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  • Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército

     

    Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército

    acácio augusto

     

    O Espirito Santo é um dos estados mais violentos da federação. Há décadas figura nas primeiras posições em taxa de homicídios, taxa de encarceramento e assassinato de mulheres. Basta consultar os últimos Atlas da Violência, Mapa do Encarceramento e Mapa Violência. Essa violência, como não poderia ser diferente, remonta ao estilo de colonização da região. A colonização pela espada e pela cruz esteve orientada aqui para que o estado servisse de barreira de proteção às riquezas das minas gerais. E mesmo recentemente, quando no começo dos anos 2000, os índios Tupinikin e Guarani resolveram enfrentar a multinacional Aracruz Celulose (hoje FIBRIA), foram duramente reprimidos pela Polícia Federal e por tratores, no sangrento janeiro de 2006. Em resumo, a violência é regra e não exceção no estado. Há menos de um ano, o assassinato de um jovem em Jardim da Penha, Vitória, despertou alguns poucos que ainda se incomodam com isso [nota 2].

    Recentemente o estado tem sido lembrado como exemplo de superação em relação à política penitenciária. Após abrir os famosos “micro-ondas”, carceragens de zinco em formato de contêineres, e ser denunciado no CIDH, a política de superencarceramento do Espírito Santo ganhou aporte federal. Hoje, passados quase 10 anos e a propósito das cabeças que rolaram ao norte do país, a imprensa nacional olha para o Espírito Santo como modelo a ser seguido. Seu secretário de Justiça hoje, Walace Tarcísio Pontes, integrante da equipe de Paulo Hartung, mesmo governador da época dos contêineres, se gaba de ter zerado as mortes e controlado o “caos prisional” no estado. Em matéria da BBC Brasil, ele declara que sua palavra-chave é “arquitetura-prisional” e após investir mais de R$ 500 milhões, o estado passou de 13 par 35 unidades prisionais [nota 3]. Descentralizadas e inspirada em prisões estadunidenses que impedem a comunicação entre pavilhões e proíbe a entrada de comida e material de higiene trazidos pela família, essas modernas instalações substituem os chamados cadeiões com eficácia, como se orgulha o ilibado gestor. No entanto, pesquisadores que acompanham de perto essa política de aprisionamento da miséria no estado, mostram que nem tudo são flores e que a “arquitetura-prisional” foi erigida com violentos procedimentos de tortura sistematizada [nota 4].

    No entanto, mesmo com um histórico deste, o estado ficou de fora da farra orçamentária da segurança pública que circundou a realização dos megaeventos. Como se sabe, especialmente estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, tiveram uma volumosa renovação de equipamentos, treinamentos, contratação de pessoal, etc., como resposta às revoltas de junho de 2013 e adaptação às exigências internacionais para realização dos megaeventos. Pois bem, o Espírito Santo ficou fora disso tudo e tem hoje uma PM pré-Copa. Militares são constitucionalmente impedidos de fazer greve. Mas seus familiares decidiram prostrarem-se diante dos quarteis da Polícia Militar reivindicando ajuste salarial (alegam que a categoria não o tem há 7 anos), plano de saúde familiar (alegam que o Hospital Militar está abandonado) e auxílio alimentação, uma promessa não cumprida pelo governo do estado. A mobilização dos familiares começou na noite de sábado, 4/2/17, mas foi na manhã de segunda que o discurso de pânico e desordem produziu seus efeitos. Via aplicativos de mensagens e redes sociais digitais, os relatos e vídeos de lojas saqueadas, carros roubados e violência generalizada foram se avolumando desde o final de semana, até que na tarde de segunda, 6/2/17, a Região Metropolitana da Grande Vitória se tornou uma cidade fantasma.

