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  • Lavits_Covid19_#4: uma intrusão viral convoca novos saberes e novos modos de saber

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    Entrevista sobre o Laboratório Zona de Contágio para a LAVITS, publicada em: http://lavits.org/lavits_covid19_4-uma-intrusao-viral-convoca-novos-saberes-e-novos-modos-de-saber/?lang=pt

    Nos primeiros meses de 2020, o Brasil e o mundo foram acometidos pela pandemia do novo coronavírus. A intrusão viral fez surgir impulsos múltiplos: negação da ciência, criação de falsos dualismos entre manutenção da vida e economia, vigilância corporativa e entre pares, cuidado coletivo, discussão sobre papel do estado, solidariedade, desejos de explicação e temor foram apenas alguns dos sentimentos, discursos e práticas que emergiram, e seguem vivos, nesse período.

    Habitar o acontecimento covid-19 foi a vontade que motivou a convocação da Zona do Contágio, um laboratório situado, de prática coletiva de uma ciência do risco, espaço de convergência de saberes e atores sociais diversos, que deseja mobilizar uma inteligência coletiva alternativa à vigilância e ao controle.

    “Com o acontecimento COVID-19, o Laboratório Zona de Contágio instaura-se como um dispositivo de pesquisa e intervenção na medida em que a produção coletiva de conhecimento sobre as atuais possibilidades de fabricação de uma vida não-fascista torna-se urgente. Se o fortalecimento de governos autoritários já era uma ameaça à vida comum, a intrusão viral potencializa a disseminação de uma cultura imunitária e securitária de contornos fascistas no tecido da própria vida social”, descreve a convocatória.

    Coordenado por Henrique Parra (Unifesp) e Alana Moraes (doutoranda no Museu Nacional – UFRJ), pesquisadores do Pimentalab – Laboratório de Tecnologia, Política e Conhecimento – da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membros da Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits), o Laboratório Zona de Contágio é uma iniciativa de confluências, um híbrido do coletivo Tramadora, Projeto Laboratório do Comum do Pimentalab/Unifesp e Lavits. O Laboratório recebe o apoio da Lavits/Fundação Ford. A equipe da Zona de Contágio conta com a colaboração da antropóloga Bru Pereira e da cientista social Jéssica Paifer.

    Através da internet, os pesquisadores convidaram a todos que se sentissem interpelados pelas questões apresentadas a participar de um percurso coletivo de investigação e de criação, formas de expressão sobre o experienciado, fragmentos coletados do mundo, situações vividas, sentidas, relatos, hesitações que ajudassem a estabelecer conversações sobre a pandemia. Além disso, o laboratório promove um ciclo de leituras e “Conversações Febris” online. O primeiro encontro, realizado no dia 23 de abril de 2020, discutiu o livro No tempo das catástrofes, da filósofa da ciência Isabelle Stengers.

    É possível participar da iniciativa e/ou acessar informações por meio do twitter, instagram, facebook, telegram, e-mail e site.

    Fernanda Bruno, pesquisadora do MediaLab.UFRJ e membra da Lavits, entrevistou Henrique Parra e Alana Moraes sobre a iniciativa. O diálogo está transcrito a seguir e integra o quarto episódio da série Lavits_covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância.

    Diálogos com Alana Moraes, Henrique Parra e Fernanda Bruno

    Fernanda Bruno: meu primeiro convite é que vocês apresentem brevemente a trajetória do Laboratório do Comum ao Zona do Contágio, e a partir daí começamos a conversa.

    Henrique Parra: ano passado estávamos desenvolvendo o projeto Laboratório do Comum: tecnopolíticas, corpos e territórios, focado em um conjunto de questões relacionadas às disputas no território do Campos Elíseos, região central na cidade de São Paulo. Estávamos observando um conjunto de reconfigurações nas formas de exercício do poder – seja através das tecnologias digitais, mas também em processos relacionados à gentrificação, à militarização, à securitização da vida, atravessadas pelas formas de vida neoliberais – e como isso está em tensão com as dinâmicas de vida existentes no território.

    A investigação também se debruça sobre o próprio desenho do Laboratório. Como fazer uma pesquisa situada, coletiva e aberta, a partir de um convite, uma convocatória aberta para pessoas interpeladas por problemas comuns?

    Desenvolvemos esse projeto ao longo de seis meses e, no início de 2020, ele teria uma nova fase, quando fomos atravessados pelo covid-19, o que nos obrigou a repensar o cronograma de ações, mas ao mesmo tempo a observar as questões que já se manifestavam no percurso anterior do trabalho e que, em razão do coronavírus, ganham contornos mais intensos. Como fazer pesquisa em tempos de pandemia?

    Alana Moraes: o Laboratório do Comum e agora a Zona de Contágio confluem nessa aposta epistêmica de convocar e insistir em uma certa inteligência coletiva. É sempre um experimento de uma prática científica que se pretende ao mesmo tempo aberta e coletiva. Então ela é sempre precária por um lado, porque do ponto de vista institucional, de algumas exigências acadêmicas, nós nos colocamos de uma maneira um pouco mais livre. Ao mesmo tempo, essa instabilidade precisa ser o tempo todo repensada, cuidada, sustentada de algum modo, ela só funciona a partir de um engajamento entre todos.

    Uma outra convergência importante e que a gente quer seguir experimentando é essa ideia de uma transdisciplinaridade. Nossas práticas acadêmicas foram se conformando em lugares muito especializados e muito disciplinarizados. Então, a partir de uma chamada aberta, que tem a ver com o território, com a vida no território, havia essa ideia de que nós pudéssemos experimentar uma ciência que fosse mesmo contradisciplinar, no sentido de que as questões que ela enuncia não são propriamente da sociologia, ou da antropologia, ou da arquitetura e do urbanismo, mas que seja uma esquina contradisciplinar.

    Fernanda Bruno: a minha primeira questão tem a ver com essa condição, com esse convite que vocês fazem, que é o de habitar o limite, habitar uma certa zona de incerteza. Eu acho que no Lab do Comum já tinha esse movimento, que se fazia, como destacou a Alana, a partir de uma contradisciplinaridade, mas que também implicava um deslocamento territorial, com a ocupação de espaços da cidade em que tradicionalmente a universidade não estaria presente, ou não estaria presente de um certo modo, que é o modo com que vocês seguem desejando habitar.

    Então, me parece que já havia o desejo de habitar essa fronteira entre a universidade, a rua, a cidade e o mundo, e agora essa fronteira se desloca, se encerra um pouco nesse ambiente da casa, que é essa célula individual, familiar e burguesa, onde a maioria dos  pesquisadores que estão na universidade agora habita quase que integralmente. Vocês reinventam um movimento para retomar a própria vida acadêmica, em um certo sentido, e também, de novo, a rua, a cidade, o mundo. A contradisciplinaridade envolve também uma explosão de fronteiras, que já estava presente no Lab do Comum, entre o próprio saber acadêmico e os saberes que estão sendo produzidos pelas diversas formas de habitar e viver a cidade.

    A pergunta, enfim, é se vocês já têm algum germe de entendimento – não de respostas, de explicações – do que é esse novo desenho do laboratório que habita o limite de um outro modo. Uma coisa que acho interessante é essa ideia de um laboratório que vai se fazendo, que é ao mesmo tempo o ambiente onde se faz a pesquisa, se produz o pensamento, mas ele também é objeto, no sentido de que vocês também estão tentando entender ou desenhar o laboratório no próprio movimento de fazer a pesquisa. Acho que isso mais do que nunca está presente.

    Alana Moraes: eu queria voltar para uma questão que você colocou no começo, Fernanda, que eu acho que também serve muito para a gente pensar esse lugar de implosão das fronteiras, ou pelo menos para gente experimentar um pouco mais essa suspensão das fronteiras disciplinares, ainda que seja uma prática de pesquisa super difícil, que nos exija o tempo todo um certo sentido de risco, de assumir esse risco da suspensão de algumas bordas.

    Mas esse risco do instável e do precário vem nos empurrando, desde o Laboratório do Comum, a encontrar questões muito simples. As questões com as quais a gente se depara, a partir desse encontro entre múltiplos e heterogêneos saberes e corpos, são simples no sentido de que conseguem enunciar problemas muito complexos, mas de um lugar reconhecível por qual todos nós passamos.

    Por exemplo, no Laboratório do Comum, a gente estava muito interessado, inicialmente, em pesquisar esse tema das novas tecnologias de vigilância, que hoje são muito presentes no território. Mas a gente acabou se dando conta de que existia uma camada para além de todo o arranjo técnico dos poderes que era o fato de as pessoas, nossos vizinhos, desejarem ter uma câmera de vigilância nas suas casas. O fato é que existe um certo desejo compartilhado de segurança, que é muito simples, que é muito reconhecível para além de todo novo ordenamento sociotécnico, pode ser constatado por qualquer um e no entanto ele nos exige um esforço brutal de pesquisa e reflexão.

    Ele faz a gente se perguntar o que significa vizinhança, o que significa fazer um bairro, a partir de outros sentidos de pertencimento que não seja esse da segurança. Esse problema, no fundo, a gente demorou muito tempo pra chegar nele, mas ele é muito simples, né? Ele pode ser compartilhado por qualquer pessoa que a gente encontrava em uma praça quando estávamos fazendo um almoço aberto e coletivo. Encontrar essas questões, que no fundo são questões simples, nos dizem sobre esse encadeamento que está entre a casa, a rua, as relações de confiança, as novas tecnologias e as novas mediações sociotécnicas.

    Um desafio para a Zona de Contágio tem a ver com essa investigação sobre como criar um desenho de uma pesquisa contradisciplinar; um desenho que permita com que diversos saberes, experiências se contaminem no processo de pesquisa coletiva, mas também tem muito a ver com essa ideia persistente de encontrar esses lugares que são muito simples, mas que também são os lugares em que se cruzam a casa, como uma tecnologia da domesticidade, e essas novas mediações tecnológicas, o corpo, o que entendemos como saúde coletiva. Esse lugar do cruzamento, da encruzilhada, é um lugar importante nesse desenho agora do Laboratório Zona de Contágio.

    Henrique Parra: a situação que estamos vivendo evidencia um conjunto de elementos relacionados ao funcionamento das infraestruturas da vida ordinária, da vida cotidiana, que estão absolutamente invisibilizadas, naturalizadas na paisagem.

    Um elemento importante no desenho do laboratório é como criamos estratégias de visibilização das infraestruturas da vida comum e que, por diversas razões, tornam-se invisíveis à nossa percepção. Quando experienciamos o acontecimento covid-19, surge de forma mais aguda uma percepção sobre diversos mecanismos que participam da produção de diversas assimetrias sobre, por exemplo, os nossos deslocamentos, as infraestruturas de comunicação (qual a qualidade do meu acesso à internet), como ficam as relações dentro da sua casa, a divisão do trabalho, como a gente se alimenta, como trabalhamos, como cuidamos das crianças, e tudo muito mediado pelas tecnologias digitais.

    Se por um lado o acontecimento covid-19 permite uma intensificação, um avanço dos mecanismos de produção de várias assimetrias de classe, gênero, raça e de novas formas de controle, ao mesmo tempo a gente consegue perceber esses elementos que estão inscritos na paisagem.

    Outra dimensão importante do desenho do laboratório é tomar o ser humano como sensor, um sensor de percepção que é sempre singular diante do está sendo vivido. Partimos da ideia de um corpo-sensor. O corpo que percebe, que sente e que produz a possibilidade de uma nova evidência, um novo elemento que pode abrir ou instalar uma controvérsia sobre a realidade.

    Algo que nos atravessa a todos é a nova sensação e percepção de risco e  vulnerabilidade. A vulnerabilidade não como elemento negativo, da falta ou da exclusão, mas como esse elemento que produz nossa interdependência, e ao mesmo tempo que instala a possibilidade de ação política a partir dessa vulnerabilidade, porque ela é reveladora da nossa condição de interdependência na produção do comum.

    Uma contraste teórico/político importante no desenho desse laboratório é investigar como o acontecimento covid-19 instala uma disputa em torno dos sentidos dessa experiência: por um lado temos as enunciações, práticas e tecnologias que produzem um tipo de sujeito que se imagina autônomo, autossuficiente, eficiente no trabalho, que só tem uma “gripezinha”, versus outras possibilidades que sustentam uma política do Comum, nossa condição de seres interdependentes (inclusive com entes não-humanos) e de um risco comum.

    Claro que as situações de risco são diferentes para cada um (sobretudo numa sociedade altamente desigual em termos raciais, de classe e gênero), mas a possibilidade de experienciar essa vulnerabilidade como uma condição política permite interrogar a ideia do indivíduo soberano, de cidadão que estão imunizado das relações com seu entorno, em que o outro é visto como uma ameaça.

    Fernanda Bruno: me parece que esse corpo-sensor passa a ser um indicador ainda mais essencial. A conexão entre as formas de vida e as possibilidades de pensar ganha uma nova urgência. Me parece que há também uma outra vulnerabilidade: a pandemia muito rapidamente disparou uma eloquência explicativa que, de alguma maneira, silenciava ou resolvia muito rápido essa experiência de poder habitar essa zona de incerteza por um tempo mais alargado, de uma forma um pouco distinta, que vocês chamaram na convocatória de dimensão experiencial, que me parece estar super conectada com esse corpo-sensor.

