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    Alunas ocupam universidades no Chile para denunciar violência de gênero

    traduzido por: Bárbara Lopes

    Com ocupações e greves, estudantes universitárias chilenas estão em uma grande onda de manifestações contra a violência machista e por protocolos contra casos de assédio sexual que, segundo as jovens, são acobertados pelas instituições. No momento, são 15 universidades ocupadas e outras tantas em greve. O estopim foi na Faculdade de Direito da Universidade do Chile, ocupada por alunas no dia 27 de abril para protestar contra a demora de uma resposta a uma denúncia de assédio sexual e trabalhista feita há oito meses contra um professor. Em apoio à mobilização, professoras, intelectuais e ativistas políticas fizeram um manifesto que traduzimos abaixo:

     

    Estamos diante de um movimento de transcendência histórica. Estão se levantando, em nosso país, em diversas universidades, assembleias, greves e ocupações feministas, configurando formas de ação coletiva que há poucos anos não eram sequer imagináveis e que hoje estouram no cenário público para desafiar as fundações patriarcais e androcêntricas das instituições universitárias.

    Este novo ciclo de mobilizações, que se inicia por denúncias de assédio sexual e pela insuficiência dos protocolos e normativas existentes, abre uma possibilidade inédita de colocar em questão o sistema de educação superior em seu conjunto, pois tanto a violência machista quanto a reprodução das desigualdades de gênero denunciadas estão estreitamente imbricadas com o caráter antidemocrático e mercantil das instituições educativas.

    Sabemos que a violência de gênero é grande e complexa e que atravessa todas as esferas de nossa vida. Por isso, transformar esta dimensão nas universidades implica transformar estruturalmente a educação, minando as bases do sexismo que reproduz, nas instituições educativas, a divisão sexual do trabalho, reforçando a associação de razão, poder e sucesso no mercado com o masculino e de emotividade, subordinação natural e precarização com o feminino. Neste sentido, não é nada casual que usemos a expressão “casa de estudos” para nomear as universidades, se vemos como estas replica, os papéis de gênero, constituindo assim uma extensão da casa heteropatriarcal na esfera da educação formal.

    A luta contra o patriarcado e contra a reprodução dos papéis de gênero é também uma luta contra a educação de mercado, pois as carreiras feminizadas, associadas aos trabalhos de cuidado, crianças e empatia, são precisamente as mais precarizadas, enquanto que as carreiras tipicamente masculinas são as mais valorizadas socialmente, as mais exitosas no mercado e as que contam com maiores recursos. Isso segue reforçando a reprodução dos papéis de gênero e perpetua a violência contra os corpos feminizados. O feminismo, justamente, convida a desafiar essa reprodução e entender que não podemos lutar contra o patriarcado na educação sem lutar contra o mercado que reforça as assimetrias de gênero e que orienta as instituições educativas.

    Pensar a educação feminista significa pensar a democracia, a liberdade e a igualdade. Ideais que não são sinônimo de empoderamento individual e meritocracia sustentada em privilégios socioculturais e que tampouco podem ser tratados mediante a incorporação cosmética da “perspectiva de gênero” em cursos, programas de aperfeiçoamento ou formação continuada, capacitações ou outros mecanismos característicos da administração universitária neoliberal. Una educação feminista significa transformação desde a raiz, abarcando a ordem jurídica (mudança de estatutos a partir de uma ordenação feminista), igualdade substantiva (procedimentos de paridade, igualdade de salários, etc.), perspectiva teórica feminista para o questionamento geral do conceito de educação e de universidade, das disciplinas até as hierarquias. A educação feminista significa também retomar as bandeiras históricas da luta pela educação pública e insistir na educação como um direito social e na necessidade de financiamento direto às universidades públicas, para poder materializar um projeto educativo transformador e garantir condições de dignidade e igualdade trabalhista para acadêmicas/os e funcionárias/os, porque o feminismo contesta também a precarização do trabalho.

    O feminismo coloca em questão as hierarquias, os privilégios e as desigualdades, já que as assimetrias de poder e o caráter estratificado nos espaços sociais geram condições propícias para o abuso e para sua naturalização. Nesse sentido, a democratização das instituições educativas e o trabalho coletivo são condições de possibilidade para levar adiante a transformação de nossas universidades a partir de uma perspectiva feminista.

    As mobilizações estudantis que explodiram são uma rebelião contra a injustiça que os mandatos do gênero impõem no neoliberalismo. Portanto, o resgate da educação pública da captura do mercado sexista não passa por ter uma universidade mais neoliberal com “perspectiva de gênero”, e sim por derrubar as bases da educação mercantil-sexista para construir a partir do feminismo uma nova educação pública.

    Saudamos e apoiamos com entusiasmo as estudantes que levantaram este movimento e como deputada feminista, professoras universitárias, escritoras e intelectuais fazemos um chamado a assumir um papel ativo nesta mobilização, organizando-nos, criando espaços de discussão e nos articulando em uma aliança feminista ampla, que crie as bases de um novo pacto social por uma nova educação pública, democrática e feminista.

