interesse e iniciativa para fazer uso dos espaços.

    Os centros sociais podem parecer anomalias, mas só desde uma perspectiva convencional atada ao que comunica o \”país oficial\”. Apenas na região de Madrid existem cerca de 60 espaços deste tipo. Há os grandes, a ponto de envolver boa parte da vida civil e política de alguns bairros, e há os pequeníssimos, de apenas algumas dezenas de metros, que se dedicam a uma só atividade. Há os alugados e há os ocupados. Há os metropolitanos, como La Ingobernable, empenhada em dar guarida para muitas atividades hoje dispersas pela cidade. E há os rurais, instalados em alguns pequenos povoados e direcionados a promover agroecologia e o consumo local. Na Espanha há mais de 600 centros sociais.

    Nos equivocaríamos, porém, se atribuíssimos esta realidade a uma condição particular ibérica. Se podem encontrar centros sociais em quase todas as grandes cidades europeias. Em Roma ou em Berlim são quase a única opção de ócio para aqueles jovens que não querem passar pela experiência embrutecedora da macro discotecas. Em Berlim, qualquer turista pode acabar em uma festa sob o ritmo de algum repetitivo som industrial, e poderá se surpreender ao saber que o espaço em que se divertiu a noite não era outro que não uma antiga okupa. Em muitas cidades alemãs e italianas os centros sociais são realidades tão comuns que as instituições estão acabando por reconhecê-las, estão deixando de incomodá-las.

    Poucas cidades estão sendo tão inteligentes, neste sentido, como a cidade de Nápoles. Alí, o prefeito, a pedido da maior parte dos movimentos sociais da cidade, está estabelecendo um estatuto particular para os centros sociais. Os espaços napolitanos estão sendo declarados comunes urbanos. Isto quer dizer, simplesmente, que a prefeitura as considera entidades legítimas; e, por sua vez, entidades que não são de sua competência.

    Um comum, um bem comunal, é um recurso que não é propriedade pública (do Estado), mas tão pouco uma propriedade privada. Um comum pertence a uma comunidade que gesta/gere o comum. Um centro social é assim um comum urbano, um espaço em que uma parte da cidadania decide tomar posse, gestionar/gerir diretamente e gerar riquezas que nenhum mercado e nenhuma burocracia seriam capazes de produzir. Curiosamente, essa riqueza, em forma de iniciativas, discussões, criatividade social e cultural, é o que constitui a base da democracia, ao menos quando entendemos que esta é algo mais do que partidos, voto e representação. Se a democracia é sobretudo a ativação cidadã e a participação sem mediações, os centros sociais são um recurso democrático inestimável.

    El Gobernador 39 é um caso exemplar da má gestão de bens públicos e, portanto, das potenciais vantagens de uma gestão comum. O edifício, propriedade da prefeitura, foi sede da UNED [Universidad Nacional de Educação a Distância], e em seguida centro de saúde, até que seus usuários foram transferidos para o bairro Vallecas. Pouco antes de deixar a prefeitura, Ana Botella cedeu o edifício ao arquiteto Emilio Ambasz. O contrato se realizou com legalidade duvidosa e por um periodo de 75 anos. Emilio recebeu a concessão através de sua própria fundação, cujo secretário entre 2008 e 2010 foi Miguel Ángel Cortes, ex secretário de Estado da Cultura e amigo íntimo da família Aznar [**]. Para ser exato, este “conseguidor” profissional acaba de ser marcado pelo fiasco de 28 milhões relacionados ao falido Museu de Arte Natural de Málaga.

    Diante de um PP [Partido Popular] desesperado com escândalos diários de corrupção, a prefeitura de Madrid governada por Manuela Carmena se vê em dúvidas sobre o que fazer com Gobernador 39. Mais uma vez se vê a beira de uma nova guerra cultural contra os aparatos midiáticos do PP, e lembra os tristes casos dos titiriteiros, os tuits de [Guillermo] Zapata ou os trajes dos Reis Magos [***]. Talvez ela pudesse ser aconselhada para neste caso deixar estar, deixar que La Ingobernable gere suas próprias simpatias e sua própria legitimidade. E que entenda que, sem centros sociais, como o Patio Maravillas, onde foi fermentado em grande medida a candidatura de Ahora Madrid, não há mudança.

    Seja como for, se Carmena ainda quiser disputar com o PP (se valendo de argumentos de seu próprio terreno, basta que investigue esse obscuro assunto da cessão do edifício a Emílio Ambasz. Também pode repetir o argumento liberal em relação a propriedade. Os liberais quando eram liberais, e não simples usurpadores de bens públicos, consideravam como valor último da propriedade a sua função social: a propriedade privada só se justifica em razão de sua capacidade de gerar riqueza. Por esse motivo, e em toda a Europa, as revoluções liberais lançaram ambiciosos processos de desamortização do que chamavam de bens em \”mãos mortas\”; terras da igreja e de povos cujo rendimento era considerado muito abaixo do que, ao menos em teoria, proprietários eficientes poderíam alcançar. O argumento dos liberais é um argumento de progresso, não um argumento legal. E com esse argumento ignoraram uma legalidade com vários séculos de história.

    Sobre os resultados da desamortização na Espanha, que muitas vezes produziu o oposto do que se pretendia, não cabe entrar agora. Porém, o argumento a favor de La Ingobernable é parecido. Manter a cessão fraudulenta a Emilio Ambasz ou, em outra direção, continuar a abdicar da administração do edifício e deixá-lo em \”mãos mortas\”. A propriedade comum de Gobernadora 39, o centro social La Ingobernable, é um bem que uma cidade como Madrid, assaltada por contínuos escândalos de corrupcão, não pode prescindir. Esse bem se chama democracia.

    Em grande parte da Europa já entenderam, espero que aqui também.

    Emmanuel Rodríguez – historiador, sociólogo e ensaista. É editor de Traficantes de Sueños e colaborador da Fundación de los Comunes. Seu último livro é \’¿Por qué fracasó la democracia en España? La Transición y el régimen de 1978\’

    ** José Maria Aznar é ex presidente da Espanha

    *** Titiriteros, Zapata, Reyes Magos, recentes \”guerras culturais\” da política madrilenha que se tornaram objeto de ataques conservadores ao governo municipalista, e não deixou de criar tensões internas na confluência de forças que possibilitaram a eleição da Manuela Carmena. Ver por exemplo: http://www.publico.es/culturas/cultura-sigue-siendo-problema.html

  • Mulheres, ocupações e a finitude radical das subjetividades políticas

    por Edson Teles

    Um edifício que até pouco tempo atrás estava abandonado. Agora, dentro se encontram mais de 100 famílias. Passam os dias refazendo as ligações de água, luz e esgoto, se organizando para ocuparem de maneira o mais equânime possível os apartamentos. Experimentam a produção de um comum em meio a tamanha heterogeneidade existencial. São migrantes do nordeste brasileiro, imigrantes da África, mundo árabe, América Latina, paulistanos, cariocas, mineiros. São várias as línguas faladas, mas nada que impeça a comunicação, ao contrário, funcionam como um convite ao encontro do diferente. Estas são cenas do filme “Era o Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé. Mas podem ser vistas em várias ocupações de movimentos populares por moradia.

    O Hotel Cambridge foi uma luxuosa hospedaria paulistana dos anos 50, 60 e 70, localizado no coração da cidade, em uma das principais vias do Centro. Como resultado da especulação imobiliária e do descaso dos governantes com a carência de moradias, o enorme edifício permaneceu por vários anos fechado, abandonado e deteriorando-se. Os movimentos de luta por moradia, como em outros edifícios da cidade, ocupou e iniciou a revitalização do espaço. O filme documentário nos apresenta uma experiência política alargada que poderia auxiliar na reflexão sobre o atual contexto das lutas de resistência.

    Desde o golpe contra a presidente Dilma Roussef se tem conversado, buscado, debatido sobre qual a saída para lidar com as intervenções cancerígenas em ebulição. Como resistir? Parece ser a esta a principal questão. Atônita ou surpreendida pelas estratégias autoritárias das elites dominantes, a esquerda se vê sem ou com poucas ferramentas para lidar com a situação. Por outro lado, se experimenta no país ricas formações políticas em que outros modos de intervenção nas relações sociais associam demandas práticas e cotidianas com a movimentação de novas subjetivações. Uma delas, me parece, está registrada nas cenas do filme de Eliane Caffé. Trata-se da quebra do paradigma masculino, branco, hétero, viril, universais que ainda teimam em ditar normatizações à ação política.

    Talvez o maior registro de subjetividades da ruptura e da resistência no filme esteja na presença de mulheres enquanto eixo organizador das relações humanas, éticas e políticas dentro da ocupação Cambridge. Enquanto uma das principais personagens, Carmem Silva interpreta a si mesma como líder da ocupação. Sempre à frente das ações, assessorada por outras mulheres, Carmem tem de lidar com diferenças culturais e sociais as mais variadas, vulnerabilidades existenciais, carências e fragilidades inerentes às condições de vida daquelas pessoas. Além da organização interna do movimento, da gestão do local e de suas instâncias políticas, as lideranças precisam se haver com as instituições do Estado que constantemente exercem pressão sobre o movimento. Desde a Polícia Militar, passando pelo sistema judiciário, até a interferência do Conselho Tutelar, ameaçando recolher uma criança cuja mãe tem dificuldades em exercer suas duas ou três jornadas diárias de trabalho.