    Agora eu gostaria de fazer uma outra associação, ainda sobre a questão do risco e a dimensão da vulnerabilidade. Eu super me afino com a ideia de pensar o risco não na chave ou contorno da atitude individual, de uma prudência individual, tampouco de uma lógica securitária mais ampla e coletiva, que pensa na segurança no sentido de uma eliminação do risco e do perigo. Vocês estão trabalhando com a ideia da vulnerabilidade como interdependência que supõe, também, suportar uma certa margem de perigo, uma certa margem de risco.

    Em vários momentos vocês falam em uma ciência do risco. Eu vou ler um trechinho aqui sobre o qual me paira uma certa dúvida. Vocês dizem: “uma ciência de risco é sempre uma ciência que hesita, uma ciência de retomada de uma inteligência coletiva, que funciona apesar e contra os chamamentos da pátria ou da grande ciência e seus regimes de autoridade e de verdade”.

    A provocação que eu queria fazer tem a ver com a “grande ciência” e com esse momento singular que estamos vivendo. Se por um lado há essa proposta de uma ciência do risco, nós (professores universitários) estamos fazendo isso desde as nossas casas. Não estou sugerindo que não deveríamos estar em casa, mas há um risco bem concreto que está sendo vivido por muitas pessoas e também por parte da “grande ciência”, por profissionais de saúde e pesquisadores que estão na linha de frente. Eu fico me perguntando se essa oposição, nesse momento, não rateia um pouco ou se ela não merece ser pensada com um pouco mais de cuidado.

    Henrique Parra: você tem razão, não só com relação à “grande ciência”, mas também com relação ao Estado. A provocação que a gente faz não é contra a ciência. Não há “a grande ciência”, mas disputas em torno dos modos de produção de verdades, em que, aparentemente, o que está em jogo seria qual a evidência ou o dado “mais verdadeiro”. É um debate que também se relaciona às discussões sobre fake news e pós-verdade.

    A situação é que, diante de um mundo que parece desmoronar, onde as versões não podem mais ser verificadas, há um movimento de tentar restabelecer uma forma de produção de evidências, inclusive com a volta de um argumento digamos, científico, como se as coisas passassem apenas por uma questão de produção de informações ou evidências de melhor qualidade, quando o que está em jogo, parece-nos, é uma guerra de mundos.

    Não é suficiente a gente falar em termos de dados e evidências. É claro que elas são fundamentais para as tomadas de decisão, para organizar a nossa ação no mundo, mas há uma preocupação em deslocar o debate para além do falso e do verdadeiro, sair dessa dicotomia, e dizer “olha, o que seriam as formas de produção de cuidado para a manutenção da vida, para além do que está disponível como forma-Estado? (no sentido de uma biopolítica maior)”.

    Nós estamos em uma situação de absoluta urgência, de perceber o que temos disponível como formas de resposta a um problema de saúde coletiva. Precisamos muito de toda a estrutura e de políticas fortalecimento da saúde pública. Não é suficiente entrar em uma investigação que está simplesmente preocupada em produzir mais evidência da mesma forma, mas pensar também que a forma de produção dessa informação está, de alguma maneira, situada e implicada na produção de mundos, de formas de vida. Do contrário, não somos capazes de comunicar outra experiência de vida, de dizer ao outro como ele participa da produção da saúde coletiva.

    Quando pensamos no debate sobre a produção de conhecimento científico, quais são as formas de produção de conhecimento científico, diante dessa situação, que interrogam as formas hegemônicas de conhecimento tecnocientífico orientados por normatividades econômicas e políticas de caráter privatista, corporativo e mercadológico?

    Observamos, nesse momento, o fortalecimento de formas de produção colaborativa/aberta que confrontam inúmeras limitações relacionadas ao regime proprietário-autoral, organizado em torno de uma concepção do conhecimento como propriedade intelectual e mercadoria.

    Alana Moraes: essa convocatória parte, de fato, de um lugar bem irrigado de controvérsia. Por mais ataque e ameaças que a prática científica esteja recebendo agora, e por mais que tenhamos que defender essas práticas, não queremos abrir mão de olhar criticamente para alguns enunciados de uma ciência que sempre se sustentou a partir de um privilégio epistemológico, a partir dessa ideia de que o enunciado de autoridade do fazer científico bastava para que os fatos científicos se convertessem em verdade.

    A gente está colocando um pouco em suspensão esse pressuposto para tentar experimentar uma ideia aberta e engajada de fazer ciência. Então não queremos abrir mão de fazer ciência, de pensar junto, de pensar uma prática investigativa que produza conhecimento objetivo sobre a realidade. Não tem a ver com uma luta da experiência contra a teoria. Muito pelo contrário, a gente acha que esses dois lugares não são opostos e não devem ser opostos. Queremos experimentar o que seria essa prática científica que se sustente a partir das relações de implicação que ela tem com o mundo, uma ciência que está no mundo.

    Eu tenho dado um exemplo que tem a ver com o embate sobre isolamento horizontal ou vertical. Muito do pensamento progressista tem respondido a esse embate afirmando que o isolamento horizontal deve ser feito porque ele é um fato científico e o isolamento vertical não é um fato científico. No entanto, quando a gente defende o isolamento horizontal, nós estamos defendendo porque ele pressupõe uma certa concepção de vida a ser defendida, porque nos importa viver em companhia no mundo em que a gente habita, porque ele contém uma ideia sobre o que é saúde coletiva. Obviamente que ele é um fato científico, mas ele é um fato científico que mais pode ter efetividade a partir do momento em que ele se mostra em sua construção ética, a partir dos seus lugares de implicação.

    Fernanda Bruno: quando vocês estavam falando, eu lembrei daquele texto da Donna Haraway, que é uma inspiração para todos nós, dos saberes localizados. Agora está muito ativa essa ideia de um saber que pode responder pelo mundo que cria. É um pouco nesse sentido, me parece, que você está falando, Alana. Para além da verdade científica, que mundo a gente cria quando a gente propõe um determinado modelo de controle epidemiológico?

    Eu queria voltar um pouco no tema da vigilância e do controle, que também aparece na chamada de vocês e está presente desde o Laboratório do Comum. Estamos vendo como uma série de tecnologias de biovigilância começam a entrar em obra. A minha pergunta é menos sobre elas e mais sobre ao que você estão atentos nesse campo. Quais são as perguntas que estão se fazendo? No que vocês estão prestando atenção nesse espectro das tecnologias de vigilância, dentro do acontecimento covid-19?.

    Henrique Parra: há alguns temas em que estou mais envolvido. Um deles é sobre as práticas de educação tecnicamente mediada. Há uma aceleração na adoção, por parte de secretarias estaduais da educação e universidades (públicas e privadas), e na incorporação de tecnologias digitais para a educação à distância. Elas são permeadas por inúmeros problemas que estão relacionados à vigilância, à economia informacional, a precarização do trabalho docente, etc. Como essas questões estão presentes na Zona de Contágio, a partir da experiência de cada pessoa com o conhecimento, a informação e a educação nessa situação de isolamento?

    Outro tema é sobre a relação das tecnologias de comunicação digital com as formas de rastreabilidade, monitoramento, quantificação e o que emerge como possibilidade de Big Data e governamentalidade algorítmica. Há um enorme campo de perguntas que ganham novos contornos porque, de certa medida, há um desejo, amparado na urgência sanitária, de fazer uso de tudo que estiver disponível. Outra entrada é no universo do trabalho: como as tecnologias do trabalho remoto introduzem novas possibilidades de vigilância e controle sobre as atividades do trabalhador?

    Alana Moraes: retornando aos problemas das plataformas e das mediações tecnológicas no que tem se chamado de “educação à distância”, o que elas inserem de mais importante são novos sistemas de metrificação e controle. Agora, para dar aula, você liga um cronômetro, muitas vezes você grava a sua aula para deixar para os alunos que não puderem entrar online no momento em que você está dando a aula. Você perde uma relação muito importante no que diz respeito ao ensino e aprendizagem, que é relação de confiança entre professor e aluno dentro daquele espaço da sala de aula. As plataformas de EaD estão sendo inseridas como se não houvesse outras formas possíveis, “temos que nos acostumar, daqui pra frente vai ser assim”. A partir do momento em que você grava sua aula e ela circula por lugares que você não sabe muito bem, esse pacto, essa confiança, que tem a ver com essa experiência da sala de aula, ela se perde também.

    Vemos ainda como o capitalismo da biovigilância é também o do biodesempenho e como ele atua produzindo uma certa culpa pelo tempo fora do trabalho. A gente está em casa, mas ao mesmo tempo em que está culpado por não estar trabalhando do jeito que a gente deveria trabalhar. Precisamos dar provas cotidianas de que não estamos “aproveitando” o tempo livre.

    Eu acho que tem um último aspecto que merece uma reflexão nossa, que é pensar como habitar em companhia esse problema, que também é o outro lado da moeda.  Existe uma recusa por parte das pessoas que estão nesse campo progressista, de modo geral, em debater o problema da tecnologia e os seus usos. Uma recusa da esquerda de entrar nesse debate, como se toda tecnologia fosse uma tecnologia predadora, que fosse sempre piorar as experiências de aprendizagem ou intensificar a subjetivação neoliberal. Outras vezes a esquerda se interessa por esse debate mas sempre na chave da “resistência” e contenção, o que é importante, mas nos deixa sempre muitas casas atrás.

    Na verdade, acho que há toda uma questão que é como a gente pensa, primeiro, as tecnologias para além das tecnologias digitais, como é que a gente recupera as tecnologias menores (ou tecnologias de desaceleração, tecnologias de encontro, tecnologias de pertença), pensar como a gente pode produzir outros tipos de associação mais potentes das nossas relações, das nossas experiências de aprendizagem e pesquisa, dos nossos desejos de revolta se associando também às formas tecnológicas. Superar essa recusa também vai ser importante para a gente construir caminhos mais interessantes, disputar os rumos, fazer funcionar nossa inteligência coletiva.

    Henrique Parra: para complementar, um outro ponto que talvez seja mais transversal nas discussões sobre vigilância e que ganha relevo na experiência da Zona de Contágio, é poder pensar e investigar de que maneira essa situação propicia um tipo de experiência tecnomediada em que ocorre a produção de um modo de subjetivação, onde uma certa experiência cultural de vigilância passa a participar de diferentes instâncias da nossa vida.

    Basta pensarmos no modo, por exemplo, com que passamos a olhar para o outro como uma possível ameaça de contágio. Quais são os mecanismos que passo a adotar para me proteger de um possível risco de contágio? Como dentro da casa, na família, passamos a adotar procedimentos e protocolos que podem gerar mais segurança?

    Há uma certa ideia de segurança, de reações imunitárias que colocam em movimento uma cultura de vigilância, que pode ser economicamente vantajosa e politicamente eficiente para uma certa produção de mundo (neoliberal, racista, machista, antropocêntrico, etc). Quando essas duas dimensões se entrelaçam através de uma mediação tecnológica que se apresenta como a solução neutra, mais “eficiente” e mais desejada, esse dispositivo ganha muita força.

    Preocupa a todos nós a maneira como a experiência de autoconfinamento e do isolamento social nos prepara e educa para uma vida sob estado de sítio. Acho que essa é uma condição muito transversal. Como, diante disso, estamos a criar e experimentar outras formas de vida que, orientadas por princípios de solidariedade e emancipação, criem linhas de fuga da alimentação deste regime da dominação?

    É muito interessante ver nas redes de consumo de alimentos, por exemplo, como vão aparecendo outras iniciativas que criam novas cadeias de distribuição para a produção da agricultura familiar, da produção do MST. Como é possível fazer isso em outras áreas de nossas vidas, utilizando tecnologias que não potencializam as formas de controle sobre os usuários?

    Fernanda Bruno: vou passar para a última questão, que tem a ver com o coletivo, com o “nós”, o habitar junto esse acontecimento, essa situação limite, e que é, de novo, um tema recorrente no trabalho de vocês dois, e se torna absolutamente urgente em uma situação de isolamento, ao mesmo tempo em que há grupos que estão extremamente vulneráveis e onde as possibilidades de ação comum estão bastante ameaçadas pelo fantasma do contágio e pelas medidas efetivas da contenção da pandemia.

    Hoje fiz uma contribuição no site da Zona de Contágio e vi que já há um material bastante rico. Tem música, poesia, relato, fotografias, e uma série de expressões da experiência desse tempo. E a conversa sobre o livro da Isabelle Stengers, que rolou na semana passada, sobre o livro No Tempo das Catástrofes, foi extremamente diversa. O fluxo da conversação febril tocou em muitos temas: educação, China, autonomia, sabão de coco, moradia de albergues, coletivos artísticos na Bolívia, receitas, acupuntura, tecnologias sociais, poesia, etc.

    Que primeira impressão vocês têm desses dois movimentos: a chamada de envio de materiais em torno de experiência da pandemia e o grupo de estudos? Gostaria de ouvir vocês sobre o primeiro contorno que  esse “nós” ou esse coletivo ganhou.

    Alana Moraes: a nossa pergunta inicial, que tem sido uma pergunta que acompanha todo o processo da investigação no Laboratório do Comum e também agora na Zona de Contágio, é como constituir um grupo de pesquisa. Como é que a gente faz esse “nós” que está pensando junto e que está pesquisando junto. Esse é um tema que segue com a gente durante todo o percurso. Obviamente que ele tem um risco, que pode ser a própria dissolução do grupo. O risco justamente é esse, de ser tão heterogêneo, tão particular e tão singular, que se torna incapaz de construir um lugar mais estabilizado.