    Assinam:

    • Camila Rojas Valderrama. Diputada Izquierda Autónoma. Frente Amplio.
    • Beatriz Sánchez. Instituto de Comunicaciones e Imagen. Universidad de Chile.
    • Faride Zerán Chelech. Universidad de Chile.
    • Diamela Eltit. Escritora.
    • Nelly Richard. Crítica Cultural y Ensayista.
    • Alejandra Castillo. Filósofa feminista. Departamento de Filosofía. Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación.
    • Daniela López Leiva. Encargada Feminista Diputación Camila Rojas Valderrama.
    • Pierina Ferretti. Socióloga. Centro de Estudios Culturales Latinoamericanos Universidad de Chile – Fundación Nodo XXI.
    • Camila Miranda. Directora Fundación Nodo XXI.
    • Carolina Olmedo Carrasco. Universidad Alberto Hurtado. Directora Fundación Nodo XXI.
    • Yesenia Alegre Valencia. Socióloga. Universidad Viña del Mar. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Leticia Arancibia Martinez. Pontificia Universidad Católica de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Gloria Caceres Julio. Pontificia Universidad Católica de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • María Angélica Cruz. Universidad de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Mónica Iglesias. Instituto de Sociología. Universidad de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Patricia González San Martín. Facultad de Humanidades. Universidad de Playa Ancha. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Tania de Armas Pedraza. Directora Departamento de Sociología Universidad Playa Ancha. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Sonia Reyes Herrera. Instituto de Sociología Universidad de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Lorena Zuchel Lovera. Departamento de Estudios Humanísticos UTFSM. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Jeanne Hersant. Departamento de Sociología Universidad de Playa Ancha. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Alejandra Ramm Santelices. Universidad de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Claudia Montero. Instituto de Historia y Ciencias Sociales Universidad de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Maribel Ramos Hernández. Departamento de Sociología Universidad de Playa Ancha. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Marjorie Mardones Leiva. Facultad de Ciencias Sociales. Universidad de Playa Ancha. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Pamela Soto Vergara. Psicóloga. Universidad Andrés Bello.
    • Luna Follegati Montenegro. Historiadora. Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación.
    • Rosario Olivares. Departamento de Filosofía. Universidad Alberto Hurtado.
    • Carolina Avalos. Facultad de Filosofía y Humanidades. Universidad Austral de Chile.
    • Lelya Troncoso. Trabajo Social. Universidad de Chile.
    • Mia Dragnic. Socióloga. Maestra en Estudios de Género. Universidad de Chile.
    • Caterine Galaz. Trabajo Social. Universidad de Chile.
    • Hillary Hiner. Escuela de Historia. Universidad Diego Portales.
    • Laura Albornoz Pollmann. Departamento de Derecho Privado. Universidad de Chile.
    • Daniela Marzi. Universidad de Valparaíso.
    • Javiera Arce. Universidad de Valparaíso.
    • Isabel Piper. Psicología. Universidad de Chile.
    • Paula Quintana. Instituto de Sociología. Universidad de Valparaíso.
    • Antonella Marín. Instituto Arcos Viña del Mar.
    • Paula López. Instituto Arcos Viña del Mar.
    • Eloid Chabaud. Instituto Arcos Viña del Mar.
    • Ana Luisa Muñoz. Profesora de Historia e Investigadora.
    • Claudia Rojas Necuhual. Facultad de Economía y Negocios. Universidad de Chile.
    • Ana Traverso. Facultad de Filosofía y Humanidades. Universidad Austral de Chile.
    • Karen Alfaro. Facultad de Filosofía y Humanidades. Universidad Austral de Chile.
    • Mónica Peña. Facultad de Psicología. Universidad Diego Portales.
    • Ariadna Biotti Silva. Archivo Central Andrés Bello. Universidad de Chile.
    • Javiera Carmona Jiménez. Universidad de Playa Ancha.
    • María José Yaksic. Magíster en Estudios Latinoamericanos. Universidad de Chile.
    • Ximena Azúa. Facultad de Ciencias Sociales. Universidad de Chile.
    • Daniela Jara. Instituto de Sociología. Universidad de Valparaíso.
    • Carolina Benavente Morales. Centro de Investigaciones Artísticas. Universidad de Valparaíso.
    • Javiera Robles Recaberren. Doctoranda en Historia. UNLP/IIGG-CONICET
    • Karin Berlien Araos. Departamento de Ingeniería Comercial. Universidad de Valparaíso.
    • Pamela Jaime Elías. Profesora de Historia.
    • María Isabel Puerto Perez. Abogada. Docente Universidad de Valparaíso.
    • Verónica Francés. Arquitecta. Centro de Investigaciones artísticas. Universidad de Valparaíso.
    • Carolina Andrade Amaral. Encargada Oficina Comunal Diversidades Sexuales y Docente en Violencia de Género. Universidad Andrés Bello.
    • Sara Avalos Urtubia. Profesora de Historia y Geografía. ONG Contra de Reñaca Alto.
    • Sandra Rojas Cáceres. Trabajadora Social. Universidad de Viña del Mar y Universidad de las Américas.
    • Ana Gálvez Comandini. Historiadora. Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación.
    • Alejandra Zuñiga Fajuri. Escuela de Derecho. Universidad de Valparaíso.
    • Marcela Díaz Rebolledo. Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales FLACSO Chile.
    • Sofía San Martín Moreno. Socióloga. Universidad de Playa Ancha.
    • María Soledad Vargas Carrillo. Pontificia Universidad Católica de Valparaíso. Directora Magister en Comunicaciones.
    • Lina Marín Moreno. Universidad de Valparaíso.
    • Nico Mazzucchelli. Trabajadora Social. Académica Universidad de Viña del Mar y Universidad de Valparaíso.
    • Nicole Cisternas Collao. Socióloga.
    • Carolina Pinto. Socióloga. Académica Universidad de Viña del Mar.
    • Claudia Espinoza. Universidad de Valparaíso.
    • Tamara Ortega Uribe. Socióloga. Universidad de Playa Ancha.
    • Camila Arriagada B., Unidad de Control de Proyectos Universidad Técnica Federico Santa María
    • Claudia López, Departamento de Informática y Observatorio de Género en Ciencia e Ingeniería UTFSM.
    • Paulina Santander Astorga, Departamento de Industrias y Observatorio de Género en Ciencia e Ingeniera UTFSM.
    • Marianna Oyanedel, Departamento de Estudios Humanísticos UTFSM.
    • Aldonza Jaques, Departamento de Ingeniería Química y Ambiental UTFSM
    • Marcela Prado Traverso Facultad de Humanidades, Universidad de Playa Ancha
    • Francesca Iunissi, Facultad de Ingeniería, Universidad de Playa Ancha
    • Karen Alfaro, Facultad de Filosofía y Humanides, Universidad Austral de Chile
    • Ana Traverso, Facultad de Filosofía y Humanidades, Universidad Austral de Chile
    • Paola Bolados, Instituto de Historia y Ciencias Sociales, Universidad de Valparaíso.
    • Karina Marambio Guzmán, Escuela de Psicología. Universidad de Valparaíso.
    • Esperanza Díaz Cabrera, Profesora de Historia, Magíster en Historia.
    • Verónica Figueroa Huenchu. Instituto de Asuntos Públicos. Universidad de Chile.
    • Paulina Vergara Saavedra. Instituto de Asuntos Públicos. Universidad de Chile.
  • Carta de um homem trans ao Antigo Regime sexual