                         

    Deste momento em diante as coisas se passam como se fosse um resumo em ato das ficções jurídicas que justificam o Estado nos livros jusnaturalistas do século XVII e XVIII. A ausência de autoridade instala a “guerra de todos contra todos” e é preciso uma autoridade centralizada e forte que estabeleça a lei e a ordem. Foi o que o secretário de segurança do estado, André Garcia, fez: convocou o Exército Brasileiro e a Força Nacional de Segurança para (re)estabelecer a ordem. Em pouco tempo, as mensagens com relatos e vídeos de lojas saqueadas foram sendo substituídas por imagens de abordagens dos homens do exército e imagens apavorantes de corpos empilhados no DML (Departamento Médico Legal de Vitória), que teve sua capacidade excedida. No entanto, o que foi anunciado como guerra de todos contra todos, logo se tomou uma caçada de homens armados e fardados contra quem se aventurou a não respeitar o toque de recolher. No DML, as imagens dos corpos mutilados eram de corpos, como diz a canção, todos pretos, ou quase pretos de tão pobres. Para um paulistano vivendo em Vila Velha/ES, a lembrança do maio de 2006 [nota 1] e o massacre de 500 pessoas pela polícia e grupos paramilitares de extermínio foi imediata. Aqui, até o momento, os números oficiais falam em mais de 60 corpos.

    No entanto, tudo isso, infelizmente, não é novidade quando se pensa na repressão regular dos dispositivos de segurança do Estado. O que mais me impressionou foi que, no final da tarde de segunda-feira, conforme os carros e caminhões do Exército Brasileiro (a Força Nacional de Segurança diz chegar durante o dia 7/2/17) foram ganhando as ruas desertas, as pessoas saíam nas sacadas dos prédios para saudá-los, batendo palmas e gritando vivas. No exato momento me veio à mente a cena do filme do grego Costa Gravas, Missing, que em português recebeu o nome de Desaparecido, um grande mistério, de 1982, baseado em história real contada no livro de Thomas Hauser, The Execution of Charles Horman: An American Sacrifice, de 1978, que conta o desparecimento de um jovem jornalista estadunidense durante o golpe de Estado do General Augusto Pinochet, no dia 11 de setembro de 1973, no Chile. Neste filme, cada vez que os caminhões do exército passavam nas ruas, logo após o golpe, as pessoas saíam nas sacadas das mansões para aplaudir os militares. É claro que não quero comparar, muito menos mostrar similitude entre momentos dispares no tempo e no espaço. Na forma de relato expresso apenas uma memória imagética e cinematográfica que me acorreu ao ver as pessoas em suas sacadas, nas quais antes se batiam panelas, agora aplaudindo o exército tomando as ruas da cidade. No entanto, em ambos os casos fica claro uma coisa: não se condena a violência em si, mas apenas aquela violência que parece não estar a serviço de sua segurança e felicidade.

     

    Outra relação um pouco aflitiva com o filme retomado em minha memória imagética é que o protagonista do filme, Ed, pai de Charles Horman, vai ao Chile e procura mobilizar as autoridades de seu país natal para saber o que aconteceu com o jovem jornalista desaparecido. Ed, junto à esposa de Charles, Beth, corre delegacias, hospitais, embaixadas até descobrir que seu filho foi “desaparecido” por agentes do exército e se encontra emparedado no Estádio Nacional de Santiago, junto à outros opositores do Golpe. Essa lembrança me leva a pensar nos pais, mães, irmãs, esposas, irmãos que começarão a mesma jornada de reconhecimento de corpos e esclarecimento dos fatos com os possíveis “desaparecidos” desta noite de estado sítio no estado do Espírito Santo. Com a diferença de que seus filhos, irmãos e companheiros não são nem jornalistas nem cidadãos da nação mais rica e poderosa do mundo.

