Tag: crime

  • Brasil-brasa-chama: algumas notas sobre a situação política brasileira

    Originalmente publicado em: http://www.buala.org/pt/vou-la-visitar/brasil-brasa-chama-algumas-notas-sobre-a-situacao-politica-brasileira

    Para Marco Aurélio Garcia, militante e intelectual internacionalista / in memoriam

    fora todos

    Desde 2013 e seu junho disruptivo, o sistema político brasileiro está num processo de gradual perda total de legitimidade. O atual momento (de um presidente ilegítimo e com aprovação popular praticamente inexistente[3]) representa por ora o ápice desseque se vayan todos contínuo de quatro anos, bem diferente do caso clássico e incisivo argentino que, em 2001, derrubou vários presidentes em poucos dias a partir de fortes mobilizações de rua[4]. Ao medo de todos pertencentes aos poderes constituídos em junho de 2013, sucederam tentativas de captura e esperanças de muitos que esse acontecimento fosse passageiro – a crise política, no entanto, persistiu e se agudizou.

    Alguém, no entanto, vai se eleger em 2018 (se houver eleições) e essa pessoa virá de algum canto: do partido da justiça, da Globo ou da mídia, dos bancos, do sistema político moribundo (Geraldo Alckmin, Marina Silva[5]) ou alguma surpresa. Nesse sentido, vale perguntar se a Lava Jato é uma exceção para atingir o PT e alguns poucos mais (Eduardo Cunha, Sergio Cabral[6]), pois boa parte da casta política está aí, inquieta mas ainda relativamente intocada, tentando se segurar e abafar a Operação (como Temer e Aécio[7], dentre outros). Vale questionar igualmente que economia resiste a investigações a fundo, via delações premiadas, de seus vínculos com o sistema político, das relações entre elites política e econômica (e até militar)? Imaginam isso ocorrendo nos EUA do complexo industrial-militar ou na França da antiga petroleira ELF e seu papel nas conexões com o continente africano (Françafrique)?

    Qual a originalidade brasileira nesse contexto? É o país mais corrupto que todos os demais? A venda de decisões governamentais, promiscuidades entre “público” e “privado” e a corrupção da democracia seriam uma exclusividade nacional? Por que aqui assumiu essa dimensão[8]? Além disso, a limpeza por ora se limita a um setor bem específico do capitalismo brasileiro, as empreiteiras. Setores com suspeitas de mal-feitos como grandes grupos de comunicação e bancos estão por ora fora do leque investigativo e punitivo e temores destes se fizeram notar no processo de negociação da delação premiada de Antonio Palocci, ex-ministro de Lula e Dilma. Ademais, fica pendente uma investigação mais apurada sobre questão do “elemento externo”, acerca do papel dos EUA e suas agências nesse processo – talvez futuros vazamentos (leaks) ajudem também nessa empreitada.

    \"\"
    \’As instituições políticas representativas estão derretendo\’. foto de isidro martins\’As instituições políticas representativas estão derretendo\’. foto de isidro martins

    choque

    A ativista e pesquisadora Naomi Klein já pode acrescentar mais um estudo de caso ao seu importante livro (esgotado no Brasil)[9]. Um choque-golpe em forma de impeachment sem crime de responsabilidade, governo temerário e restauração neoliberal na seguinte agenda: drástica contenção dos gastos públicos, mudança na legislação do pré-sal favorecendo o capital estrangeiro, reorientação da política externa, o liberou-geral da terceirização, mudanças nas regras da aposentadoria, ataque aos povos indígenas, desmonte das políticas culturais, diminuição dos beneficiários do Bolsa Família, aumento do desmatamento, intensificação da repressão aos movimentos sociais e uma série de descalabros que poderiam compor uma lista quase interminável. Entramos num buraco cada vez mais fundo – o abismo nos espreita – e o Estado do Rio de Janeiro é o retrato da calamidade (pública), ao não conseguir honrar mais compromissos mais básicos (manutenção mínima da infra-estrutura social, pagamento dos servidores), que pode atingir rapidamente o país como um todo.