    Também na experiência do imigrante dentro da ocupação a questão de um lugar social da mulher é tematizado quando vemos os homens dentro da Lan House do prédio se conectando com as mulheres que ficaram nos campos de guerra ou em meio aos conflitos sociais nos territórios de origem daqueles indivíduos. Uma mulher se comunica de dentro de um edifício, na faixa de Gaza, cujo cenário de fundo é um espaço urbano destruído por bombas, bem como a parede de seu apartamento está destruída. Neste caso, a ocupação vem de outro Estado, o israelense.

    O que mais chama atenção, do ponto de vista de novos agires, não é tanto a presença de mulheres em funções políticas e fortemente marcadas pelo masculino e suas caracterizações generalizadoras. Isto já vemos acontecer há tempos, nos mais diversos modos do agir, em movimentos e instituições. A diferença, portanto, não está nesta “presença”, mas nas suas funções ou efetividades. O processo político passa por mudanças e, neles, subjetividades diversas e singulares são a demanda dos indivíduos em movimentos. Se habitamos um mundo biopolítico, o corpo deve ocupar um outro espaço, ou estar nos atuais com outra postura.

    As subjetivações, ou subjetividades coletivas, para se produzirem na diferença e por suas próprias singularidades, entram em choque com concepções universalizadas do chamado sujeito político. Os processos de suas produções, bem como suas existências, perecem, têm data de validade, são finitas. As possibilidades eternas, os modos de relações sociais e humanas com base em valores universais, a imobilidade do indivíduo ao se manter dentro de padrões do agir diminui as pretensões e possibilidades de intervir no curso dos acontecimentos. Produz o engessamento da política aprisionando as resistências em caixas pré moldadas.

    Se, ao contrário, compreendermos as subjetividades, o mundo que habitamos e as nossas existências pelo viés da finitude radical, teremos a abertura para formas de resistência nas quais estratégias, mecanismos e tecnologias políticas também serão finitas. É aí que as mulheres, no caso do filme, se encontram com as transformações do contemporâneo. Sua existência social e afetiva já experimenta o viver dinâmico, com rupturas e transformações constantes. Se a finitude é a condição subjetiva da ação, com implicações efetivas nas máquinas políticas, então a questão se coloca de modo mais alargado: trata-se de se questionar o que estamos fazendo neste cenário, qual território me é acessível, por quanto tempo nos encontramos em determinado contexto e o que se faz com ele? O que e como se pode modifica-lo? O que em mim posso transformar para que a política também se modifique? Nesta abordagem é interessante considerar a ação política como processos em elaboração e permanente mudança.

    Para se pensar em atos, éticas e estéticas de resistência seria favorável ter em conta que as formas de dominação se atualizam e se modificam. Inclusive, limitando as possibilidades de dessubjetivações para manter o controle dos indivíduos. Resistir, neste caso, não é somente um ato de grupos sociais organizados, mas também a ação de coletivos ou indivíduos não compostos para a luta. São as sensibilidades poéticas, funcionais, performativas. Corpos e afetos que se reescrevem através de outras configurações urbanas, políticas, amorosas. A proliferação de uma rica formação política ganha em opções com um agir ciente das finitudes e da não eficácia do universal.

    É difícil hoje se esperar pelo líder, pela direção e condução de seus atos por meio da “organização” ciente de um “papel histórico”. Não se trata de desprezar os líderes, de desconsiderar a memória das lutas populares, as formas tradicionais dos movimentos e partidos. Trata-se de somar a tudo isto – que, de certa maneira, já operamos há algum tempo – toda e qualquer criação de intervenções e afetos associados às questões dos negros, das mulheres, das pessoas LGBTs, dos que não possuem, das minorias. Em certos casos, trata-se mesmo de substituir o tradicional pelo novo e inesperado. A “cerimônia do adeus” ao que nos pertencia pode ser uma liberdade para a criação do novo. E se finito, inesperado, fora do controle, mais de resistência se pode apreender com o acontecimento.

    A ação política não estaria nos modelos, tradicionais ou não, mas no cruzamento e na correlação dos componentes heterogêneos, dos processos finitos e radicais. E, por natureza semelhante, esta seria mais a política das sensibilidades afins às mudanças e à percepção do novo.

  • Movimentos tradicionais, autonomistas e um novo ciclo de lutas no Brasil. Entrevista especial com Alana Moraes

    Publicado por: http://www.ihu.unisinos.br/567067-movimentos-tradicionais-autonomistas-e-um-novo-ciclo-de-lutas-no-brasil-entrevista-especial-com-alana-moraes

    Por: Patricia Fachin | 28 Abril 2017

    A crise petista transformou a esquerda em um “lugar de muita melancolia”, que produz uma “fixação” por “Bolsonaros”, ao invés de criar “afetos mais potentes para continuar caminhando, pensando novas possibilidades, criando brechas”, avalia a socióloga Alana Moraes na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ela, as tentativas de resposta à crise vêm “clamando por fórmulas que simplificam a questão”, seja no discurso que defende a “unidade das esquerdas”, no grito “Fora Temer” ou no discurso do “pacto pela estabilidade democrática”.

    Ao invés de procurar respostas simples e simplistas, defende, a esquerda precisa se perguntar “o que é ser de esquerda no Brasil hoje”. Ser esquerda, questiona, “é nos mobilizarmos para ter um candidato ‘viável’ para 2018? É nos afetarmos com a prisão dos muitos ‘Rafaéis Bragas’, com os massacres contra camponeses, indígenas, contra os pobres na periferia, contra as mulheres, que acontecem cotidianamente neste país? Construir redes mais eficazes contra a violência estatal? Esse é o momento de perseguirmos essas questões mais de fundo, de nos definirmos mesmo, em comum”. Antes de aderir a uma “unidade das esquerdas”, sugere, é preciso “pensarmos que esquerda somos e o que realmente queremos ser depois dessa experiência do ciclo petista”. E dispara: “2018 será uma consequência feliz ou infeliz do que conseguimos juntos produzir de respostas”.

    Na entrevista a seguir, a socióloga comenta a atuação dos movimentos sociais autonomistas no país e frisa que “a dificuldade de mobilização” que existe hoje “é fruto de uma escolha política do PT e de muitos outros setores ligados ao partido que foram completamente enfeitiçados pela disputa eleitoral, pelos jogos que estavam colocados para que o PT pudesse permanecer no poder, pelos pequenos poderes dos gabinetes”. Apesar disso, Alana aposta que a greve de hoje, organizada pela Central Única dos Trabalhadores – CUT e as Centrais Sindicais, será “uma mobilização histórica”.

    Além da mobilização organizada pelas Centrais, a socióloga menciona que “alguns processos interessantes estão também produzindo essa greve geral: coletivos que estão se reunindo na cidade para colar lambes de convocação como fez o Arrua em São Paulo; o próprio Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST fazendo assembleias em bairros na periferia de São Paulo para chamar as pessoas; os professores das escolas particulares enfrentando, muitas vezes, direções e pais conservadores e aderindo massivamente à greve; o movimento negro mobilizando e convocando para uma ala negra na marcha; os movimentos feministas também convocando bastante”.

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    Alana Moraes | Foto: Arquivo pessoal

    Alana Moraes é graduada em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestra em Sociologia e Antropologia pela mesma universidade, e atualmente cursa doutorado no Programa em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – Como você está avaliando o atual cenário político do ponto de vista das mobilizações sociais? O que tem sido significativo desse ponto de vista?

    Alana Moraes – É interessante porque o Brasil hoje vê desmoronar todo o arranjo institucional democrático representado pela Constituição de 1988, ao mesmo tempo em que a esquerda partidária e organizada também entra em uma crise profunda. Parece que agora vivemos em uma cidade de escombros, nada é muito reconhecível do ponto de vista das estruturas, mas alguns ainda acham que é possível reformar os edifícios, emendar os encanamentos, fiações. Eu sou daquelas que acham que temos que resgatar as coisas mais importantes, claro, mas é preciso não se ocupar muito com os escombros. Temos que construir uma nova cidade, viva, cheia de praças, para que a gente possa se encontrar e decidir juntos o que vai ser nosso projeto de emancipação.

    Tenho pensado muito numa frase do Marx em que ele diz que \”A situação desesperada da sociedade em que vivemos me enche de esperança\”. Penso que podemos e temos o dever de resgatar essa esperança. A esquerda hoje se tornou um lugar de muita melancolia: produzimos essa fixação com “Bolsonaros”, com nossas derrotas, mas precisamos de afetos mais potentes para continuar caminhando, pensando novas possibilidades, criando brechas. Por isso é importante estar conectado com as lutas que surgem hoje. A melancolia também é um efeito do neoliberalismo que nos paralisa, nos deixa doentes.

    Respostas à crise

    Muitos respondem a essa crise das esquerdas clamando por fórmulas que simplificam a questão: \”unidade das esquerdas\”, ou \”primeiramente fora Temer\”, \”pacto pela estabilidade democrática\”. É óbvio que a luta agora tem que ser no sentido de continuar denunciando o golpe e exigir o afastamento do governo ilegítimo, mas no fundo sabemos que o buraco é bem mais profundo. Temos um Estado racista que mata, encarcera, distribui desejo de punição. O Rafael Braga está preso porque carregava um Pinho Sol. Temos que nos perguntar o que é ser de esquerda no Brasil hoje. É nos mobilizarmos para ter um candidato \”viável\” para 2018? É nos afetarmos com a prisão dos muitos “Rafaéis Bragas”, com os massacres contra camponeses, indígenas, contra os pobres na periferia, contra as mulheres, que acontecem cotidianamente neste país? Construir redes mais eficazes contra a violência estatal? Esse é o momento de perseguirmos essas questões mais de fundo, de nos definirmos mesmo, em comum.