    Pensando um pouco a partir desse desafio sobre que tipo de desenho de pesquisa seria possível, a gente propôs um primeiro movimento, que talvez seja um movimento de abertura total que começa assumindo o fato de que toda produção de pensamento é também uma produção de experiência a partir de corpos sensores. Queremos saber de que forma as pessoas estão sendo afetadas por esse acontecimento e como elas elaboraram formas de narrar esse acontecimento, seja em um forma mais poética, uma imagem, um texto, um áudio…a gente está experimentando essa abertura completa.

    A gente queria entender de onde as pessoas estavam falando e como elas queriam falar, ou seja, talvez tentar experimentar esse parlamento de corpos-sensores, que também é uma abertura radical. A partir de agora, nos próximos movimentos do laboratório, o que a gente vai tentar é justamente produzir certos contornos, algumas bordas, vamos dizer assim, que são zonas de confluência.

    Essas zonas de confluência vão tentar desenvolver temas que estão dentro dessa pesquisa e que tem a ver com a biovigilância, com a ideia do desempenho, com esse cruzamento entre tecnologias da domesticidade e as tecnologias digitais em suas inúmeras formas de mediação, e tem a ver com esse pano de fundo maior que é pensar o que significa isso de biopolítica e de biopoder na situação como essa que a gente está atravessando agora.

    Henrique Parra: acho há um diálogo entre a experiência do site, esse grupo de estudos e algumas iniciativas que foram lançadas de maneira relativamente independente. É legal ver como a Zona de Contágio vai acontecendo. Acho que a gente tinha algumas ações organizadas, colocamos elas “na rua”, começamos a praticá-las e começamos a visualizar como elas estão acontecendo e como elas podem criar linhas e tramas entre elas.

    No próprio site Zona de Contágio, o primeiro movimento que a gente fez foi passar a publicar coisas que nos interessavam, ler e compartilhar com outras pessoas, textos que já estavam em circulação, textos que servem de inspiração e que, de alguma maneira, ajudam a nortear um pouco a forma como a gente está querendo habitar esse problema.

    A gente tinha também uma vontade, que estava organizada para esse semestre, que era fazer um ciclo de estudos, que estávamos chamando de ciclo de estudos insurgentes. Com a Zona de Contágio virou um ciclo de conversações febris, que a princípio poderia correr paralelo ao processo de investigação, mas a medida que as coisas acontecem, nós repensamos. A gente lança um texto para conversar, mas a coisa que acontece a partir desse texto traz uma outra diversidade de debates, o que faz com que a gente tenha um inflexão para ver como vai alinhando e tramando essas coisas. É muito a partir do retorno que a gente recebe, que nós compreendemos melhor a maneira como a gente está elaborando e e comunicando um problema de pesquisa.  O fato de que a gente tenha recebido muitas respostas de pessoas que fizeram uma produção poética é um dado importante.

    A proposta de que um Laboratório do Comum deve ser permeada por um conjunto heterogêneo de perspectivas é outro elemento importante. Claro que quando a gente divulga algo pela internet, isso já exclui um monte de gente. Claro que a maneira como escrevemos um texto faz com que algumas pessoas se sintam mais interpeladas que outras. Ainda assim, parece importante produzir um problema que possa ser transversal e experimentar criar um espaço em que pessoas de diferentes perspectivas possam estar juntas.

    A partir daí surge um outro problema que é como a gente constitui um coletivo de investigação e como que a gente vai criando protocolos, infraestruturas, acordos, perguntas, que podem dar sustentação a uma prática coletiva. Há uma preocupação na criação de um laboratório do Comum, que é como que a gente desenvolve essas tecnologias de pertencimento em torno de uma mesma prática, uma saber-fazer habitar.

    Saber qual é o conjunto de perguntas e implicações que atravessam essas diferentes histórias e interesses dessas pessoas, mas que podem, gradualmente, ir ganhando um contorno que também nos interessa (“interesse” como aquilo que diz respeito a “estar entre”. Então não é que a gente não tenha perguntas que organizam isso. Temos e, de alguma forma, elas participam da criação dessa borda.

    Uma preocupação nossa, desde o início, em fazer uma chamada de pesquisa que está acontecendo nessasituação de pandemia, em que as pessoas estão em isolamento e parte dessa interação vai acontecer a partir de uma mediação tecnológica, é como a gente evita uma certa prática de pesquisa tecnicamente mediada, que é de ordem extrativista, em que a gente elabora a pergunta, define os problemas e quer saber como as pessoas estão dialogando com essa pergunta que a gente tem.

    No fundo, a gente também está atrás da criação de outras perguntas, outros problemas para olhar para essa situação. Evitar também uma prática de uma pesquisa que desconhece ou não se relaciona com o contexto dessa pessoa que está respondendo também nos parece importante. Por isso que um ponto de partida na arquitetura do laboratório e na ideia do corpo-sensor, é como criar uma infraestrutura de pertencimento. Isso se tornar uma parte do problema da pesquisa, pensar como a gente vai dando sustentação coletiva a uma prática de investigação. A ideia de um Laboratório do Comum funda uma certa comunidade, não no sentido do unitário e homogêneo mas no sentido de um coletivo de afetados por aquelas mesmas questões.

    Fernanda Bruno: essa questão do pertencimento me parece essencial. Hoje, dando uma olhada nas contribuições enviadas ao site, vi algo comum: me pareceu que quase todo mundo desejou expressar algo que era da ordem de uma interrupção, um intervalo, uma brecha, algo que estava fora das respostas imediatas que esse momento nos exige, seja de trabalho, seja de pensamento articulado ou de segurança.

    Me pareceu que estavam todos tentando expressar momentos de respiro, de interrupção de um certo automatismo cotidiano ou de fuga dessa culpa de não estar trabalhando, não estar produzindo. Capacidade de criação mesmo. Tudo que apareceu ali, apareceu um pouco como brecha, respiros, invenções dentro desse contexto que é muito asfixiante. Essa foi a minha sensação e também o meu desejo. Não quis enviar nada que fosse, por exemplo, uma reflexão intelectual que pudesse ser confundida com trabalho, no sentido mais convencional, mas  sim algo que escapasse das demandas que estão colocadas, as demandas dos nossos aparatos de trabalho, de saúde, de poder, de vigilância. Enfim, a impressão foi de um tom recorrente, apesar da heterogeneidade dos materiais.

    Henrique Parra: voltando um pouco nesse comentário que você fez, acho que esse é um desafio dessa proposta de laboratório: como a gente vai modulando e incorporando novos elementos. Uma coisa que chamou atenção no perfil das pessoas que entraram em contato conosco é que quase todas estão desenvolvendo, de alguma forma, ações de pesquisa, seja de maneira informal ou não, mas elas estão interessadas, estão praticando uma forma de reflexão sobre o que está sendo vivido.

    Também surge para nós a pergunta sobre de que maneira a Zona de Contágio pode ser tanto uma investigação coletiva, a partir de um conjunto de questões que a gente constitui como borda desse percurso mais coletivo de investigação, mas também uma zona de confluência entre essas diferentes iniciativas de pesquisa (informal ou formal) que as pessoas estão fazendo.

    Estou imaginando como é que a Zona de Contágio pode ser as duas coisas: ela cria a possibilidade de realizarmos o percurso coletivo de investigação, a partir de perguntas que estão balizando e da “arquitetura” da forma laboratório, mas ao mesmo tempo ela pode ser atravessada pelas novas perguntas e investigações que as pessoas estão criando e que podem compartilhar, fazendo da Zona de Contágio uma caixa de reverberação.

    Fernanda Bruno: esse atravessamento me pareceu acontecer mais vigorosamente na conversa em torno do texto da Isabelle Stengers do que na chamada. Na chamada, talvez tenha que haver uma segunda onda, novos movimentos para que essa dimensão da pesquisa apareça mais. O que senti, muito de fora, foi um desejo de fuga de um certo lugar da pesquisa. Não da pesquisa em si, mas de um certo lugar de pesquisa.

    As pessoas estão querendo habitar um outro lugar nesse momento e alimentar outros fluxos de pensamento, de expressão, de narrativa etc. É fundamental que esse cruzamento com a pesquisa, para usar a imagem da encruzilhada que vocês utilizam também, seja feito. Vai ser muito rico quando isso acontecer e vai acontecer, com certeza.

    Alana Moraes: eu queria agradecer pela conversa. Achei muito importante sua observação final desse primeiro material que a gente recebeu na Zona de Contágio. Ela conflui muito para uma coisa que nós estamos pensando juntos, que talvez seja justamente sobe pensar essas tecnologias de frenagem ou como a gente produz infraestruturas que possam sustentar coletivamente esses momentos de frenagem, esses momentos de respiro.

    Nos últimos anos eu tenho estudado com os sem-teto as ocupações de terreno também como tecnopolíticas de habitar a exceção. Uma coisa que aparece muito, nessa experiência, é como as pessoas chegam nos acampamentos, nas periferias aqui de São Paulo, a partir desse relato de cansaço e de esgotamento. As pessoas falam muito que a ocupação é um lugar de descanso, um descanso da casa, da domesticidade, mas um lugar de descanso em relação ao trabalho, às virações, à essa ideia de que você tem que estar sempre trabalhando ou procurando um trabalho. Ela se torna potente justamente porque ela se constitui como uma tecnologia de frenagem, de respirar junto e de pensar em companhia.

    Série Lavits_Covid19

    A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.

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  • Entrevista do Observatório de Análise Política em Saúde com Ricardo Teixeira

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    Foto: Guilherme Perez

    Publicada pelo Observatório e disponível em PDF.

    1 – Um artigo publicado na Folha de S. Paulo (https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/incentivar-o-isolamento-social-significa-valorizar-a-vida-a-saude-e-o-respeito.shtml),escrito por você e pelo também docente da USP, Ivan França Júnior,destaca duas abordagens de enfrentamento da pandemia de Covid-19 que têm obtido resultados positivos, além de afirmar que o Brasil a presenta uma combinação dos dois modelos. Como você avalia as medidas adotadas pelo país até então?

    Identificamos basicamente dois tipos de estratégias preventivas no enfrentamento dessa epidemia: a que chamamos de “testagem agressiva e sustentada” e aquela baseada na adoção de diferentes graus de “distanciamento social”. A primeira, uma estratégia focada nos indivíduos de “alto risco” – aqui entendido como “alto risco de transmissão”, já que o que está em foco é a prevenção da propagação epidêmica. Nessa estratégia, são esses indivíduos que precisam ser detectados, isolados, monitorados, sendo uma estratégia de menor impacto na mobilidade geral da população. A segunda é uma estratégia propriamente populacional, que busca reduzir a mobilidade geral da população, podendo ser aplicada em diferentes intensidades.

    A primeira foi implementada em sua versão mais plena na Coréia do Sul, com os resultados que conhecemos. Lembrando que o resultado centralmente esperado dessas estratégias preventivas é o chamado “achatamento da curva de contágio”, a desaceleração da propagação epidêmica, com o intuito de preservar a capacidade de resposta dos sistemas de cuidado, reduzindo a letalidade do agravo e ganhando tempo para o desenvolvimento de vacina ou terapia. A Coréia do Sul é o país mais bem sucedido no uso dessa estratégia até aqui e, talvez, não seja superado. Além de possuir um sistema de saúde público e gratuito, o mais bem avaliado entre os países membros da OCDE, já dispunha de toda a infraestrutura logística necessária para a implementação dessa estratégia quando a epidemia eclodiu. Uma infraestrutura que integra os dispositivos tradicionais da vigilância epidemiológica a dispositivos de vigilância digital capazes de monitorar os movimentos e comportamentos individuais de cada cidadão. Essa infraestrutura representa uma articulação sem precedentes entre biotecnologias (como RT-PCR, sensores de temperatura corporal em pontos de fluxo etc.) e ferramentas de vigilância algorítmica. Possivelmente, a mais acabada infraestrutura de um biopoder jamais construída.

    A segunda estratégia (distanciamento social) foi fortemente adotada pela China. Importante destacar que, segundo o relatório conjunto OMS-China (https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/who-china-joint-mission-on-covid-19-final-report.pdf), a resposta chinesa se deu em 3 etapas: inicialmente, isolando a província de Hubei (onde se encontra Wuhan) para impedir a exportação de casos; numa segunda etapa, promovendo o distanciamento social intensivo para desacelerar a propagação epidêmica; e, por fim, com uma estratégia para reduzir os “clusters” de casos, em tudo semelhante à estratégia coreana, com ampla utilização de “big data” e inteligência artificial. Contudo, ainda que na etapa atual a estratégia principal também seja a testagem agressiva e sustentada com controle cerrado dos positivos e contactantes, a China chegou a zerar os casos novos por alguns dias, com medidas radicais de distanciamento social em níveis de “supressão”, recuperando sua capacidade de controle da epidemia por outros métodos. Um resultado que também parece difícil de ser igualado por outro país. Como no caso da Coréia do Sul, há condições “facilitadoras” da efetividade da resposta chinesa: um Estado autoritário que encontra poucos limites ao exercício do poder soberano; uma sociedade civil que, do ponto de vista ocidental, inexiste ou é muito fraca e subordinada ao Estado; um povo para quem a disciplina e obediência é um traço cultural milenar, em que impera o coletivismo e não está presente a noção ocidental de vida privada.