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    Paul Preciado

    tradução: Tatiana Bustamante

    fonte foto: http://www.ellenjames.net/blog/interview-with-beto-preciado

     

    \”Senhoras e Senhores e outros,

    No meio do fogo cruzado acerca das políticas sobre assédio sexual, eu gostaria de me manifestar enquanto contrabandista entre dois mundos: o \’dos homens\’ e o \’das mulheres\’ (dois mundos que poderiam muito bem não existir, mas que alguns se empenham em manter separados por um tipo de muro de Berlim), para dar-lhe notícias a partir da posição de \’objeto encontrado\’, ou melhor, de \’sujeito perdido\’ durante a travessia.

    Não falo aqui como um homem que pertenceria à classe dominante, daqueles aos quais se atribui o gênero masculino no nascimento e que foram educados como membros da classe governante, àqueles a quem se concede o direito ou de quem se exige (e é uma chave interessante de análise) que exerça a soberania masculina. Tampouco falo como mulher, visto que eu, voluntariamente e intencionalmente, abandonei essa forma de encarnação política e social. Expresso-me aqui como um homem trans. Portanto não reivindico, de forma alguma, a representação em qualquer coletivo. Não falo nem posso falar como heterossexual, nem como homossexual, embora conheça e viva ambas as situações, uma vez que, quando alguém é trans, tais categorias tornam-se obsoletas. Falo como desertor de gênero, um fugitivo da sexualidade, um dissidente (às vezes desajeitado, já que desprovido de códigos pré-estabelecidos) do regime da diferença sexual.

    Como uma auto-cobaia da política sexual que experimenta, ainda não tematizada, viver de cada lado do muro e que, ao atravessá-lo diariamente, começa a cansar-se, senhoras e senhores, da rigidez recalcitrante de códigos e desejos que impõe o regime hetero-patriarcal.

    Deixe-me dizer-lhes, do outro lado do muro, que o quadro é muito pior do que a minha experiência como lésbica me permitiu imaginar. Desde que vivo como-se-eu-fosse-homem no mundo dos homens (consciente de encarnar uma ficção política) consegui verificar que a classe dominante (masculina e heterossexual) não abandonará seus privilégios por que enviamos muitos tweets ou demos alguns gritos. Desde os tumultos da revolução sexual e anti-colonial do século passado, os patriarcas heterodoxos embarcaram em um projeto de contra-reforma – ao qual agora se juntaram vozes \’femininas\’ que desejam continuar a ser \’importunadas /perturbadas\’. Esta será a Guerra dos Mil Anos – a mais longa, sabendo-se que afeta políticas e processos reprodutivos através dos quais um corpo humano constitui-se como sujeito soberano. De fato, será a mais importante das guerras, porque o que está em jogo não é nem o território nem a cidade, mas o corpo, o prazer e a vida.