    Antes de “unidade das esquerdas”, sinto falta de pensarmos que esquerda somos e o que realmente queremos ser depois dessa experiência do ciclo petista. 2018 será uma consequência feliz ou infeliz do que conseguimos juntos produzir de respostas. Acho que precisamos abandonar a ilusão de que um novo programa de esquerda nascerá de uma ou duas reuniões com intelectuais ou dirigentes partidários. Penso que um programa, um plano de ação em comum, podem dar mais certo na medida em que conseguem produzir encontros, implicar pessoas vindas de lugares diferentes em práticas concretas.

    IHU On-Line – Alguns têm defendido – e até criticado – que o PT vem reconquistando sua hegemonia, inclusive de mobilização entre os setores de esquerda. Na sua avaliação, isso está acontecendo? Por quê?

    Alana Moraes – Acho que nem o PT acredita mais nessa hegemonia. Mas toda a dificuldade de mobilização que temos hoje, e o PT sabe bem disso, é fruto de uma escolha política do PT e de muitos outros setores ligados ao partido que foram completamente enfeitiçados pela disputa eleitoral, pelos jogos que estavam colocados para que o PT pudesse permanecer no poder, pelos pequenos poderes dos gabinetes.

    Esse não é só um problema do PT, é um problema da esquerda internacional. As apostas da social-democracia europeia hoje foram completamente absorvidas pelo sistema. A vida no neoliberalismo é insuportável. Nunca antes as pessoas estiveram tão medicalizadas e deprimidas, se sentem impotentes, não decidem nada das escolhas políticas que realmente afetam suas vidas. Óbvio que querem agora soluções mais radicais, que possam, de alguma forma, chacoalhar o sistema político. Não tem mágica aí: hoje os movimentos que mais mobilizam no Brasil, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST, conseguem fazer isso porque têm conexão com a prática, com o cotidiano das pessoas. O PT escolheu o caminho do Estado, da gestão e, é claro, muitas conquistas importantes surgem daí: a expansão das universidades, valorização do salário mínimo. Mas a experiência do PT no governo nos serve também para pensar sobre os limites de ocupar um Estado sem fazer da luta contra ele, contra essa forma atual de governamentalidade neoliberal que é uma camisa de força, uma máquina de moer tudo a serviço da financeirização e do processo contínuo de espoliação dos mais pobres.

    A esquerda que era oposição ao PT não parece pensar por outros caminhos também: ganhar eleições, construir mandatos, fazer políticas públicas. A receita é bem parecida. Precisamos de outras experiências de politização. Pensar e praticar o que seria modos de vida diferentes: redes de cooperação de trabalho que usem mais a tecnologia e a internet a favor dos mais pobres; novas redes de compartilhamento de cuidados; pensar com mais consistência a autoconstrução de moradias de qualidade contra a propriedade privada e os terrenos vazios para especulação; fortalecer as redes de midiativismo periférico que estão denunciando a violência policial, pensar sobre as disputas territoriais que nos façam ter mais controle de decisão sobre aspectos fundamentais da vida: as escolas, políticas de transporte, postos de saúde. Eu acredito que seja a partir dessas experimentações e da politização do cotidiano que vamos conseguir pensar um outro jeito de ser esquerda e de viver juntos. Isso não quer dizer que devemos abrir mão de disputar o que deveria ser público. As lutas hoje contra os desmontes dos direitos trabalhistas, a reforma da previdência são lutas incontornáveis. Mas uma esquerda que define seu sentido apenas pela disputa do Estado, desse Estado, é uma esquerda que está condenada ao definhamento.

    IHU On-Line – Qual é o impacto ou o legado de Junho de 2013 nos dias de hoje? Como os anseios expressos naquelas manifestações se manifestam ou repercutem ainda hoje?

    Alana Moraes – Os ecos de Junho estão aí quando nos deparamos com todo esse cenário de listas da Odebrecht, delações, acordos. Junho foi o grito ensurdecedor contra esse sistema. Ele começa com uma faísca simples, a indignação contra o aumento do transporte, mas foi a faísca suficiente para questionar toda a engrenagem. Junho sugeriu a possibilidade de radicalizar a luta contra o sistema que engoliu o próprio PT, mas naquele momento o PT quis se posicionar pela manutenção da ordem. Só que a \”ordem\”, demorando mais ou menos, estará sempre contra os de baixo. O PT e a esquerda de modo geral perderam a possibilidade de, com uma mobilização social histórica de 2013, fraturar e desmontar esse grande esquema de funcionamento da política no país. Outras forças se organizaram a partir desse vácuo e o \”Fora PT\” conseguiu responder aos anseios mais conservadores, mas, ao mesmo tempo, as mobilizações da direita tinham um perfil social e uma aparição política completamente diferente do que foi Junho. Junho pedia o fim da polícia militar, enquanto as manifestações da direita pediam mais polícia. A linha de corte é evidente.

    Agora estamos nos equilibrando num fio muito delicado: não podemos achar que a Lava Jato é, de fato, a solução para uma nova ordem democrática, isso é um erro gravíssimo. A Lava Jato expressa, justamente, o poder de outra casta, a do judiciário racista, a mesma que prende o Rafael, o único preso de 2013 hoje. Ao mesmo tempo, não podemos concordar com nenhum pacto de anistia de caixa 2 ou qualquer outro acordo que pretenda salvar esse sistema. Precisamos pensar outros caminhos, mas, enquanto isso, continuar nas ruas denunciando Temer, exigindo novas eleições. O golpe foi cruel porque ele desmonta, por dentro, tudo o que grande parte da esquerda brasileira construiu como estratégia: o pacto lulista, o nacional-desenvolvimentismo que se alimentava de propinas, o agronegócio, que além de destruir nossas florestas, de exterminar populações indígenas, terminaria votando pela família e por Deus contra o governo que mais o favoreceu. No fundo, a luta de classes prevalece, é o Martírio, filme impactante de Vincent Carelli, esse Brasil que permanece insubmisso, existindo pelas bordas.

    IHU On-Line – Muitos pesquisadores têm chamado a atenção para a mudança no modo de atuação dos movimentos sociais nos últimos anos, os quais já não seguem uma hierarquia e são mais difusos se comparados aos movimentos tradicionais. Nesse sentido, pode nos dar um panorama sobre o modo de atuação dos movimentos autonomistas nos dias de hoje? Que mudanças identifica entre antigos e novos movimentos, quem participa de movimentos sociais hoje, quais são as práticas desses movimentos e como eles se relacionam com a esfera pública?

    Alana Moraes – Gostando ou não dos governos petistas, ninguém diria que o Brasil de hoje é o mesmo de dezesseis anos atrás. As formas de pensar e fazer luta, de se organizar, também estão mudando, ainda que coexistindo com as tradicionais formas de representação, cada vez mais em crise, como os partidos e sindicatos. O próprio Movimento Passe Livre – MPL, aliás, passou por uma crise importante desde 2013, e os debates produzidos nessa crise por eles são bons debates para pensar os problemas desses caminhos mais autônomos também. É difícil definir o que são os movimentos autonomistas hoje, é uma constelação bastante diversa de pequenos grupos que vêm misturando debates sobre formas de organização mais horizontais com outros debates sobre concepção de luta revolucionária, sobre o papel da classe trabalhadora, formas de conscientização, trabalho de base, tática etc. Podem misturar, por exemplo, como influências de forma de organização o zapatismo, mas, do ponto de vista da relação com a classe trabalhadora, apostar em estratégias de \”proletarização\” de seus militantes, como os trotskistas faziam aqui na década de 1970 nas fábricas.

    Acho que vivemos em uma fase de experimentações políticas e isso é muito interessante, mas não gosto muito de saídas nostálgicas que fetichizam a classe trabalhadora ou que se colocam essa tarefa de \”conscientizar\” o outro, a \”classe\”. Acho que é a prática de uma vida coletiva em comum que pode criar pertencimentos e nisso acredito pouco nas receitas da ortodoxia marxista e muito nas práticas feministas.

    Coletivos

    Outra coisa que explode no Brasil hoje são os coletivos de negros e negras e os coletivos feministas. Isso representa uma mudança subjetiva avassaladora. Hoje não se faz mais um debate na esquerda ou na universidade só com homens ou um debate sobre periferia sem negros e negras, sem gente da periferia, não se pode mais fazer isso sem consequências. E aqui a esquerda tem caído em uma armadilha. Vejo muita gente, de autonomistas a leninistas, dizendo que as novas lutas negras e feministas estão \”dispersando\” a \”verdadeira luta de classes\”, que elas são \”cooptadas pelo sistema\”, são \”pós-modernas\”. Mas o que é a \”classe\” no Brasil? A classe é uma mulher negra que trabalha fora e dentro de casa cuidando de outros, mal paga. Não é possível falar do neoliberalismo hoje sem falar do encarceramento em massa de negros que ele produziu, sem falar do feminicídio que explode, sem falar de um modelo de exploração permanente do corpo e da vida das mulheres, que servem de colchão para toda crise econômica e social que o próprio sistema produz. Então, eu diria que nada é mais ameaçador para a ordem capitalista do que mulheres feministas e negros e negras que se organizam. Toda a concepção de trabalho, de valor, e até mesmo de quais as vidas merecem ser vividas no capitalismo é produzida com os pilares do patriarcado e do racismo.