    No Brasil, como em quase todo mundo, o que temos visto no enfrentamento da epidemia são diferentes combinações dessas duas estratégias, com variações na intensidade de cada uma delas. Mesmo olhando para um único continente, como a Europa, há uma grande variedade de respostas sendo produzidas por cada nação. O que nos leva a fazer uma primeira grande observação sobre a resposta mundial: a despeito de estarmos diante de uma pandemia, de uma ameaça colocada em escala global, assistimos a um recrudescimento das soberanias nacionais, que se fecham dentro de suas fronteiras e passam a produzir respostas exclusivas para suas populações, com baixíssima solidariedade internacional, a ponto de haver uma corrida mundial para aquisição de insumos em relativa escassez no mercado global, como ventiladores, máscaras e testes (valendo atos de pirataria!), num cenário em que, obviamente, as nações mais ricas levarão larga vantagem. Não há um plano global de enfrentamento da pandemia. Desde que a emergência foi decretada, o G7 reuniu-se uma única vez, por videoconferência, e nada deliberou. As desigualdades se acentuam, em todos os níveis, na resposta à pandemia de coronavírus…

    Assim, o que percebemos, olhando para o mundo, é um mosaico de respostas, em que sempre se identifica algum grau de distanciamento social (do mais leve ao “lockdown”) combinado às estratégias de testagem (das mais restritas, fazendo apenas algumas confirmações diagnósticas, sem busca ativa e outras medidas de vigilância epidemiológica, às mais agressivas e sustentadas).

    Avaliando os relatórios de mobilidade para várias regiões do mundo que vêm sendo disponibilizados pela Google (https://www.google.com/covid19/mobility/), observamos países, como a Coréia do Sul, em que a redução da mobilidade é mínima e que, nos últimos dias, vem mesmo aumentando em determinados espaços, como parques, praias e jardins públicos. Embora a Google não tenha dados de mobilidade da China, sabemos que as medidas de distanciamento social também estão sendo relaxadas neste país (https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/07/acaba-o-confinamento-em-wuhan-primeiro-epicentro-da-covid-19.ghtml). Tanto na Coréia do Sul, quanto na China, a mobilidade social vem sendo reconquistada, na medida em que os dispositivos de vigilância digital, que permitem um monitoramento e controle individualizado de cada cidadão, vão sendo implantados. Observamos também que alguns países que vêm apostando na realização de testagem agressiva e sustentada, como a Alemanha e a Suíça, têm feito um distanciamento social mais leve. Outros países, como a Argentina e Portugal, mesmo também investindo na testagem, estão adotando um distanciamento social bastante intenso, em níveis de “supressão”. Cabe ainda mencionar, neste panorama mundial, os países que têm feito o distanciamento social máximo, como a Itália e a Espanha. Nesses países, os indicadores de queda da mobilidade em espaços públicos, comércios e locais de trabalho são impressionantes! E a impressão é de que quedas tão drásticas na mobilidade só são atingidas em países que não conseguiram achatar a curva de contágio e tiveram seus sistemas de saúde gravemente colapsados. Ainda que o distanciamento social adotado em qualquer etapa anterior à constituição da chamada “imunidade de rebanho” possa ter efeitos de desaceleração do contágio e evitar ainda mais sobrecargas ao sistema, a adesão massiva da população desses países a esse comportamento parece menos representar uma estratégia preventiva e mais o resultado do terror diante do caos sanitário instalado, secundado, evidentemente, por medidas de repressão da circulação de pessoas, características de um “estado de exceção”. É menos uma medida para tentar minimizar os efeitos da epidemia e mais um efeito da derrota para a epidemia. Como diria Camus, representa o triunfo da Peste sobre a Cidade.

    Avaliando os dados de testagem (que se alteram rapidamente: https://www.worldometers.info/coronavirus/), descobrimos que a Coréia do Sul, referência nessa estratégia, realizou até aqui (16/04) cerca de 10 mil testes/milhão de habitantes. Ou seja, já realizou uns 500 mil testes, conseguindo testar aproximadamente 1% da sua população. A Alemanha e a Suíça estão em patamares de testagem mais elevados, em torno de 20 mil testes/milhão de habitantes. Portugal, além do distanciamento social intenso, apresenta um índice de testagem na mesma faixa (18 mil). Entre os 15 países com o maior número de casos no mundo, os índices de testagem variam de 3,5 a 22 mil/milhão de habitantes, excetuando o Brasil (que se encontra na 11ª posição no número total de casos) e realizou apenas 296 testes/milhão de habitantes. Excessivamente atrás, não apenas das nações mais ricas do planeta, mas também do Irã (3.562 testes/milhão de habitantes) e da Turquia (5.664 testes/milhão de habitantes). Não nos parece, de modo algum, que o baixíssimo número de testes realizados no Brasil possa se dever a qualquer limitação de ordem econômica. A ausência de uma estratégia consistente de testagem, combinada a um distanciamento social pouco intenso, vacilante, errático e que, ainda por cima, vem sendo relaxado nas últimas semanas, não tem como não colocar nosso país entre aqueles de pior prognóstico. A despeito de estarmos adentrando uma violenta tempestade em “voo cego”, sem dados mínimos sobre as reais taxas de incidência neste momento, temos todos os elementos para saber que a curva de casos novos está em franca ascensão. Relaxar as medidas de distanciamento social, nesse momento, e continuar negligenciando a testagem, certamente acelerará a curva de contágio e a sua velocidade de disseminação entre as comunidades mais pobres, ainda imensamente despreparadas para o impacto. Além do colapso do sistema de saúde, é de se temer muitos outros colapsos no Brasil: dos serviços funerários ao colapso de qualquer coisa que se assemelhe a um “contrato social”…

    2 – No mesmo artigo, vocês chamam a atenção para o risco de se instalar um Estado judiciário-policial que force testagem e distanciamento social por meio de medidas autoritárias. No Brasil, há estados e municípios avaliando e colocando em prática medidas como multa a idosos que saírem “sem necessidade”(aqui:https://gauchazh.clicrbs.com.br/coronavirus-servico/noticia/2020/03/saida-de-idosos-e-flexibilizada-em-porto-alegre-veja-o-que-pode-e-o-que-nao-pode-ck88ud2mh082t01pq2kzcp7v7.html e aqui: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,sp-nao-descarta-impor-multa-ou-mais-restricoes-para-idosos-por-causa-do-coronavirus,70003247503). Quais os limites para as estratégias de combate à pandemia? Você acredita que medidas autoritárias podem ser adotadas de forma recorrente no Brasil?

    No artigo, procuramos fundar nossas análises nas melhores informações técnicas e científicas disponíveis, mas deixando claro que as grandes decisões que temos que tomar são políticas. De forma bem simples, identificamos uma grande bifurcação política nas possíveis respostas do Estado diante da crise: as respostas se darão garantindo e expandindo direitos ou se darão reduzindo e suprimindo direitos? Se darão no sentido do reconhecimento do direito universal à vida, acionando mecanismos de proteção social para garanti-lo com equidade, fomentando o espírito de solidariedade e uma forte cooperação social (o que cria e expande novos direitos, como, por exemplo, quando se suspendem patentes e propriedades intelectuais, quando se retiram pay-walls e “catracas”, evidenciando a existência de toda uma série de bens comuns – commons – que escaparam do controle público e foram submetidos ao controle e à exploração por grupos privados), ou as respostas se darão pela repetição da histórica omissão em relação aos mais vulneráveis, adotando linhas de ação que levam muito pouco em consideração a real desigualdade do “direito à vida”, o que pode, diante de uma situação extrema de ameaça à vida, levar a reações desesperadas e à convulsão social, abrindo terreno para a supressão de mais direitos e a imposição de mais medidas “de exceção”? Mesmo dispondo de todo aparato necessário para produzir o primeiro tipo de resposta (o que inclui esse gigantesco trunfo, que poucos países possuem, que é o SUS), é muito forte a impressão de que estamos cumprindo o enredo do segundo tipo de resposta.

    Faço uma rápida reflexão partindo da questão do distanciamento social. É uma questão muito delicada, não apenas de um ponto de vista econômico ou psicológico, mas, antes de tudo, de um ponto de vista antropológico. O que pode significar para um coletivo humano auto-impor-se um distanciamento social? Não é uma questão simples: envolve um enorme paradoxo! O distanciamento social ameaça objetivamente nossa existência social e não há outra existência para nós, humanos. Desse ponto de vista, a pergunta que se coloca é: em que condições nós poderíamos concordar que o melhor, para todos, seria mantermos um distanciamento social temporário? Entendo que seja necessário preencher alguns requisitos cognitivos e políticos para que um coletivo humano possa deliberar, coletivamente, que seus indivíduos se mantenham distanciados um dos outros por um certo tempo. É preciso que haja nesse coletivo, no mínimo, o domínio compartilhado de uma noção relativamente abstrata que é a de “população”, de que fazemos parte de uma população de humanos em convívio com incontáveis outras populações de seres vivos. De que fazemos parte de uma dimensão comum da vida que nos ultrapassa, que possui dinâmicas próprias, sobre as quais é possível intervir. E nesse último caso, quando deliberamos coletivamente intervir no nível da população, tal como se dá quando decidimos adotar medidas de distanciamento social, não estamos mais diante apenas de uma questão antropológica, mas política.

    Para compreender melhor esse ponto, contribuem muito as análises de Foucault sobre os mecanismos de poder. Em especial, quando trata do biopoder, do nascimento de uma biopolítica, de uma nova racionalidade e tecnologia de governo que investe a vida não apenas enquanto corpo individual (como já faziam os mecanismos disciplinares), mas enquanto “corpo coletivo”, enquanto população, enquanto espécie. O biopoder é essa técnica de poder que destaca um plano dos fenômenos populacionais, sobre o qual se irá deliberadamente intervir, uma vez que são estes os fenômenos que se pretende regular, controlar, conduzir, governar, com o objetivo de mantê-los dentro de um “intervalo de confiança”, dentro de uma faixa de variação considerada segura. Foucault nos mostra que é o Estado que se constituiu historicamente como grande aparato capaz de governar fenômenos de população, seja pelo exercício do poder soberano incrementado por mecanismos de poder disciplinar (representados pelos aparatos jurídicos e policiais), seja através dos mecanismos biopolíticos de indução da conduta humana e do comportamento social (representados pelos múltiplos dispositivos pelos quais se faz política econômica e social). É o monopólio dessas “técnicas de poder”, o que faz com que apenas o Estado detenha os meios para produzir as respostas exigidas para se enfrentar uma trombada do tamanho dessa que estamos vivendo. E o que essa perspectiva foucaultiana, de modo oportuno, evidencia, é o fato de que o que chamamos de resposta técnica à pandemia é sempre uma resposta política, que se faz através de técnicas políticas, técnicas governamentais.

    Nesse ponto, cabe um comentário sobre a compreensível exaltação, em tempos de “anti-ciência”, da “soberania da ciência” nas tomadas de decisão política diante dos desafios maiores postos hoje para a sobrevivência da humanidade e de outras formas de vida no planeta, especialmente quando se busca a comunicação com uma “opinião pública desinformada”. Mas, entre os próprios cientistas, essa discussão sobre o papel da ciência poderia melhorar. A hegemonia de um dado paradigma de ciência é tamanha que é como se não existisse, de fato, uma “guerra das ciências”, conforme a expressão de Bruno Latour. No entanto, ela está aí, claramente colocada, como sempre esteve, jamais inteiramente sufocada, porque é a expressão de um embate real entre forças políticas presentes no campo social e não veleidades epistemológicas. O campo da Saúde Coletiva deveria ser especialmente sensível a essas questões, já que ele se funda num ato de disputa de paradigma científico no campo da saúde…

    Nesse sentido, a discussão atual em torno do que seria uma resposta técnica e cientificamente embasada à pandemia abre um amplo espaço para uma retomada das premissas político-epistemológicas da Medicina Social – que também estavam presentes nas origens da medicina científica no século XIX, disputando qual seria o verdadeiro “problema” posto para a medicina e as práticas de saúde de uma forma geral. É notável como essa antiga fórmula de Rudolph Virchow ganha especial eloquência no cenário atual: “os avanços na medicina podem eventualmente prolongar a vida humana, mas as melhorias das condições sociais podem alcançar esse mesmo resultado de maneira mais rápida e bem-sucedida”. Sabemos como são urgentes e fundamentais todo os esforços que vêm sendo feitos para ampliar a capacidade de resposta do sistema de saúde aos casos graves da doença, com ampliação emergencial dos leitos hospitalares e de terapia intensiva. Mas também são fartas as evidências de que sem medidas preventivas visando o achatamento da curva, mesmo com essa ampliação, não há cenário em que o sistema seja capaz de dar conta do número de casos. Do mesmo modo, é desejável e indispensável todo esforço que vem sendo feito na busca de um medicamento eficaz para a COVID-19, mas é importante lembrar que o acesso a qualquer tratamento ficará dificultado se o sistema de saúde colapsar. Assim, permanece sendo urgente a decisão técnica e cientificamente embasada de acelerar a combinação da testagem agressiva e sustentada e o distanciamento social intenso, medidas que precisam ser implementadas de modo orientado pelas singularidades da nossa estrutura econômica e social e pelos valores que estão na base de uma sociedade democrática e solidária.