    Por fim, sem a menor intensão de estar produzindo uma análise para além de um relato com impressões [nota 5], há uma última questão a ser levantada. Muito se falou que a partir da greve da PM no estado, a população do Espírito Santo ficou refém de “marginais” e da “criminalidade”, isso pode até ser verdade, durante algumas horas e/ou dias, mas podemos ver as coisas de outro jeito também. Quando aqui chegaram os colonizadores, eles diziam encontrar um povo “sem fé, sem lei e sem rei”. Pois bem, por meio da violência e de um brutal etnocídio instaurou-se aqui a fé, a lei e a autoridade centralizada (seja ela do rei, do povo ou da nação). Mais de 500 anos depois, uma simples greve daqueles que mantém a lei e a ordem pela violência, é capaz de instaurar a desordem, atiçar a ânsia em tomar na marra tudo aquilo que se repete a exaustão que se deve ter, mas não se pode comprar. Numa equação simples, se por horas ou dias a população ficou refém da criminalidade, por toda vida ela é refém da polícia. Assim, a força maior vem para pacificar e instaurar a ordem contra aqueles que ainda subsistem, aqueles que insistem em viver nessa civilização sem fé, sem lei e sem rei. O que mostra, a despeito de todas a explicações filosóficas, sociológicas e históricas, que vivemos sob uma autoridade que é tão brutal, na mesma medida em que é extremamente frágil, pois encontra-se em guerra permanente contra uma parte significativa da sociedade, enquanto a outra parte vive entre o pavor de ser expolida e a prontidão em aplaudir o massacre em nome de sua felicidade. Então, diante disso, eu pergunto: é de polícia que precisamos? Ou melhor: quem precisa de polícia? Para quê? Contra quem? Pra que serve a polícia? As respostas triviais não nos levarão a conclusões satisfatórias.

    De fato, como nos alertou Michel Foucault, “a política é a guerra continuada por outros meios”.

    Nota 1: Ver “Um breve histórico da luta e vitória das comunidades indígenas contra a gigante Aracruz Celulose no ES”, in https://prazeresdeamelie.wordpress.com/2009/02/27/um-breve-historico-da-luta-e-vitoria-das-comunidades-indigenas-contra-a-gigante-aracruz-celulose-no-es/

    Nota 2: Ver http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2016/10/grupo-sai-da-ufes-e-protesto-contra-morte-de-jovem-no-bairro-da-penha.html

    Nota 3: Camilla Costa. “Como o Espírito Santo conseguiu zerar mortes em prisões – e o que ainda não funciona em seu sistema”, in BC Brasil em São Paulo, 17 de janeiro de 2017, em http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38657173

    Nota 4: Ver “Crescimento da população carcerária implica aumento da violação de direitos. Entrevista especial com Humberto Ribeiro Júnior” in http://www.ihu.unisinos.br/publicacoes/159-entrevistas/564467-aumento-da-populacao-carceraria-implica-aumento-da-violacao-de-direitos

    Nota 5: Veja também o relato de Lívia de Cássia Godoi Moraes. “Esta noite dormiremos temerosos: sobre o caos nas cidades capixabas” in http://www.esquerdadiario.com.br/Esta-noite-dormiremos-temerosos-sobre-o-caos-nas-cidades-capixabas