    Existe uma desconfiança em relação à \”esfera pública\” generalizada. Entre aspas mesmo, porque sabemos hoje que ela não é democrática, pública, ou igualmente acessível a todos e todas. Talvez o que toda essa constelação de novos movimentos esteja produzindo, como ecologia política, seja novas possibilidades de radicalização democrática. Quando os secundaristas ocupam suas escolas, entre outras coisas, é para dizer que eles próprios devem poder decidir sobre suas vidas, sobre suas escolas, contra uma gestão autoritária e burocrática. A divisão existente em muitos partidos de esquerda, que separa dirigentes-formuladores de política daqueles que executam tarefas, essa divisão não faz o menor sentido para essa nova geração. Não podemos pensar uma nova institucionalidade que seja mais aberta, mais democrática, sem pensar as formas tradicionais de organização das esquerdas.

    IHU On-Line – Como a esquerda, em geral, reage diante desses movimentos difusos? Eles podem ser considerados como movimentos ligados à esquerda?

    Alana Moraes – Quando o chamado novo sindicalismo surgia nos anos 1970, 1980, fazendo grandes greves e depois durante toda a discussão de formar um novo partido da classe trabalhadora, o PCB, que era a \”esquerda tradicional\” da época, dizia que criar o PT seria um gesto inconsequente, que atrapalharia no processo da abertura democrática e que o verdadeiro partido da classe era o PCB. É muito curioso que agora muitos dirigentes do PT estejam falando a mesma coisa desses novos movimentos, coletivos, do próprio processo de mobilização de Junho de 2013. Eu acho que o binômio novo X velho talvez não nos ajude hoje, ainda mais nessa conjuntura de reação conservadora. Precisamos pensar juntos novas formas organizativas, e hoje eu não vejo nenhum partido de esquerda realmente aberto a isso.

    A esquerda cria um universo próprio, com um vocabulário próprio, é autorreferente; o marxismo, muitas vezes, é tristemente transformado em cartilhas. A derrota sofrida pelo PT no Brasil é uma derrota de toda a esquerda, e penso que se não estivermos suficientemente abertos para formas de organização mais porosas e democráticas, mais conectadas com os novos \”chãos de fábrica\”, escolas, universidades, agroecologia, ocupações urbanas, coletivos de arte, se o programa político não estiver fortemente vinculado com as lutas da vida real, com as possibilidades de construir espaços de resistência ao neoliberalismo, acho que vamos demorar ainda mais tempo para levantar da lona. Não tem atalhos.

    IHU On-Line – Que futuro vislumbra para os novos movimentos sociais? Que impacto eles podem ter no âmbito público, por exemplo?

    Alana Moraes – Acho que vivemos um novo ciclo de lutas. O MTST, os secundaristas das ocupações, os coletivos que discutem direito à cidade, os coletivos feministas, o novo movimento negro, os coletivos antiproibicionistas, a proliferação de coletivos periféricos, o midiativismo, os advogados ativistas, os movimentos de mães de vítimas de violência policial, os coletivos de arte que estão explorando outras linguagens e formas políticas, os hackers e aqueles que discutem hoje o problema da segurança na internet, de uma comunicação livre, de uma alimentação livre de veneno, enfim, acho todos esses compõem o que seria essa nova geração política.

    É claro que o sindicalismo mais tradicional combativo ainda é muito importante, mas hoje temos novos atores em cena e que colocam novas questões – nada nos autoriza a jogar fora as experiências passadas, assim como combater as novas experiências de luta. É uma ecologia política bem interessante e que fala muito sobre o novo Brasil. Com a crise da forma-partido enquanto forma de organização, o que precisamos pensar hoje é o que seriam os novos espaços de confluência para que essas experiências de resistência possam se encontrar mais; como podemos pensar mais ações conjuntas, nos fortalecer mutuamente, nos reconhecer e ir produzindo nossos vínculos porque eles não são imediatos, ao contrário, eles são fruto dos encontros, do trabalho de construção de novas comunidades políticas.

    No final dos anos 1990, começo dos 2000, tínhamos o Fórum Social Mundial que, com todos os limites, nos permitia pensar juntos e nos formar também coletivamente. É preciso retomar esse fio e pensar o que seria hoje esse espaço, quais seriam as novas questões e possibilidades de atuar juntos. Não podemos perder também a possibilidade de criar redes internacionais de resistência, nos conectar com aqueles e aquelas que estão pensando o esgotamento do modelo progressista na América Latina, por exemplo. A recente convocação para a greve de mulheres, a campanha feminista do “ni una menos”, nos interpelam também para pensar desse lugar das alianças internacionais.

    IHU On-Line – Outro ponto da sua pesquisa é o estudo das novas configurações da classe trabalhadora no Brasil. Em que consistem essas novas configurações, como e desde quando elas estão ocorrendo?

    Alana Moraes – A classe trabalhadora no Brasil sempre foi muito heterogênea. Essa classe que imaginamos, masculina e industrial, ainda que muito relevante, só existiu de forma significativa em São Paulo. Nos últimos 30 anos, a forma de acumulação de capital mudou muito, assim como o trabalho. Com o domínio crescente do capital financeiro, as formas especulativas tornam-se cada vez mais importantes. A classe de assalariados transforma-se agora em uma classe de endividados. A tradicional relação capital-trabalho que se dava em um espaço delimitado (empresas, fábricas etc.) perde importância na produção de riqueza, o setor de \”conhecimento\” torna-se o setor mais dinamizado do capital e a classe trabalhadora desloca-se majoritariamente para o chamado setor dos \”serviços\” e dos cuidados. Esse deslocamento é o que faz também com que muitas pessoas procurem outras formas de sobrevivência, como os pequenos negócios, as pequenas produções familiares, o trabalho dos \”bicos\”.

    Com essa nova espacialidade do trabalho, com o fim das grandes fábricas e espaços de produção, fica mais difícil a organização dos trabalhadores nos locais de trabalho. Como diz o geógrafo David Harvey, toda a cidade se transforma agora em uma grande fábrica. Ainda temos um grande setor da classe trabalhadora que se relaciona com o desemprego constantemente. Junta toda essa fragilidade com uma vida impossível nas nossas cidades, com o déficit habitacional, o aumento dos aluguéis pela dinâmica da especulação imobiliária.

    A pergunta que ainda não sabemos responder é: se o sindicalismo correspondia, enquanto forma organizativa, a uma classe trabalhadora do começo do século XX, quais as formas possíveis de auto-organização da classe do começo do século XXI? A esquerda precisa pensar se a figura clássica do \”trabalhador\” pode ainda mobilizar essas novas subjetividades que emergem desde as dinâmicas neoliberais (e suas resistências cotidianas!) ou se a produção de identidades coletivas migrou também para outros lugares.

    É uma pergunta. Não sabemos bem, mas não podemos deixar de pensar nela e não podemos mais alimentar a nostalgia fordista querendo que as fábricas voltem para que nos situemos. A classe trabalhadora mudou radicalmente e pode não construir tanta identidade assim com o trabalho (já que os trabalhos \”que restam\” são trabalhos extremamente precários, extenuantes, pesados), mas com outras dimensões da vida, e por isso a igreja evangélica tem um papel fundamental. O combate ao neoliberalismo também passa por recriarmos formas de convivência, por exemplo, que produzam outras formas de solidariedade e cooperação, novos modos de existência.

    IHU On-Line – Sua pesquisa de doutorado trata sobre a produção da vida em comum e os caminhos da politização do cotidiano entre os sem-teto na periferia de São Paulo. Como a pesquisa está sendo desenvolvida?

    Alana Moraes – A minha pesquisa parte de uma pergunta simples, mas que hoje transformou-se quase em um não-problema para a esquerda e para a própria universidade: como se vive junto? Como é possível produzir uma vida em comum, um espaço compartilhado, pertencimentos coletivos em um mundo neoliberal marcado pelos processos constantes de esgarçamento dos tecidos sociais, pela transformação do mundo do trabalho, pela crise urbana?

    Na minha opinião, o MTST é um movimento incontornável para entender o Brasil de hoje. Ainda que seja um movimento de quase 20 anos, o MTST explode e emerge na cena política com mais protagonismo em Junho de 2013. Portanto, é também fruto de 2013, de algum modo. As ocupações de sem-teto nas periferias de São Paulo são um grande laboratório de produção da vida coletiva. Pensar a alimentação, cozinhas coletivas, como fazer as mediações de conflitos de todo o tipo, a limpeza, as inseguranças de falar em assembleia, o desemprego, separações conjugais, a relação com as crianças, com a fé.

