Tag: meio ambiente

  • 9ª Mostra Ecofalante de Cinema [Ambiental]

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    Juliana Meira

    Entre os dias 12 de agosto e 20 de setembro, está acontecendo a 9ª Mostra Ecofalante de Cinema. Um “environmental film festival” promovido pela ONG Ecofalante junto a parcerias privadas e governamentais, mas que vem suprimindo a palavra Ambiental da chamada pública da mostra desde a 8ª edição.

    Podemos levantar algumas hipóteses acerca do efeito dessa mudança sobre financiamentos. Mas essas hipóteses não tiram de perspectiva, pelo contrário, evidenciam ainda mais o fato de que a noção de meio ambiente – por sua vez comumente associada à de natureza, ainda muito mais complicada – vem passando por tensões. Afinal, o que você associa a “Meio Ambiente”? E quais as sugestões que recebemos sobre essa noção pelo modo como ela é usada por diferentes pessoas, movimentos, instituições, processos educativos e etc? Quando faço essa pergunta, mesmo pessoas que tem uma perspectiva mais ampla sobre meio ambiente localizam lugares comuns como: “problemas ambientais”, “poluição”, “sustentabilidade”, “desmatamento e aquecimento global”, etc. Associações rasas, muitas vezes promovidas pela mídia e por um ambientalismo conservacionista europeu, do norte global, aos quais nem sempre resistimos a endossar. 

    Ainda assim, quanto mais nos envolvemos, mais nos damos conta de que não há aspecto da nossa vida que possa estar fora disso, que não se relacione com o espaço ao redor e assim o transforme de alguma maneira e seja por ele transformado, em períodos mais ou menos longos no tempo. 

    Categoria de envolvimento

    A Mostra Ecofalante como mostra de cinema ambiental, oferece a possibilidade de pensarmos meio ambiente não apenas como uma categoria mais ampla do que essas associações apontadas acima, mas de certa forma indica que Meio Ambiente é uma categoria que não foi de fato “fechada”. Ou seja, mantém abertura para continuar se transformando e servindo a propósitos epistemológicos e políticos diversos.

    Quais os “meios” de dizermos que sim, percebemos nossa indissociabilidade em relação a Terra, a indissociabilidade entre social e ambiental? Já que ainda que a cabeça se mantenha a maior parte do tempo no espectro cartesiano, nossos pés já queiram pisar o chão. As noções de socioambiental e sociobiodiversidade* demonstram essa situação limítrofe, ou transicional. 

    Assim, podemos criar novas categorias que funcionam como enxertos que continuam parte da “planta” como outra espécie, mas que permitem que a vida continue a atravessá-la mesmo na diferença. Mas também podemos continuar com a categoria de ambiental tornando aquele sentido, mais restrito e quase alheio ao social, como apenas um dos momentos da história desse conceito, de quando éramos um pouco mais ingênuos e não percebiamos que nossas ‘palavras’ poderiam criar e transformar paisagens inteiras.

    No segundo caso, a mostra é um exemplo do como já iniciamos outro ciclo de vida do conceito de meio ambiente. Os filmes da mostra estão organizados em programas que compreendem categorias como “Ativismo”, “Consumo”, “Economia”, “Emergência Climática”, “Povos & Lugares”, “Tecnologia” e “Trabalho”. Saúde, Religiões e Espiritualidade, Gênero e Habitação, por exemplo, são categorias não instituídas como programas da mostra. Mas que atravessam os filmes de outros modos. 

    Alguns dos filmes

    Um desses documentários que alargam o campo da noção de meio ambiente com diferentes temáticas, narrativas, outras formas de configurar os problemas ambientais, é Time Thieves – Ladrões do Tempo, de 2018 por Cosima Dannoritzer, –  mesma diretora de A história secreta da obsolescência programada (2010) e A tragédia do lixo eletrônico (2014) –  e fala sobre o tempo como recurso. Através de uma narrativa que conecta as tecnologias digitais e a monetização do tempo roubado no “faça você mesmo”, ou durante nossa movimentação nas redes sociais. Nos ciclos de produção industrial e consumos completamente dissociados dos ciclos de reprodução da vida, o tempo é roubado também. É o caso das linhas de processamento de frango nos EUA. 

    Se em algum momento podemos ver com naturalidade o fato de nós próprios realizarmos o nosso pedido e pagamento através de totens quando vamos a um restaurante fast-food e sequer percebermos que trabalhamos para o estabelecimento. Não é tão facilmente naturalizado para as pessoas que perdem sua saúde, seu bem-estar, dignidade ou até a própria vida por se verem obrigadas a trabalhar em condições onde, por exemplo, não podem sair de seu posto sequer para ir ao banheiro, pois as idas ao banheiro podem ser descontadas de seus salários. E mesmo talvez não sendo o foco do roteiro, está presente o fato de que diferentes grupos sociais, para não dizer classes, vivem essa relação com o tempo da produção e da eficiência de formas diferentes. Podemos notar isso durante a pandemia, onde muitas das pessoas em quarentena tiveram seu tempo roubado de uma forma completamente diferente dos trabalhadores do capitalismo de plataforma (motoristas, entregadores e etc.). 

