Início este texto com uma pequena vinheta de minha prática como psicólogo em um serviço público de Saúde Mental, destinado a pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas.
Em meados de março deste ano, nos dirigimos à residência de um usuário – localizada em uma comunidade da Zona Oeste de São Paulo – que, na noite anterior, havia ficado um pouco mais agitado e agressivo com os familiares, em função de um possível quadro de abstinência de drogas. Em tempos de pandemia, as visitas domiciliares se tornaram mais frequentes com o objetivo de tentar diminuir a circulação de pessoas que se deslocariam até o serviço.
Após o atendimento, o pai deste usuário – que aqui chamarei de I. – nos acompanha até o transporte próprio do serviço. Era notório a presença de inúmeras pessoas nas ruas da comunidade e sem a utilização de máscaras, tal como se fosse em um dia corriqueiro e como se desconsiderassem a determinação das autoridades políticas e sanitárias em relação a obrigatoriedade do isolamento social. Ao ver tal panorama, orientei I. sobre a importância do uso de máscaras e de álcool em gel. Ele, então, me responde: “pobre não pode pegar isso aí não, essa doença é coisa de rico”.
Agora, vamos colocar esta situação em suspensão para retornarmos a ela em breve.
Diante do atual momento que estamos atravessando, referente a pandemia do coronavírus, muito tem se falado. Por exemplo, de um lado, uma série de pensadores tem afirmado que o vírus abre um leque de possibilidades que poderiam romper as bases do atual modelo de governo da vida entregue ao capital que, a cada momento que passa, é mais acumulador, segregatório e violento com a imensa maioria da população que está na base social. Para estes, inclusive, o vírus é um produto deste mesmo capitalismo que, com seu funcionamento, tem provocado uma série de disfuncionalidades nos diferentes ecossistemas e que coloca em risco a existência da vida no planeta. O vírus possibilitaria, então, a reflexão sobre o modo como a condução de nossa vida está equivocado, abrindo um campo para o esboço de um novo mundo.
Há aqueles que, em contrapartida, inserem a pandemia no contexto das crises cíclicas do capital. Por esta razão, o atual sistema econômico se fortaleceria ainda mais, produzindo uma acumulação nunca vista antes e expondo uma quantidade gigantesca de pessoas a morte; indicando, acima de tudo, a lógica de plasticidade contínua do capitalismo atual.
Mais do que isso, o vírus delinearia um novo modelo de gestão de trabalho – com a comodidade do home oficce, ele poderia ser estendido por mais tempo e com menores salários. Além disso, a pandemia sofisticaria as formas de controle em função da condição ainda mais premente da utilização de aparatos tecnológicos, a fim de dar conta de diversas necessidades da vida, atualmente prejudicadas pelo isolamento social. Encontros de amigos, reuniões universitárias, entre outros eventos, virariam dados, no fim das contas, facilmente disponibilizados às grandes corporações tecnológicas.
No contexto brasileiro, especificamente, a situação parece ainda mais agravante. A quarentena é posta em segundo plano entre os mais pobres devido à luta cotidiana pela sobrevivência. Entregadores de delivery, empregadas domésticas, porteiros, seguranças e outros trabalhadores de baixa renda não têm escolha. As suas dívidas mensais – aluguéis, boletos, carnês – não serão postos em quarentena em hipótese alguma.
A saúde pública é também um caso à parte. Sucateada há muitos anos, principalmente pelo problema histórico de financiamento, agora ela está prestes a colapsar. Insuficiência de leitos e de equipamentos – dos básicos aos mais avançados – impõem aos que estão na linha de frente (inclusive eu) um contexto de medo e de adoecimento. Colocaria, acima de tudo, o dilema que diz respeito a quem deveria ter o direito de acesso aos serviços de saúde
Neste contexto, é falsa a ideia de que o vírus pode causar os mesmos males a todos, ou mesmo que o vírus poderia infectar a todos independentemente de quem seja. É evidente que os mais pobres serão os mais atingidos. Negros, mulheres e outras minorias receberiam de modo mais severo as consequências ainda desconhecidas do vírus. Muitos deles estarão nas estatísticas oficiais; outros, em contraposição, sequer poderão ter esta informação em seus atestados de óbitos. Serão “subnotificados”, o novo termo para designar o silenciamento de violências historicamente praticadas a determinados grupos no interior da realidade brasileira. A morte por Covid-19, acima de tudo, é um acontecimento político e as dezenas de milhares de valas abertas não nos permitirão o esquecimento!
O coronavírus poderia então levar a biopolítica brasileira as suas últimas consequências. Esta é a modalidade do poder, definida por Foucault, capaz tanto de permitir a proliferação e a defesa da vida, quanto pela possibilidade de dizimá-la em massa. Ou como disse recentemente o dono de uma cafona – metida a gourmet – rede de lanchonetes, cuja especialidade gastronômica é pão com carne moída, o impacto causado pela morte de milhares seria mínimo se, em troca, pudéssemos salvar outros milhares, a economia e os empregos.