     

    ROBOCOP E ALIEN
    O que caracteriza a posição dos homens em nossas sociedades tecnopatriarcais e heterocêntricas é que a soberania masculina se define pelo uso legítimo de técnicas de violência (contra mulheres, contra crianças, contra homens não-brancos, contra animais, contra o planeta como um todo). Poderíamos dizer, ao ler Weber com Butler, que a masculinidade é para a sociedade o que o estado é para a nação: o titular e o legítimo usuário da violência. Essa violência se expressa socialmente sob a forma de dominação, economicamente sob a forma de privilégio, sexualmente sob a forma de agressão e estupro. A soberania das mulheres, ao contrário, está ligada à sua capacidade de gerar. As mulheres são subjugadas sexual e socialmente. Somente as mães são soberanas. No âmbito desse regime, a masculinidade se define necropoliticamente (pelo direito dos homens de dar a morte), ao passo que a feminilidade se define biopoliticamente (pela obrigação das mulheres de dar a vida). Pode-se dizer que a heterossexualidade necropolítica é algo como a utopia da erotização do acoplamento entre Robocop e Alien, pensando que, com um pouco de sorte, um dos dois se satisfaça.

    A heterossexualidade não é apenas, como demonstra Wittig, um regime de governo: é também uma política do desejo. A especificidade do regime é encarnar um processo de sedução e dependência romântica entre agentes sexuais \”livres\”. As posições de Robocop e Alien não são escolhidas individualmente, nem são conscientes. A heterossexualidade necropolítica é uma prática de governo que não é imposta por aqueles que governam (os homens) às governadas (as mulheres), mas uma epistemologia que determina as respectivas definições e posições de homens e mulheres por meio de regulação interna. Esta prática de governo não toma a forma de lei, mas de uma norma não escrita, uma transação de gestos e códigos cujo efeito é o de estabelecer na prática da sexualidade uma divisão entre o que se pode e o que não se pode fazer. Esta forma de servidão sexual baseia-se em uma estética da sedução, uma estilização do desejo e uma dominação historicamente construída e codificada, erotizando a diferença de poder e perpetuando-a. Esta política de desejo é o que mantém vivo o antigo regime de sexo-gênero, apesar de todos os processos legais de democratização e empoderamento das mulheres. Este regime necropolítico heterossexual é tão degradante e destrutivo quanto foram a vassalagem e a escravidão na época do Iluminismo.

    É PRECISO MODIFICAR O DESEJO
    O processo de denúncia e visibilidade da violência que vivemos faz parte de uma revolução sexual inevitável e também lenta e sinuosa. O feminismo queer situou a transformação epistemológica como condição para a possibilidade de mudança social. Tratava-se de questionar a epistemologia binária e a naturalização dos gêneros, afirmando que existe uma multiplicidade irredutível de sexos, gêneros e sexualidades. Entendemos hoje que a transformação libidinal é tão importante quanto a transformação epistemológica: o desejo tem que ser modificado. É preciso aprender a desejar liberdade sexual.

    Faz anos que a cultura queer tem sido um laboratório de invenção de nova estética da sexualidades dissidentes, face a técnicas de subjetivação e aos desejos da heterossexualidade necropolitica hegemônica. Muitos de nós já abandonaram a estética da sexualidade Robocop-Alien há muito tempo. Aprendemos com as culturas butch-fem e BDSM, com Joan Nestle, Pat Califia e Gayle Rubin, com Annie Sprinkle e Beth Stephens, com Guillaume Dustan e Virginie Despentes, que a sexualidade é um teatro político em que desejo, não a anatomia, escreve o roteiro. É possível, dentro da ficção teatral da sexualidade, desejar lamber as solas dos sapatos, querer ser penetrado por cada abertura ou caçar o amante em um bosque como se fosse uma presa sexual. No entanto, dois elementos diferenciais separam a estética queer daquela da normalização hetero do antigo regime: o consentimento e a não-naturalização das posições sexuais. A equivalência dos corpos e a redistribuição do poder.