    Para aumentar nossa capacidade de testagem, é indispensável que, para além dos hospitais, também haja um investimento emergencial significativo na atenção básica e na vigilância epidemiológica e sanitária do SUS, possibilidade aberta pela decretação do estado de calamidade pública que flexibilizou o cumprimento das regras fiscais. É preciso determinação técnica combinada a vontade política para se fazer esse urgente e necessário investimento massivo de recursos no SUS. Mas, em relação a isso, o que temos observado, até aqui, é um Estado passivo, com os representantes do Ministério da Saúde se restringindo a comemorar, nos últimos dias, o aporte de recursos, sobre os quais sequer terão controle, advindos da filantropia do alto empresariado e dos bancos.

    Para tornar efetivo o distanciamento social, precisamos ampliar a mobilização social para o autoconfinamento voluntário. E que ele seja voluntário, é um princípio ético-político fundamental! Princípio que assume que o papel principal do Estado não deve ser o de obrigar e coagir, mas o de educar e procurar convencer sobre a razoabilidade das medidas que se orientam para o bem comum, sobretudo, para o bem comum maior, que é a defesa da vida de todos e de cada um, provendo solidariamente os meios para que todos possam efetivar essas medidas. É preciso deixar bem claro, entretanto, que se trata de um princípio ético-político de atuação do Estado, um princípio de respeito à autonomia de agência dos indivíduos, não se confundindo com qualquer tipo de concepção ingênua a respeito do livre-arbítrio ou de um suposto “império da vontade” a reger nossas condutas. Não basta, para o autoconfinamento acontecer, uma deliberação da vontade. Não basta querer, é preciso poder praticar o distanciamento social. Por isso, é preciso acionar medidas de mitigação das consequências indesejáveis desse confinamento, em especial, para as populações mais vulneráveis. Medidas que são, de fato, pré-requisitos para que essas populações possam aderir voluntariamente ao distanciamento social. Em outras palavras, é preciso, primeiramente, uma orientação firme e inequívoca das autoridades sanitárias para que o distanciamento social massivo seja praticado. Mas, como sabemos, é na implementação dessa medida que se expressam as mais brutais desigualdades perante essa epidemia. Como afirmamos no artigo, “somos todos suscetíveis, mas a vulnerabilidade é profundamente desigual”. São milhões e milhões de brasileiros que vivem do ganho diário para sobreviver, seja como empresários de pequenos negócios, seja como trabalhadores precarizados, sem proteção social, vivendo sem condições adequadas de moradia e de saneamento urbano, quando não vivendo nas ruas. Fundamentalmente, são estes brasileiros que não poderão aderir às medidas de distanciamento social, não porque não queiram, mas porque não podem. Só o Estado dispõe dos instrumentos políticos capazes de fazer com que o distanciamento social voluntário se efetive e poucas vezes ficou tão agudamente evidente o quanto a política econômica e social pode ser a mais poderosa ferramenta de intervenção médico-sanitária.

    O Estado brasileiro, graças à atuação decisiva do poder legislativo, tomou algumas medidas importantes nessa direção, como a provação do “auxílio emergencial” e algumas outras medidas de mitigação das consequências econômicas e sociais nefastas do confinamento. Importantes, porque na direção correta, mas insuficientes. Insuficientes no tamanho do auxílio, considerando as reais necessidades vitais das famílias, e não apenas sua dimensão de “remédio econômico” para mitigar o tamanho da recessão. Essa questão do “auxílio econômico” é um ponto crucial no enfrentamento da pandemia, porque nele, a dicotomia entre as medidas de proteção da vida e de proteção da economia se desfaz. Uma economia cuja proteção se oponha à proteção da vida é uma economia de morte. Não merece ser salva. O debate sério sobre o assunto indica que a “estatização da renda das pessoas” (como dizem os economistas liberais) parece ser um componente inescapável da resposta econômica para se evitar uma depressão. Dessa vez, parece que não será suficiente salvar apenas os bancos, sem garantir um mínimo do poder de compra das famílias. Os recursos para financiar essa grande operação biopolítica de defesa da vida e da economia existem e sabemos onde estão. Levantá-los, contudo, exige a quebra de resistências políticas históricas na sociedade brasileira. Resistências tão duras de serem quebradas, que têm garantido, por exemplo, que nossa estrutura tributária absurdamente regressiva se mantenha inalterada, a despeito de ser uma flagrante máquina de aprofundamento da desigualdade social num país profundamente desigual. Além disso, as medidas tomadas também são insuficientes porque não conseguem vencer os entraves burocráticos e a ausência de mecanismos eficientes para que o auxílio chegue efetivamente até as pessoas. Daí que o objetivo visado por essa política (viabilizar um distanciamento social mais intenso) não venha sendo alcançado. E, sem a efetivação dessa política, atribuir a não adesão ao distanciamento social de amplos setores da população a uma suposta “falta de consciência” dos indivíduos, é uma análise bastante pobre da determinação do comportamento e uma “moralização” do problema.

    Na medida em que esse caminho político permanece, na prática, interditado, o campo das respostas técnicas à pandemia se vê restrito a um conjunto de medidas, igualmente científicas, mas de impacto muito mais limitado. Limitação que se medirá no número de mortes que ocorrerão e poderiam ter sido evitadas. E na medida em que determinadas políticas não se efetivam com a força exigida, o que se impõe, na prática, aos mais vulneráveis, é aquilo que a filósofa Isabelle Stengers chamou de “alternativas infernais”: a fome ou a peste. E para coroar o espetáculo dantesco, ainda descobrimos, estarrecidos, que essa opção de “deixar morrer” é uma opção consciente e deliberada de alguns atores de peso nas tomadas de decisão política no país, como o presidente do Banco Central, que numa fala a investidores, no início de abril, declarou que o colapso do sistema de saúde, obrigando os médicos a terem que decidir entre quem atender e quem deixar morrer, é um preço razoável para evitar uma recessão econômica maior (https://theintercept.com/2020/04/16/banco-central-presidente-coronavirus-economia/). A projeção futura do quadro que pode derivar desse tipo de escolha política, no momento em que o caos sanitário estiver instalado – uma projeção que não pode ser ignorada por esses atores políticos –, nos faz supor que eles contam com uma “fase 2” da estratégia, baseada na força do Estado judiciário-policial, que poderá atuar para impor um distanciamento social forçado, com suspensão de direitos e imposição de todos os danos colaterais dessa medida aos mais vulneráveis. Deveria ser desnecessário dizer – mas não é! – que se trata de uma abominação moral que a admissão de mortes evitáveis possa entrar nos cálculos que embasam decisões políticas. Em tempos de embrutecimento dos espíritos, também precisamos estar muito vigilantes em relação ao que enunciam coletivamente as decisões que estão sendo tomadas, sob pena de fazermos escolhas que podem trazer maior ameaça à nossa sobrevivência como “espécie” do que o próprio vírus. Perguntemo-nos, por exemplo, o que enuncia politicamente que 15 bilhões de reais tenham sido liberados para empresas de saúde privada que atendem, com grandes limitações de cobertura, apenas 25% da população, supostamente a menos vulnerável, enquanto para o restante 75% da população que depende apenas do SUS, foi repassado muito menos que isso (https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/04/a-insensatez-dos-planos-de-saude.shtml).

    Mas também nos perguntemos o que enuncia coletivamente o fato de dois bilhões de seres humanos estarem confinados em suas casas, num momento de grande crise da democracia em todo mundo. O que enuncia coletivamente o fato de que, nesse momento, várias das principais nações europeias se encontrem sob “estado de exceção”, com o exército nas ruas? A linguagem é um vírus (conforme a fórmula poética de William Burroughs). E não é muito animadora a “linguagem” que circula nesse momento! Esse discurso de mobilização de guerra, do vírus como inimigo, de exaltação da “cidadania sacrificial” dos trabalhadores de saúde, é muito preocupante! É o tipo de discurso político que se presta a justificar suspensão de direitos e adoção de medidas “de exceção”. Do mesmo modo que serve para justificar e banalizar as consequências da instauração de mecanismos permanentes de vigilância digital securitária e totalitária, como se fosse um preço razoável a se pagar pela “liberdade”. Há tantos ou mais perigos em algumas das respostas a esta pandemia, quanto na própria. Precisamos saber escapar das “alternativas infernais”, o que implica vencer o medo que nos paralisa e abrirmo-nos à emergência de novos modos de vida e de relação com os conhecimentos e as tecnologias…

    3 – O editorial da última edição da revista Saúde em Debate(http://revista.saudeemdebate.org.br/sed/issue/view/37/v.%2044%2C%20n.%20124%2C%20jan-mar%2C%202020),do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), ressalta o impacto de medidas neoliberais na saúde como origem do cenário da pandemia na Itália e chama a atenção para as medidas de austeridade brasileiras,como a Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos). De que forma as consequências da falta de prioridade da saúde pelos governos e do subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde (SUS) são sentidas no cenário atual?

    As relações entre as medidas de austeridade neoliberais e o impacto humano que terá essa pandemia são demais evidentes, já que essas políticas foram diretamente responsáveis pelo sucateamento do principal escudo de proteção que os países podem ter nessa crise, que é um sistema de saúde público, robusto e de qualidade. Nesse momento de crise aguda, fica palpável o quanto o sucateamento do nosso SUS representa diretamente o sucateamento da vida dos brasileiros. O quanto o desmanche desse e de outros sistemas de proteção social precariza a vida e amplia a vulnerabilidade social. Mas não é apenas por esses aspectos que os efeitos das políticas neoliberais são sentidos no cenário atual. Elas representam mais do que um receituário econômico e fiscal, elas definem todo um modo de vida cujo esgotamento, pela insustentabilidade ambiental, social e subjetiva, está cada vez mais patente. A pandemia feriu de morte esse modo de vida e precipitou um colapso econômico que já estava anunciado. Ela marca nossa entrada na era dos fenômenos naturais extremos previstos na “emergência climática” e coloca uma enorme pedra sobre o mito do crescimento ilimitado. O que não quer dizer, nem de longe, que o capitalismo acabou, foi derrotado e despertaremos agora para um mundo frugal e igualitário. Especula-se muito sobre um suposto mundo pós-viral, sobre um mundo transformado que emergirá dessa pandemia. O meu argumento é de que esse mundo pós-viral já começou ou, de qualquer forma, o mundo transformado por essa pandemia já se encontra em disputa nesse momento, já está sendo construído nas respostas concretas que estão sendo produzidas. O vírus não é capaz por si só de provocar uma mutação social; nenhuma nova ordem mundial emergirá “naturalmente” desse acontecimento. O mundo pós-viral já começou e está sendo disputado, antes de mais nada, nas respostas que estamos produzindo no próprio enfrentamento da pandemia. Por isso me estendi consideravelmente nas primeiras questões desta entrevista, por isso me pareceu importante procurar fazer uma análise (bio)política das respostas que estamos produzindo. São dimensões importantes da produção desse mundo pós-viral e não se pode dizer que, desse ponto de vista, estejamos indo bem em toda parte. Estamos especialmente mal posicionados nessa crise, uma vez que, do Brasil, temos dificuldades de ver pela frente um cenário menos que sombrio. Mas há questionamentos e movimentos importantes se dando em muitas partes, que vão na direção de uma transformação profunda na organização política e econômica de nossas vidas…


    4 – Como pensar comunicação e saúde nesse contexto de pandemia e disseminação de fake news? Quais elementos são importantes paradifusão de informações relacionadas (epidemiológicas, políticas,econômicas) ao Covid-19 de forma segura?

    O tema do meu mestrado, há quase 30 anos, foi justamente o das epidemias, trabalhado numa perspectiva semiótica e comunicacional. Procurei desenvolver um único esquema interpretativo para a análise, tanto de fenômenos epidêmicos (de doenças), quanto comunicacionais (de comunicação social), com o intuito de analisar a epidemia de HIV/AIDS em seus primeiros anos, considerando a relação entre a dinâmica de propagação viral e a dinâmica de propagação da informação. Identifiquei a existência de dois “esquemas epidêmicos”, que correspondem a duas dinâmicas comunicacionais distintas, observáveis tanto na propagação de agentes infecciosos, quanto de informação: o “contágio” e a “irradiação”. As epidemias de contágio, que se propagam ao sabor dos contatos sociais, são mais lentas (os casos se distribuem ao longo do tempo) do que as epidemias irradiadas, tipo fonte comum (em que muitos casos se apresentam simultaneamente). A ideia geral é que uma epidemia de contágio (de doença) pode ser combatida com uma contraepidemia irradiada (de informação). É uma questão “dromológica” (como diria Paul Virilio), uma questão de velocidade, de corrida entre “informações”: o objetivo é que determinadas “informações” consigam chegar nas pessoas antes do vírus (seja na forma de uma vacina, enquanto uma “informação imunobiológica”, ou na forma da informação necessária para se praticar a proteção individual e coletiva).