O que faz de uma vida ter o direito de continuar vivendo em detrimento de uma outra que poderia ser abandonada a própria morte, indigna de ser vivida? Para Roberto Esposito (2017), o paradigma da imunização responderia a questão acima delineada. Em linhas gerais, a imunização diz respeito à indissociável relação entre política e vida, sendo a política toda ação disposta quando o que está em questão é a conservação da vida mediante aquisição de mecanismos de defesa. Tal como na lógica médica busca-se a imunização de um corpo a partir da inserção do agente patológico que pode ameaçá-lo para que desta forma seja viável a sua proteção com a aquisição de mecanismos de defesa, a fim de que seja evitado o seu desenvolvimento natural.
Ainda para o filósofo italiano, este paradigma é concomitante ao momento histórico em que a vida precisou passar por processos de individuação em contraposição a uma vida comunitária exposta a uma diversidade de riscos. Um destes dispositivos de individuação é a propriedade[1]. Sumariamente, é pela posse – de seu corpo, de suas atividades, de seu trabalho, de seus bens – que o sujeito se constitui, necessitando, desse modo que sua vida e tudo aquilo que o cerca sejam passíveis de proteção, de imunização. Em outras palavras, a propriedade é a possibilidade do homem dispor das coisas que são necessárias para a preservação da sua vida.
Por esta razão é que os não proprietários são aqueles que terão suas vidas mais expostas a morte. I., morador da periferia, sabe que não pode pegar a Covid-19, pois sua vida e a de seus vizinhos são indignas de imunização. Adquirir a doença é correr o risco da morte, mas também de criar anticorpos, de se defender. Mas “isso é coisa de rico”. Já I. sabe que não terá tempo nem meios de acesso aos serviços de saúde, medicamentos e seu corpo estará indefeso, entregue à morte.
I. sabe o que é biopolítica.
ESPOSITO, R.Bios: biopolítica e filosofia. Tradução de Wander Melo Miranda. 1ª edição, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.
[1] Os outros são a soberania e a liberdade que, para este especificamente, não serão categorias de análise.
tempestades no trabalho em saúde em tempos de covid-19
por Henrique Ribeiro
Me pego durante a noite no recolhimento de onde moro, agitado, pesquisando em meu smartphone o que seria uma \”citocina\”. Durante o dia enquanto estava na UBS ( unidade básica de saúde) onde trabalho assistia de relance o noticiário vespertino televisivo sobre o coronavírus quando um dos convidados do programa menciona a palavra citocina e a elenca como uma agente importante no processo da doença ocasionado pelo vírus. O convidado era um infectologista que buscou resumidamente explicar a motivação de falarmos sobre um grupo de risco. Existem diversos tipos de citocinas com funções variadas sendo papel delas atuar na regulação do mecanismo inflamatório infeccioso do organismo.
Há um momento pró-inflamatório em que se busca destruir moléculas maléficas, no caso as do vírus, e com antiinflamatório busca-se controlar a resposta da defesa imunológica para que esta não acarrete mais malefícios do que benefícios ao corpo humano. Pois bem, não apenas em infecções se encontram as inflamações e as citocinas. Doenças como hipertensão, diabetes mellitus dentre outras de caráter crônico são influenciadas pelo mecanismo citocínico apresentando um desequilíbrio entre as respostas anti e pró. Na medida em que envelhecemos esse processo também ocorre levando a uma gradual deterioração imunológica.
Aprendi com a breve leitura de notícias e com a fala do infectologista que a COVID-19, ao que aponta os estudos iniciais, é uma doença provocadora, em casos graves, de uma “tempestade citocínica” na qual a ação pró-inflamatória do organismo é muito mais forte do que a fornece a anti-inflamatória levando o corpo a uma síndrome respiratória. Ou seja, a trama do agente viral é causar um adoecimento pela própria defesa de nossos corpos. Dessa forma, aqueles classificados como \”grupo de risco\” podem apresentar maior suscetibilidade ao agravamento da doença uma vez que já apresentam uma relação citocínica desequilibrada.
Volto a mim analisando o que pesquisei. A noite me parece mais tranquila pós leitura. Sei bem que em meus pensamentos não compreender ou estranhar situações e coisas me causam um mal estar. Na UBS em que trabalho cada um procura ou já exercita seus procedimentos para atenuar os impactos da pandemia em sua sanidade. Ignorar ou manter no inconsciente é uma alternativa, mas nas conversas atuais se percebe uma inclinação generalizada a buscar terapias senão agora, para o pós crise. O abalo emocional existe e se demonstra mais nítido na possibilidade dos profissionais de saúde transmitirem a doença aos familiares.