  • Ocupa X Greve numa lista de discussão

    TOPICO #ocupaxgreve abrimos este topico pra juntar rapidamente elementos pra discussao. Responda usando #ocupaxgreve pra facilitar a  organização do debate. Há uma recente expansão das ocupas nas universidades federais. É importante contribuirmos neste momento, indicando sobretudo os novos elementos que caracterizam a inovação política e organizacional das ocupas dos secundas. Em algumas universidade ja observamos um risco de reprodução de velhas formulas que tendem a esvaziar as universidades. Um problema parecido tbem se apresenta com relacao à forma greve nas universidades. Em suma, que elementos importantes podemos destacar neste momento:
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    #ocupaxgreve  ocupação com aulas mantém a mobilização, a universidade cheia e até uma tensão com os professores tendo que se deslocar de seus lugares de conforto. isso é fundamental para o sucesso da mobilização.
    Greve esvazia a universidade e coloca o controle da mobilização de volta nas mãos dos aparelhos sindicais burocratizados.
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    #ocupaxgreve Os docentes da UFBA apoiam as ocupações, mas já descartamos a greve da categoria. Universidade funcionando é resistência
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    #ocupaxgreve na UFABC tivemos um dia de paralização muito esvaziado. Concordo com a colega, é fundamental ocupar e seguir com as aulas. Mas aulas onde o assunto seja a greve, com debates em pequenos grupos. Me parece fundamental nesse momento que todo mundo possa se expressar, mesmo aqueles que estão a favor da PEC. O dialogo e o debate aberto, e não os posicionamentos ideologicos e intelorantes.
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    #ocupaxgreve Aderimos à greve geral do dia 11/11 e estamos construindo com outras entidades a paralisação aqui na Bahia.
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    #ocupaxgreve No meu ponto de vista greve na educação somente prejudica os próprios grevistas, o Estado não se fere com uma Universidade ou escola parada/esvaziada. O que acredito é que devemos ocupar universidades e escolas num caráter subversivo, construindo saberes de formas diversas do tradicional destes espaços. Concordo muito com a fala da colega, só queria contribuir com estas pequenas reflexões.
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    #ocupaxgreve e não devemos esquecer que tivemos 3 meses e meio de greve inutil no ano passado em muitas federais. O que dificulta muito o apoio à greve de hoje.
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    #ocupaxgreve os aparelhos sindicais aproveitam a greve para misturar a pauta da PEC e do Ensino Médio, justas e populares, com pautas super controversas e sem nenhum apoio da comunidade universitária. Isso já aconteceu ontem na UFF. Enfiaram uma moção contra o marco da ciência e tecnologia, que a maioria da universidade apóia, só os aparelhos são contra.
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    #ocupaxgreve Isso aconteceu ano passado, tínhamos uma bela greve estudantil na UFRJ, com a pauta da assistência estudantil, que todo mundo apoiava. Aí a antiga direção do sindicato impôs uma greve docente que trouxe pra si o protagonismo da mobilização, esvaziou, criou divisão interna e, o pior: dissolveu a pauta dos estudantes em suas pautas sindicais infindáveis e lunáticas.
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    #ocupaxgreve Greve na educação publica tem caracteristicas diferentes de outros setores mas discordo bastsnte que somente prejudica os proprios grevistas. A dinamica é diferente no sentido que não tem uma paralisaçao da produçao de lucro diretamente, mas fazer greve nesses setores significa que os professores e funcionarios tem agora tempo livre pra desenvolver a luta. Em vez de passar horas em aula, se preparando ou fazendo provas etc, todo mundo ganha muitas horas por dia, que antes estariam ocupados, pra poder se dedicar a como pensar e colocar em pratica a luta qie tem que ser feita. Ela gera tempo e espaço pra conseguir fazer a luta, em outros setores só fazer a greve ja é a luta em si.
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    #ocupaxgreve Na educação superior pública é diferente da educação básica. Não colocaria as duas greves do mesmo jeito.
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    #ocupaxgreve O problema é que na prática, durante as greves na educação pública que vivi pelo menos (2012 na UFPE, 2014 e 2016 na USP) a Universidade fica vazia onde as \”vanguardas\” tem presença política, enquanto o resto da Universidade vive como se nada estivesse acontecendo.
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    #ocupaxgreve. Não sou a favor de greve nas universidades agora, por vários motivos. Mas ocupa com aulas também não me parece tão produtivo…Não é isso nas escolas. As ocupações em instituições burocráticas de ensino ou são mais interessantes, me parece. Só vale dizer que a greve aqui na UFSCar não foi inútil, ela possibilitou uma discussão politica interna muito boa, a formação de coletivos e reflexão, muitos CAs nasceram ali, etc.
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    #ocupaxgreve o dado objetivo é que a força de uma greve está em paralisar a produção. Isso nunca acontece em greves de universidade. Todos seguem fazendo bancas, preenchendo Lattes e entregando relatórios para as agências de fomento em pesquisa. A introdução da racionalidade neoliberal via avaliação contínua minou a capacidade de enfrentamento político de professores que viraram empreendedores de si. Não estou certo se o modo ocupação resolve isso, mas já uma movida diferente. A universidades já se transformam em um dos principais centros de produção e reprodução da força de trabalho no capitalismo imaterial, com investimentos passados na subjetividade por via tolerante e democrática. É preciso forjar uma nova arma, que como a greve, tenha poder de botar medo no patrão.
    Em 2012 vivi uma greve-ocupação como professor na PUC-SP. Era uma greve política contra a nomeação de uma reitora não escolhida pela comunidade puquiana. A greve foi incrível, com adesão e atividades diárias. Mas não alcançou seu objetivo. E vieram depois as vinganças institucionais. Como disse, a ocupação é certamente mais interessante do ponto de vista educativo e produz transformações na subjetividade das pessoas que são difíceis de mensurar, mas em termos objetivos também não tem força de paralisar a produção. Quarta conversei rapidamente com um colega sobre isso: como o trabalhador precário/inteiramente/intelectual faz greve? Deixa de responder email? Quando força de trabalho vira capital humano e o que se faz para viver se transforma também no que se faz da vida, resistência e existência se implicam e estamos muito mais expostos às capturas do Estado e do Capital. #ocupaxgreve
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    #ocupaxgreve tem um texto do Negri sobre a Greve Abstrata, apresentado em um encontro interessante chamado ABSTRIKE. Ou seja: como repensar a forma greve em tempos de capitalismo cognitivo?
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    #ocupaxgreve um modo de greve muito mais eficaz seria a greve de lattes, e não uma greve onde paramos aulas na graduação para engordar ainda mais o lattes
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    #ocupaxgreve a valorização em cima de nosso trabalho intelectual se dá no sentido inverso desse. A graduação é onde somos menos capitalistas. Por isso a aula não pode parar. A greve tem que ser na produção intelectual, que acumula no capitalismo cognitivo #ocupaxgreve
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    #ocupaxgreve Também acho. Aliás, as greves em geral, atingem só a graduação, o que é pior que não fazer greve.
  • Anotações sobre a greve abstrata – Toni Negri