    Por outro lado, Deus, coloca sua proposta em outras cores, sons e até outro idioma. É um filme chileno, de 2019, dirigido por Christopher Murray, Josefina Buschmann e Israel Pimentel. Um quase silencioso, com o texto menos direto e que deixa brechas ao fazer suas sugestões muitas vezes se utilizando apenas da sequência de eventos apresentados. Ele aborda a visita do Papa Francisco ao Chile em 2018. O filme mostra a preparação dos católicos e da cidade para a recepção do Papa, em meio à crise do catolicismo por um lado, e os evangélicos por outro. A agitação e o tempo da narrativa dada a esses grupos parece ser contrastada pelo tempo-espaço conferido às culturas tradicionais, colocadas como em continuidade com os recursos naturais,  povos da terra. A cena da mulher com as crianças falando sobre a interdependência entre nós e a água, é uma espécie de oásis de lucidez, pequeno e potente. O próprio nome do filme, assim no singular, diante do que ele apresenta, parece disparar uma série de questionamentos sobre a escolha dos diretores. É um filme que comunica por espaços não preenchidos por informações no tempo do filme, por contraste de materiais, detalhes do cotidiano, pelas sensações e incômodos.

    Há também uma diversidade em relação a como os filmes se aproximam ou se afastam do roteiro baseado na denúncia-solução. Como eles respondem direta ou indiretamente a uma sensação de “Então, e agora?”, “O que fazemos com isso, ou a partir disso?”… Penso que documentários acabam participando de modo mais ou menos explícito da formação de problemas socioambientais ou expressam enquadramentos para os mesmos que podem ter maior ou menor peso a partir do modo como são divulgados, dentre outras coisas.

    Alguns filmes, um pouco mais felizes e esperançosos, são sobre essas respostas, essas ações, como é o caso do curta de Cleisyane Quintino de 2019, Cerrado de Volta: a restauração da Chapada dos Veadeiros. Ali é apresentada a importância do Cerrado e o trabalho estratégico de reflorestamento em áreas de nascente, cabeceiras e leito dos rios que cercam as águas correntes que partem do centro para o resto do país. O projeto é  realizado pelo ICMBio junto à pesquisadores e às comunidades de moradores há mais de 10 anos. Há um centramento na fala de técnicos e analistas na composição do documentário, o que parece deixar um espaço em aberto sobre como o processo todo aconteceu pelos olhos de mais moradores. 

    Por outro lado, parece deixar brotar outras relações, como o modo que degradação e restauração possibilitam diferentes formas de envolvimento da população local, técnicos e analistas na configuração de redes junto à outros atores do Cerrado. Nesse caso, o projeto conectou diversas demandas e tipos de interesses, como por exemplo a demanda do projeto por pessoas para realizar a coleta manual de sementes para plantio direto, com a demanda imediata da população por renda, sem contar as demandas das diferentes formas de vida do próprio bioma em questão. As sementes diversas coletadas germinam ao longo do tempo, reestruturando os três estratos da vegetação nativa: árvores, vegetação arbustiva e as gramíneas, vegetação rasteira. Tudo isso é misturado com areia e terra fazendo a Muvuca, que é distribuída no solo com o auxílio de uma calcareadora, regulada por um especialista após longa pesquisa, para distribuir a exata quantidade necessária de sementes por metro quadrado. São muitas interconexões, saberes e práticas, muitos ajustes entre humanos, vegetais e materiais ao longo do tempo, que até o momento da gravação do documentário, resultaram em 105 hectares restaurados das áreas de pasto degradadas.

    Esses múltiplos agenciamentos muitas vezes invisíveis a quem não participa dos bastidores do processo é o que sustenta a narrativa do  filme O custo do transporte global, de 2016, de Denis Delestrac… Que aborda a imensa rede do transporte marítimo de mercadorias. Uma questão inicial guia sua investigação e seus registros: Como algo produzido em diferentes países ao redor do mundo, que atravessa oceanos, pode ser mais barato do que o que é produzido localmente?  A resposta apresenta inovações e desenvolvimentos tecnológicos incrementais que aconteciam há anos sem que nós percebêssemos de onde estamos. A pergunta de Delestrac esconde uma outra (ou pode ser traduzido como outra): Que abusos humanos e ambientais foram institucionalizados para que esses produtos fossem tão baratos? As “externalidades” que não compõem o custo final desse transporte, já que são pagas por trabalhadores, animais marinhos encalhados, pulmões inflamados, áreas degradadas, aquecimento global, e etc. Registros de navios em outras nacionalidades que não a de seus donos são vendidas como produtos em feiras como modo de transferir para fora das áreas que mais se “beneficiam” desse comércio, seu maior peso. E ainda que não exista fora do planeta, são os filipinos (a mão de obra mais barata) que passam a maior parte do tempo longe da família em navios realizando trabalho pesado em jornadas longas, não por acaso, mas porque seu governo atua num esquema que praticamente os dispõe como mercadoria. 

    No fim Delestrac acaba na etiqueta. Mas se a “tag” faz sentido para a narrativa que se fecha de modo circular, outros inícios poderiam ter sido escolhidos para não deixar quase que como única solução a atitude dos consumidores/clientes dos produtos finais.

    Antes tarde do que não

    São muitos filmes, debates, algumas matérias condensadoras, e uma oportunidade para repensar a categoria “ambiental”, talvez menos como recurso classificatório, mas como espaço onde determinado tipo de relações são estabelecidas. E desde o dia 31 de agosto estão também disponíveis os filmes do programa “Clássicos e Premiados”, com uma série de filmes brasileiros, dos quais muitos atravessam realidades indígenas. Confiram a mostra!