    Crise política, social (mais de dez milhões de novos desempregados em dois anos, a fome retornando e as desigualdades voltando a se acentuar) e econômica (recessão, economia em frangalhos). As reformas trabalhista e da previdência como continuidade, desdobramento e motivação do golpe; nenhuma eleição chancelaria tal programa. Temos um sistema sem nenhuma legitimidade (e sem o crivo das urnas) aprovando reformas importantes e impopulares (em vários sentidos)[10]. Mesmo a queda de Temer não breca as reformas, já que ele se fragiliza justamente ao gastar boa parte do tempo e energia em defender-se das graves denúncias de corrupção que sofre, diminuindo o ritmo de aprovação dessas mal-chamadas reformas.

    Creio que Temer não deve terminar seu mandato usurpador, mas de alguma forma, isso pouco importa: entrará outro (Rodrigo Maia[11]) em eleições indiretas e buscará efetivar essa obsessão golpista pela retirada de direitos dos trabalhadores e dos de baixo, junto com a continuidade do Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles[12]. Até termos eleições diretas? Ninguém pode ter certeza que haverá eleições no ano que vem (previstas para outubro de 2018). Não é difícil vislumbrar mais um golpe no golpe, que pode tomar a forma de impedir a candidatura Lula, da adoção abrupta do parlamentarismo, adiamento do pleito ou qualquer outra manobra. É significativo para compreender nossa situação o fato do sistema não ter suportado nem mesmo um programa moderado de mudanças. Na justiça de exceção que se manifesta continuamente no país e agora atinge Lula em sua injusta e absurda condenação em primeira instância a uma pena de quase dez anos por um imóvel que ele não possui e visitou uma vez – de outra forma e numa intensidade bem distinta em relação ao emblemático caso do Rafael Braga[13], pode-se dizer que Lula foi tornado preto (ou seja permanentemente condenável sem provas).

    \"\"
    \’Entramos num buraco cada vez mais fundo – o abismo nos espreita – e o Estado do Rio de Janeiro é o retrato da calamidade (pública)\’. foto de isidro martins\’

    lutas

    Vivemos uma insatisfação altíssima (e uma esmagadora maioria apoia eleições diretas imediatas, de acordo com as pesquisas[14]), mas sem expressão contundente nas ruas. É certo que tivemos atos fortes na greve geral do 28 de abril e no ato em Brasília do dia 24 de maio[15], mas essas belas jornadas não tiveram continuidade nem lograram manter a pressão. Ocorrem várias mobilizações militantes sim, mas que penam em chegar nas “pessoas comuns”. Se o governo ilegítimo e seu mundo permanecem de pé (ainda que cambaleantes – até quando?), tudo indica que revoltas mais fortes estão por vir, inclusive por conta da deterioração das condições de vida da população. As crises tendem a piorar[16].

    A isso se soma um fato curioso: um sistema em crise e sem uma esquerda fazendo uma crítica radical a ele. Viveríamos um cenário de terra arrasada? Apesar da situação adversa e difícil, temos muita luta no Brasil – trata-se, certamente, de um dos países com movimentos mais fortes. Desde o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)[17], sua Escola Nacional Florestan Fernandes (um belíssimo caso de educação popular) e todos os movimentos do ciclo de lutas que se inicia no fim dos anos 1970 ao surgimento de novas iniciativas subversivas. Podemos nos referir tanto ao fortalecimento (apesar do etnocídio nunca interrompido) dos coletivos indígenas e à exuberância LGBT, secunda, feminista e negra, quanto à uma miríade de experiências, urbanas e rurais (festas, hortas, saraus, ocupações variadas). Uma periferia bombando política, cultura e existencialmente. Um novo imaginário radical com tintas de autonomia de variadas intensidades. Podemos pensar numa cartografia selvagem conectando essas múltiplas terriorialidades: desde os territórios indígenas (que compõem 12% do país) aos ditos tradicionais (quilombolas e outros) aos quais se juntam ocupações de terra, prédios, locais de trabalho, cultura. Como conectar, fortalecer o apoio mútuo desse tecido organizativo subversivo, suas territorialidades livres e conexões numa infra-estrutura da vida?