    Na ocupação do Capão Redondo, fizemos uma rádio comunitária e temos também um cursinho popular para jovens, um salão de beleza autogerido, um bazar de roupas usadas. Construímos parede por parede, fiação por fiação. É um mundo extremamente feminino também. São as mulheres que cuidam das relações, as \”tias\” que, de alguma forma, também fazem novos parentescos, \”o movimento tem que entrar no sangue\”, como elas dizem. Na semana passada, fizemos uma roda de conversa só com mulheres sobre trabalho produtivo e reprodutivo na ocupação. Eram mais de 100 mulheres no barracão, e na hora da apresentação quase 90% das mulheres ali ou se apresentou como \”desempregada, do lar\”, ou \”faxineira\”, \”diarista\”, \”cuidadora\”, \”babá\”. Duas mulheres trans, em condição de prostituição, que trabalham à noite, também participaram da atividade. Fiquei pensando que se fosse uma reunião feminista na USP, teria um monte de tensão, mas ali no Capão, evangélicas, prostitutas, mulheres que cuidam, produziram um espaço incrível de formação coletiva e de convívio possível, pensando, por exemplo, o que fazemos com nosso escasso tempo livre. É muito importante pensar o tempo livre. As mulheres praticamente não têm esse tempo: estão sempre trabalhando, cuidando de tudo.

    Minha pesquisa segue os problemas colocados nessa feitura cotidiana das possibilidades coletivas, das práticas compartilhadas de trabalho e cuidados – elas são bem anteriores às cenas que costumamos ver como propriamente \”políticas\”: as manifestações, os embates públicos. Muitas pessoas chegam nas ocupações extremamente fragilizadas, quadros graves de depressão, ansiedades, insônias crônicas, alcoolismo. No entanto, a vida coletiva cura e estou muito interessada nisso também, em como podemos nos curar coletivamente. Eu me esforço muito para não elaborar um conhecimento sobre os sem-teto, mas um conhecimento com eles e elas, com a relação que estabelecemos nas tarefas e afetos de todos os dias. Nossas práticas de ciência precisam também estar situadas e posicionadas politicamente. Não é mais possível, nem desejável, produzir uma política ou um conhecimento de vanguarda, afastado dessas questões que só acontecem quando estamos implicados com algo, com relações, com uma causa coletiva. É um aprendizado de pensar a partir da demanda que a luta nos coloca.

    IHU On-Line – Qual é a expectativa para a greve geral anunciada para esta sexta-feira? Sendo a greve promovida pela CUT e pelas Centrais Sindicais, qual é a expectativa de adesão da população?

    Alana Moraes – Eu acho que vai ser uma mobilização histórica. Para mim, é um exemplo de como o processo prático de construção coletiva pode nos levar para lugares mais interessantes, podemos falar com mais gente. Alguns processos interessantes estão também produzindo essa greve geral: coletivos que estão se reunindo na cidade para colar lambes de convocação como fez o Arrua em São Paulo; o próprio MTST fazendo assembleias em bairros na periferia de São Paulo para chamar as pessoas; os professores das escolas particulares enfrentando, muitas vezes, direções e pais conservadores e aderindo massivamente à greve; o movimento negro mobilizando e convocando para uma ala negra na marcha; os movimentos feministas também convocando bastante.

    Por isso é importante que as estruturas sindicais repensem também o uso dos grandes carros de som que quase sempre impõem uma hierarquia muito grande nos atos e abafam qualquer possibilidade de outras expressões, impedem até que as pessoas conversem. Penso que nossas possibilidades de resistência estão muito vinculadas com a produção de outras espacialidades políticas também, espaços que permitam mais o encontro, que falem para mais gente e que permitam (e distribuam!) mais a própria condição da fala.

  • A periferia contra o estado? Para escapar das ciências tristes! Criemos outras possibilidades

    Por Alana Moraes, Henrique Parra, Hugo Albuquerque, Jean Tible e Salvador Schavelzon | Imagem: Gavin Adams

     

    Cagaram mil e uma regras de conduta
    Eu mandei pra puta que pariu
    E sorri, feliz.
    Jenyffer Nascimento

     

    No último dia 25 de Março, a Fundação Perseu Abramo apresentou os resultados da pesquisa Percepções na periferia de São Paulo, trabalho que era destinado, nas suas próprias palavras a \”compreender, de forma profunda e detalhada, os elementos que têm formado a visão de mundo e o imaginário social nas periferias da cidade de São Paulo\”. Dentre suas conclusões, o estudo considerou que \”a mistura entre valores do liberalismo, do individualismo da ascensão pelo trabalho e do sucesso pelo mérito, com valores mais solidários e coletivistas relacionadas à atuação do Estado, à universalização de direitos, à ampliação da inclusão social, permeiam a visão de mundo e o imaginário dessa nova classe trabalhadora das periferias de São Paulo\”, gerando intensos debates e conclusões peculiares. A pesquisa da FPA foi movida por uma pergunta inicial: \”por que os pobres não votam mais no PT?\”.

    A pesquisa diz muito mais sobre si mesma e sobre a \”visão de mundo\” que a informa, do que potencializa novas perguntas e entendimentos sobre os processos sociais em curso. Curioso observar as leituras que surgiram dos resultados publicados. De uma lado, uma esquerda que se apresenta esgotada, sem assumir uma crise de paradigma constata que o território que pensava como próprio foi ocupado pelo inimigo.De outro lado, aparece uma direita triunfalista, que celebrou com matérias ou editoriais nos grandes jornais os resultados da pesquisa da FPA, no que aparece para eles como capitulação do estatismo de horizonte socialista frente a um liberalismo que é pano de fundo de uma sociedade aberta, do livre mercado, o mérito e o encerramento do conflito ideológico no campo social.

    A pesquisa serve a ambos os propósitos. Porém, outras possíveis leituras se abrem nas fissuras que permitem escapar de um mundo de binarismos, homogeneizações, e guerras culturais ancoradas nas disputas ideológicas do século 20. Esses lugares são os que mostram que a história não acabou, mesmo que algumas formas de construção política de fato não sejam mais possíveis. Bairros organizados para lutar por moradia e transporte, respostas políticas da população que não necessariamente se alinham com escolhas eleitorais. Um tránsito sinuoso, de ondulações e curvas, mostra também a possibilidade de outra ciência e outra política, que não pretende completar o trabalho da civilização ou do catequismo, e não assume como episteme as fronteiras impermeáveis de um indivíduo-cidadão, da sociedade organizada pelo Estado, nem do mercado, do trabalho e da propriedade privada como únicos, permanentes e estáveis de organização.

    Todo o debate gerado em torno da pesquisa, nos fez pensar também que disputar o que \”são\” os pobres é uma armadilha que só pode ser desativada por outras práticas de pesquisa, outros lugares de posicionamento. Essa inquietação a respeito do fundo no qual as questões foram postas nos parece um bom problema de partida: que modos de conhecer podem contribuir para a criação e potencialização de projetos coletivos de autonomia?

     

    Descer a torre e pensar pelas frestas: ritos de desautorização

    \”Por que os pobres não acreditam mais em nossa promessa de salvação?\”. É uma pergunta que ecoa através das décadas. Nas teorias clássicas do populismo, ao menos na sua primeira geração, os pobres eram \”cooptados\”, imersos em uma cultura rural e atávica cujo sentido era conferido pelas relações clientelistas. Estavamos fadados a ter uma classe trabalhadora vulgar, sem consciência, movida por interesses econômicos, quase sempre manipulada. As teorias sociológicas estavam lá para comprovar – isso, é claro, até migrantes nordestinos do ABC paulista restituirem de vez a dignidade da classe contra a teoria. Na cidade de São Paulo, o sindicalismo da oposição metalúrgica, nesse mesmo período, produzia intelectuais-operários e convocava intelectuais das universidades para pensar as possibilidades de luta e autonomia dentro das fábricas. A explosão do movimento operário nos anos 70/80 em São Paulo, assim como os movimentos populares de bairro, emergiam na cena política questionando a velha divisão entre sujeito e objeto, que em um dos seus desdobramentos, também se expressa na divisão que separa a vanguarda política da classe trabalhadora. O desejo de radicalização democrática se insurge também contra as fronteiras do pensamento e a autoridade de enunciação.

    De volta a um período de fechamento democrático, com intensificação das práticas autoritárias estatais, surge também uma necessidade renovada de pensar outras formas políticas que, dentre outros deslocamentos, consiga mais uma vez questionar as formas de produção de conhecimento. Nos deparamos hoje com um mundo em intensa transformação: as formas do trabalho mudaram radicalmente assim como as formas de representação, que hoje econtram-se em crise.

    O que propomos aqui é uma investigação coletiva que seja demandada pelos problemas que surgem de um novo ciclo de resistência, e que possa assim contribuir para desestabilizar a separação hierarquizante das formas de pensar e agir no mundo. Nossa proposta é simples: uma prática de pesquisa que atue pelas demandas concretas das resistências ao modo de vida neoliberal. É preciso também rejeitar a crítica ao \”pensamento intelectual\” que vem ecoando entre nós mesmos, lutadores e ativistas. Para superar esses impasses, nosso desafio é ainda maior: afirmar que é da luta e das criações de novas formas de vida que podem nascer reflexões intelectuais criativas e potentes. Da mesma forma, afirmar que não há potência de pensamento que não esteja fortemente implicado em processos coletivos de transformação. Não há pensamento criador sem luta, como não há luta sem produção de conhecimento.

    Assumir uma prática de pesquisa na qual estamos todos posicionados, implicados em causas e processos coletivos. Não nos é mais permitido fazer uma ciência ingênua. As feministas bem sabem que sem o corpo, sem a compreensão da economia de relações que fazem os próprios \”sujeitos\”, suas vulnerabilidades, sofrimentos e cotidianos não é mais possível fazer conhecimento, muito menos política. A crença na existência de sujeitos prontos – seja ele o sujeito da classe, seja ele o novo sujeito periférico é uma crença masculina que nunca leva em conta todo o trabalho anterior de relações, vínculos, alimentação, pertencimentos que produz pessoas, pensamentos, \”opiniões\”. Trabalho esse muito mais imprescindível em contextos populares. O movimento negro emergente no Brasil também tem produzido formulações imprescindíveis para pensar as formas de ciência. Pensar, por exemplo, como o racismo atua profundamente nas subjetividades, impedindo de forma violenta com que os sujeitos tenham acesso a sua própria fala: como levar à sério essas formulações nas práticas de \”aplicação de questionários\”, por exemplo?