    *DIEGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: NUPAUB – Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras – USP/Hucitec, 2008. /// Para embasar o conceito de sociobiodiversidade, Diegues parte da presença das comunidades tradicionais em áreas de preservação para mostrar como o ambientalismo europeu não pode ser importado para o contexto brasileiro e para a construção de políticas que orientam a gestão dessas áreas sem grandes problemas socioambientais.///

  • 11 de março – 13º Encontro da Rede Permaperifa

     

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    Foto de Rosana Oshiro

    Texto de Juliana Andrade

    11 de março de 2018

    13º Encontro da Rede Permaperifa – Escrita coletiva da carta de princípios

     

    O domingo era de Sol forte e aqui em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, também dia em que as ruas ganham mais espaço e perdem movimento. Esse cenário mais vazio de carros me anima e pego a bike para ir de casa até o viveiro. Gasto pouco mais de 20 minutos. Um ensaio me impede de chegar a tempo para a primeira parte do encontro no Quebrada Sustentável. Gosto de chamá-lo de viveiro, acho essa ideia de incubadora de vida muito potente, principalmente quando penso nas pessoas dali, suas histórias, as histórias de encontro com o viveiro, com a permacultura, e o gosto pela convivência. Me dou conta de que o viveiro é também um lab de envolvimento, ou melhor de envolvimentos múltiplos, e quem sabe podemos dizer também de responsabilização, no sentido de perceber o quanto estamos implicados na construção de certas possibilidades de realidade. Acho que o nome carrega algo de ‘processo vital’ que atravessa reinos, mas também esse entrecruzamento de cuidados e atenção humana: olhos atentos, mãos operantes, vontade de ver as coisas crescerem.

    O encontro, marcado já há algum tempo, foi voltado para uma importante tarefa: a escrita da carta de princípios do Permaperifa, que na verdade trata-se da revisão de uma primeira versão de carta. Daí que esse encontro da rede já começa sendo ‘excepcional’, como disse um dos presentes, pois, pelo que entendi, tais encontros são sempre compostos por prática + assembléia, nessa ordem de acontecimento (mutirões de plantio, manejo, bioconstrução, etc. seguido de um momento reflexivo e até deliberativo sobre a atividade, a rede, e por aí vai.)… “Metodologia Mão-na-massa!”. Mas esse não. Ou não da mesma forma. A importância da carta era clara e já era esperado uma imersão mais focada, de todo um dia… no mínimo.

    O processo foi aberto em suas duas partes: Na primeira, uma sequência de autoapresentações, seguida da resposta à pergunta: O que a Rede Permaperifa precisa para ser 100% minha? Ao chegar ali, conversando com D., fiquei sabendo que a ideia é tentar agregar esses contornos, essas singularidades das perspectivas sobre a rede à carta. Fico por alguns segundos pensando sobre isso enquanto analogia à relação centro-periferias, as várias vozes e jeitos e a construção de uma periferia dentro da permacultura urbana, que vai se tornando mais diversificada e diversificando o todo ‘permacultura’.

    Dou um giro rápido apenas pela área do galpão para achar os conhecidos de lá. Me pergunto das mulheres do GAU (Grupo de Agricultura Urbana) que trabalham no viveiro e vou até a cozinha, já que não as vejo nos outros cantos… movimentação intensa com o rebuliço do almoço… lá estão… Dou um abraço na Vilma e na Vizinha e saio. Pouco tempo depois vejo Maria em outro ponto do Galpão e reparo que Vinícius e Pamela também chegaram. David também atravessa por entre as pessoas carregando uma caixa de madeira. Penso nunca ter visto esse espaço tão cheio. Talvez cheio de crianças em alguma fotografia de outra época, mas apenas assim. Contei de onde estava 50 pessoas e parecia estar bem equilibrado entre homens e mulheres. Chutaria a idade média em torno de mais ou menos 30 anos… algumas poucas crianças. A maioria brancos. Reparo que em duplas ou pequenos grupos as pessoas que vão terminando de almoçar se juntam para conversar. Tento ser mais objetiva reparando uma segunda vez grupo a grupo no fato de que estão quase todos sorrindo enquanto falam. Logo um moço com bandolim, parecendo anunciar o fim do almoço, chega cantando e tocando uma música com uma letra massa… só registrei o refrão curto, que parece responder a tudo que vinha pensando ali ao me dar conta de onde estou e a razão disso tudo:
    “Vai dar certo vai
    … Só certo vai…”

    Espero que sim… Quis o resto da letra, já sabia que esqueceria. Ele e mais algumas pessoas, como eu, chegam apenas para a segunda rodada… outras que estavam num primeiro momento vão indo embora. Despedidas… abraços.

    Com o fim do almoço os presentes vão se sentando em roda, [15h]. Pego um café. Alguns vão se ajeitando em bancos, cadeiras e outros no chão mesmo, em uma parte da área coberta do viveiro, logo na entrada. Uma espécie de dinâmica corporal para que ficássemos mais dispostos e atentos para a tarefa foi conduzida antes do início da roda. Dos coletivos presentes, me recordo de estarem ali representados alguns nomes apenas: PermaGuaru, SOMOS, EPARREH, Horta di Gueto, EcoAtiva, …perdi outros nomes. Em outro momento alguém menciona que a rede tem entre 15 e 20 coletivos. E que mais ou menos 30 grupos responderam ao chamado para a formação da rede há dois anos e meio atrás. Um breve momento inicial de algo do tipo: “Como vamos fazer isso? Mas o que precisamos fazer mesmo? Ah, Ok! …” , acaba com a ideia de uma leitura inicial da carta já existente, as razões para sua reescrita e a distribuição dessas questões em pautas temáticas que faziam referência a própria estrutura da carta de modo mais ou menos direto.

    Uma das demandas que resultou nesse processo foi a de maior transparência para a dinâmica de organização e os critérios para tomadas de decisão. Algo como uma necessidade de explicitar na escrita desses critérios, como vem operando um saber tácito utilizado pelos membros mais experientes e antigos, de modo a não parecer arbitrário. Ao mesmo tempo isso coloca a necessidade de organizar esse espaço participativo que se amplia (e que é evidente nesse mesmo momento de reescrita aberta da carta), ao mesmo tempo que a própria rede parece cada vez maior, seja no número de pessoas ou de articulações que compreende em si. Nisso tudo, vem a tona questões sobre a estrutura e a identidade da rede. Sinto que é tudo mais complexo do que se imagina e decidir pela eficiência e rapidez do processo apenas, parece-me algo de certo modo “perigoso”. Mas o clima é leve e sinto algo como uma confiança e disponibilidade sincera a escuta mútua.