    Transição. Dissemos acima que o sistema político brasileiro está em xeque desde 2013. Isso também significa que um novo ciclo de lutas também se inicia nesse contexto; do país e da esquerda. O anterior (iniciado no fim dos anos 1970 e do qual os governos petistas são um desdobramento institucional e moderado) produziu uma série de “entidades agregadoras” (Partido dos Trabalhadores (PT), Central Única dos Trabalhadores (CUT), MST e outras mais). Hoje vivemos esse nó, um desafio de política-criação, de articulação das diferenças que as duas frentes de partidos e movimentos existentes (a Brasil Popular, puxada por MST, CUT e PT, e a Povo sem Medo, capitaneada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST) não conseguem efetuar ou só o fazem de forma (infelizmente) bastante limitada – deixam muitas ricas lutas de fora.

    Nesse contexto, Lula permanece o principal personagem político do país desde 1989 e deve continuar ainda nesse posto por um tempo, mesmo se não puder ser candidato nas eventuais eleições do próximo ano. Político de maior aprovação popular apesar de todos os ataques, Lula mostra uma excepcional resiliência. Ontem e hoje, apresenta-se como problema e como solução. Ontem, personificou um ponto de convergência para boa parte da esquerda e ponto de referência para a população e os de baixo, mas também abafou experiências alternativas dessa mesma esquerda. Hoje, pode ainda representar um freio a um avanço (em curso?) da extrema-direita (seu candidato, o deputado Jair Bolsonaro alcança 20% nas pesquisas para as presidenciais) e contra o apetite arrasador da restauração neoliberal, mas é também um problema, pois ele não parece levar em conta (e isso, apesar da candidatura posta para 2018) as novas subjetividades e aspirações nem apresenta um esboço de programa para as atuais condições. Acaba, assim, colocando a discussão no terreno das eleições de 2018 e ainda numa chave de debate empobrecida, que talvez subestime os perigos da conjuntura atual[18].

    \"\"
    \’Apesar da situação adversa e difícil, temos muita luta no Brasil – trata-se, certamente, de um dos países com movimentos mais fortes\’. foto de isidro martins\’Apesar da situação adversa e difícil, temos muita luta no Brasil – trata-se, certamente, de um dos países com movimentos mais fortes\’. foto de isidro martins

    Como seguir nesse momento? Isso envolve, a meu ver, múltiplas dimensões de (re)construção e composição paciente e conjunta, sem atalhos artificiais:

    – um novo programa, no qual pelo menos três pontos me parecem fundamentais: a defesa da vida (o fim da contínua necropolítica brasileira) e a descolonização do país, uma radical reformulação do sistema político e uma economia do comum[19] – para além do nacional-desenvolvimentismo que muitas vezes parece ser a única proposta das esquerdas nesse campo;

    – aliar-se em questões concretas, lutas pontuais e urgências, alianças pragmáticas para o fim das matanças, do encarceramento em massa, para o alívio imediato da pobreza, miséria e desemprego (que regressam com força);

    – criar confluências e coalizões que articulem de verdade classe e diferença. Parece que os seus adversários percebem melhor tais conexões que as próprias esquerdas – Huntington e seus parceiros temiam o fortalecimento da participação, protestos e organizações de “negros, indígenas, chicanos, estudantes e mulheres” e suas demandas/lutas nos anos 1960[20], enquanto um deputado gaúcho, presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, julga que “quilombolas, índios, gays, lésbicas, tudo que não presta”[21] estariam influentes demais no então Governo Federal de 2013;

    – constituir mais espaços de encontro (territorialidades livres, existentes e por vir) e debates (revistas, mídias variadas, peças/filmes/vídeos) – formação e auto-formação.