    ESTÉTICA DA HETEROSSEXUALIDADE
    Como um homem-trans, eu me desidentifico com a masculinidade dominante e sua definição necropolítica. O que é mais urgente não é defender o que nós somos (homens ou mulheres), mas rejeitá-lo, desidentificarmo-nos da coerção política que nos obriga a desejar o padrão e a reproduzi-lo. Nossa práxis política é desobedecer normas de gênero e sexualidade. Eu fui uma lésbica a maior parte da minha vida, e depois, trans nos últimos cinco anos, estou tão longe de sua estética da heterossexualidade como um monge budista levitando em Lhasa está do supermercado Carrefour. Sua estética do antigo regime sexual não me faz gozar. \’Importunar\’ alguém não me excita. Não me interessa escapar da minha miséria sexual pondo a mão na bunda de uma mulher no transporte público. Não sinto qualquer tipo de desejo pelo kitch erótico-sexual que vocês propõem: caras que se aproveitam da sua posição de poder para dar uma rapidinha e passar a mão em bundas. A estética grotesca e assassina da heterossexualidade necropolítica me enoja. Uma estética que renaturaliza diferenças sexuais e coloca homens na posição de agressores e mulheres na de vítimas (dolorosamente agradecidas ou felizmente incomodadas).\”

     

  • Ocupar, fazer funcionar e escapar: pensar com as mulheres sem-teto

    por Alana Moraes

    publicado na Revista DR em: http://www.revistadr.com.br/posts/ocupar-fazer-funcionar-e-escapar-pensar-com-as-mulheres-sem-teto

    As ocupações urbanas do MTST (movimento dos trabalhadores sem-teto) espalham-se hoje como rios insistentes nas brechas metropolitanas de São Paulo. Rios de crise, despejos, histórias de migrações, novos encontros. A nova ocupação em São Bernardo do Campo já reúne mais de 6 mil famílias. As barracas de lona traçam um novo desenho na paisagem urbana: vistos do alto, os pontos coloridos fazem linhas que quase sempre escapam de uma reta. O terreno vazio pertence à uma incorporadora e espera pacientemente, especulando, inventando valor. Ao lado, a fábrica da Scania. A mesma fábrica que, em 1978, era palco de uma grande greve de trabalhadores que mudaria a história do país – alguns dizem que foi o começo do fim da ditadura militar. Dois ciclos de luta, lado a lado, produzem a imagem perfeita de dois tempos históricos e suas aflições.

    Em 1978, a luta do chamado “novo sindicalismo” acontecia no coração da fábrica e ameaçava o ciclo de acumulação do capital bem ali na linha de montagem. Produzia um ruído que foi capaz de desestabilizar os consensos do regime militar e seus dispositivos autoritários. Em 2017, as ocupações urbanas nos apresentam essa cidade industrial despedaçada. O sonho da sociedade salarial mal havia começado. Tempos de “desmanche”, “reestruturação produtiva” o “trabalho perde a centralidade”, dizem alguns sociólogos. Mas que trabalho é esse que perde a centralidade?

    Em 1978, era o trabalho da produção que constituía-se como estratégico na luta contra o capital. Em 2017, as ocupações se erguem, no entanto, com o trabalho sempre invisível da reprodução da vida. Em 1978, era o capital produtivo dando as cartas. Em 2017 é o capital financeirizado, aquele que habita o vazio do terreno e que escapa para todas as dimensões da vida nos fazendo sujeitos endividados. Com a reestruturação da produção e os deslocamentos na relação capital-trabalho, a reprodução da vida nos parece hoje nosso campo de batalha, nossa última trincheira. Entre o capital financeirizado e o trabalho reprodutivo um novo campo de conflitualidade que se faz, muitas vezes, nos registros invisíveis do valor.

    A ocupação é o nosso começo de mundo e só é possível existir por conta daqueles trabalhos domésticos que sempre fizemos nas sombras: cozinhar, limpar, cuidar uns dos outros. O trabalho está aí, sempre esteve: não remunerado, exilado das zonas de importância da luta de classes. Mas não só isso.  Nas ocupações, é preciso também um constante esforço de produção de relações, manutenção de vínculos, fabricação de pertencimentos, escutas. “Na ocupação, pela primeira vez  me fizeram um bolo de aniversário”, me disse uma vez um homem quando conversávamos sobre sua vida. Quando não há mais nada: salário, emprego, hospitais públicos, o que fica somos nós, mulheres. O mundo da reprodução da vida é esse que vemos entre barracas e cozinhas coletivas. É o primeiro café feito na cozinha de lona que anuncia o momento de inauguração de uma nova ocupação: vemos a cozinha contra a propriedade privada.

    Ao contrário do que acontece no espaço doméstico, nas ocupações, a cozinha coletiva é um espaço de poder feminino: onde também circulam informações, reputações, onde se fortalecem as relações, onde é possível falar sobre o sofrimento ou sobre sexo ao mesmo tempo em que se faz o refogado do arroz. “Isso aqui me curou, antes era eu sozinha”, dizem muitas vezes as mulheres. A solidão das mulheres negras é ali também ocupada. São elas, quase sempre, as principais lideranças das ocupações. “Maria do ABC” é como é conhecida a Maria das Dores, uma das militantes da ocupação de São Bernardo. Mulher negra, forte, me disse uma vez: “Minha filha, o que tem que ter mesmo é coragem”.  Muitas mulheres se separam quando encontram-se muito envolvidas no cotidiano da ocupação: “ou a ocupação ou ele, foi o que ele me disse. Eu escolhi a ocupação”.