    Na leitura do documento, o qual não achei nenhuma cópia disponível on-line, me dou conta de como a rede é muito mais que ‘permacultura’, a dimensão da ‘cultura’ se destaca, … até rap aparece ali. E logo em seguida penso que talvez seja porque a própria permacultura demande mais para se realizar do que podemos imaginar de seus manuais. Ainda mais se pensamos a permacultura menos como fim e mais como a superação da própria separação entre meios e fins. Ou seja, que a permacultura não pretende instituir espaços permaculturais apenas mas se tornar nisso uma ferramenta de transformação de outras relações, uma infinidade delas, que aqui vão sendo incluídas e recebendo mais atenção.

    Daí que são trazidos para os debates da carta, questões da rede em si mesma: O que vamos definir como ‘periferia’? Quem é periferia? Alguém joga de maneira mais clara na roda…: “Tipo,… ‘classe média’ vota?” (risos se tornam sérios, as pessoas se olham e uma proposta de lidar com a questão é resgatada de outro espaço:) …“Se tiver somando com a periferia, como periferia, sim” …“mas tem que qualificar ‘periferia’”, … “periferia econômica e não apenas geográfica” …“é, porque tem a periferia do centro.” … “Se chamarem a gente lá em X?… É no centro. A gente vai?” “E o protagonismo?” … “O protagonismos precisa ser de quem de fato é da periferia” … “E quem é indivíduo vota?”…

    A questão mesma da participação dos indivíduos e do papel dos coletivos é exemplar. Ficou muito evidente que a história da rede é atravessada pelas dos coletivos que a compõe. Porque, em sua maioria, as pessoas estão aqui como coletivos. Algo como deixar claro que a permaperifa não é um coletivo em si, é mais um hub manufaturado de coletivos, fruto de intenções de encontro para mobilização em um outro nível, transcendendo os territórios de atuação dos grupos. Me parece ser também por isso que a periodicidade dos encontros pode ser mais espaçada. Eram encontros bimestrais, que passaram nesse 13º, a serem trimestrais. As pessoas não estão inativas nessa brecha, estão atuando localmente.

    Os encontros se tornam muitas coisas a partir dessa perspectiva: espaço para os coletivos desenvolverem a capacidade de autoorganização para o próprio acontecimento do encontro, espaço de estudo de demandas e estabelecimento de prioridades para as atividades em permacultura, de desenvolvimento de habilidades educativas, espaço de difusão e troca de saberes, tanto sobre as práticas quanto sobre as dinâmicas para articulação no território, …momento de fortalecimento da rede consigo mesma e externamente com coletivos, grupos e atores sociais locais que estão na ‘periferia’ da temática ambiental, etc. Portanto, havia ali uma insistência de que os indivíduos estão incluídos, mas é através dos coletivos que a rede ganha sentido: …“Não queremos protagonismos individuais”,… essa evidência, “autopromoção de figuras”. “Mas e as pessoas que somam como indivíduo, como elas vão participar?”… “Podem participar, mas não votar”… “Quem sabe se todos os indivíduos criam um coletivo dos indivíduos sem coletivo?” … “Daí eles não são mais ‘indivíduos’” [alguém fala em tom irônico… todos riem e me lembro da assembléia planetária do início do filme La Belle Verte]… “daí eles poderiam ter um voto”. Fica claro que essa escolha também é uma medida protetiva. Sem indivíduos votando e sendo necessário no mínimo 3 encontros para o coletivo votar nas assembléias, garante-se certa ‘integridade’ a rede e também confere mais relevância ao processo de imersão, de atuação através das relações da rede… Um tempo-espaço para se conhecerem. Mas participar dos encontros e debates todos podem.

    Assim, a rede é reconhecida como uma via de articulação inclusive para os indivíduos: “estar na rede, as vezes, é o que essas pessoas ‘soltas’ precisam para descobrir o que existe por aí”, um “meio delas se inserirem”. A rede pode ser um jeito de algumas pessoas aprenderem a se articularem inclusive com os equipamentos em seu território. Foi o que levou até ali uma das pessoas que poderiam ser chamadas de ‘novos membros’. “O que vale para nós é se a pessoa está atuando”… “Ela participa ou desenvolve ações de educação ambiental no seu bairro?” Porque boa parte do sentido da Permaperifa está em levar a possibilidade de “infraestrutura básica onde ela muitas vezes não existe”… “pra quem precisa de fato”. Lembrei de quando V. citou que após uma oficina de forno a lenha uma pessoa instalou um em sua laje… Nem sempre tinham dinheiro para comprar o gás, cada vez mais caro.

    Uma das questões que dispararam parte dos esforços em reescrever a carta estava em deixar claro os critérios de definição dos espaços dos encontros. Em cada encontro se decide o espaço onde será realizado o seguinte. Eles prevem a realização de uma prática permacultural desejada pelos espaços. Logo de saída todos concordam que a rede precisa ser mais realista quanto a sua capacidade de resposta a essas demandas que são dos coletivos. Mas os coletivos também precisam saber priorizar o que é mais urgente ser feito, algo sobre como será aproveitado esse saber e energia humana que a rede tem a oferecer. É marcada a importância de que não fique trabalho a ser feito para trás… Isso exige melhor organização… e objetivos mais realistas para cada encontro. De modo geral: “precisamos saber o que queremos fazer e até que ponto a rede tem pernas pra abraçar isso”.