    Tudo isso com a obsessão de chegar nas pessoas comuns e questões do cotidiano, multiplicando as experiências, tentativas e perguntas coletivas.

    NOTAS

    Agradeço os comentários de Sebastião Neto, Ramon Szermeta, Alana Moraes e Rita Natálio (de quem partiu a ideia desse texto).

    [3] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/06/1895650-maioria-dos-brasileiros-pede-saida-de-presidente.shtml e http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/06/1895645-aprovacao-da-gestao-temer-cai-a-7-menor-em-28-anos.shtml

    [4] No preciso paralelo feito por Ramon Szermeta: “enquanto na Argentina em 2001 um martelo se abateu sobre todo o sistema representativo causando um terremoto e produzindo um efeito de castelo de cartas, no Brasil, ao contrário, o efeito mais se assemelha ao de cupins corroendo diária e lentamente o que ainda havia de credibilidade das instituições em todos os níveis, numa ação que originalmente havia sido programada para atingir exclusivamente o governo, seu partido e sua base de sustentação e se espalhou atingindo a todos”.

    [5] Respectivamente, atual Governador de São Paulo, do PSDB, e ex-senadora e ex-ministra, duas vezes candidata à Presidência, da Rede.

    [6] Respectivamente, o ex-presidente da Câmara dos Deputados e o ex-Governador do Rio de Janeiro; ambos do PMDB e encarcerados.

    [7] Senador e Presidente do PSDB, perdeu a última eleição presidencial para Dilma Rousseff.

    [8] Sobre a Operação Lava Jato, vale muito a pena ler de Bruno W. Reis “A Lava-Jato é o Plano Cruzado do combate à corrupção”. http://novosestudos.uol.com.br/a-lava-jato-e-o-plano-cruzado-do-combate-a-corrupcao/ (agradeço a indicação de leitura de Vera Telles).

    [9] Naomi Klein. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro, Record, 2008.

    [10] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/05/1880026-71-dos-brasileiros-sao-contra-reforma-da-previdencia-mostra-datafolha.shtml e http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2017/05/1880398-maioria-rejeita-reforma-trabalhista.shtml

    [11] Atual presidente da Câmara dos Deputados, do DEM, primeiro na linha sucessória.

    [12] http://midianinja.org/guilhermeboulos/meirelles-e-a-falencia-da-democracia/

    [13] Jovem catador negro, preso no dia 20 de junho de 2013 no Rio por portar duas garrafas com produtos desinfetantes nesse dia da maior manifestação (na qual ele nem tinha participado). Foi condenado a mais de cinco anos de prisão por estar portando esse produtos perigosos. Depois de conseguir, devido à progressão da pena, sair da prisão com tornozeleira eletrônica, a Polícia Militar o acusou, em outro episódio, de tráfico emputando a ele o porte de drogas. Foi condenado a 11 anos de prisão. Seus advogados recorreram e mobilizações buscam impedir mais essa brutal injustiça. Para saber mais, veja: https://libertemrafaelbraga.wordpress.com/about/, http://midiacoletiva.org/documentario-rafael-braga-o-homem-que-foi-condenado-por-porte-de-pinho-sol/ e http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/na-historia-de-rafael-braga-retrato-de-nosso-judiciario-racista/

    [14] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/04/1879861-com-rejeicao-a-temer-de-61-85-defendem-eleicao-direta-diz-datafolha.shtml

    [15] Sobre esse ato em Brasília, ver os relatos de Gavin Adams (https://urucum.milharal.org/2017/05/24/historia-em-pedacos-brasilia-24-de-maio/) e de Henrique Rocha (https://m.facebook.com/henrique.rocha.9404?fref=nf&refid=52&__tn__=C-R).