    Do ponto de vista da comunicação social, o grande modelo de comunicação irradiada que dispúnhamos, no início dos anos 1990, era o chamado “broadcasting”, o modelo fornecido pelas grandes mídias de massa que dominaram o século XX, como o rádio e a televisão. Ainda que se reconheça (e se preconize como estratégia) que os modelos de comunicação irradiada e por contágio estejam (e devam ser) quase sempre hibridizados, a lógica do “broadcasting” possui duas características fundamentais para as estratégias de comunicação em contexto de epidemia: a rapidez de difusão e o controle centralizado da informação pelo polo emissor. Ora, o cenário das tecnologias de comunicação e informação passaram por uma verdadeira revolução nos últimos 30 anos, capitaneada pelo crescimento e pela popularização da internet e o advento das mídias sociais. Produziram-se profundas alterações na “ecologia comunicacional” humana, que acabaram abalando alicerces importantes das estratégias comunicacionais em contexto de epidemia. O advento das mídias sociais produziu duas mudanças importantes na dinâmica comunicacional por “contágio”: primeiramente, imprimiram uma velocidade sem precedentes à “epidemia de contágio”, produzindo uma dinâmica apropriadamente chamada de “viral” na propagação da informação; além disso (e em função dessa lógica viral, que transforma cada um numa central de “broadcasting”, produzindo um dilúvio informacional), a dinâmica de propagação da informação por contágio passa a obedecer não apenas à lógica que governa, por exemplo, os encontros/contatos que se dão entre os corpos num território, mas a uma outra lógica que passa a governar os contatos/conexões que se dão na rede eletrônica. Essa outra lógica é introduzida pelos algoritmos que, nesse sentido, estruturam as “redes de contágio” (segundo interesses comerciais e estratégias de marketing) de um modo que acaba contribuindo para a constituição de uma socialidade em “bolhas”, com enormes repercussões subjetivas e políticas. Em síntese, as mídias sociais aumentaram desenfreadamente a difusão da informação, mas de qualquer informação, reduzindo as possibilidades de serem controladas centralmente por um polo emissor autorizado. Ao mesmo tempo, as “redes de contágio” não são aleatórias e, sim, estruturadas para promoverem a constituição de “clusters” que expressam, segundo uma lógica “mercadológica” que organiza o espaço social em “nichos”, a distribuição dos múltiplos novos centros irradiadores de autoridade. Essa nova “ecologia comunicacional” instaurada pelas mídias digitais é bastante crítica para as estratégias comunicacionais tradicionais de enfrentamento de epidemias…

    Em outubro do ano passado, o Johns Hopkins Center for Health Security (em parceria com o Fórum Econômico Mundial e a Fundação Bill & Melinda Gates) realizou um exercício de simulação de uma severa pandemia de coronavírus, com o objetivo de identificar os grandes problemas que teríamos hoje para produzir as respostas necessárias para minimizar seus graves efeitos sociais e econômicos, avaliando o quanto estaríamos ou não preparados para produzi-las (o tamanho do “preparedness gap”): o Event 201 (https://www.centerforhealthsecurity.org/event201/). Nesse exercício, um dos segmentos de discussão foi inteiramente dedicado às questões de comunicação (https://youtu.be/LBuP40H4Tko) e o principal ponto crítico levantado foi o problema da “epidemia de desinformação” ou o problema da “preservação da integridade da informação”. A nossa incapacidade de lidar com o fenômeno contemporâneo das chamadas “fake news”, na visão dos experts que participaram do exercício, foi, de longe, o maior “despreparo” identificado para o enfrentamento de uma pandemia, no que tange as questões de comunicação.

    Para os especialistas que participaram do Event 201, as respostas para uma situação de desinformação epidêmica desenfreada, num cenário de pandemia severa (a epidemia de coronavírus imaginada no exercício teria matado 65 milhões de pessoas), poderiam chegar ao “internet shutdown”. Nesse caso, teríamos a imposição de uma situação, de fato, de “isolamento social” e não apenas distanciamento. Uma situação em que a interrupção dos contatos físicos não seria suficiente, em que seria também preciso deter o espalhamento da “peste” através das mídias virtuais. Os especialistas ponderam o pânico e outros prejuízos colaterais que um “shutdown” causaria, mas o concebem como um cenário limite com mídia social desenfreada, governos em colapso e cidadãos se revoltando. Diante de um cenário menos severo (que, talvez, corresponda ao nosso), o que propõem? Fundamentalmente, propõem que, de algum modo, se reconstitua uma fonte confiável de informação. O diagnóstico que fazem da “crise comunicacional” (com o qual, em linhas gerais, concordo) é de que se trata, em última instância, de uma “crise de confiança”. Há uma desconfiança generalizada em relação às instituições (ao chamado “sistema”) como fonte confiável de informação. Principalmente, em relação à mídia tradicional e à ciência, mas também em relação aos governos. Os governos sempre suscitaram alguma desconfiança, mas a situação se agrava quando alguns governos passam a atuar abertamente no ramo das “fake news”, ampliando ainda mais a crise de credibilidade da instituição que representaria o poder público. Numa dimensão afetiva, instaura-se um problemático mundo social fundado em relações de desconfiança; numa dimensão cognitiva, abre-se o caminho para o chamado mundo da “pós-verdade”. Ainda não entendemos bem o que significa esse fenômeno, suas causas, seus sentidos, mas há pistas interessantes trazidas por alguns estudiosos de que não se trata tanto de uma oposição à “verdade”, quanto de uma oposição aos “sistemas de produção da verdade”, em geral, opacos nas suas “regras de produção da verdade” e, via de regra, arrogantes e autoritários na sua comunicação social. Esse entendimento é importante, porque nos sinaliza que há tentativas de se reconstituir o valor das “verdades”, há estratégias que buscam se opor ao mundo da “pós-verdade”, que podem, de fato, exacerbá-lo. Não seriam muito promissoras, por exemplo, as estratégias assentadas na ridicularização da ignorância ou na afirmação do poder absoluto e infalível de qualquer discurso de verdade. Se aceitamos a tese de que o problema não seria tanto uma “crise da verdade”, quanto uma “crise de confiança” nos “donos da verdade”, então, a questão primordial permanece sendo como restaurar um regime de socialidade fundado em relações de confiança. Nesse sentido, o que seria logicamente mais favorável a este restabelecimento: estratégias comunicacionais que buscam afirmar a superioridade indiscutível de determinadas fontes sobre outras ou estratégias comunicacionais mais dialógicas? De todo modo, a questão da crise de confiança nas instituições de saber-poder ainda precisa ser muito mais aprofundada, indo às origens fundamentalmente políticas dessa crise, para podermos realmente avançar nessa questão das “estratégias comunicacionais”…

    Elidindo completamente o problema da raiz política dessa crise, os experts recuperam velhas fórmulas das teorias da comunicação de massa, como o “two steps flow of information”, adaptadas ao mundo da comunicação em rede. Essa estratégia busca hibridizar os dois modelos comunicacionais/epidêmicos: a irradiação e o contágio. Por um lado, garantindo a centralidade de uma fonte de informação confiável, por outro, reconhecendo que as fontes efetivamente confiáveis para as pessoas são os sujeitos identificados como “líderes de opinião” para suas comunidades. Com esse intuito, fazem um exaustivo mapeamento de possíveis “lideranças”, que poderiam se constituir em fontes de informação confiáveis, mas não fica claro como elas poderiam efetivamente desempenhar esse papel em meio ao regime geral de desconfiança em relação a todas elas: organismos internacionais (OMS), governos, mídia tradicional, corporações, empresários, cientistas, médicos, trabalhadores da saúde etc. E diante da dificuldade em se resolver uma “crise de confiança” com estratégias meramente comunicacionais, voltam-se para as tentativas de controle dos meios, das plataformas tecnológicas de comunicação, e passam a depositar esperança nos algoritmos que permitiriam a identificação de campanhas ou “clusters” de desinformação, acionando mecanismos de “bloqueio epidêmico”, que poderiam variar de uma “advertência” de que a informação foi checada “falsa” (já em funcionamento em algumas plataformas sociais) à remoção automática do conteúdo da rede e/ou punição para os responsáveis.

    É interessante notar como o enfrentamento das duas epidemias (de coronavírus e de “fake news”) acaba recebendo abordagens inteiramente homólogas: nas situações extremas, pode-se apelar para o “shutdown” da rede; mas a tendência mais promissora, porque preserva o funcionamento da rede, é a instalação de mecanismos de vigilância algorítmica de todas as informações circulantes. As mesmas preocupações já levantadas em relação às estratégias de enfrentamento da pandemia se recolocam, com redobrada preocupação, nesse terreno, sobre o risco que há em se banalizar a instauração de mecanismos permanentes de vigilância algorítmica como se fosse um preço razoável a se pagar pela suposta garantia da “veracidade” do que circula na rede. Aqui também as grandes escolhas não são técnicas, mas políticas.


    5 – Qual a sua opinião sobre o desenvolvimento da área de Comunicação Social e Saúde no campo da Saúde Coletiva no Brasil nas últimas três décadas?

    Sem dúvida, nessas últimas décadas, houve um desenvolvimento importante dessa área no campo da Saúde Coletiva, expresso na maior presença da pesquisa específica em Comunicação e Saúde nos periódicos do campo (além da criação de uma revista especializada, com mais de 20 anos de existência), mas também na multiplicação de temas e focos de investigação envolvendo problemáticas “comunicacionais” ou passíveis de uma abordagem “comunicacional”, em outras áreas da Saúde Coletiva. A micropolítica do trabalho vivo em saúde e as “tecnologias leves”, o acolhimento como trabalho afetivo e técnica de conversa, as dimensões intersubjetivas do cuidado em saúde, a humanização do cuidado e da gestão, o desafio da cogestão, o desafio da interprofissionalidade, do trabalho em equipe, da articulação do trabalho em rede, a coordenação do cuidado, o apoio matricial, a educação permanente, a educação popular em saúde, são apenas alguns exemplos que dão testemunho desse crescimento das abordagens e temas envolvendo uma problemática “comunicacional” no campo da Saúde Coletiva. Todas pautas de pesquisa em estreita relação com desafios concretos postos no cotidiano dos serviços e nos processos de construção do SUS.

    Mas há outro modo de se compreender o desenvolvimento da área nas últimas décadas, que leva em consideração os deslocamentos de paradigmas que se deram nesse período. Uma análise mais fina e detida poderia identificar ainda outros deslocamentos, mas vou destacar, neste momento, dois principais, sintetizados em dois acontecimentos epocais marcantes e decisivos: a epidemia de HIV/AIDS e a internet.

    De novo, uma epidemia. Uma epidemia que, em meio à profusão de efeitos produzidos no mundo contemporâneo, veio colocar em xeque concepções arraigadas e estratégias tradicionais de comunicação em saúde. O enfrentamento de uma epidemia que, em seus primeiros anos, contava apenas com formas de prevenção baseadas em mudanças de comportamento (sobretudo, na esfera sexual), forçou uma revisão profunda das concepções a respeito da determinação do comportamento que, até então, orientavam as estratégias convencionais de comunicação em saúde. Pode-se dizer que a epidemia de HIV/AIDS colocou em crise os modelos de comunicação transmissionistas, fundados em esquemas “behavioristas” de compreensão da determinação do comportamento, convocando modelos mais dialógicos e esquemas de compreensão da determinação do comportamento que concebem uma forte influência de determinantes estruturais, coletivos e institucionais. Esse importante deslocamento de paradigma está bem representado em todos os desenvolvimentos teórico-práticos produzidos no campo pelo conceito-operante de vulnerabilidade, cuja operacionalidade tem sido exercitada nas análises e proposta de enfrentamento da epidemia atual…

    A importância do segundo acontecimento – o crescimento e a popularização da internet e das mídias sociais – também já foi, não casualmente, ressaltada nos comentários que fiz sobre as dimensões comunicacionais envolvidas na epidemia atual, sobre as profundas mudanças produzidas pelas tecnologias digitais de comunicação em rede em nossa “ecologia comunicacional” e seus impactos para a comunicação em saúde. No meu entendimento, o deslocamento de paradigma, nesse caso, também golpeia o “transmissionismo” tradicional, pois, cada vez menos, a experiência de comunicação coletiva se comporta como no modelo do “broadcasting” e, cada vez mais, como um fenômeno de “produção de comum”; cada vez menos, comunicação como transmissão “telefônica” ou “televisiva” de mensagem e, cada vez mais, como produção em “redes” de diferentes formas de “inteligência coletiva”.

    São deslocamentos importantes, com consequências profundas para os modos de se colocar problemas teórico-práticos no campo da Saúde Coletiva, cujos impactos na produção científico-tecnológica da área ainda estão se fazendo sentir, mas devem dar um grande salto no chamado mundo pós-coronavírus. De fato, as novas tecnologias de comunicação e informação fundem, no mais alto grau, suas potencialidades de emancipação e de controle dos coletivos humanos. Por um lado, a potência de produzir inteligência coletiva, enquanto expressão das dinâmicas multitudinárias imanentes a todo corpo coletivo, capazes de produzir potência de ação coletiva. Por outro lado, o sequestro dessa “inteligência” e de nossa potência de ação coletiva, não mais apenas pelo Estado (talvez, por isso, possamos perceber com maior nitidez a expressão de uma inteligência coletiva em resposta ao que se impõe como um desafio coletivo de proteção da vida, lá onde o Estado está mais ausente: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/04/11/favela-de-sao-paulo-vira-exemplo-em-acoes-contra-o-coronavirus.ghtml), mas também, cada vez mais, por determinadas aplicações de inteligência algorítmica que vêm construindo a infraestrutura do chamado “capitalismo de vigilância”. São questões que me parecem capitais na encruzilhada biopolítica em que nos encontramos e que devem assumir um lugar bem maior e bem mais central nas discussões da Saúde Coletiva nos próximos anos.