    Daí parte do debate desse tópico foi pensar: O que é básico na infraestrutura básica dos encontros? Precisa-se definir as responsabilidades das partes (da rede e do coletivo anfitrião): “Até que ponto o coletivo e até que ponto a rede se responsabilizam pela organização do evento e a condução das práticas?” Lembrando também que se os espaços são periféricos e demandam uma infraestrutura que se pretende constituir ou intervir pela permacultura, então não se pode esperar que isso esteja pronto… “não ia fazer sentido nenhum”. Alguém chama a atenção diante das muitas ‘condições’ propostas que parecem aumentar…: “gente, peraí, temos de estar mais abertos e vermos com generosidade o que o espaço tem a oferecer…” Há algo sobre estar acostumado com pouco conforto… Todos concordam que o básico permaneça ‘básico para que a atividade possa acontecer’. Define-se então que os espaços precisam ao menos ter banheiro, oferecer a água e algum espaço para as refeições e descanso e que seja um ambiente relativamente seguro para as crianças. Os materiais para a prática e a alimentação também são responsabilidade do coletivo, seja para providenciar ou para comunicar ao grupo que levem comida para as refeições colaborativas.

    [Vejo do outro lado da roda passar um pote de mão em mão cheio de pedaços de manga já cortadas e por um momento me distraio da discussão. Está tudo muito colorido ali e as mangas devem estar deliciosas]

    Fala-se sobre a forma dos encontros: “prática + assembléia”, chamando atenção para algo que está recebendo pouca atenção: “vínhamos fazendo primeiro e conversando depois e isso teve reflexo nas relações pessoais. (…) Estamos muito preparados para fazer, mas pouco estruturados para lidarmos conosco mesmo (…) é hora de alinharmos os discursos com as práticas. Porque há uma questão de convivência, de aprender a lidar com questões relacionais que precisamos desenvolver”. Fico pensando nesse conjunto de frases e chego a conclusão de que talvez esse processo esteja reabrindo o próprio significado da permacultura num aprofundamento que demonstra como as transformações que se pretende com ela, para serem coerentes precisam ser afinadas com outras dimensões da vida. É sobre afinidade entre discursos e as práticas a eles relacionadas eletivamente. Alguém fala do quanto a questão da inclusão é estética, e de que o óbvio não é óbvio: “A gente tem que falar, não é óbvio. As entrelinhas tem de ser ditas” Talvez essa configuração de uma permacultura favoreça certa apropriação em relação a outras menos atentas a variedade de contextos materiais e simbólicos existentes. Apareceu antes também a necessidade de mediação de conflitos pessoais. Esses não precisariam ser abordados em assembléia, podendo ser encaminhados com a ajuda de pessoas que tem habilidades específicas nesse sentido.

    Não se inclui com pouco esforço e sem movimento, e o retorno e reabertura de pautas aparentemente já fechadas nesse encontro, demonstra o quanto as questões se atravessam na realidade concreta. No caso, o tópico comunicação teve algumas nuances. Uma delas diz respeito à linguagem da carta. Entra na roda a permanência do termo “federalista” para definir o funcionamento da rede e destacar a autonomia dos coletivos membros. “Isso é Proudhon”… “Acho melhor tirar e deixar numa forma mais direta possível”… “deixa” … “não subestima a linguagem da periferia” [Me sinto contemplada e penso que poderia ter sido mesmo ‘Não subestime a periferia’ … Tem uma diversidade que sinto ser apagada quando não é a periferia que está falando de si] “Mas precisa usar essa palavra?” … “Por que a gente não deixa e põe uma nota de rodapé explicando?” Algumas vozes concordam… “Às vezes uma palavra abre portas e fecha outras”… citam o exemplo de dizer que a permacultura é anarquista e como isso é visto, o que significa para certo público que o Permaperifa poderia se aproximar. …No geral as pessoas concordaram… “ … Mas é anarquista” alguém solta com uma risada.

    Alguém cita a possibilidade da rede ser também de “ajuda mútua” em situações que transcendem a permacultura. “Alguém da rede, por exemplo, fica grávida… mãe solteira, desempregada… E aí, quem vai ajudar nessa hora?” ou até medidas para que os encontros fossem possíveis para outros públicos que não costumam participar… Isso demanda entender por que quem não participa não participa. Quem está na periferia do permaperifa? As mulheres do GAU são lembradas em algum momento. Só participam quando os encontros são no viveiro. Pergunta-se do espaço das donas de casa nessa permacultura que se pretende periférica. E lembram-se das propostas sobre espaços e atividades para as crianças durante os encontros… e se “Rola uma vaquinha pra dar uma ajuda de custo, pra quem não tem grana conseguir atravessar a cidade e participar?” … “Eu já fiz isso…” alguém diz. Surge também a questão das “cotas” nos cursos de permacultura para membros da rede, para as quais são pensados critérios… Decide-se que as pessoas que pleitearem as vagas gratuitas nos cursos se juntem para decidir entre si quem irá.

    Estes se tornam pontos que demandam a produção de informações, um levantamento sobre os perfis dos membros da rede: “Talvez seja o caso fazer uma reflexão para saber de onde as pessoas vem, quantas pessoas vem de fato da periferia e quais periferias são essas” Mas em grande medida isso vai além de números, de renda. Falam também da possibilidade de rolar uma inscrição para os coletivos que vão se tornar membros. Alguém cita, dando o exemplo da venda local de alguns dos produtos do GAU ali no dia, que a rede pode ser também uma rede de troca e venda dos produtos produzidos pelos coletivos.