A culpa se instaura mesmo não havendo um contágio (será que sou um caso assintomático?) agindo como uma pré indicativo de doença. Então o não contaminado está/é doente? Essa classificação típica da biomedicina mantém uma relação estreita com o que os estudos de inspiração foucaultianos nos apresentam conceitualmente como biopolítica, biopoder e governamentalidade. Nesse sentido o poder biomédico agencia nossos hábitos mantendo uma relação estreita com a economia sendo também base para formas de se viver e sentir. Ocorreu com a pandemia uma intensificação na disseminação de vídeos e mensagens com fórmulas e ingredientes para se manter a higienização e dieta alimentar preventiva ao adoecimento. O coronavírus fornece novos contornos a um processo de assujeitamento e subjetivação do qual me atentarei aos efeitos para com os trabalhadores na área da saúde sendo também abordado a reestruturação produtiva em saúde ocasionada por ela, em particular, ao que ocorre na UBS em que trabalho.
No que se refere a tecnopolíticas, na distinção entre tecnologias duras e relacionais dentro do arranjo sociotécnico da UBS, a COVID-19 levou a uma reestruturação produtiva uma vez que parte da força de trabalho integrante se encontra no grupo de risco e puderam se afastar do ambiente de trabalho via decreto municipal. Àqueles que se mantiveram se depararam em uma situação em que as divisões e protocolos existentes foram modificados. As consultas eletivas foram canceladas, consultórios foram repassados à ala do Pronto Atendimento na tentativa de minimização de contágio interno, as visitas domiciliares ( de suma importância na vinculação entre usuário e UBS, assim como no acompanhamento do processo saúde/doença) de agentes comunitários foram, via decreto municipal, canceladas (em outras cidades não foram) e a campanha vacinal de influenza antecipada para ajudar na identificação de casos de coronavírus.
Aconteceu do gerente da UBS estar de férias, por conta disso, a assistente de gestão pública da unidade assumiu a função. Dois dos cinco enfermeiros chefes se afastaram via decreto. Somente um auxiliar de enfermagem permaneceu. Dada a situação, as divisões de equipes em microáreas dentro do território se tornaram disfuncionais, os compromissos com a secretaria de saúde temporariamente modificados. Compromissos, como por exemplo, a suspensão temporária dos grupos (de insulino dependentes, de gestantes, de apoio ao cuidador dentre outros) com reuniões mensais dos usuários da UBS em que se trabalha a educação em saúde. Revogou-se a obrigatoriedade de assinar as retiradas de materiais de insumo pelo usuário da UBS sendo agora somente necessário que o trabalhador escreva no espaço indicado \”COVID-19\”. Em consonância a esse movimento a descrição do mapa diário do ACS e a do enfermeiro da família estão sendo respaldadas através do código “COVID-19”. Dessa forma, uma resposta a um email advindo da regional de saúde cobrando dados sobre um determinado trabalho se justifica, no limite, com o termo “COVID-19”.
Os protocolos, os referenciais técnicos e administrativos e de igual forma os usuários são os instrumentais que fazem funcionar a UBS, sem estes os trabalhadores em saúde não realizam a produção em saúde. No referencial macropolítico a OMS e os Estados nacionais seguem mantendo uma relação com momentos, ora conflituosos, ora consonantes. Aos profissionais de saúde e no caso observado também servidores públicos municipais, o referencial medicinal misturado às preferências políticas partidárias e político ideológicas intensificou um clima de tensão e atrito. A não conformidade entre o executivo estadual e federal só piora.
Para alguns, a eminente desestabilização dos sistemas de saúde prenunciava o estado de calamidade pública, para outros a situação geraria apenas polêmicas em torno do poder executivo, contudo sem força pois agora a pátria amada \”descontaminada da corrupção\” aguentaria tranquilamente uma gripezinha. Somados a situação inicial em que não se encontravam na rede EPI suficientes aos funcionários, começamos a questionar não se estávamos preparados (a sensação é que não estávamos) e o que deveríamos fazer para minimizar os danos.
A movimentação de prevenção em saúde se tornou prevenção em UTI (não há respiradores suficientes): a governamentalidade aceita determinada quantidade de mortes com o condicional de minimizar os impactos na economia e esse discurso está reverberando sendo a vontade de muitos que se retome a “normalidade” mesmo se a situação pandêmica não evidenciar melhora. Além disso a não adoção de parte da população ao distanciamento social voluntário coloca os trabalhadores em saúde, e os da UBS, a questionar sua função na estrutura. Do que adianta a energia e esforços dispensados se o pacto não está sendo cumprido por todos?
Há ainda um sentimento extremamente perverso que faz com que os trabalhadores em saúde não afastados experimentem algo próximo de um sentimento de inveja em relação aos que estão afastados, pois estes últimos não vivenciam, pelo mesmo não da mesma forma, a situação pandêmica. Uma inveja que leva uma pessoa a desejar ter uma doença crônica para ser encaixando no grupo de risco e não ficar na linha de frente. Por outro lado, quando um servidor portador de doença crônica se afasta contribui para uma sobrecarga daqueles que permanecerão – então serei eu, nesse momento tão crítico, que “abandonará” o meu companheiro de profissão?