    [16] Acerca dessa questão, uma boa entrevista do coordenador do MTST, Guilherme Boulos: https://www.conversaafiada.com.br/tv-afiada/boulos-a-revolta-e-subterranea-num-barril-de-polvora

    [17] No dia 25 de julho, o MST protagonizou a Jornada de Luta pela Reforma Agrária, a partir do lema “Corruptos, devolvam nossas terras!”, ocupando fazendas de um amigo e assessor de Michel Temer, de Ricardo Teixeira (ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol) e a Base de Alcântara, no Maranhão, a respeito da qual o governo golpista negocia utilização pelos EUA: https://www.brasildefato.com.br/2017/07/25/mst-realiza-serie-de-ocupacoes-durante-jornada-nacional-de-luta-pela-reforma-agraria/

    [18] Ler a interessante análise de Juarez Guimarães: http://www.sul21.com.br/jornal/nao-ha-nada-mais-desmobilizador-hoje-do-que-2018-entre-nos-e-2018-ha-um-abismo/

    [19] Um exemplo talvez pioneiro que se aproxima disso, vindo do Equador, FLOK/Buen conocer: modelos sostenibles y políticas públicas para una economía social del conocimiento común y abierto en Ecuador. http://book.floksociety.org/ec/

    [20] Michel Crozier, Samuel P. Huntington e Joji Watnuki. The Crisis of Democracy: report on the governability of democracies to the Trilateral Commission. New York University Press, 1975 (p. 61).

    [21] http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2014/02/em-video-deputado-diz-que-indios-gays-e-quilombos-nao-prestam.html

  • Violência, pobreza, cultura e potência. A periferia e as tentativas de transformação da realidade. Entrevista especial com Tiaraju D’Andrea

    Por: Patricia Fachin, entrevista Tiaraju D\’Andrea

    fonte: http://www.ihu.unisinos.br/568429-o-sujeito-periferico-e-suas-tentativas-de-transformar-a-realidade-entrevista-especial-com-tiaraju-d-andrea

     

    “A periferia paulistana passa por um período de transição”. Esse é um dos diagnósticos do sociólogo Tiaraju D’Andrea, que acompanha as transformações nas periferias nos últimos 25 anos. Segundo ele, embora o lulismo tenha representado “uma melhoria nas condições de vida” na periferia, “o desemprego ronda esta população, sendo as condições de trabalho uma preocupação concreta”, e “há uma descrença generalizada nos partidos políticos e no sistema representativo como um todo”.

    Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, D’Andrea explica as principais transformações ocorridas na periferia paulistana em duas décadas e meia, como o surgimento do Primeiro Comando da Capital – PCC, o crescimento dos evangélicos e a explosão de coletivos artísticos. “Esses três fenômenos foram saídas encontradas pela própria população da periferia para superar o contexto de violência e pobreza da década de 1990. Foram formas de superar o esgarçamento do tecido social e criar uma ética regulatória em um contexto de crise”, avalia.

    Além disso, pontua, três outros fenômenos que não estavam presentes na década de 1990 ajudam a compreender as transformações nas periferias. “Uma narrativa, ou a tentativa da periferia de contar a sua própria história e sem depender de mediadores, uma subjetividade, ou o fato de os moradores da periferia passarem a ter orgulho dessa condição, e o lulismo, como forma de governo, baseado no aumento dos direitos sociais e do consumo”. Na atualidade, frisa, “pode-se observar o crescimento de tendências conservadoras, assim como na sociedade em sua totalidade”.

    \"\"
    Tiaraju D’Andrea | Foto: Arquivo pessoal

    Tiaraju D’Andrea é doutor em Sociologia da Cultura, mestre em Sociologia Urbana e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Atualmente é pesquisador convidado da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris.

     

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – Um dos temas problematizados na sua tese é o sentido e o significado do termo ‘periferia’. O que entende por ‘periferia’ a partir das suas pesquisas?