    Ao abordar a composição dos conselhos, perguntam sobre a diferença prática entre as assembléias e o conselho. É explicado que o conselho é fechado e as assembléias são abertas. Enquanto as assembleias acontecem junto dos encontros, os conselhos se dão em outros momentos, com um número reduzido de participantes, alguns que dinamizam mais a rede [perdi parte dessa discussão] e representantes dos coletivos. Mas o chamado ‘núcleo duro’, informal, que parece não ser sobreposto ao conselho e que viabiliza questões urgentes por decisões práticas, operacionais e rápidas, não funcionaria desse modo se houver muitas pessoas. As discussões sobre a existência dessas diferentes dimensões decisórias e de canais de comunicação, suas características em termos de participação e os problemas que colocam, de algum modo se cruzam com as características funcionais dos meios de comunicação ‘escolhidos’ para cada uma delas: grupos de whatsapp, de facebook, página, lista de email, o que é aberto ao público, restrito a membros, relativamente seletivo, restrito ao tal ‘núcleo duro’, ou a possíveis grupos de trabalho que venham a se constituir no futuro,… o que é oficial, extra-oficial. Alguns ‘limites’ são assumidos e idealismos confrontadas: “esse núcleo já existe, precisamos assumir sua legitimidade” … “não é um lugar de destaque pessoal, é um lugar de responsabilidade…” “é pra segurar bucha”, mas faz parte da rede. Alguém fala que “na real, é também um grupo de amigos” … que tem uma história juntos e parece haver uma intersecção entre essa história e a história da rede. Acho que esse ponto permaneceu ‘em construção’, …aberto, mas saí antes de presenciar algum encaminhamento disso.

    Fala-se sobre a questão da mídia livre: “Como pretendemos ser revolucionários usando facebook, whatsapp, gmail? … E a questão da mídia livre?” … Alguns concordam com a colocação, mas não ganha muito eco. Um ar de cansaço faz parecer que já atravessaram esse debate antes, talvez não ali: “A gente não consegue dar conta nem das redes e canais que a gente já usa” … “Acho que um grupo de permacultores não é um risco potencial” (sobre a informação que trocam ser alvo de vigilância) … alguém menciona o gmail como se fosse um ambiente mais seguro (parece ter comparado com os chats populares)… outro fala de usarem rise-up. Mas não lembro dessas vozes saírem de algo rápido e paralelo, sem importância suficiente reconhecida para ocuparem espaço na discussão da comunicação.

    A reunião parecia ainda demorar um tanto para acabar e decido ir embora antes do anoitecer. Afinal, o trajeto a ser feito não é muito seguro num domingo a noite. Em vários momentos durante a tarde penso nessa capacidade da permacultura ativar possibilidades através do envolvimento. Algo como uma confiança no que esse envolvimento prático faz emergir em cada um. Ao mesmo tempo penso na questão estética que se falou na roda. Observo a questão do pertencimento. Penso no reconhecimento, no modo das pessoas se expressarem ali, se reconhecerem nas falas uns dos outros. E isso atravessa essa observação mais atenta a respeito da escuta, de hierarquias sutis que se projetam nas dinâmicas. Nos espaços que se abrem quando as pessoas decidem comunicar o que tende a permanecer como “não-dito” embora percebido por praticamente todos, principalmente as minorias, que anunciam as assimetrias, as interpretam nos gestos e falas despretensiosas. Isso é muito forte. As pessoas tem muito a dizer. A periferia tem muito a dizer para a permacultura e qualquer processo que tenha surgido em espaços mais “centrais”, e toda a evidência que carregam. Quem decide usar essa e outras tecnologias para transformação social precisa estar atento e disposto a abrir mão de privilégios, ou melhor, distribuí-los, soltá-los, sem medo, para que algo diferente aconteça, perceber que certas noções de eficiência se conectam a formas específicas. Isso envolve reconhecer certas ‘habilidades’ como privilégio e entender o privilégio presente em sua própria história, suas ‘conquistas’.
    Chego em casa e vou ver um vídeo que seria projetado no dia, mas não rolou… “Se plantar”. O vídeo é belo, a letra engraçadinho com um refrão chiclete que funciona. Vale a pena.

    *Os presentes no dia que quiserem complementar o relato, anexar documentos e links e fazer comentários podem realizar as inclusões por esse link: https://docs.google.com/document/d/1aUNA6ijEvTluSbSySeFzltCoJGUsfQw0hZlh3sSL_Zw/edit?usp=sharing

  • Tessituras de uma cultura tecnopolítica

    de Henrique Parra – também publicado no Pimentalab

    Com um pequeno intervalo de 30 minutos, acompanhei no mesmo dia duas atividades que, no contraste de suas diferenças, indicam o tamanho do desafio que temos pela frente. A boa notícia é que não nos falta ação, mas sim capacidade de transversalidade e conexão. Um dos desafios, para além de superar nossa fragmentação, é compreender os agenciamentos do mundo sociotécnico em que estamos imersos e fomentar uma cultura técnica que dê suporte e amplifique os modos de vida que desejamos fazer proliferar.

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    Dois seminários públicos: o primeiro, na sede da FUHEM Ecosol, ONGs de pesquisa social e formação, onde ocorreu o lançamento da publicação Estado do Poder 2017, cuja edição foi dedicada à cultura/ideologia e suas formas de participação nos mecanismos globais de dominação. No lançamento da publicação assisti a uma excelente intervenção da pesquisadora-ativista boliviana Elizabeth Peredo Beltrán (Poder e Patriarcado) sobre o chamado \”fim do ciclo progressista na América Latina\”, dentre outras apresentações.