Uma outra situação contribui ao caldeirão de emoções experimentados pelos trabalhadores em saúde e está ligada ao ministério da saúde. Uma convocatória para cadastramento em um banco de dados na qual os profissionais se alistam e se sujeitam a serem chamados, se necessários, a trabalhar diretamente ao órgão onde quer que seja dentro do território brasileiro. Há um misto de sensações entre os que estão contrariados e os que aceitam o chamamento. A responsabilidade pública ligada a solidariedade social está misturada ao identitarismo nacional. Considerações como se de fato vale a pena se separar dos familiares para ir trabalhar para este governo e, por outro lado, os que se sensibilizam com o nacionalismo sentem que negar um chamamento nessa situação seria negar a pátria.
Por fim, observando a micropolítica e me atentando a UBS anteriormente referenciada, os referenciais em abalo e o afastamento de parte de corpo técnico e administrativo levou a uma situação em que a construção interna se efetivou com novos pactos. De certa forma a justificativa “COVID-19” possibilitou uma abertura a uma prática em saúde coletiva mais livre. Aos que adotam a estratégia saúde da família, a vinculação com a população está sendo maior assim como a perpetuação das novas regras e condicionalidades necessárias, respeitando evidentemente o princípio da universalidade e solidariedade social. Foi nítido também a dificuldade daqueles que não possuem acompanhamento via Saúde da Família em entenderam as modificações para a ala de emergência e da cobertura vacinal. Passada as primeiras semanas e a comprovação da efetividade das medidas, a sensação coletiva que fica (diferente da inicial) é a de que podemos lidar com a pandemia apesar dos referenciais técnicos e administrativos. Para além do que a governamentalidade possa assujeitar e, no limite da situação, aceitar muitas mortes, existem aqueles dentre os trabalhadores da saúde que recusam essa lógica e isso tende a se tornar mais nítido. A morte faz parte da nossa vivência. Tem lógica e significado sendo sentida de diversas formas por cada um, mas àquela justificada pela razão de “o país não pode parar”…essa não se justifica.
Identificamos basicamente dois tipos de estratégias preventivas no enfrentamento dessa epidemia: a que chamamos de “testagem agressiva e sustentada” e aquela baseada na adoção de diferentes graus de “distanciamento social”. A primeira, uma estratégia focada nos indivíduos de “alto risco” – aqui entendido como “alto risco de transmissão”, já que o que está em foco é a prevenção da propagação epidêmica. Nessa estratégia, são esses indivíduos que precisam ser detectados, isolados, monitorados, sendo uma estratégia de menor impacto na mobilidade geral da população. A segunda é uma estratégia propriamente populacional, que busca reduzir a mobilidade geral da população, podendo ser aplicada em diferentes intensidades.
A
primeira foi implementada em sua versão mais plena na Coréia do
Sul, com os resultados que conhecemos. Lembrando que o resultado
centralmente esperado dessas estratégias preventivas é o chamado
“achatamento da curva de contágio”, a desaceleração da
propagação epidêmica, com o intuito de preservar a capacidade de
resposta dos sistemas de cuidado, reduzindo a letalidade do agravo e
ganhando tempo para o desenvolvimento de vacina ou terapia. A Coréia
do Sul é o país mais bem sucedido no uso dessa estratégia até
aqui e, talvez, não seja superado. Além de possuir um sistema de
saúde público e gratuito, o mais bem avaliado entre os países
membros da OCDE, já dispunha de toda a infraestrutura logística
necessária para a implementação dessa estratégia quando a
epidemia eclodiu. Uma infraestrutura que integra os dispositivos
tradicionais da vigilância epidemiológica a dispositivos de
vigilância digital capazes de monitorar os movimentos e
comportamentos individuais de cada cidadão. Essa infraestrutura
representa uma articulação sem precedentes entre biotecnologias
(como RT-PCR, sensores de temperatura corporal em pontos de fluxo
etc.) e ferramentas de vigilância algorítmica. Possivelmente, a
mais acabada infraestrutura de um biopoder jamais construída.
A
segunda estratégia (distanciamento social) foi fortemente adotada
pela China. Importante destacar que, segundo o relatório conjunto
OMS-China
(https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/who-china-joint-mission-on-covid-19-final-report.pdf),
a resposta chinesa se deu em 3 etapas: inicialmente, isolando a
província de Hubei (onde se encontra Wuhan) para impedir a
exportação de casos; numa segunda etapa, promovendo o
distanciamento social intensivo para desacelerar a propagação
epidêmica; e, por fim, com uma estratégia para reduzir os
“clusters” de casos, em tudo semelhante à estratégia coreana,
com ampla utilização de “big data” e inteligência artificial.