    Toda ocupação urbana cria uma poética da precariedade que longe de romantizar ou domesticar a pobreza afirma a possibilidade política de uma existência intrinsecamente relacional. Cuidar e relacionar. Produzir infraestruturas coletivas que funcionem para a manutenção da vida fora do espaço doméstico e suas obrigações. Espaços de cuidado das crianças, limpar, lavar – nas ocupações esses espaços constituem-se como parte  central da existência política do território, sem eles nada acontece.

    Frequentemente as lideranças das ocupações são também excelentes cozinheiras, as “Tias”. A cozinha é o lugar por excelência de um pensamento prático, experimental e é também o que move todo o trabalho coletivo necessário para a manutenção e construção dos barracões. Nos mutirões de trabalho, as pausas são sempre ao redor da cozinha, nas refeições compartilhadas, no bolo do final da tarde, nos cafés e as conversas que ali acontecem.  “Antes nada que a gente fazia tinha importância. Aqui tem, sabe?”, me conta Tia Angélica.  As cozinhas e também todos os espaços e momentos de cuidado em uma ocupação nos obrigam a pensar em uma dimensão fundamental da política: as tecnologias práticas de pertencimento. Cuidar das relações, estar implicado em obrigações cotidianas do viver junto.  As “Tias” das ocupações organizam assembleias, cozinham, se importam, ligam para aqueles e aquelas que se ausentam – aqui os novos parentescos criados por elas funcionam como idiomas de conexão.  “Eu sempre chegava mais tarde na ocupação, porque estava fazendo faculdade. Chegava na ocupação meia-noite e a cozinha já estava fechada, mas a Tia Cida deixava uma marmitinha pra mim e eu ficava muito emocionada com isso, nunca vou esquecer. É um amor que eu nunca vi”, contava Débora.

    A divisão sexual do trabalho se mantém mais ou menos definida nas ocupações.  “Os homens não podem ficar na cozinha, só atrapalham!”, dizem as mulheres. As tarefas masculinas tem a ver com a construção e manutenção dos espaços coletivos, com o funcionamento da água e da energia elétrica, com a segurança de todos. O capitalismo não inventou a divisão sexual do trabalho, mas o que fez o trabalho assalariado e a expropriação dos modos coletivos de reprodução da vida foi instaurar uma hierarquia definitiva entre trabalho pago (produtivo) e trabalho não pago (reprodutivo). Nas ocupações vemos operar a divisão sexual do trabalho, no entanto, todos os trabalhos não são pagos e funcionam a partir de outras dinâmicas que tem a ver com implicações, responsabilidades e prestígios. Nesse outro regime de organização da vida coletiva, o trabalho feminino aparece em toda sua importância. A cozinha é um espaço privilegiado de feitura de lideranças. A política e a vida encontram-se confundidas. “Aqui está o povo sem medo de lutar!” anuncia o canto coletivo. Sem medo porque experimenta a possibilidade de outra vida.

    Na fábrica, o trabalhador assalariado que produz mercadoria aparecia aos olhos da sociedade capitalista envolto em uma ilusão de que a “força de trabalho” estava sempre “pronta”. Nas ocupações, ao contrário, vivemos a experiência da feitura cotidiana de nós mesmos. Não só alimentação, limpeza, cuidados básicos mas é também nesse espaço em que se vive coletivamente a busca por problemas comuns que antes eram ilhados no espaço doméstico: sofrimentos, violência sexista, problemas com o álcool, desemprego. As relações vinculadas à reprodução da vida revelam de maneira brutal que a precariedade corpórea, quando expostas em um território político, nos obriga a pensar pela interdependência. Uma outra imagem: em uma ocupação da Zona Leste, a cozinha principal tem como paredes antigos quadros de organização de uma linha de montagem fabril que foram reaproveitados e transformados em matéria prima de construção. Dois registros de mundos, o da fábrica e o da ocupação que encontram na cozinha a referência mais constante dessa feitura coletiva.

    Trata-se de pensar, em nossa opinião, esses saberes e capacidades, os quais, segundo Raquel Gutiérrez, são fundamentais para a produção dos momentos mais visíveis do antagonismo social, as tramas que geram mundos. De um terreno baldio, emerge uma ecologia de práticas que pode fazer funcionar a vida em comum, restituir capacidades. \”Agora não tenho mais medo\” é uma frase que sempre ecoa nos relatos.