    Toni Negri

    (Tradução e síntese de Tatiana Roque)

    A greve era uma abstenção do trabalho por parte dos operários, uma ruptura da relação de exploração que se qualificava como ataque direto à valorização capitalista. Do ponto de vista do operário, contudo, a greve não era só isso, era também algo material, uma ação que devia “fazer mal ao patrão” e que, ao mesmo tempo, colocava em jogo a vida do trabalhador. Havia algo de carnal, de imediatamente biopolítico na greve, uma ação que transformava a ação econômica em representação política, o ato de abstenção em uma prática de deserção do capital.

    Quando a relação de capital é diferente, seja porque o sujeito trabalhador é qualificado de modo diverso ou porque o comando sobre o trabalho é diverso, a greve também deve ser diferente. A greve do operário industrial e do agriculto já eram experiências diferentes. Ainda que cada uma colocasse em jogo a valorização do capital, geravam experiências diversas. A continuidade e a abstenção prolongada do trabalho eram vividas de modo distinto por operários e camponeses, pois para esses últimos, por exemplo, a luta não podia durar tanto (contam que as vacas mugiam desesperadas e a colheita apodrecia). Era preciso, para os agricultores, maximizar o confronto em um tempo breve. Já para os operários, a temporalidade e a figura da luta eram outras, não eram constrangidos pelo limite da continuidade da abstenção do trabalho, a não ser por necessidade de salário e sobrevivência.

    A greve só é unitária na imagem que o patrão faz dela, para reimpor a ordem sobre a ruptura: ruptura econômica da relação de valorização e ruptura política da subordinação.

    O neoliberalismo se inaugura, nos anos 80, como uma transformação da organização do trabalho, da forma de produção e do controle político sobre a classe operária, como resposta às lutas do operário-massa. As formas de produção se darão, então, pela automação das fábricas e pela informatização social.