Contudo, ainda que na etapa atual a estratégia principal também
seja a testagem agressiva e sustentada com controle cerrado dos
positivos e contactantes, a China chegou a zerar os casos novos por
alguns dias, com medidas radicais de distanciamento social em níveis
de “supressão”, recuperando sua capacidade de controle da
epidemia por outros métodos. Um resultado que também parece difícil
de ser igualado por outro país. Como no caso da Coréia do Sul, há
condições “facilitadoras” da efetividade da resposta chinesa:
um Estado autoritário que encontra poucos limites ao exercício do
poder soberano; uma sociedade civil que, do ponto de vista ocidental,
inexiste ou é muito fraca e subordinada ao Estado; um povo para quem
a disciplina e obediência é um traço cultural milenar, em que
impera o coletivismo e não está presente a noção ocidental de
vida privada.
No
Brasil, como em quase todo mundo, o que temos visto no enfrentamento
da epidemia são diferentes combinações dessas duas estratégias,
com variações na intensidade de cada uma delas. Mesmo olhando para
um único continente, como a Europa, há uma grande variedade de
respostas sendo produzidas por cada nação. O que nos leva a fazer
uma primeira grande observação sobre a resposta mundial: a despeito
de estarmos diante de uma pandemia, de uma ameaça colocada em escala
global, assistimos a um recrudescimento das soberanias nacionais, que
se fecham dentro de suas fronteiras e passam a produzir respostas
exclusivas para suas populações, com baixíssima solidariedade
internacional, a ponto de haver uma corrida mundial para aquisição
de insumos em relativa escassez no mercado global, como ventiladores,
máscaras e testes (valendo atos de pirataria!), num cenário em que,
obviamente, as nações mais ricas levarão larga vantagem. Não há
um plano global de enfrentamento da pandemia. Desde que a emergência
foi decretada, o G7 reuniu-se uma única vez, por videoconferência,
e nada deliberou. As desigualdades se acentuam, em todos os níveis,
na resposta à pandemia de coronavírus…
Assim,
o que percebemos, olhando para o mundo, é um mosaico de respostas,
em que sempre se identifica algum grau de distanciamento social (do
mais leve ao “lockdown”) combinado às estratégias de testagem
(das mais restritas, fazendo apenas algumas confirmações
diagnósticas, sem busca ativa e outras medidas de vigilância
epidemiológica, às mais agressivas e sustentadas).
Avaliando
os relatórios de mobilidade para várias regiões do mundo que vêm
sendo disponibilizados pela Google
(https://www.google.com/covid19/mobility/),
observamos países, como a Coréia do Sul, em que a redução da
mobilidade é mínima e que, nos últimos dias, vem mesmo aumentando
em determinados espaços, como parques, praias e jardins públicos.
Embora a Google não tenha dados de mobilidade da China, sabemos que
as medidas de distanciamento social também estão sendo relaxadas
neste país
(https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/07/acaba-o-confinamento-em-wuhan-primeiro-epicentro-da-covid-19.ghtml).
Tanto na Coréia do Sul, quanto na China, a mobilidade social vem
sendo reconquistada, na medida em que os dispositivos de vigilância
digital, que permitem um monitoramento e controle individualizado de
cada cidadão, vão sendo implantados. Observamos também que alguns
países que vêm apostando na realização de testagem agressiva e
sustentada, como a Alemanha e a Suíça, têm feito um distanciamento
social mais leve. Outros países, como a Argentina e Portugal, mesmo
também investindo na testagem, estão adotando um distanciamento
social bastante intenso, em níveis de “supressão”. Cabe ainda
mencionar, neste panorama mundial, os países que têm feito o
distanciamento social máximo, como a Itália e a Espanha. Nesses
países, os indicadores de queda da mobilidade em espaços públicos,
comércios e locais de trabalho são impressionantes! E a impressão
é de que quedas tão drásticas na mobilidade só são atingidas em
países que não conseguiram achatar a curva de contágio e tiveram
seus sistemas de saúde gravemente colapsados. Ainda que o
distanciamento social adotado em qualquer etapa anterior à
constituição da chamada “imunidade de rebanho” possa ter
efeitos de desaceleração do contágio e evitar ainda mais
sobrecargas ao sistema, a adesão massiva da população desses
países a esse comportamento parece menos representar uma estratégia
preventiva e mais o resultado do terror diante do caos sanitário
instalado, secundado, evidentemente, por medidas de repressão da
circulação de pessoas, características de um “estado de
exceção”. É menos uma
medida para tentar minimizar os efeitos da epidemia e mais um efeito
da derrota para a epidemia. Como
diria Camus, representa o triunfo da Peste sobre a Cidade.
Avaliando
os dados de testagem (que se alteram rapidamente:
https://www.worldometers.info/coronavirus/),
descobrimos que a Coréia do Sul, referência nessa estratégia,
realizou até aqui (16/04) cerca de 10 mil testes/milhão de
habitantes. Ou seja, já realizou uns 500 mil testes, conseguindo
testar aproximadamente 1% da sua população. A Alemanha e a Suíça
estão em patamares de testagem mais elevados, em torno de 20 mil
testes/milhão de habitantes. Portugal, além do distanciamento
social intenso, apresenta um índice de testagem na mesma faixa (18
mil). Entre os 15 países com o maior número de casos no mundo, os
índices de testagem variam de 3,5 a 22 mil/milhão de habitantes,
excetuando o Brasil (que se encontra na 11ª posição no número
total de casos) e realizou apenas 296 testes/milhão de habitantes.