    O segundo seminário foi um achado acidental. No dia anterior, trombei com uma propaganda de página inteira no jornal impresso que lia no café. A imagem da campanha me pareceu tão exótica que se não fosse minha curiosidade semiótica jamais teria chegado ao conteúdo textual que eles queriam difundir. Esta atividade era o lançamento de uma campanha nacional – Caminho do Sol  – de mobilização pelos direitos de pequenos produtores à geração e comercialização de energia solar (fotovoltaica).

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    Imaginar outras infraestruturas tecnopolíticas

    O relato sobre a experiência política boliviana, insere-se num debate mais amplo sobre o chamado \”fim do ciclo progressista na América Latina\”. De certa forma, o discurso de \”fim do ciclo\” é um recurso performático que deseja traçar uma linha entre um antes e um depois, procurando ativar no presente outras interpretações, horizontes e projetos políticos. A própria idéia de \”fim de ciclo\” é tema de muitas controvérsias (experimente dar uma pesquisada no termo \”fim do ciclo progressista\”). Há uma versão de \”fim de ciclo\” proclamada pelas forças reacionárias e meios de comunicação corporativos que anunciam o esgotamento dos projetos da esquerda, e uma versão de \”fim de ciclo\” que pretende criar outras interpretações no campo da própria esquerda.

    Faço uma sinopse, muita imprecisa e simplificada, para destacar alguns argumentos. É elaborada uma reflexão crítica sobre os limites das experiências de governo da esquerda latino-americana (Bolivia, Brasil, Equador, Venezuela, Argentina…) desses últimos 15 anos. As análises recuperam a história de lutas sociais que antecederam esses governos, construções de amplos movimentos sociais e redes de organizações de base em ciclos de 15, 20, 30 anos (a depender do país) até que um grupo/partido político oriundo dessas construções chega ao poder em escala nacional. Em seguida problematiza-se as tensões e dilemas que emergiram entre a lógica de governo e as dinâmicas da prática política dos movimentos, lançam perguntas desafiadoras sobre os limites da ação governamental (na tomada do Estado), e as armadilhas que se instalaram para a ação política. Por fim, abrem-se novas perguntas sobre os possíveis caminhos de um novo ciclo de luta política, cujo foco estaria orientado para a construção de políticas não estado-cêntricas. O Estado é importante, mas sua ocupação-gestão não seria o principal espaço da construção dessas alternativas. Neste percurso é também elaborada uma crítica ao fato de que, as políticas de inclusão social apoiaram-se num modelo de crescimento econômico que era dependente de programas de desenvolvimento de caráter extrativista, concentradores de renda, com forte dependência e alianças espúrias com as grandes corporações e capital financeiro, combinação esta que mostrou-se insustentável. Certamente, os argumentos são muito mais complexos. Há boas referências sobre essa discussão [veja Raquel Gutierrez Aguilar. Horizontes comunitario-popular: producción de lo comun más allá de las politicas estado-centricas].

    Dentro deste amplo debate, comentarei apenas um ponto: as grandes obras de infraestrutura (usinas, estradas etc). Com frequencia as grandes obras de infraestrutura são vistas como um problema em razão do enorme impacto socioambiental no meio em que são inseridas. Porém, pouco se discute sobre a maneira como um determinado modelo de infraestrutura é o resultado de todo um arranjo sociotécnico que faz com que um certo projeto/desenho se apresente como a melhor resposta a um conjunto de variáveis: um desenho de uma hidroelétrica em oposição a outros modelos de hidroelétricas; o traçado da construção de uma rodovia, a cadeia de produção e distribuição alimentar, o fornecimento de água nas cidades etc.

    Evidentemente, há sempre alternativas e decisões políticas em jogo, mas com muita frequência escapa ao debate tanto a descrição do conjunto das determinações que \”elegem\” um modelo de infraestrutura, como a proposição de alternativas que sejam capazes de oferecer outras respostas, neste caso, com uma eficiência simultaneamente societal e tecnopolítica.

    Se pretendemos produzir energia para que a vida de muitas pessoas sejam melhores num determinado espaço tempo, como podemos fazê-lo? Se vamos abastecer com água ou alimentos uma cidade, como podemos fazer isso de maneira diferente, agora e para gerações futuras? Não podemos ignorar este problema se desejamos fazer política com/para os 99%.

    O desenho de uma infraestrutura não é neutro, e seus efeitos no mundo não poderão ser posteriormente controlados por um projeto ou ideologia política. Claro, há sempre uma margem de flexibilidade, mas ela tende a ser cada mais vez menor a medida que os efeitos desta infraestrutura se reticulariza e se inscreve em encadeamentos sociais e técnicos mais amplos.

    Por analogia, podemos pensar o Estado como uma tecnologia de poder. O desafio de governar essa máquina não pode ser reduzido a uma problema de governabilidade e nem transformado num desafio de escalabilidade da luta social. A mudança nos meios de ação (extra-Estado X Estado) e a dimensão da ação (local x nacional x mundo), implica em profundas transformações em todos os entes envolvidos nessa relação. Não se trata apenas de um aumento na complexidade no sistema. Nada se mantém o mesmo. Técnica e política estão sempre entrelaçadas em sua inscrição e efetivação no mundo. Por isso, a proposta de criar outros horizontes políticos para um novo ciclo de lutas, não poderá se limitar à disputa de narrativas ou visões de mundo. Precisamos de práticas, corpos, ferro, aço, água…

     

    Energia = natureza + cultura + técnica + política

    Os problemas indicados acima ficam evidentes quando você resolve experimentar na prática a construção dessas alternativas. Esta é a potência de um protótipo. Neste processo surgem conflitos com atores e forças que desconhecíamos e um novo universo de expropriação do comum se evidencia.