    Para avançar nesta análise, será necessário perguntar quem é hoje o trabalhador e quem é o patrão. Começando pelo trabalhador, trata-se de um operário que, como está dentro de uma cooperação cada vez mais intensa, qualifica sua força de trabalho como potência motora do sistema produtivo. É na cooperação que o trabalho se torna cada vez mais abstrato, logo mais capaz de organizar a produção, e ao mesmo tempo mais sujeito a mecanismos de extração de valor: capaz de criar cooperação produtiva e constrito a vê-la extraída (pelo capital) em medidas cada vez maiores. Para chegar a compreender este processo, deve-se insistir sobre o fato que, na relação com a máquina, o trabalhador desenvolve, de modo sempre mais autônomo, a instância cooperativa e, desse modo, organiza a energia produtiva. Assim, não podemos mais falar de “autonomia” do mesmo modo que se falava na fase da subsunção formal e/ou real do trabalho sob o capital.

    Isso porque aqui há um grau de autonomia que não é somente de posição, mas ontológica – uma consistência autônoma, ainda que completamente submetida ao comando capitalista. O que significa estar em uma situação na qual uma iniciativa produtiva contínua – o tempo – e estendida – no espaço – são extraídas pelo capital? A relação entre processo laboral (nas mãos do operário) e processo capitalista de valorização estão hoje separados, o primeiro ligado à autonomia do trabalho vivo e o segundo ao puro comando. Essa mutação significa que o trabalho atingiu um grau de dignidade e força que recusa a forma de valorização que lhe é imposta. Assim, mesmo por dentro da imposição do comando, isso é capaz de desenvolver sua própria autonomia.

    A grande diferença entre os processos laborativos estudados por Marx e os atuais consiste no fato de que a cooperação hoje não é mais imposta pelo patrão, mas produzida do interior pela força trabalho, o processo produtivo e as máquinas não são impostas do exterior pelo patrão. Podemos falar hoje de apropriação do capital fixo pelos trabalhadores e assim indicar, por exemplo, um processo, de construção do algoritmo de conhecimento disposta à valorização do trabalho em cada uma de suas articulações.

    Se as coisas estão assim, é somente abstraindo-se cada vez mais dos processos laborativos que o comando capitalista consegue se exercitar. Não por acaso falamos de “exploração extrativa” da cooperação social, e não mais de exploração ligada às dimensões industriais e temporais da organização do trabalho.

    Nesse tipo de organização do trabalho e da valorização há um papel complexo de “produção de subjetividade”. Por “produção de subjetividade” entende-se, por um lado, produção pela “subjetivação” e, por outro, tentativa insistente de reduzir essa última a “sujeito” comandado. A ambiguidade aqui é aquela que apresentam todas as diversas figuras do trabalho vivo em sua estruturação pós-industrial.

    Em segundo lugar, o que é hoje o patrão? Diante do trabalho cognitivo, o patrão se apresenta como capital financeiro que extrai valor social. Dentro dessa “extração” se dá hoje uma progressiva redução da função patronal da figura empreendedora a uma figura puramente política. A verticalização do comando capitalista deve atravessar de maneira cada vez mais abstrata a relação entre cooperação e processos de subjetivação produtiva – consequentemente, nessa verticalização irá se exprimir um tipo de “governamentalização” do comando, uma tentativa cada vez mais complexa de controlar os mecanismos maquínicos/algorítmicos por meio dos quais o trabalho vivo construiu a cooperação. Nessa perspectiva, o capital financeiro se apresenta como “ditadura” – não ditadura fascista, mas abstração do comando e uniformização governamental na tentativa de fazer valer sua autoridade sobre o processo de abstração. Em suma, fazer coincidir abstração e extração.