    O que as ocupações produzem, além de novas relações é uma zona de tempo livre. Não mais o tempo livre produzido pelo desemprego, pela incessante busca da sobrevivência, o tempo livre entre as virações que, de algum modo, é sempre um tempo livre suspenso pela angústia do fracasso, pela instabilidade. O tempo livre das ocupações é preenchido por atividades, engajamentos, festas, assembleias, conversas, fofocas – é um tempo livre mas que, no entanto, produz uma multiplicidade de sentidos que garantem a própria vida. Estar implicado em uma tarefa do cotidiano é tornar-se alguém que importa. “Na igreja a gente se acalma, conversa com Deus, mas aqui a gente pratica o tempo todo”

    Não é por acaso o fato de muitas lutas hoje no mundo assumirem a “forma-ocupação” como forma privilegiada de enfrentamento e resistência. O que se realiza nessa forma de luta é, entre outras coisas, a coletivização das formas de reprodução antes encerradas nos contornos da domesticidade: alimentação, limpeza, formas diversas de cuidados. É uma “forma” de luta que, do ponto de vista do repertório, desloca para o centro da coletividade a questão primordial da reprodução: como manter a vida possível? Trata-se mesmo, e assim observamos nas ocupações, de uma “domesticação” da política, na qual a mobilização coletiva só é possível a partir de uma linguagem doméstica da reprodução da vida e cuidado com as relações.

    Como gosta de lembrar o antropólogo David Graeber, a “maldição” da classe trabalhadora é “se importar demais” . Para ele, a “classe trabalhadora” nunca foi majoritariamente a classe operária fabril. A experiência de classe mais compartilhada no tempo é o cuidado. A classe trabalhadora é a “classe que cuida”, aquela que sempre se ocupou dos trabalhos de cuidados dos outros: alimentação, limpeza, cuidados com velhos e crianças, cuidados da saúde, segurança etc. No caso das mulheres, o “se importar” demais adquire, obviamente, uma dimensão muito mais constitutiva de experiência. As mulheres das ocupações são empregadas domésticas, faxineiras, diaristas, cuidadoras, cozinheiras. A classe que cuida é também aquela que nos interpela sobre a potência de pensar a política pela cozinha. Nos parece, portanto, incontornável do ponto de vista de qualquer análise sobre a nova configuração de classes na sociedade brasileira contemporânea compreender os modos de produção política, em todos os seus atravessamentos, desse sujeito que emerge em um dos maiores movimentos urbanos do Brasil de maneira definitiva: a mulher  negra, trabalhadora doméstica, periférica e evangélica. “Firme e forte que nem mulher do norte!”, como muitos dizem em forma de saudação nas ocupações.

    As ocupações nos mostram que se de fato há uma crise do emprego e do trabalho assalariado, por outro lado, existem já outros caminhos sendo experimentados. O trabalho da reprodução da vida, o trabalho não pago, os cuidados e toda uma ecologia de práticas que só podem funcionar na interdependência de novas relações, no trabalho constante de produzir implicações e pertencimentos. Essa outra politicidade, uma política no feminino, revela o problema da própria manutenção da vida, dos vínculos e dos cuidados como eixos centrais da mobilização e ação coletiva. Talvez a “forma perdida” da classe esteja, mais do que nunca, no trabalho da reprodução e na tarefa de tecer as relações que possam nos mover de forma mais eficaz.

  • Mulheres, ocupações e a finitude radical das subjetividades políticas

    por Edson Teles

    Um edifício que até pouco tempo atrás estava abandonado. Agora, dentro se encontram mais de 100 famílias. Passam os dias refazendo as ligações de água, luz e esgoto, se organizando para ocuparem de maneira o mais equânime possível os apartamentos. Experimentam a produção de um comum em meio a tamanha heterogeneidade existencial. São migrantes do nordeste brasileiro, imigrantes da África, mundo árabe, América Latina, paulistanos, cariocas, mineiros. São várias as línguas faladas, mas nada que impeça a comunicação, ao contrário, funcionam como um convite ao encontro do diferente. Estas são cenas do filme “Era o Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé. Mas podem ser vistas em várias ocupações de movimentos populares por moradia.

    O Hotel Cambridge foi uma luxuosa hospedaria paulistana dos anos 50, 60 e 70, localizado no coração da cidade, em uma das principais vias do Centro. Como resultado da especulação imobiliária e do descaso dos governantes com a carência de moradias, o enorme edifício permaneceu por vários anos fechado, abandonado e deteriorando-se. Os movimentos de luta por moradia, como em outros edifícios da cidade, ocupou e iniciou a revitalização do espaço. O filme documentário nos apresenta uma experiência política alargada que poderia auxiliar na reflexão sobre o atual contexto das lutas de resistência.

    Desde o golpe contra a presidente Dilma Roussef se tem conversado, buscado, debatido sobre qual a saída para lidar com as intervenções cancerígenas em ebulição. Como resistir? Parece ser a esta a principal questão. Atônita ou surpreendida pelas estratégias autoritárias das elites dominantes, a esquerda se vê sem ou com poucas ferramentas para lidar com a situação. Por outro lado, se experimenta no país ricas formações políticas em que outros modos de intervenção nas relações sociais associam demandas práticas e cotidianas com a movimentação de novas subjetivações. Uma delas, me parece, está registrada nas cenas do filme de Eliane Caffé. Trata-se da quebra do paradigma masculino, branco, hétero, viril, universais que ainda teimam em ditar normatizações à ação política.