    A dinâmica dos questionários pode ser muito cruel quando ele se torna uma inquisição averiguadora de \”valores\” dos pobres. Se a aposta for no mundo do discurso sobre a realidade, não tenham dúvida, ao menos no mundo ocidental, ele sempre estará do lado dos valores dominantes – da periferia de São Paulo ao Bronx. Uma política renovada precisa pensar outras formas de conhecimento sobre a realidade que não estabeleça tribunais, mas ao contrário, que se afete pelos interstícios, pelos escapes – que não negue a dominação, mas que consiga pensar apesar dela.

    Uma ciência que se compromete com a epistemologia das classes dominantes não pode ser outra coisa que não um retrato triste do pensamento colonial e da impotência política, ora pacificando as experiências dos pobres em categorias estranhas como o \”liberalismo popular\”, ora culpando os próprios pobres por não entenderem nunca as engrenagens da sua própria dominação. É também a expressão de um mundo intelectual que só consegue pensar a si próprio como a vanguarda iluminada da classe – distante, pedagógica, mas intacta em suas certezas.

    No entanto, a vanguarda nunca está lá – se estivesse, saberia, por exemplo que o apelo a imagem do \”empreendedorismo\” é evocada entre várias camadas de experiência: do pragmatismo das \”virações\” cotidianas de quem sempre foi excluído do assalariamento (especialmente mulheres) até o desejo de poder trabalhar sem um patrão. Quando a pesquisa identifica no \”empreendedorismo\” um \”liberalismo popular\” joga fora, de uma vez só, toda uma experiência de classe forjada entre migrações, industrialização e desindustrialização, desempregos constantes, assim como toda a dinâmica pragmática de uma economia popular feita por cabeleireiras, motoboys, faxineiras, ambulantes, as pessoas dos \”serviços gerais\”, a classe que vive do cuidado.

    A pesquisa dispensa também os intelectuais da classe que pensam a periferia porque sentem o que isso quer dizer e desobedecem, mais uma vez, as cercas que pretendem separar \”pensadores\” de \”objetos\” de conhecimento: movimentos populares, os artistas periféricos ou que constrõem relações com a periferia, as redes de cursinhos populares, movimento negro, feministas, secundaristas, aqueles que fazem as novas batalhas de slam, os saraus – deixam de pensar também a partir das tensões geracionais que hoje explodem dentro da própria classe. Uma pesquisa sobre os \”pobres\” que se pretende crítica dos poderes dominantes – da ciência ao golpismo – deveria convocar aqueles que estão produzindo pensamento na periferia, nos emaranhados de suas contradições e modos de vida, para pensar desde as hipóteses iniciais até às interpretações dos dados. Toda pesquisa deve ser também a possibilidade de encontros.

    Uma das consequências não previstas da ampliação do acesso à universidade no Brasil, com todos os limites desse processo, das transformações recentes na sociedade brasileira, foi a entrada massiva dos mais pobres, negros e mulheres nas universidades; a proliferação de coletivos feministas, coletivos negros, a luta por melhores condições nas universidades. Um processo não desprezível de tomada de assalto dos lugares de enunciação do conhecimento e que estabelece, pouco a pouco, ritos de desautorização da figura do homem branco intelectual portador da ciência. Desautorizam também as arenas de disputas em torno do que são ou devem ser os pobres. Nos convidam, mais uma vez, a embaralhar as fronteiras que separam pensamento e luta, transformar as práticas de fazer conhecimento.

    Não queremos afirmar a \”experiência\” como um lugar de autoridade: ela é um campo atravessado por inúmeros fatores e circunstâncias. Ela também é produzida por poderes e contra-poderes, violência, a vaga na creche que nunca chega, a passagem que aumenta novamente. No entanto, uma prática transformadora de conhecimento deve por isso apostar na fricção com a experiência ao mesmo tempo que deve também recusar, sempre que possível, a autoridade de um saber \”explicativo\” e especializado. A pesquisa do Eder Sader sobre a periferia de São Paulo nas décadas de 1970-80, por exemplo, já levava muitas dessas questões e era movida tambem por um espírito de criação emancipadora e coletiva que apostava na relação orgânica com a classe para pensar outros caminhos de ação. Aliás, naquela época, a desconfiança dos pobres em relação ao Estado já era evidente. No entanto, muitos intelectuais petistas como Eder Sader extraíam dessa desconfiança, proposições radicais sobre novas formas democráticas.

    Para derrotar o modo de vida neoliberal, precisamos voltar a perseguir problemas complexos. Eles estão por todos os lados, são produtos também das próprias praticas de resistência. Seria um problema muito mais interessante, por exemplo, pensar como é possivel que essa fração de classe que a pesquisa identifica como \”liberal\” e \”solidária aos seus empregadores\” seja também aquela que compõe a base social de movimentos sociais como o MTST. Pensar os problemas levantados pelas experiências de arranjos comunitários em curso: cozinhas coletivas, práticas de educação popular, produções artísticas que vem construindo novas linguagens e dispositivos de \”politização\” mais horizontais, as novas experiências de clínicas públicas de psicanálise, os coletivos de comunicação e midiativismos periféricos. É que as verdadeiras questões dão trabalho (nascem do trabalho de toda construção coletiva!) e, no fundo, precisamos escolher se vamos pensar com a classe (a classe preta, mulher, jovem, universitária), sobre ela ou contra ela. Pensar, finalmente, como a classe é feita e não dada.

     

    Para além do binarismo Estado X Mercado

    A esquerda que só se concebe do lado do Estado, e contra o mercado, também pode ser produtora de subjetividade neoliberal, criando condições para que, no final do caminho, o sujeito revolucionario transmutado em consumidor do mercado, dispense suas vanguardas e padrinhos, sem que a transição a um governo abertamente pro mercado, por mais diferente, não se constitua em clivagem determinante para a vida das famílias da periferia.

    O estudo da FPA conclui inequivocamente que a recusa ao Estado, e afirmação de alternativas a ele, são liberalismo. As massas pobres das periferias só poderiam estar alienadas, embebidas no sonho do mercado. A resposta, e antes dela, a pergunta, diz mais, novamente, sobre quem a fez do que quem a respondeu. Os pobres sujeitos à repressão sistemática do Estado mediante o aparato de segurança e, por outro lado, excluídos dos modos de autopreservação e cuidado público – a educação, a saúde etc – deveriam amar o Estado – e ainda que este funcione mal, talvez, deveriam ter a consciência do seu funcionamento ideal. Deveriam?

    A mesma conclusão esbarra em uma armadilha conceitual: como poderia o liberalismo ser contra o Estado? Não foi sob o regime neoliberal que se constituíram enormes redes de repressão policial, desenvolvimento bélico, apropriação dos fundos públicos e expropriação do patrimônio coletivo, espionagem de cidadãos e de fantásticos aparatos de aprisionamento e punição? O liberalismo, ainda que conteste o \”Estado grande\”, jamais atuou no sentido de sua abolição, tampouco advogou pela sua diminuição de garantidor da ordem capitalista.

    As multidões periféricas, ao conseguirem habitar, cuidar de sua saúde e se proteger da violência física perpetrada pelo Estado, podem ser mais anti-liberais do que as tais estruturas anti-liberais: a ideia vã de uma dicotomia entre Estado e Mercado, quase como uma batalha do fim do mundo, gera um sistema no qual em um polo está um Mercado planejado pelo Estado e, no outro, um Estado a serviço de um Mercado — a despeito dos arranjos e das gradações, Estado e Mercado estão sempre ali, interdependentes.

    O liberalismo pode ser inclusive interpretado como provocação e resposta dos pobres, frente ao Estado da esquerda que não oferece saídas políticas viáveis, nem projetos de sociedade sedutores, e menos ainda o mercado, frente ao qual os pobres sabem, sim, reivindicar o Estado ou, quem sabe, um outro lugar para além da representação e burocratização da vida.

    O binômio Estado X Mercado apresentado pela pesquisa perde de vista uma das principais engrenagens do modo de funcionamento do neoliberalismo que, para avançar, precisa que mercado e Estado produzam uma coexistência intrinseca: seja nas ações publicas orientadas por critérios de \”produtividade\” ou \”eficácia\”, a \”gestão de resultados\” ; seja no papel crescente das polícias como garantidoras extra-legais da propriedade privada, da especulação imobiliária e na criminalização dos movimentos questionadores da ordem de mercado.

    Se a romantização dos pobres e da pobreza é um equívoco, isso não pode ser dito nem pensado sem uma necessária desromantização do saber técnico, neutro e, literalmente, iluminado da ciência pura que se pressupõe, ainda hoje, uma espécie de demiurgo, de ente transcendental capaz de organizar o mundo a partir de seu local privilegiado de observação.