    A campanha \”Sol e Justiça\” surge da mobilização de 60 mil famílias que investiram suas economias em iniciativas coletivas de produção e comercialização de energia fotovoltaica e que atualmente sofrem com a mudança de prioridade do governo. O estado espanhol pretendia fomentar a diversificação da sua matriz energética, no sentido de reduzir o impacto ambiental do modelo atual. Porém, no momento em que começam a proliferar diversas iniciativas de autoconsumo, associações, cooperativas e pequenas empresas que produzem e comercializam enérgia elétrica, as forças em jogo ficam mais evidentes e a política de incentivo estatal muda radicalmente. No caso em questão, grandes empresas internacionais fornecedoras de energia eletrica lograram impor novas regras, através do governo Espanhol, que fossem mais favoráveis aos seus investimentos. Como resultado, as 60 mil famílias ficaram afogadas com dívidas assumidas para a construção de um modelo energético que seria alternativo.

    São muitas as variáveis que afetam as condições de viabilidade de uma nova tecnologia ou atividade econômica: os mecanismos de autorização e controle para instalação de placas solares nas residências devem respeitar determinados protocolos, com fiscalização inclusive das empresas privadas que fazem o fornecimento de energia elétrica nas residências; os critérios para financiamento publico são modificados e outras formas de apoio estatal são exclusivos para determinada escala de empreendimento, entre outros. Em suma, tudo é feito de forma que o modelo que irá se apresentar como o mais \”eficiente\” é aquele que fortalece uma certa configuração de mundo. Neste caso, compreendemos rapidamente como a luz solar deixa de ser um Comum e se torna um recurso que deve ser submetido a um regime de escassez e monetarização.

    Ainda assim, a ação prática desses coletivos aprende com os bloqueios e passa a elaborar alternativas que, a despeito do ambiente inicialmente desfavorável, cria soluções e arranjos sociotécnicos que se relevam melhor adaptados, graças à uma combinação de engenhosidade técnica e estratégias de colaboração social.

    Os desdobramentos futuros desses arranjos é um campo de cultivos e batalhas. O campo dos \”estudos em inovação\” indicam que muitas inovações sociotécnicas que foram concebidas para transportar valores emancipatórios ou solidários, quando deslocadas ou apropriadas em outros arranjos, acabam frequentemente perdendo a capacidade de efetivação daqueles princípios políticos que desejavam difundir. Hoje temos comida orgânica tanto associada a modelos alternativos de vida (sistemas de produção local, com redes de consumo coletiva etc) como formas de produção e comercialização de orgânicos que fortalecem as estruturas tradicionais de concentração de renda e formação de oligopólios [veja alguns trabalhos de Adrian Smith].

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    foto: Campanha Orgulho Solar

     

    Problema semelhante acontece com a produção fotovoltaica. Você pode fazer parte de uma rede autogerida que produz, distribui e utiliza energia solar (veja http://ecooo.es ), ou você pode ser o locatário de uma unidade de produção numa grande fazenda de produção de energia solar (veja https://www.cosol.com.br/ ). Cada um desses arranjos sociotécnicos mobiliza mundos e modos de subjetivação absolutamente distintos.

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    foto:  COSOL – condomínio solar

     

    Tessituras de uma cultura tecnopolítica

    Terminei o dia com a sensação de que havia cruzado por dois mundos que pouco se comunicam. De um lado ativistas, sociólogos e ecologistas que lutam por um mundo socialmente justo e ambientalmente sustentável, sabem construir movimentos, organizações e comunidades, mas buscam formas para tornar durável as frágeis formas de vida que experimentam. De outro, engenheiros e economistas que criam tecnologias e iniciativas portadoras de novos arranjos socioeconômicos, que lutam para superar as adversidades (jurídicas, financeiras, culturais) que inviabilizam suas atividades. Tudo se passa como se fossem dois mundos a parte.

    Pergunto-me sob as possíveis formas de diálogo, aprendizados mútuos e alianças. Há, felizmente, sinais de que cada um desses mundos começa a se mover em direção ao outro. O fato de que as iniciativas comunitárias de energia solar estejam começando a se organizar como movimento social é um exemplo; o crescimento das redes de agroecologia e sua incorporação na pauta de distintos movimentos sociais também; a maior transversalidade do feminismo em diversas práticas sociais, entre outros casos.

    Talvez, um novo aprendizado diante da fragilidade institucional que nos assola neste momento, seja o reconhecimento da existência de outras formas de fazer política. A criação e o suporte de modos de vida em comum, exige também a produção deste comum. Para que este comum exista e possa se sustentar no tempo, começamos a reconhecer os diversos elementos e práticas, materiais e imateriais que lhe dão suporte. Técnica e cultura, política e tecnologia, valores e práticas caminham juntos, se entrelaçando. Uma tecnologia alternativa sem uma comunidade que lhe dê suporte não sobreviverá assim por muito tempo. Um coletivo que não cuida das infraestruturas que dão suporte a suas práticas não terá vida longa. Um movimento social que negligencia os corpos de seus participantes, não será capaz de criar uma comunidade política saudável.

    São essas diversas e interdependentes dimensões que talvez componham juntas outras cartografias políticas. Quais são as infraestruturas necessárias? Como criar e sustentar um corpo, individual e coletivo? Quais são nossos protocolos? Nossas tecnologias? Qual é a comunidade que dá existência e suporte à essas práticas? Quais são as práticas que produzem nossa comunidade? Quais são nossas formas de conhecer e de transmitir os conhecimentos? Tudo ao mesmo tempo agora.

    PS: este post é parte da série de relatos que irei realizar durante o período de pós-doc em Madrid. Mais informações sobre o projeto atual: http://wiki.pimentalab.net/index.php?title=Projetos_Pesquisa