    Talvez o maior registro de subjetividades da ruptura e da resistência no filme esteja na presença de mulheres enquanto eixo organizador das relações humanas, éticas e políticas dentro da ocupação Cambridge. Enquanto uma das principais personagens, Carmem Silva interpreta a si mesma como líder da ocupação. Sempre à frente das ações, assessorada por outras mulheres, Carmem tem de lidar com diferenças culturais e sociais as mais variadas, vulnerabilidades existenciais, carências e fragilidades inerentes às condições de vida daquelas pessoas. Além da organização interna do movimento, da gestão do local e de suas instâncias políticas, as lideranças precisam se haver com as instituições do Estado que constantemente exercem pressão sobre o movimento. Desde a Polícia Militar, passando pelo sistema judiciário, até a interferência do Conselho Tutelar, ameaçando recolher uma criança cuja mãe tem dificuldades em exercer suas duas ou três jornadas diárias de trabalho.

    Também na experiência do imigrante dentro da ocupação a questão de um lugar social da mulher é tematizado quando vemos os homens dentro da Lan House do prédio se conectando com as mulheres que ficaram nos campos de guerra ou em meio aos conflitos sociais nos territórios de origem daqueles indivíduos. Uma mulher se comunica de dentro de um edifício, na faixa de Gaza, cujo cenário de fundo é um espaço urbano destruído por bombas, bem como a parede de seu apartamento está destruída. Neste caso, a ocupação vem de outro Estado, o israelense.

    O que mais chama atenção, do ponto de vista de novos agires, não é tanto a presença de mulheres em funções políticas e fortemente marcadas pelo masculino e suas caracterizações generalizadoras. Isto já vemos acontecer há tempos, nos mais diversos modos do agir, em movimentos e instituições. A diferença, portanto, não está nesta “presença”, mas nas suas funções ou efetividades. O processo político passa por mudanças e, neles, subjetividades diversas e singulares são a demanda dos indivíduos em movimentos. Se habitamos um mundo biopolítico, o corpo deve ocupar um outro espaço, ou estar nos atuais com outra postura.

    As subjetivações, ou subjetividades coletivas, para se produzirem na diferença e por suas próprias singularidades, entram em choque com concepções universalizadas do chamado sujeito político. Os processos de suas produções, bem como suas existências, perecem, têm data de validade, são finitas. As possibilidades eternas, os modos de relações sociais e humanas com base em valores universais, a imobilidade do indivíduo ao se manter dentro de padrões do agir diminui as pretensões e possibilidades de intervir no curso dos acontecimentos. Produz o engessamento da política aprisionando as resistências em caixas pré moldadas.

    Se, ao contrário, compreendermos as subjetividades, o mundo que habitamos e as nossas existências pelo viés da finitude radical, teremos a abertura para formas de resistência nas quais estratégias, mecanismos e tecnologias políticas também serão finitas. É aí que as mulheres, no caso do filme, se encontram com as transformações do contemporâneo. Sua existência social e afetiva já experimenta o viver dinâmico, com rupturas e transformações constantes. Se a finitude é a condição subjetiva da ação, com implicações efetivas nas máquinas políticas, então a questão se coloca de modo mais alargado: trata-se de se questionar o que estamos fazendo neste cenário, qual território me é acessível, por quanto tempo nos encontramos em determinado contexto e o que se faz com ele? O que e como se pode modifica-lo? O que em mim posso transformar para que a política também se modifique? Nesta abordagem é interessante considerar a ação política como processos em elaboração e permanente mudança.

    Para se pensar em atos, éticas e estéticas de resistência seria favorável ter em conta que as formas de dominação se atualizam e se modificam. Inclusive, limitando as possibilidades de dessubjetivações para manter o controle dos indivíduos. Resistir, neste caso, não é somente um ato de grupos sociais organizados, mas também a ação de coletivos ou indivíduos não compostos para a luta. São as sensibilidades poéticas, funcionais, performativas. Corpos e afetos que se reescrevem através de outras configurações urbanas, políticas, amorosas. A proliferação de uma rica formação política ganha em opções com um agir ciente das finitudes e da não eficácia do universal.

    É difícil hoje se esperar pelo líder, pela direção e condução de seus atos por meio da “organização” ciente de um “papel histórico”. Não se trata de desprezar os líderes, de desconsiderar a memória das lutas populares, as formas tradicionais dos movimentos e partidos. Trata-se de somar a tudo isto – que, de certa maneira, já operamos há algum tempo – toda e qualquer criação de intervenções e afetos associados às questões dos negros, das mulheres, das pessoas LGBTs, dos que não possuem, das minorias. Em certos casos, trata-se mesmo de substituir o tradicional pelo novo e inesperado. A “cerimônia do adeus” ao que nos pertencia pode ser uma liberdade para a criação do novo. E se finito, inesperado, fora do controle, mais de resistência se pode apreender com o acontecimento.

    A ação política não estaria nos modelos, tradicionais ou não, mas no cruzamento e na correlação dos componentes heterogêneos, dos processos finitos e radicais. E, por natureza semelhante, esta seria mais a política das sensibilidades afins às mudanças e à percepção do novo.