     

    Uma ciência comum para uma política do comum

    Toda ciência fabrica mundos. Um ato de descoberta científica produz novos objetos, novos processos, novos sujeitos e com eles surgem outras recomposições do mundo. É por isso que podemos dizer que a ciência é também política, no seu melhor sentido. Ela cria novas partições, novas dobras e novos pertencimentos com o real. Na sua versão etnocêntrica e colonial, no entanto, a ciência é política no mal sentido; ela fecha mundos, se interpõe sobre caminhos divergentes, ela \”limpa\”, \”barra\” as diferenças, classificando e organizando tudo no lugar narcisista do Eu. É política do poder, da ordem e do progresso.

    O desafio de construir outras formas de produção de conhecimento exige também a invenção de outras formas políticas. Como seria essa ciência comum potencializadora de outros mundos compartilhados? E o que pode acontecer se partirmos de uma perspectiva parcial, situada e incorporada e que fosse movida pelos problemas dos modos de existência? O que acontece se renunciarmos de partida às ambições projetivas e as totalidades pré-constituídas ou mesmo à eleição de um ponto de vista privilegiado a partir do qual explicamos todo o ordenamento do social? Se todo saber é também poder, como seria produzir um saber insurgente de uma forma política também desconhecida?

    Inspiramo-nos aqui na experiência de diversos movimentos sociais, comunidades afetadas (por problemas de saúde, desastres, conflitos etc), minorias organizadas que a partir de sua experiência e saberes produzem junto a outros atores cognitivos e políticos (pesquisadoras e pesquisadores profissonais ou amadores, ativistas, gestores engajados entre outros), novas formas de organização e luta simultaneamente à produção de conhecimentos contra-hegemônicos. Neste processo, surgem também novos sujeitos políticos. Encontros de saberes e formas diferentes de vida interessadas na co-criação de mundos. A experiência de mulheres que se organizam e que produzem saberes que interrogam as práticas e protocolos médicos, num ataque direto à biopolítica dos sistemas de saúde; os trabalhadores então invisibilizados ou silenciados que criam seus centros de pesquisa e documentação e confrontam as estatísticas oficiais (como foi a criação do Dieese); indígenas e quilombolas cujos saberes são indissociáveis da produção das formas de suporte à vida em comum; hackers e suas comunidades cujas práticas modificam o regime de visibilidade da vida contemporânea tecnicamente mediada, produzindo política através de tecnologias aparentemente neutras, criando clivagens que dão a ver os novos processos de produção de valor e as técnicas renovadas de governo das populações.

    Se criamos espaços de escuta novas linguagens podem ser inventadas (ao invés de ficarmos operando mediações que encaixam o pensamento dos outros em nosso mundo). Talvez seja mais do que tradução, mas a pura invenção de uma outra linguagem comum, por isso, também criadora de outras comunidades políticas. Os regimes de subjetivação que nos constituem são muito heterogêneos. Se desejamos criar novos entendimentos, capazes de fazer proliferar a multiplicidade do real, teremos que aceitar as indeterminações e os trajetos experimentais. Disputemos a imagem do laboratório! Ao invés da sala limpa, pensemos num laboratório contaminado. Nossa hipótese é de que podemos constituir um novo laboratório (que fabrica novos sujeitos, novos objetos, novos mundos) junto àqueles que estão produzindo novas formas de vida em comum, agindo contra o desmanche de algo que é comum e encontra-se ameaçado pelas forças em jogo. Porém, este comum não é necessáriamente conhecido ou visível. Ele é aquilo que é produzido entre todos, e não para todos. Mas justamente por isso, é frequentemente imperceptível. Ele pode ser o silêncio da noite, a qualidade do ar que respiramos, o tempo que temos para cuidar dos próximos, nossos trajetos na cidade e até o trabalho que temos (como é difícil definir hoje as bordas do trabalho e do não-trabalho!).

    Como seria a política dessa forma de conhecer? Talvez, ela também seja inventada justamente ali onde se produz a vida mais ordinária. Nossa hipótese, é que esta forma de conhecer surge simultaneamente à formação de novas comunidades políticas que, para além do regime da representação, produzem a política de forma imanente à vida. Se ela realiza no presente sua política, não é que ela seja prefigurativa da forma política a se construir noutras escalas. Sua política é da ordem de uma singularidade. Ela é menor, situada, parcial, incorporada, da mesma forma que o conhecimento que a produz.

    Apostamos que nesta forma de conhecer por meio desta política do comum, novas individuações coletivas – de ordem transindividual – podem emergir. Por isso, não há forma política a ser preenchida. E isso é o mais difícil no atual momento. Manter os canais de enunciação, de práticas cotidianas, de formas multiplas de pertencimento, todos abertos à proliferação de outras formas de vida (mais solidárias, mais emancipatórias, mais autônomas etc) também demanda a capacidade de lutar contra todas as formas de opressão, homogeneização, sujeição e exploração. Essa forma de conhecer que desejamos praticar com essa política, é sempre feita a favor de algo e contra algo.

     

    Conclusões tão precárias como a classe: por outras práticas de pesquisa-luta

    Uma ação política emancipatória que realmente queira sair de seu beco sem saída precisa, sem dúvida, atravessar os muros que nos separam não apenas fisicamente, mas os muros que interditam o desejo, o pensamento, as práticas de existência em comum

    O problema da liberdade e da emancipação coletiva, da construção de mundos que buscam superar opressões e muros, é um problema que nos situa, todos e todas, em um terreno comum. Isso quer dizer que, apesar de todas as experiências de lutas, das mais vitoriosas até as derrotadas, apesar de todas as teses, ensaios, questionários, não há fórmula-guia que possa nos confortar e mostrar a salvação. Não sabemos. Ou apenas sabemos que nosso saber não pode ser interposto a outros saberes. Não há um plano pronto a ser executado e nesse sentido, toda pesquisa que se pretende comprometida com um projeto de transformação deve conter, desde o início, a possibilidade de experimentações e criações. A relevância de uma pesquisa engajada pode ser testada pela possibilidade que ela oferece de fazer sentido para as pessoas, em suas vidas comuns, para a produção de novos mundos.

    Perseguimos a hipótese de que um conhecimento ativo pode ser produzido a partir dos ruídos com a experiência, extrapolando os lugares de autoridade e ser o resultado de alianças e relações entre diferentes saberes situados e desejantes de um projeto comum. Não é mais permitido (ou legítimo) produzir um saber sobre os \”outros\” de modo instrumental, reificado e não-solidário. Nossa prática de investigação se deseja híbrida e acontece no meio, no entre pesquisa-luta, sua terceira margem. Em certo sentido, é uma forma de conhecer antiga, mas que no atual contexto adquire novas configurações graças às metamorfoses nos regimes de poder e suas formas de saber: os antigos centros de produção de verdades e seus dispositivos, multiplicaram-se e há também novas concentrações, fazendo emergir novos campos de lutas.

    Um laboratório ocupado por corpos e saberes interpelados pelo problema da fabricação de um mundo em comum. Pesquisadoras, pesquisadores que sejam capaz de farejar onde estão as dobras que podem nos mover, as questões que os poderes dominantes tentam esconder a qualquer custo, que possam produzir interferências no sistema hierarquizado de saberes e que possam, de fato, sonhar com outros mundos mas também praticá-los. Enfim, abandonar o delirio de fazer uma ciência neutra que revele as \”percepções\” dos pobres (pra quê? pra quem?) e ensaiar novos laboratórios povoados de corpos, afetos, interferências.

    Fazer mundos exige escuta, é entender com outros, exatamente o que precisa ser feito: novas infraestruturas para a vida coletiva; espaços que possibilitem decisões coletivas sobre a vida comum, pensar o compartilhamento dos cuidados, gerir o problema do desemprego e produzir novas sustentabilidades, criar novas práticas de co-formação que possam se multiplicar, redes de proteção contra violência do estado, novas linguagens e, dessa forma, apontar para outras formas de vida que não estejam encerradas no binarismo Estado X Mercado. Pensar com outros – levar à sério as diferenças, suas contradições, formas de vida, práticas de existência. A classe sempre está por fazer-se, não há uma susbtância a ser revelada.

    Contra a melancolia da vida neoliberal e suas práticas de conhecimento impotentes, cultivemos os afetos alegres de uma ciência implicada e comprometida com a produção de formas de vida em comum, mais solidárias e emancipatórias.

     

    Publicado também em: http://outraspalavras.net/brasil/quer-dizer-entao-que-a-periferia-e-liberal/

  • Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército

     

    Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército

    acácio augusto

     

    O Espirito Santo é um dos estados mais violentos da federação. Há décadas figura nas primeiras posições em taxa de homicídios, taxa de encarceramento e assassinato de mulheres. Basta consultar os últimos Atlas da Violência, Mapa do Encarceramento e Mapa Violência. Essa violência, como não poderia ser diferente, remonta ao estilo de colonização da região. A colonização pela espada e pela cruz esteve orientada aqui para que o estado servisse de barreira de proteção às riquezas das minas gerais. E mesmo recentemente, quando no começo dos anos 2000, os índios Tupinikin e Guarani resolveram enfrentar a multinacional Aracruz Celulose (hoje FIBRIA), foram duramente reprimidos pela Polícia Federal e por tratores, no sangrento janeiro de 2006. Em resumo, a violência é regra e não exceção no estado. Há menos de um ano, o assassinato de um jovem em Jardim da Penha, Vitória, despertou alguns poucos que ainda se incomodam com isso [nota 2].