    Por fim, cabe ainda um comentário sobre a comunicação em saúde, para além das dimensões tecnológicas, lembrando que essa problemática é a que mais aproxima as questões de saúde das fronteiras da arte e da cultura. Trata-se de lembrar e reconhecer o quanto os principais fenômenos vitais de importância para a saúde humana no mundo contemporâneo dizem respeito a processos de comunicação e cultura. É nesse terreno, por exemplo, que poderíamos situar todas as investigações e experimentações práticas que têm buscado explorar as tensões e eventuais sinergias existentes entre a saúde e a grande mídia, em particular, entre o sistema público de saúde e a sua presença, a sua representação, na produção cultural brasileira. Há muitas formas possíveis de se argumentar sobre a relevância para o campo da Saúde Coletiva das intervenções e pesquisas que se realizam nessa fronteira com a arte e a cultura, mas podemos, mais uma vez, apoiarmo-nos na experiência presente da pandemia para ressaltar essa relevância. Em tempos em que se coloca uma ameaça à saúde individual e coletiva, em escala global, fortemente tendente a reforçar concepções mais reducionistas de saúde, mais focadas nos elementos biológicos e organicistas e nas ameaças portadas por um agente infeccioso; em tempos que nos induzem a uma visão de saúde mais reduzida, mais circunscrita à problemática da preservação da vida e da garantia de uma certa segurança de que nós sobreviveremos às ameaças biológicas que nos cercam; em tempos, enfim, em que se abre uma certa oposição entre a saúde e a qualidade de vida e o bem-estar, já que a preservação da primeira, neste momento, parece depender de abdicarmos destas últimas, já que a preservação da vida e da saúde, neste momento, parece mesmo nos obrigar a atravessar um processo de profundo mal-estar e de afastamento de tudo que configurava nossos ideais de qualidade de vida, incluindo a possibilidade do convívio social; é justamente neste momento que as riquezas maiores que encontramos nas fronteiras entre a saúde, a arte e a cultura, ganham ainda mais relevância. Vivemos tempos não apenas para serem padecidos, mas enfrentados. Tempos não apenas para enfrentamento do vírus e da epidemia, mas também de todas as tendências regressivas que esses tempos podem imprimir em nosso modo de vida e nossas concepções sobre a saúde. Enfrentar esses tempos exigirá, e muito, o exercício irrequieto da arte e da cultura, em sua função de abrir o campo de possibilidades, de excitar a imaginação de outros mundos possíveis e de nos permitir esperançar a sobrevivência de formas de vida que digam sim à vida! Trata-se do reconhecimento da arte e da cultura como produtoras de saúde enquanto potência de vida, mas também como produtoras de uma “cultura da saúde” em que a saúde não se reduza à mera sobrevivência de “vidas nuas”. É desse modo também que vejo as potencialidades da área da Comunicação e Saúde para o desenvolvimento do nosso campo e o tipo de contribuição que pode vir a dar para alguns de nossos maiores desafios atuais…

  • Não existe ‘outro mundo para se construir’

    Entrevista com Alana Moraes

    Por: Patricia Fachin | 24 Outubro 2017

     

    O pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin e da geração do entre guerras é oportuno para refletir sobre o atual momento político do Brasil e sobre a crise da esquerda, porque essa geração, embora tenha sido “atormentada pela emergência do fascismo”, “se deu conta de que a ideia de um tempo histórico acumulativo que nos guiaria sempre ao ‘progresso’ não passava de uma ficção”, diz a antropóloga Alana Moraes à IHU On-Line. Segundo ela, Benjamin pensa “em um modelo de história atravessado por tempos aleatórios e que, por isso mesmo, está aberta a todo tempo a uma erupção imprevisível do novo. Essa é a aposta otimista de Benjamin que precisamos resgatar: fomos derrotados, mas está tudo outra vez em aberto”, sugere.

    Ao analisar a situação da esquerda brasileira, Alana é enfática: “Não acredito nesse clamor atual por uma ‘unidade da esquerda’” e nem que “um unidade ‘programática’ seja possível nem desejável”. Ao contrário, expõe, “penso muito mais em alianças e essas alianças têm mais chance de acontecer em torno de uma causa situada, de um problema comum. Falo desde a experiências das ocupações urbanas. Elas nos colocam problemas muito concretos: como vamos cozinhar para tantas pessoas, como vamos fazer um banheiro, ter energia elétrica, cuidar das relações, dos sofrimentos uns dos outros? Acho que essa conjuntura de precariedades generalizadas vai nos impor, querendo ou não, esse desafio. Como vamos manter um posto de saúde funcionando? Como vamos garantir o funcionamento das escolas no bairro que estão ficando sem merenda, sem materiais básicos? O ‘diálogo’ vai ter que se dar no terreno da prática, da nossa sobrevivência”.

    Alana Moraes também aposta num “trabalho intenso de pesquisa para entender as ‘novidades’ de organização e resistência do ponto de vista das lutas”, porque “só as lutas, o movimento, a experimentação é que vão nos restituir a potência e nos fazer escapar desse lugar de espectadores ou de comentadores da conjuntura”, afirma. Entretanto, adverte, “uma pesquisa-luta só pode ser feita com o corpo na rua. Não podemos desperdiçar nossas experiências de auto-organização e resistência, por menores que forem elas, não podemos deixar de pensar sobre elas e tentar intensificar suas possibilidades. Precisamos voltar a estar alguns passos à frente. O comitê invisível fala de uma ‘inteligência partilhada da situação’. Eu acho esse um bom caminho para voltarmos a nos organizar de outras formas. O lugar da ‘pesquisa-luta’ é um lugar interessante, ele dessacraliza, por um lado, a ideia de um ‘saber autorizado’ e especializado e, por outro lado, afirma a importância de pensar com a luta e não para ela”.

    Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, a antropóloga também enfatiza que “a proliferação recente de coletivos, movimentos, e novas lutas no Brasil precisavam se encontrar mais. Estamos tendo um problema muito básico que tem a ver com a ausência de espaços de encontro. (…) O movimento Parque Augusta está impedindo há 4 anos a construção de grandes empreendimentos imobiliários em uma área verde da cidade. Temos centenas de coletivos periféricos que também estão discutindo o território a partir de outras chaves: militarização, racismo de Estado, produzindo novas linguagens”. Diante desse cenário, frisa, “difícil convencer alguém que vivemos em uma ‘crise das lutas’. Talvez a gente viva numa crise do encontro”.

    \"\"\"\"Alana | Foto: Paolo Colosso

    Alana Moraes é graduada em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestra em Sociologia e Antropologia pela mesma universidade, e atualmente cursa doutorado no Programa em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ. É feminista e integrante do coletivo Urucum pesquisa-luta.

    Alana Moraes estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU na próxima quarta-feira, 25-10-2017, participando do 2º Ciclo de Estudos A reinvenção política no Brasil contemporâneo. Limites e perspectivas, onde ministrará a palestra Movimentos tradicionais e movimentos autonomistas. Possibilidades à reinvenção da política e da esquerda no Brasil, das 16h às 17h15min.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – Há alguma novidade na cena política desde a nossa última entrevista, em abril?

    Alana Moraes – Estamos todos compartilhando uma sensação de viver em um tempo acelerado, cheio de labirintos. Eu tenho gostado de pensar com Walter Benjamin e com toda essa geração do entre guerras que levou muito a sério o problema do tempo histórico, as possibilidades de transformação, a importância de uma certa virada estética e de sensibilidades para sobreviver em um mundo de catástrofes. Foi uma geração também muito atormentada pela emergência do fascismo e que se deu conta de que a ideia de um tempo histórico acumulativo que nos guiaria sempre ao \”progresso\” não passava de uma ficção. Benjamin começa a pensar, falando de forma simplificada, em um modelo de história atravessado por tempos aleatórios e que, por isso mesmo, está aberta a todo tempo a uma erupção imprevisível do novo. Essa é a aposta otimista de Benjamin que precisamos resgatar: fomos derrotados, mas está tudo outra vez em aberto. Mas é preciso que tenhamos faro histórico também, voltar a exercer nossa sensibilidade. Nesse fluxo contínuo de informações, nossas intuições ficam anestesiadas.

    Não nos faltam \”novidades\”. Do ponto de vista do poder, o governo e o congresso nunca estiveram tão autonomizados da vontade popular. Isso é uma diferença com o fascismo, aliás, que ainda se esforçava para fabricar seu populismo. É o que o Trump tenta resgatar nos EUA. Mas aqui no Brasil, as reformas trabalhistas, da previdência, as movimentações para blindar algumas figuras acusadas de corrupção, as imagens de malas, as escutas divulgadas que envolvem diretamente Michel Temer, nada é suficientemente forte para desestabilizar o governo. Esse é o grande golpe da governamentalidade neoliberal: nos tornar meros espectadores dos jogos de poder, suprimir nossa potência de auto-organização. É a gestão da crise permanente como técnica de governo. Por isso precisamos de um trabalho intenso de pesquisa agora para entender as \”novidades\” de organização e resistência do ponto de vista das lutas. Só as lutas, o movimento, a experimentação é que vão nos restituir a potência e nos fazer escapar desse lugar de espectadores ou de comentadores da conjuntura. Uma pesquisa-luta só pode ser feita com o corpo na rua. Não podemos desperdiçar nossas experiências de auto-organização e resistência, por menores que forem elas, não podemos deixar de pensar sobre elas e tentar intensificar suas possibilidades. Precisamos voltar a estar alguns passos à frente. O comitê invisível fala de uma \”inteligência partilhada da situação\”. Eu acho esse um bom caminho para voltarmos a nos organizar de outras formas. O lugar da \”pesquisa-luta\” é um lugar interessante, ele dessacraliza, por um lado, a ideia de um \”saber autorizado\” e especializado e, por outro lado, afirma a importância de pensar com a luta e não para ela.

    IHU On-Line – A esquerda já dá sinais de recuperar a melancolia?

    Alana Moraes – Estamos em plena reconfiguração do que entendemos por \”esquerda\”. Eu acho que as respostas interessantes cada vez menos virão da esquerda partidária, por exemplo. A esquerda partidária, mesmo em crise, continua pensando em termos de monopólio, quer reivindicar uma certa autenticidade: \”nós sabemos o que é ser organizado, eles não\”, \”militância de internet não é militância\”, \”esse feminismo não é suficientemente anti-capitalista\”, \”o movimento negro não é suficientemente anti-capitalista\”. Não entendo bem esse movimento de um time que está perdendo e se esforça para liquidar qualquer perspectiva de reforço, renovação.

    Por outro lado, tem a energia daqueles e daquelas que já estão experimentando. Penso que precisamos recuperar a ideia de \”formas de vida\” para a superação da melancolia. Isso quer dizer que não existe um \”outro mundo para se construir\”, existem outras relações que vamos produzir nesse mesmo mundo, outros modos de vida. Essa constatação nos exige estar presentes, nos exige pensar em como vamos escapar das armadilhas neoliberais para conseguirmos criar tempos de experimentação e nos implicar em uma nova coreografia que tem menos a ver com \”sujeitos políticos\” prontos, mas com a feitura de nós mesmos em interdependência. Henrique Parra vem falando sobre \”Política do Protótipo\”. Cito ele: \”A realização de um protótipo envolve, primeiramente, a decisão de substituir a adesão a um projeto idealizado e acabado de um modo de vida ou sociedade futura, pela decisão de experimentar construir no aqui-agora, sempre parcialmente, aquela mudança que se deseja\”. Isso tudo nos exige pensar e agir de maneira situada.

    Os homens brancos de esquerda, se quiserem sair desse lugar melancólico do poder perdido, precisam se situar, \”construir o aqui e agora\”, fazer um corpo que não seja um corpo que se pensa \”neutro\”, vão precisar fazer uma política do cotidiano, do cuidado, da reprodução da vida

    Toda confusão e escândalo feito pelos homens brancos da esquerda em relação ao “lugar de fala”, um pouco, tem a ver com a dificuldade que eles possuem de pensar a partir do corpo. O lugar de fala pode ser uma postura ético-política de assumirmos um determinado lugar pelo qual somos afetados, atravessados e interpelados pelo mundo que habitamos. Não é um lugar de \”substância\” ou \”identidade\”, mas é um lugar pelo qual nosso corpo sente e reage ao mundo. A denúncia do racismo, nesse sentido, não se constitui como um espaço de \”autoridade de fala\” – como costumam acusá-lo, mas é um lugar onde corpos são afetados, mortos, expulsos. Os homens brancos de esquerda, se quiserem sair desse lugar melancólico do poder perdido, precisam se situar, \”construir o aqui e agora\”, fazer um corpo que não seja um corpo que se pensa \”neutro\”, vão precisar fazer uma política do cotidiano, do cuidado, da reprodução da vida. E para isso precisam abandonar essa ficção de vanguarda iluminada.

    IHU On-Line – Depois de uma onda de manifestações no início do ano, não se viu mais grandes manifestações no país. Como você explica a falta de manifestações na atual conjuntura? Por que elas diminuíram nos últimos meses?

    Alana Moraes – Esse é justamente o poder atuando em sua forma drástica de despotencialização dos corpos. De certa forma, o Brasil talvez nunca tenha vivido um período tão intenso de grandes mobilizações. As pessoas estão indo para a rua desde 2013. O golpismo foi sagaz de produzir uma leitura pacificada dos conflitos sociais: de um lado as manifestações dos verde-amarelos, de outro as manifestações dos vermelhos. \”Nós vamos fazer um Brasil de todos\”, eles dizem. Esse discurso tem sido usado muito bem pelo Dória: \”Vamos entregar São Paulo para os paulistanos\”. Precisamos saber recuperar o conflito a nosso favor, não negá-lo. O lulismo foi também uma boa pedagogia de domesticação dos conflitos. Como elaborar uma nova radicalidade que não seja aquela óbvia de uma vanguarda que se pensa sempre à frente e dirigente dos processos de luta? Esse é o desafio.