    Tiaraju D’Andrea – Historicamente, sempre houve uma disputa entre distintos agentes sociais para obter a preponderância para definir o que era ou o que é um fenômeno social de nome periferia. Denominamos aqui “discurso preponderante” aquele que possui maior abrangência e aceitação social para a explicação de um determinado fenômeno, mas isso não quer dizer que não existam outras explicações concorrentes.

    De acordo com a tese, de mais ou menos 1960 até 1993, a academia possuía a preponderância da explicação do fenômeno periferia. Eram intelectuais de distintas áreas como sociologia, antropologia, geografia, economia, história e urbanismo que conflitavam entre si para obter a explicação mais aceita, mas tudo se passava dentro das formulações da academia. A partir de 1993, com o lançamento de um CD do grupo de rap Racionais MC’s de nome “Raio-X Brasil”, a preponderância passa para moradores de bairros periféricos, cuja eficácia da expressão ocorreu pela via artística, e não pela via científica. Esse CD apresentou ao mundo raps como: “Fim de Semana no Parque” e “Um Homem na Estrada”, dentre outros. Esses raps foram tão impactantes que mudaram a forma de se pensar e enxergar a periferia. A preponderância periférica sobre o fenômeno periferia durou mais ou menos até o ano de 2002, quando o lançamento do filme “Cidade de Deus” fez com que a Indústria do entretenimento passasse a possuir a preponderância das representações sobre o que seja a periferia. Esse filme abriu as portas para uma série de produções cinematográficas e televisivas sobre o assunto. A partir de 2002 a produção da periferia sobre o fenômeno periferia passa a ter um concorrente de maior peso social: a indústria do entretenimento.

    IHU On-Line – Quais são as principais mudanças sociais, culturais e econômicas ocorridas nas periferias paulistanas desde os anos 1990 até os dias de hoje?

    Tiaraju D’Andrea – Certamente, um território amplo como o que denominamos periferia é múltiplo sincronicamente, assim como diacronicamente foi passando por mutações. Creio que nos últimos 25 anos é possível enumerar alguns fenômenos que não existiam antes dos anos 1990. São eles:

    1) o surgimento do PCC,

    2) o crescimento dos evangélicos e

    3) uma explosão de coletivos artísticos.

    Estes três fenômenos foram saídas encontradas pela própria população da periferia para superar o contexto de violência e pobreza da década de 1990. Foram formas de superar o esgarçamento do tecido social e criar uma ética regulatória em um contexto de crise.

    Outras duas tentativas de superação da violência foram provenientes de agentes externos à periferia. Foram elas:

    4) O crescimento da presença de ONGs (Organização Não Governamental) nessas regiões e

    5) o aumento da presença estatal.

    Por fim, outros três fenômenos que não existiam até a década de 1990, passaram a ocorrer nessas regiões. São eles:

    6) uma narrativa, ou a tentativa da periferia de contar a sua própria história e sem depender de mediadores;

    7) uma subjetividade, ou o fato de os moradores da periferia passarem a ter orgulho dessa condição; e

    8) o Lulismo, como forma de governo, baseado no aumento dos direitos sociais e do consumo.

    Na atualidade, pode-se observar o crescimento de tendências conservadoras, assim como na sociedade em sua totalidade. Ainda é cedo para saber se esse fenômeno é conjuntural ou estrutural.

    No que tange à produção artística, e aqui me aterei à música, é interessante notar como nos anos 1980 houve uma preponderância do samba e do rock nacional. Nos anos 1990 o gênero hegemônico foi o rap. A partir dos anos 2000 o funk passou a tomar a cena. Também não podemos esquecer o sertanejo e suas distintas variações, dado que é o gênero mais escutado no Brasil como um todo, inclusive nas periferias paulistanas.

    IHU On-Line – Na sua tese você analisa a “explosão de atividades culturais na periferia nos últimos 20 anos”. Quais atividades são essas e a que atribui esse cenário?