    Recentemente o estado tem sido lembrado como exemplo de superação em relação à política penitenciária. Após abrir os famosos “micro-ondas”, carceragens de zinco em formato de contêineres, e ser denunciado no CIDH, a política de superencarceramento do Espírito Santo ganhou aporte federal. Hoje, passados quase 10 anos e a propósito das cabeças que rolaram ao norte do país, a imprensa nacional olha para o Espírito Santo como modelo a ser seguido. Seu secretário de Justiça hoje, Walace Tarcísio Pontes, integrante da equipe de Paulo Hartung, mesmo governador da época dos contêineres, se gaba de ter zerado as mortes e controlado o “caos prisional” no estado. Em matéria da BBC Brasil, ele declara que sua palavra-chave é “arquitetura-prisional” e após investir mais de R$ 500 milhões, o estado passou de 13 par 35 unidades prisionais [nota 3]. Descentralizadas e inspirada em prisões estadunidenses que impedem a comunicação entre pavilhões e proíbe a entrada de comida e material de higiene trazidos pela família, essas modernas instalações substituem os chamados cadeiões com eficácia, como se orgulha o ilibado gestor. No entanto, pesquisadores que acompanham de perto essa política de aprisionamento da miséria no estado, mostram que nem tudo são flores e que a “arquitetura-prisional” foi erigida com violentos procedimentos de tortura sistematizada [nota 4].

    No entanto, mesmo com um histórico deste, o estado ficou de fora da farra orçamentária da segurança pública que circundou a realização dos megaeventos. Como se sabe, especialmente estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, tiveram uma volumosa renovação de equipamentos, treinamentos, contratação de pessoal, etc., como resposta às revoltas de junho de 2013 e adaptação às exigências internacionais para realização dos megaeventos. Pois bem, o Espírito Santo ficou fora disso tudo e tem hoje uma PM pré-Copa. Militares são constitucionalmente impedidos de fazer greve. Mas seus familiares decidiram prostrarem-se diante dos quarteis da Polícia Militar reivindicando ajuste salarial (alegam que a categoria não o tem há 7 anos), plano de saúde familiar (alegam que o Hospital Militar está abandonado) e auxílio alimentação, uma promessa não cumprida pelo governo do estado. A mobilização dos familiares começou na noite de sábado, 4/2/17, mas foi na manhã de segunda que o discurso de pânico e desordem produziu seus efeitos. Via aplicativos de mensagens e redes sociais digitais, os relatos e vídeos de lojas saqueadas, carros roubados e violência generalizada foram se avolumando desde o final de semana, até que na tarde de segunda, 6/2/17, a Região Metropolitana da Grande Vitória se tornou uma cidade fantasma.

                         

    Deste momento em diante as coisas se passam como se fosse um resumo em ato das ficções jurídicas que justificam o Estado nos livros jusnaturalistas do século XVII e XVIII. A ausência de autoridade instala a “guerra de todos contra todos” e é preciso uma autoridade centralizada e forte que estabeleça a lei e a ordem. Foi o que o secretário de segurança do estado, André Garcia, fez: convocou o Exército Brasileiro e a Força Nacional de Segurança para (re)estabelecer a ordem. Em pouco tempo, as mensagens com relatos e vídeos de lojas saqueadas foram sendo substituídas por imagens de abordagens dos homens do exército e imagens apavorantes de corpos empilhados no DML (Departamento Médico Legal de Vitória), que teve sua capacidade excedida. No entanto, o que foi anunciado como guerra de todos contra todos, logo se tomou uma caçada de homens armados e fardados contra quem se aventurou a não respeitar o toque de recolher. No DML, as imagens dos corpos mutilados eram de corpos, como diz a canção, todos pretos, ou quase pretos de tão pobres. Para um paulistano vivendo em Vila Velha/ES, a lembrança do maio de 2006 [nota 1] e o massacre de 500 pessoas pela polícia e grupos paramilitares de extermínio foi imediata. Aqui, até o momento, os números oficiais falam em mais de 60 corpos.

    No entanto, tudo isso, infelizmente, não é novidade quando se pensa na repressão regular dos dispositivos de segurança do Estado. O que mais me impressionou foi que, no final da tarde de segunda-feira, conforme os carros e caminhões do Exército Brasileiro (a Força Nacional de Segurança diz chegar durante o dia 7/2/17) foram ganhando as ruas desertas, as pessoas saíam nas sacadas dos prédios para saudá-los, batendo palmas e gritando vivas. No exato momento me veio à mente a cena do filme do grego Costa Gravas, Missing, que em português recebeu o nome de Desaparecido, um grande mistério, de 1982, baseado em história real contada no livro de Thomas Hauser, The Execution of Charles Horman: An American Sacrifice, de 1978, que conta o desparecimento de um jovem jornalista estadunidense durante o golpe de Estado do General Augusto Pinochet, no dia 11 de setembro de 1973, no Chile. Neste filme, cada vez que os caminhões do exército passavam nas ruas, logo após o golpe, as pessoas saíam nas sacadas das mansões para aplaudir os militares. É claro que não quero comparar, muito menos mostrar similitude entre momentos dispares no tempo e no espaço. Na forma de relato expresso apenas uma memória imagética e cinematográfica que me acorreu ao ver as pessoas em suas sacadas, nas quais antes se batiam panelas, agora aplaudindo o exército tomando as ruas da cidade. No entanto, em ambos os casos fica claro uma coisa: não se condena a violência em si, mas apenas aquela violência que parece não estar a serviço de sua segurança e felicidade.

     

    Outra relação um pouco aflitiva com o filme retomado em minha memória imagética é que o protagonista do filme, Ed, pai de Charles Horman, vai ao Chile e procura mobilizar as autoridades de seu país natal para saber o que aconteceu com o jovem jornalista desaparecido. Ed, junto à esposa de Charles, Beth, corre delegacias, hospitais, embaixadas até descobrir que seu filho foi “desaparecido” por agentes do exército e se encontra emparedado no Estádio Nacional de Santiago, junto à outros opositores do Golpe. Essa lembrança me leva a pensar nos pais, mães, irmãs, esposas, irmãos que começarão a mesma jornada de reconhecimento de corpos e esclarecimento dos fatos com os possíveis “desaparecidos” desta noite de estado sítio no estado do Espírito Santo. Com a diferença de que seus filhos, irmãos e companheiros não são nem jornalistas nem cidadãos da nação mais rica e poderosa do mundo.

    Por fim, sem a menor intensão de estar produzindo uma análise para além de um relato com impressões [nota 5], há uma última questão a ser levantada. Muito se falou que a partir da greve da PM no estado, a população do Espírito Santo ficou refém de “marginais” e da “criminalidade”, isso pode até ser verdade, durante algumas horas e/ou dias, mas podemos ver as coisas de outro jeito também. Quando aqui chegaram os colonizadores, eles diziam encontrar um povo “sem fé, sem lei e sem rei”. Pois bem, por meio da violência e de um brutal etnocídio instaurou-se aqui a fé, a lei e a autoridade centralizada (seja ela do rei, do povo ou da nação). Mais de 500 anos depois, uma simples greve daqueles que mantém a lei e a ordem pela violência, é capaz de instaurar a desordem, atiçar a ânsia em tomar na marra tudo aquilo que se repete a exaustão que se deve ter, mas não se pode comprar. Numa equação simples, se por horas ou dias a população ficou refém da criminalidade, por toda vida ela é refém da polícia. Assim, a força maior vem para pacificar e instaurar a ordem contra aqueles que ainda subsistem, aqueles que insistem em viver nessa civilização sem fé, sem lei e sem rei. O que mostra, a despeito de todas a explicações filosóficas, sociológicas e históricas, que vivemos sob uma autoridade que é tão brutal, na mesma medida em que é extremamente frágil, pois encontra-se em guerra permanente contra uma parte significativa da sociedade, enquanto a outra parte vive entre o pavor de ser expolida e a prontidão em aplaudir o massacre em nome de sua felicidade. Então, diante disso, eu pergunto: é de polícia que precisamos? Ou melhor: quem precisa de polícia? Para quê? Contra quem? Pra que serve a polícia? As respostas triviais não nos levarão a conclusões satisfatórias.

    De fato, como nos alertou Michel Foucault, “a política é a guerra continuada por outros meios”.

    Nota 1: Ver “Um breve histórico da luta e vitória das comunidades indígenas contra a gigante Aracruz Celulose no ES”, in https://prazeresdeamelie.wordpress.com/2009/02/27/um-breve-historico-da-luta-e-vitoria-das-comunidades-indigenas-contra-a-gigante-aracruz-celulose-no-es/

    Nota 2: Ver http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2016/10/grupo-sai-da-ufes-e-protesto-contra-morte-de-jovem-no-bairro-da-penha.html

    Nota 3: Camilla Costa. “Como o Espírito Santo conseguiu zerar mortes em prisões – e o que ainda não funciona em seu sistema”, in BC Brasil em São Paulo, 17 de janeiro de 2017, em http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38657173

    Nota 4: Ver “Crescimento da população carcerária implica aumento da violação de direitos. Entrevista especial com Humberto Ribeiro Júnior” in http://www.ihu.unisinos.br/publicacoes/159-entrevistas/564467-aumento-da-populacao-carceraria-implica-aumento-da-violacao-de-direitos

    Nota 5: Veja também o relato de Lívia de Cássia Godoi Moraes. “Esta noite dormiremos temerosos: sobre o caos nas cidades capixabas” in http://www.esquerdadiario.com.br/Esta-noite-dormiremos-temerosos-sobre-o-caos-nas-cidades-capixabas