    Sobre a nova figura do comando capitalístico, convém distinguir dois aspectos. Já falamos do primeiro: o comando abstrato/extrativo e sua pretensão de recuperar todo o processo de valorização. Aqui se organiza o comando político. Mas, ao lado desse, há outro aspecto: o neoliberalismo é de fato, ao seu modo, constituinte. Ao invés de desenvolver uma atividade de governo que é apenas comando – essencialmente financeiro, mas corroborado por um máximo de força estatal – ele se desenvolve também em rede (com formas plurais de governamentalidade) e age como comando participativo sobre uma ampliada rede micropolítica predisposta a incluir necessidades e desejos. A constituição neoliberal não coleta simplesmente (e extrai valor do) trabalho vivo na sua expressão valorífica, mas tende também a organizar o consumo e os desejos e a torná-los, em sua expressão material, reprodutivos, cooperativos e funcionais à reprodução do capital. É a moeda que, no estado atual do capital financeiro, representa a mediação entre produção e consumo, entre necessidades e reprodução capitalista, que iguala, portanto, e coleta em uma mesma abstração o trabalho que a produz e o trabalho que a consome. Será possível atravessar esse conjunto complexo reapropriando-se do trabalho que produz e liberando o consumo de sua direção capitalista?

    Quando começamos a falar de “trabalho imaterial”, fomos criticados, e não somente porque dizíamos (impropriamente) “imaterial” quando obviamente todo trabalho é material. Por essa imaterialidade visávamos os atos constitutivos de valores: conhecimento, linguagem, desejos. Hoje não se pode mais desmerecer o fato de que estamos em uma situação na qual o capital identificou totalmente o novo riquíssimo contexto no qual o trabalho vivo se exprime e colocou-o inteiramente sob seu comando. O capital agiu em duas direções. Por um lado, articulou seu comando à produção viva de linguagem; e por outro, opera por meio da funcionalização das necessidades e desejos ao comando capitalista. O capital (no neoliberalismo) quer que a força da subjetivação produtiva se reconheça como sujeito da relação de capital. Quer servidão voluntária. Daí a impotente mistificação produzida, frequentemente, em muitos homens honestos (mas incapazes de exercício crítico): defende-se que o capital é hoje capaz de tornar felizes os dominados. A nós interessa, em vez disso, pensar ainda que existir no capital é necessariamente resistir a ele.

    O que é então a greve abstrata hoje? O que é uma greve que seja medida pela nova natureza do trabalho vivo ou pela constituição neoliberal da produção e da reprodução? O que é uma luta social que tenha capacidade de “fazer mal”, de se mostrar novamente com uma potência material e biopolítica eficaz? Para responder a essas questões, é conveniente insistir sobre dois pontos que não podemos separar, mas que pode ser útil distinguir. Antes de tudo, perguntar se e como o trabalho vivo pode hoje se rebelar e interromper o fluxo da valorização. A resposta a essa pergunta deve retomar inteiramente a tradição da luta operária: ruptura da relação de produção, abstenção, sabotagem, êxodo etc. Mas observando que quando o trabalho investiu na vida, quando se trabalha todo dia fora de qualquer horário, quando a capacidade produtiva de cada trabalhador é retomada dentro de redes de comando, como é possível reencontrar aquela independência de ação (que é exigida pelo “fazer greve”) seja no terreno espacial da cooperação ou no terreno temporal reduzido agora ao fluxo contínuo? Como é possível, por exemplo, ocupar e bloquear a metrópole (tornada produtiva) e/ou interromper o fluxo de produtividade das redes sociais, que não conhece pausa? Aqui a resposta só pode reconduzir àquela composição singular que hoje é representada pela íntima conexão algorítmica entre produção e comando – ou seja, ali onde os trabalhadores constroem relações significativas e produtivas cujo valor é extraído pelo capital. Nesse caso, a greve pode ter sucesso não só quando rompe o processo de valorização, mas quando recupera a independência, a consistência do trabalho vivo ao se tornar ato produtivo. Na greve, o trabalho vivo maquínico rompe o algoritmo para construir novas redes de significação. E pode fazê-lo não somente porque sem produção por parte do trabalho vivo, sem subjetivação, não tem algoritmo. Deve fazê-lo porque sem resistência não há, no capitalismo, nem salário nem promoção social, nem Welfare nem possível gozo da vida. A greve revela o futuro, rompendo com a miséria e a sujeição ao comando. Logo, greve como retomada da tradição operária, mas colocada sobre todo o terreno da vida – greve social. Essa é a figura da greve contra as técnicas capitalistas extrativas do valor de toda a sociedade.