Excessivamente atrás, não apenas das nações mais ricas do
planeta, mas também do Irã (3.562 testes/milhão de habitantes) e
da Turquia (5.664 testes/milhão de habitantes). Não nos parece, de
modo algum, que o baixíssimo número de testes realizados no Brasil
possa se dever a qualquer limitação de ordem econômica. A ausência
de uma estratégia consistente de testagem, combinada a um
distanciamento social pouco intenso, vacilante, errático e que,
ainda por cima, vem sendo relaxado nas últimas semanas, não tem
como não colocar nosso país entre aqueles de pior prognóstico. A
despeito de estarmos adentrando uma violenta tempestade em “voo
cego”, sem dados mínimos sobre as reais taxas de incidência neste
momento, temos todos os elementos para saber que a curva de casos
novos está em franca ascensão. Relaxar as medidas de distanciamento
social, nesse momento, e continuar negligenciando a testagem,
certamente acelerará a curva de contágio e a sua velocidade de
disseminação entre as comunidades mais pobres, ainda imensamente
despreparadas para o impacto. Além do colapso do sistema de saúde,
é de se temer muitos outros colapsos no Brasil: dos serviços
funerários ao colapso de qualquer coisa que se assemelhe a um
“contrato social”…
No
artigo, procuramos
fundar nossas análises nas melhores informações técnicas e
científicas disponíveis, mas deixando claro que as grandes decisões
que temos que tomar são políticas.
De forma bem simples, identificamos uma grande bifurcação política
nas possíveis respostas do Estado diante da crise: as respostas se
darão garantindo e expandindo direitos ou se darão reduzindo e
suprimindo direitos? Se darão no sentido do reconhecimento do
direito universal à vida, acionando mecanismos de proteção social
para garanti-lo com equidade, fomentando o espírito de solidariedade
e uma forte cooperação social (o que cria e expande novos direitos,
como, por exemplo, quando se suspendem patentes e propriedades
intelectuais, quando se retiram pay-walls
e “catracas”, evidenciando a existência de toda uma série de
bens comuns – commons
– que escaparam do controle público e foram submetidos ao controle
e à exploração por grupos privados), ou as respostas se darão
pela repetição da histórica omissão em relação aos mais
vulneráveis, adotando linhas de ação que levam muito pouco em
consideração a real desigualdade do “direito à vida”, o que
pode, diante de uma situação extrema de ameaça à vida, levar a
reações desesperadas e à convulsão social, abrindo terreno para a
supressão de mais direitos e a imposição de mais medidas “de
exceção”? Mesmo dispondo de todo aparato necessário para
produzir o primeiro tipo de resposta (o que inclui esse gigantesco
trunfo, que poucos países possuem, que é o SUS), é muito forte a
impressão de que estamos cumprindo o enredo do segundo tipo de
resposta.
Faço
uma rápida reflexão partindo da questão do distanciamento social.
É uma questão muito delicada, não apenas de um ponto de vista
econômico ou psicológico, mas, antes de tudo, de um ponto de vista
antropológico. O que pode significar para um coletivo humano
auto-impor-se um distanciamento social? Não é uma questão simples:
envolve um enorme paradoxo! O distanciamento social ameaça
objetivamente nossa existência social e não há outra existência
para nós, humanos. Desse ponto de vista, a pergunta que se coloca é:
em que condições nós poderíamos concordar que o melhor, para
todos, seria mantermos um distanciamento social temporário? Entendo
que seja necessário preencher alguns requisitos cognitivos e
políticos para que um coletivo humano possa deliberar,
coletivamente, que seus indivíduos se mantenham distanciados um dos
outros por um certo tempo. É preciso que haja nesse coletivo, no
mínimo, o domínio compartilhado de uma noção relativamente
abstrata que é a de “população”, de que fazemos parte de uma
população de humanos em convívio com incontáveis outras
populações de seres vivos. De que fazemos parte de uma dimensão
comum da vida que nos ultrapassa, que possui dinâmicas próprias,
sobre as quais é possível intervir. E nesse último caso, quando
deliberamos coletivamente intervir no nível da população, tal como
se dá quando decidimos adotar medidas de distanciamento social, não
estamos mais diante apenas de uma questão antropológica, mas
política.