    Tiaraju D’Andrea – Trata-se de uma série de atividades artísticas e culturais que ganharam impulso a partir dos anos 1990 e foram agraciadas com uma série de financiamentos públicos a partir dos anos 2000. Nessas podem-se incluir os saraus, as comunidades de samba, as posses de hip-hop, os cineclubes audiovisuais, os grupos de teatro, os grupos de dança, a literatura marginal, dentre outras. Todas essas atividades são organizadas por coletivos artísticos.

    A explosão do número desses coletivos artísticos na periferia de São Paulo nos últimos vinte anos ocorreu por pelo menos cinco grandes fatores:

    a) Produção artística como pacificação: neste caso, a produção artística foi uma saída para a espiral de violência que se abateu sobre as periferias na década de 1990.

    b) Produção artística como sobrevivência material: neste ponto, a produção artística foi uma forma de auferir renda em um contexto de pobreza. Isto ocorre pelo crescimento de financiamentos e de mercado para esta produção. Obter renda por meio de produção artística era uma forma de escapar de duas soluções pouco interessantes: de um lado o mundo do trabalho capitalista stricto sensu, que sempre representou exploração, baixos salários e humilhação para a população mais pobre; por outro lado, a possibilidade dada a jovens de baixa renda de auferir recursos por meio de atividades ilícitas.

    Entre o mundo do trabalho e o mundo do crime, construiu-se uma terceira opção: a produção artística como forma de sobrevivência material. Cabe destacar que a partir do ano 2000 aumentou exponencialmente o número de financiamentos para esse tipo de atividade.

    c) Produção artística como participação política: na década de 1990, em um contexto de crise das formas clássicas de participação política expressa em partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, os coletivos de produção artística passaram a reaglutinar os indivíduos que buscavam intervir politicamente.

    d) Produção artística como emancipação humana: neste caso, a produção artística foi uma forma de moradores de bairros periféricos sentirem-se vivos e se humanizarem em um contexto de múltiplas violências, humilhações e estigmas.

    e) Produção no local como resposta à segregação socioespacial: neste ponto, avalia-se a multiplicação de atividades artísticas na periferia como forma de dotar o local, levando-se em conta que na cidade de São Paulo os equipamentos culturais concentram-se mormente na região central e no quadrante sudoeste.

    IHU On-Line – Como os coletivos artísticos se manifestam na periferia e ressignificam o entendimento de periferia?

    Tiaraju D’Andrea – Para responder essa questão é necessário recuar no tempo. Em meados de 1990, o termo periferia passou a ser utilizado de maneira política pelos próprios moradores de periferia. Essa utilização fez com que o termo se popularizasse. Em um primeiro momento, essa utilização do termo periferia ocorreu pela ação do movimento hip-hop, depois passou a ser utilizado e disseminado por uma série de outras expressões culturais presentes nas periferias. Nesse primeiro momento de utilização do termo periferia, fundamentalmente nos primeiros anos da década de 1990, o termo tinha um caráter de denúncia, pois mostrava à sociedade a realidade ou a verdade, criticando com isso o pensamento hegemônico neoliberal de princípios dos 1990 que pregava o “fim da história” ou o “fim das classes”.

    Aquele mostrar a realidade em caráter de denúncia se apoiava na apresentação de duas características da periferia: a violência e a pobreza, como forma de criticar a sociedade, mostrando características presentes na realidade social que o pensamento hegemônico queria esconder. No entanto, afirmar-se enquanto periferia por meio dos elementos violência e pobreza era pautar um processo histórico de superação desses elementos. Logo, periferia continha e negava violência e pobreza. Assim sendo, a partir de meados da década de 1990 começa-se um processo histórico de superação desses dois elementos, do qual a produção artística dos bairros periféricos foi um dos principais articuladores. Hoje o significado do termo periferia foi alargado, sendo que o mesmo se entende contendo em seu âmago quatro significados: violência, pobreza, cultura e potência.