    Mas há um segundo ponto, todavia, talvez mais importante até de ser atacado: aquele onde os processos de reprodução da sociedade se cruzam com o capital financeiro, com a monetização do processo. É aqui claro que há de se romper e reconstruir o mecanismo que lega o consumo à dimensão monetária. O consumo é sempre uma coisa boa quando se sabe consumir em relação com as necessidades de reprodução da espécie – não tanto daquela natural, genericamente humana, mas daquela operária, produtiva, “pós-humana”. É esse tipo de consumo que deve ser tomado como momento de ruptura. Ora, esse é o terreno do Welfare (local de organização do domínio sobre serviços e consumo) que é percorrido como terreno de luta – de exercício de resistência e perspectiva alternativa. A greve abstrata se torna aqui greve materialista. Trata-se de recuperar para o trabalho vivo o comando sobre o consumo e de construir e/ou impor uma “produção do homem pelo homem” e não pelo lucro.

    A greve abstrata, em nível de produção, impõe a recuperação da independência do trabalho vivo para romper o processo de valorização; em nível de reprodução, exige a construção e a imposição de uma nova sequência necessidades/desejos/consumo. É característica hoje a abundância das pesquisas que se empenham na tentativa (e logo exasperam a tensão) de construir espaços de independência laborativa dentro das redes produtivas e majoritariamente investidas pela capacidade capitalística de extração de valor. O renascimento do mutualismo e o crescimento da cooperação nas redes informáticas são somente as primeiras pistas de luta a serem aprofundadas. Sobre o terreno de ruptura da sequência desejos/consumo (e da sua monetização forçada) há forças difusas para criar moeda bit e para construir redes autônomas de comunicação e/ou redes independentes de consumo – tentativas parciais, mas significativas. Sua eficácia não poderá, contudo, tornar-se decisiva se essas iniciativas não se coligarem entre elas e atingirem ofensivamente o ponto crucial sobre o qual a produção capitalística transforma a subjetivação produtiva em produção autocrática dos sujeitos. É evidente que a democracia política é incompatível com a ditadura do capital financeiro. A greve abstrata assume esse pressuposto para indicar uma série de terrenos sobre os quais é necessário intervir a fim de construir uma potência independente que saiba propor e tornar possível um outro mundo democrático.

    Para terminar. É claro que a greve contra a extração de valor e a greve que se move à altura da abstração capitalista pela exploração social não são a mesma coisa. No primeiro caso, de fato, a luta é direta pela apropriação do lucro (a sua distribuição pode favorecer os trabalhadores) e, no segundo caso, é derrubada dos modelos de reprodução da sociedade e da regra capitalista de cunhagem funcional e contextual da moeda – claro que hoje esses dois níveis de luta não são idênticos, mas extremamente ligados um ao outro. Um é horizontal e o outro é vertical. Um é luta pela emancipação do trabalho, outro pela liberação em relação ao trabalho. Mas, do ponto de vista das lutas, não se saberia distingui-los. Nem se pode, todavia, confundi-los e a razão consiste em tudo aquilo que foi dito até aqui: porque um luta e o outro constrói. Devem fazê-lo separadamente, devem fazê-lo junto. Aí está a tarefa a realizar. Até aqui foi a análise, depois vem a práxis. É então evidente que, se o neoliberalismo impõe a ditadura do capital financeiro, a luta pela liberação do e em relação ao trabalho, ou seja, a luta comunista impõe às coalizões de trabalhadores que se batam sobre o terreno horizontal contra a exploração extrativa de saber, mas se alçando também à produção de um projeto alternativo à gestão capitalista – da extração de valor, mas, sobretudo, da medida – da moeda. É aqui que se combate a ditadura. Os companheiros do Syriza hoje, aqueles do Podemos amanhã, é para aqui que eles trouxeram a luta: para o cruzamento entre emancipação do trabalho e liberação em relação ao trabalho. Se conseguirá na Itália construir uma coalizão de trabalhadores tão potente?