Para
compreender melhor esse ponto, contribuem muito as análises de
Foucault sobre os mecanismos de poder. Em especial, quando trata do
biopoder, do nascimento de uma biopolítica, de uma nova
racionalidade e tecnologia de governo que investe a vida não apenas
enquanto corpo individual (como já faziam os mecanismos
disciplinares), mas enquanto “corpo coletivo”, enquanto
população, enquanto espécie. O biopoder é essa técnica de poder
que destaca um plano dos fenômenos populacionais, sobre o qual se
irá deliberadamente intervir, uma vez que são estes os fenômenos
que se pretende regular, controlar, conduzir, governar, com o
objetivo de mantê-los dentro de um “intervalo de confiança”,
dentro de uma faixa de variação considerada segura. Foucault nos
mostra que é o Estado que se constituiu historicamente como grande
aparato capaz de governar fenômenos de população, seja pelo
exercício do poder soberano incrementado por mecanismos de poder
disciplinar (representados pelos aparatos jurídicos e policiais),
seja através dos mecanismos biopolíticos de indução da conduta
humana e do comportamento social (representados pelos múltiplos
dispositivos pelos quais se faz política
econômica e social). É o monopólio dessas “técnicas de poder”,
o que faz com que apenas o Estado detenha os meios para produzir as
respostas exigidas para se enfrentar uma trombada do tamanho dessa
que estamos vivendo. E o que essa perspectiva foucaultiana, de modo
oportuno, evidencia, é o fato de que o que chamamos de resposta
técnica à pandemia é sempre uma resposta política, que se faz
através de técnicas políticas, técnicas governamentais.
Nesse
ponto, cabe um comentário sobre a compreensível exaltação, em
tempos de “anti-ciência”, da “soberania da ciência” nas
tomadas de decisão política diante dos desafios maiores postos hoje
para a sobrevivência da humanidade e de outras formas de vida no
planeta, especialmente quando se busca a comunicação com uma
“opinião pública desinformada”. Mas, entre os próprios
cientistas, essa discussão sobre o papel da ciência poderia
melhorar. A hegemonia de um dado paradigma de ciência é tamanha que
é como se não existisse, de fato, uma “guerra das ciências”,
conforme a expressão de Bruno Latour. No entanto, ela está aí,
claramente colocada, como sempre esteve, jamais inteiramente
sufocada, porque é a expressão de um embate real entre forças
políticas presentes no campo social e não veleidades
epistemológicas. O campo da Saúde Coletiva deveria ser
especialmente sensível a essas questões, já que ele se funda num
ato de disputa de paradigma científico no campo da saúde…
Nesse
sentido, a discussão atual em torno do que seria uma resposta
técnica e cientificamente embasada à pandemia abre um amplo espaço
para uma retomada das premissas político-epistemológicas da
Medicina Social – que também estavam presentes nas origens da
medicina científica no século XIX, disputando qual seria o
verdadeiro “problema” posto para a medicina e as práticas de
saúde de uma forma geral. É notável como essa antiga fórmula de
Rudolph Virchow ganha especial eloquência no cenário atual: “os
avanços na medicina podem eventualmente prolongar a vida humana, mas
as melhorias das condições sociais podem alcançar esse mesmo
resultado de maneira mais rápida e bem-sucedida”. Sabemos como são
urgentes e fundamentais todo os esforços que vêm sendo feitos para
ampliar a capacidade de resposta do sistema de saúde aos casos
graves da doença, com ampliação emergencial dos leitos
hospitalares e de terapia intensiva. Mas também são fartas as
evidências de que sem medidas preventivas visando o achatamento da
curva, mesmo com essa ampliação, não há cenário em que o sistema
seja capaz de dar conta do número de casos. Do mesmo modo, é
desejável e indispensável todo esforço que vem sendo feito na
busca de um medicamento eficaz para a COVID-19, mas é importante
lembrar que o acesso a qualquer tratamento ficará dificultado se o
sistema de saúde colapsar. Assim, permanece sendo urgente a decisão
técnica e cientificamente embasada de acelerar a combinação da
testagem agressiva e sustentada e o distanciamento social intenso,
medidas que precisam ser implementadas de modo orientado pelas
singularidades da nossa estrutura econômica e social e pelos valores
que estão na base de uma sociedade democrática e solidária.
Para
aumentar nossa capacidade de testagem, é indispensável que, para
além dos hospitais, também haja um investimento emergencial
significativo na atenção básica e na vigilância epidemiológica e
sanitária do SUS, possibilidade aberta pela decretação do estado
de calamidade pública que flexibilizou o cumprimento das regras
fiscais. É preciso determinação técnica combinada a vontade
política para se fazer esse urgente e necessário investimento
massivo de recursos no SUS. Mas, em relação a isso, o que temos
observado, até aqui, é um Estado passivo, com os representantes do
Ministério da Saúde se restringindo a comemorar, nos últimos dias,
o aporte de recursos, sobre os quais sequer terão controle, advindos
da filantropia do alto empresariado e dos bancos.
Para
tornar efetivo o distanciamento social, precisamos ampliar a
mobilização social para o autoconfinamento voluntário. E que ele
seja voluntário, é um princípio ético-político fundamental!