    Devido à fragilidade de expressões políticas tradicionais como partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, fundamentalmente a partir dos anos 1990, uma parte migrou para a produção cultural como forma de fazer protesto e se posicionar politicamente. Essa espécie de orfandade política das periferias fortaleceu o crescimento desses coletivos. Com o passar do tempo, coletivos de várias periferias se organizaram para atuar conjuntamente, fundando assim o Movimento Cultural das Periferias – MCP. Esse movimento formulou uma lei de iniciativa popular que após muita luta foi aprovada, intitulada Lei de Fomento às Periferias.

    Não foi à toa que João Doria (PSDB), ao assumir a prefeitura de São Paulo, reduziu em 43% a verba da cultura do município, atingindo a Lei de Fomento, dentre outras linhas de financiamentos de atividades artísticas nas periferias. Mais do que econômica, essa atitude foi política. Sabendo a importância desses coletivos, o sufocamento econômico é uma forma de desorganizar politicamente as periferias.

    IHU On-Line – De outro lado, a que você atribui o crescimento evangélico nas periferias paulistanas?

    Tiaraju D’Andrea – Creio que múltiplos fatores se somam para este fenômeno. Por um lado, há um conservadorismo crescente na sociedade, do qual os evangélicos são causa e consequência. Por outro lado, esse crescimento é também fruto da dinâmica violenta dos anos 1990. Cabe também ressaltar, a crise econômica faz a população buscar em comunidades religiosas algumas saídas. Tampouco se deve esquecer o eficiente trabalho proselitista dessas igrejas.

    IHU On-Line – Como a presença do PCC se manifesta nas periferias paulistanas? Hoje muitos especialistas em segurança falam que a atuação do tráfico se dá dentro e fora das prisões, inclusive em disputas entre facções fora das prisões. Como isso tem ocorrido nessas periferias?

    Tiaraju D’Andrea – O PCC segue presente nas periferias de São Paulo, mas tem menos impacto no que tange à regulação da violência se comparado a dez anos atrás. Este é um dos fatores do aumento da violência nas periferias nos últimos três anos.

    IHU On-Line – Quais são as principais questões que você tem abordado na sua pesquisa atual sobre “Periferia, Periférico e Sujeito Periférico”?

    Tiaraju D’Andrea – Tento entender quais foram os processos sociais que redundaram naquilo que denomino o ser periférico, que é uma espécie de orgulho de ser morador da periferia em resposta ao estigma que muitas vezes acompanha essa condição. No entanto, essa passagem do estigma ao orgulho só foi possível de acontecer historicamente com a percepção de que a situação urbana e social de um morador da periferia é uma situação distinta de outras situações urbanas e sociais. No entanto, o processo de identificação com essa condição e que redunda no ser periférico, por si só não basta. O sujeito periférico é aquele indivíduo que, por meio da percepção de sua condição e da superação do estigma, age politicamente para transformar a sua realidade, seja incidindo nas condições de moradia, por melhores condições de saúde, de educação, de transporte e de cultura. Cabe destacar, no entanto, que foi no campo da produção artística que se fortaleceu um certo orgulho de se morar na periferia.

    IHU On-Line – Qual seu diagnóstico acerca da atual situação da periferia paulistana, dada a atual crise brasileira?

    Tiaraju D’Andrea – A periferia paulistana passa por um período de transição. Se por um lado o lulismo representou uma melhoria nas condições de vida, se comparada à década de 1990, a crise econômica posterior foi um dos fatores que fez esta população retirar seu apoio ao PT. No entanto, ainda é cedo para se afirmar que a adesão a pautas conservadoras seja um fenômeno estrutural. Em todo esse quadro de incertezas, pode-se, ao menos, fazer duas afirmações: o desemprego ronda esta população, sendo as condições de trabalho uma preocupação concreta; e há uma descrença generalizada nos partidos políticos e no sistema representativo como um todo.