    Os rapazes do Movimento Brasil Livre – MBL estão restituindo a potência de alguns corpos atingidos pela crise da masculinidade, pela perda de alguns privilégios. Eles restituem a potência pela aniquilação do outro, pela misoginia que promete o poder da virilidade perdida. São machinhos histéricos em busca de satisfação por uma dominação que eles nunca tiveram. Citando outra vez o comitê invisível, eles terminam o livro \”Aos nossos amigos\” afirmando que \”tornar-se revolucionário é se entregar a uma felicidade difícil, mas imediata\”. A nossa nova radicalidade está aí, eu penso. Precisamos entender outras formas de restituir nossa potência que não seja via grandes manifestações. Eu encontro essa felicidade quando vou em uma batalha de Slam na rua, por exemplo, ou numa performance dos secundaristas que ocuparam suas escolas e hoje retomam a frase da Emma Goldman \”não me convide para uma revolução em que eu não possa dançar\”, quando estou compartilhando uma refeição numa ocupação de sem-tetos.

    Parte da esquerda mais tradicional agora inventou uma cruzada contra o que eles chamam de \”cirandeiros\”. O que são os cirandeiros? Seriam corpos felizes, em festa, celebrando a importância de estarmos juntos, criando novas poéticas de resistência? Eu fico com a felicidade. Quem aposta na mobilização do ressentimento é o fascismo, nossa aposta tem que ser justamente oposta. Os povos indígenas e muitos povos da África sempre souberam da potência da festa como forma de permanecermos em guerra. \”O corpo que dança e luta é campo de batalha\” escreveu a Julia Ruiz em um texto do Urucum.

    IHU On-Line – Tem havido um diálogo entre velhos e novos movimentos sociais? Sim ou não e por quê? Quais diria que são as vias possíveis de diálogos entre eles e quais são as dificuldades de estabelecer esse diálogo?

    Alana Moraes – Acredito que tenham algumas brechas abertas e interessantes e elas estão sendo feitas no nível do território. Compartilhar um território em comum e pensar a sobrevivência dele, pensar em como vamos nos implicar com um funcionamento de um mesmo espaço, como vamos produzir juntos um modo de vida, acho que esse é o terreno possível de diálogo. Não acredito nesse clamor atual por uma \”unidade da esquerda\”. Não acredito que uma unidade \”programática\” seja possível nem desejável. Eu penso muito mais em alianças e essas alianças têm mais chance de acontecer em torno de uma causa situada, de um problema comum. Falo desde a experiências das ocupações urbanas. Elas nos colocam problemas muito concretos: como vamos cozinhar para tantas pessoas, como vamos fazer um banheiro, ter energia elétrica, cuidar das relações, dos sofrimentos uns dos outros? Acho que essa conjuntura de precariedades generalizadas vai nos impor, querendo ou não, esse desafio. Como vamos manter um posto de saúde funcionando? Como vamos garantir o funcionamento das escolas no bairro que estão ficando sem merenda, sem materiais básicos? O \”diálogo\” vai ter que se dar no terreno da prática, da nossa sobrevivência. Temos que retomar a capacidade de produzir nossas infraestruturas e não sermos mais dominados pelos \”modos de fazer\” do capital. Isso vale pra internet ou para a gestão dos nossos bairros.

    IHU On-Line – Nos últimos anos, foi feita uma crítica ao PT e aos próprios movimentos sociais que ficaram subordinados ao partido e foram aparelhados. Diante disso, como é possível reinventar a política e os movimentos sociais a partir de agora? De que modo os movimentos autonomistas poderiam contribuir para reconstruir a esquerda, por exemplo, e que tipo de relação deveria existir entre os movimentos e um novo possível governo de esquerda?

    Alana Moraes – Não gosto do termo \”aparelhados\”. Os movimentos sociais fizeram uma aposta em um projeto político e coletivo, isso é legítimo. Esse projeto se esgotou e foi derrotado. Mas também teve sucesso em algumas apostas, como a ampliação drástica do ensino superior, para ficar num exemplo emblemático. Abalou de algum modo a estrutura de classes no Brasil – sem isso, o golpe não teria sentido algum. Mas precisamos saber extrair conhecimento desse esgotamento. Não dá para o PT continuar achando que estava fazendo uma revolução. Os movimentos e forças políticas que estiveram dentro desse projeto, dentro dos governos, poderiam fazer um esforço teórico e político agora de abrir as engrenagens internas do sistema, de apontar as contradições. Ninguém entende melhor como as classes dominantes funcionam como o PT. Precisamos entender como o sistema político se manteve todo esse tempo com Joesley e Odebrecht dando as cartas. No fundo, o que Junho de 2013, entre outras coisas, exigia do PT era isto: se o PT era refém das regras do jogo porque não estar do lado de quem quer destruí-las?

    Por outro lado, a proliferação recente de coletivos, movimentos, e novas lutas no Brasil precisavam se encontrar mais. Estamos tendo um problema muito básico que tem a ver com a ausência de espaços de encontro. Essa é a principal vitória do neoliberalismo, na minha opinião. Só para ficar com o exemplo de São Paulo. Aqui hoje temos coletivos que estão atuando contra as apropriações privadas dos espaços da cidade. O movimento Parque Augusta está impedindo há 4 anos a construção de grandes empreendimentos imobiliários em uma área verde da cidade. Temos centenas de coletivos periféricos que também estão discutindo o território a partir de outras chaves: militarização, racismo de Estado, produzindo novas linguagens.

    Coletivos que estão na cracolândia denunciando o novo higienismo urbano e tendo que dar conta do desmonte de toda uma rede de assistência. Temos o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST sustentando ocupações nas periferias, coletivos de arte, midialivrismo, segurança e ativismo nas redes, grupos lutando contra monopólios de todo o tipo, rede de advogados ativistas, redes de agroecologia, temos a experiência do MPL no debate sobre mobilidade urbana, clínicas públicas de psicanálise, uma aldeia indígena lutando pela sua sobrevivência, um quilombo urbano.

    Difícil convencer alguém que vivemos em uma \”crise das lutas\”. Talvez a gente viva numa crise do encontro. Nos organizar não tem a ver com estarmos em um partido, mas com a possibilidade de enxergarmos linhas de conexão entre nossas experiências de luta, de sabermos costurar nossos lugares, estarmos abertos a compreender outras situações. \”Pensar outramente\” – recuperar o projeto antropofágico de pensar com o outro, de se interessar profundamente por aquilo que não é seu e estar aberto a esses atravessamentos.

    IHU On-Line – Quais são as pautas que devem motivar os novos coletivos e movimentos à esquerda no país?

    Alana Moraes – São muitas, não dá para eleger em uma hierarquia de importância. Algumas questões me tocam mais, acho que elas trazem caminhos interessantes. Por exemplo: como vamos viver juntos? Como vamos retomar a possibilidade de, em alguma escala, organizar nossas próprias vidas? Nós, mulheres, nunca deixamos de pensar essa questão. Sempre estivemos vinculadas, querendo ou não, a esse espaço de reprodução básica da vida. Vamos precisar deslocar o tema do \”cuidado\” para o centro do debate político. Cuidado com as relações, cuidado com os nossos corpos, cuidado com as experiências das nossas lutas. Junto a isso, acho que temos que levar mais a sério a noção de tecnologia.

    A Isabelle Stengers propõe a noção de “tecnologia” em contraposição à ideia de “verdade”. É uma distinção ética baseada no postulado de que a “tecnologia” possui um “senso de responsabilidade” do qual a “verdade” sempre escapa. A verdade dos programas, a verdade de uma esquerda que se pensa pura. Ou seja, precisamos elaborar e organizar nossas tecnologias de fazer mundos, de possibilitar modos de vida dissidentes e é isso que vai nos implicar, criar pertencimentos. É o problema da infraestrutura, não podemos deixá-lo escapar. Os governantes querem nos convencer que eles têm o monopólio técnico e especializado de resolver nossos problemas. Por fim, tem o tema urgente da militarização, da repressão, da polícia. Os 18 jovens que estão sendo agora criminalizados por terem feito uma reunião. Intervenções militares em Vitória, no Rio de Janeiro. Isso tudo é muito grave e precisamos nos proteger. Isso nos exige uma contra cartografia de como age o poder hoje, os monopólios, as forças policiais. Não podemos ser ingênuos.

    IHU On-Line – Qual tem sido o impacto político dos últimos acontecimentos ao PT, como o depoimento do Palocci, a reação do PT em relação ao depoimento e a carta dele enviada ao partido?

    Alana Moraes – Eu acho que o PT está muito anestesiado. É quase um choque pós-traumático, não consegue produzir muitas reações. Não vejo muita discussão interna no partido, o Lula hoje é a única coisa que mantém o PT. Se o Lula não consegue manter a candidatura, não sei como o PT conseguirá se manter como partido.

    IHU On-Line – Recentemente uma pesquisa realizada pelo Datafolha indicou que mais de 60% dos possíveis eleitores de Bolsonaro numa futura campanha presidencial, seriam jovens. Como você lê esse tipo de resultado?

    Alana Moraes – Acho que essa não é a melhor leitura da pesquisa. O Hugo Albuquerque chamou a atenção para essa sutileza. Quem lidera a eleição presidencial entre os jovens na pesquisa do Datafolha é o Lula. Ainda que o Bolsonaro tenha um eleitorado mais jovem do que a média, ele não é o líder nesse segmento. Penso, como o Hugo, que a melhor chave de leitura dessa pesquisa continua sendo a de classe. O possível eleitorado do Bolsonaro é formado por pessoas ricas e com ensino superior. Sobre pesquisas geracionais, eu fico com aquelas que analisaram as manifestações de Junho de 2013 em comparação com as manifestações pelo impeachment de 2015: aí o corte etário é brutal. Junho foi predominantemente jovem enquanto as manifestações pelo impeachment foram muito velhas e brancas. Acho essa cisão etária mais interessante para pensarmos novos caminhos.

    IHU On-Line – Que alternativas à esquerda vislumbra para as próximas eleições de 2018? Hoje especula-se em torno dos nomes de Lula, Ciro Gomes, Guilherme Boulos. Qual seria o significado dessas possíveis eleições para a esquerda?

    Alana Moraes – Está tudo ainda em aberto. A candidatura do Lula está ainda muito ameaçada pelas forças do golpe de impugnação. O Lula é o nome mais forte, sem dúvida, para enfrentar a direita ainda que o problema de uma recomposição de lulismo seja de difícil resolução. Lula vai ser a figura de reconciliação do sistema ou vai assumir um lugar de ruptura? É possível refazer a aliança de classes do lulismo? Lula vai ser capaz de ser afetado por uma nova geração politica que se expressou em junho e que deseja uma outra radicalidade nos modos de fazer política para além do jogo da \”participação\” definido pelo PT? Eu tenho dúvidas.

    Mas o outro lado está também ainda muito confuso, me parece que eles ainda não têm uma estratégia comum. O Bolsonaro virou um monstro que parte da direita não consegue controlar, inclusive os poderes midiáticos. Não estamos levando em conta que parte da direita vai tentar, a todo custo, tirar o Bolsonaro do jogo. O PSDB vai entrar em uma disputa interna explosiva se o Alckmin não conseguir controlar o Dória, e o Aécio já começou a ser rifado também. O MBL está se colocando como um ator que pode operar uma certa reconfiguração com Dória, agronegócio e evangélicos, mas acho que eles não têm cacife para isso. Não se organiza caciques mafiosos, uma casta política completamente integrada ao sistema com gritos histéricos. O MBL vai ter que oferecer algum plano mais seguro, garantias. Enfim, o cenário também não está simples para eles.

    Tem alguns atores e atrizes do nosso lado interessantes, que podem entrar nesse jogo na \”erupção imprevisível do novo\”, como dizia Benjamin: O Guilherme Boulos do MTST e a Áurea Caroline, vereadora de Belo Horizonte. Imagina uma mulher negra e feminista em um debate contra o Bolsonaro! Mas acho que temos que seguir em 2017 e pensar uma temporalidade mais de médio prazo. O estrago foi grande, vamos ter que reconstruir toda uma existência e não podemos ser engolidos pela conjuntura eleitoral – precisamos pensar apesar dela. Eu acredito mais no programa em curso das lutas e das experimentações que já acontecem do que na expectativa eleitoral de 2018.

    É importante voltar a pensar nas eleições como uma expressão do incontornável de um processo em curso, de um acúmulo de lutas e proposições. Por isso é importante buscarmos os interstícios, os lugares de respiro. Vai ser muito importante tentar criar um novo campo de conflitualidade que escape do enquadramento da polarização desejada pela direita e fabricada pelo antagonismo petismo versus antipetismo. Ao mesmo tempo, não acredito em apelos republicanos à uma esfera pública na qual possamos pacificar o conflito. O conflito está instaurado e a luta de classes nos exige uma coreografia mais intensa, apaixonada. Se o fascismo tem conseguido mobilizar as paixões para um projeto autoritário de dominação, nossa matéria prima terá que ser de natureza radicalmente diferente: uma paixão de liberdade. 2018 também é o ano em que vamos comemorar 50 anos de 68.