Princípio que assume que o papel principal do Estado não deve ser o
de obrigar e coagir, mas o de educar e procurar convencer sobre a
razoabilidade das medidas que se orientam para o bem comum,
sobretudo, para o bem comum maior, que é a defesa da vida de todos e
de cada um, provendo solidariamente os meios para que todos possam
efetivar essas medidas. É preciso deixar bem claro, entretanto, que
se trata de um princípio ético-político de atuação do Estado, um
princípio de respeito à autonomia de agência dos indivíduos, não
se confundindo com qualquer tipo de concepção ingênua a respeito
do livre-arbítrio ou de um suposto “império da vontade” a reger
nossas condutas. Não basta, para o autoconfinamento acontecer, uma
deliberação da vontade. Não basta querer, é preciso poder
praticar o distanciamento social. Por isso, é preciso acionar
medidas de mitigação das consequências indesejáveis desse
confinamento, em especial, para as populações mais vulneráveis.
Medidas que são, de fato, pré-requisitos para que essas populações
possam aderir voluntariamente ao distanciamento social. Em outras
palavras, é preciso, primeiramente, uma orientação firme e
inequívoca das autoridades sanitárias para que o distanciamento
social massivo seja praticado. Mas, como sabemos, é na implementação
dessa medida que se expressam as mais brutais desigualdades perante
essa epidemia. Como afirmamos no artigo, “somos todos suscetíveis,
mas a vulnerabilidade é profundamente desigual”. São milhões e
milhões de brasileiros que vivem do ganho diário para sobreviver,
seja como empresários de pequenos negócios, seja como trabalhadores
precarizados, sem proteção social, vivendo sem condições
adequadas de moradia e de saneamento urbano, quando não vivendo nas
ruas. Fundamentalmente, são estes brasileiros que não poderão
aderir às medidas de distanciamento social, não porque não
queiram, mas porque não podem. Só o Estado dispõe dos instrumentos
políticos capazes de fazer com que o distanciamento social
voluntário se efetive e poucas vezes ficou tão agudamente evidente
o quanto a política econômica e social pode ser a mais poderosa
ferramenta de intervenção médico-sanitária.
O
Estado brasileiro, graças à atuação decisiva do poder
legislativo, tomou algumas medidas importantes nessa direção, como
a provação do “auxílio emergencial” e algumas outras medidas
de mitigação das consequências econômicas e sociais nefastas do
confinamento. Importantes, porque na direção correta, mas
insuficientes. Insuficientes no tamanho do auxílio, considerando as
reais necessidades vitais das famílias, e não apenas sua dimensão
de “remédio econômico” para mitigar o tamanho da recessão.
Essa questão do “auxílio econômico” é um ponto crucial no
enfrentamento da pandemia, porque nele, a dicotomia entre as medidas
de proteção da vida e de proteção da economia se desfaz. Uma
economia cuja proteção se oponha à proteção da vida é uma
economia de morte. Não merece ser salva. O debate sério sobre o
assunto indica que a “estatização da renda das pessoas” (como
dizem os economistas liberais) parece ser um componente inescapável
da resposta econômica para se evitar uma depressão. Dessa vez,
parece que não será suficiente salvar apenas os bancos, sem
garantir um mínimo do poder de compra das famílias. Os recursos
para financiar essa grande operação biopolítica de defesa da vida
e da economia existem e sabemos onde estão. Levantá-los, contudo,
exige a quebra de resistências políticas históricas na sociedade
brasileira. Resistências tão duras de serem quebradas, que têm
garantido, por exemplo, que nossa estrutura tributária absurdamente
regressiva se mantenha inalterada, a despeito de ser uma flagrante
máquina de aprofundamento da desigualdade social num país
profundamente desigual. Além disso, as medidas tomadas também são
insuficientes porque não conseguem vencer os entraves burocráticos
e a ausência de mecanismos eficientes para que o auxílio chegue
efetivamente até as pessoas. Daí que o objetivo visado por essa
política (viabilizar um distanciamento social mais intenso) não
venha sendo alcançado. E, sem a efetivação dessa política,
atribuir a não adesão ao distanciamento social de amplos setores da
população a uma suposta “falta de consciência” dos indivíduos,
é uma análise bastante pobre da determinação do comportamento e
uma “moralização” do problema.
Na
medida em que esse caminho político permanece, na prática,
interditado, o campo das respostas técnicas à pandemia se vê
restrito a um conjunto de medidas, igualmente científicas, mas de
impacto muito mais limitado. Limitação que se medirá no número de
mortes que ocorrerão e poderiam ter sido evitadas. E na medida em
que determinadas políticas não se efetivam com a força exigida, o
que se impõe, na prática, aos mais vulneráveis, é aquilo que a
filósofa Isabelle Stengers chamou de “alternativas infernais”: a
fome ou a peste. E para coroar o espetáculo dantesco, ainda
descobrimos, estarrecidos, que essa opção de “deixar morrer” é
uma opção consciente e deliberada de alguns atores de peso nas
tomadas de decisão política no país, como o presidente do Banco
Central, que numa fala a investidores, no início de abril, declarou
que o colapso do sistema de saúde, obrigando os médicos a terem que
decidir entre quem atender e quem deixar morrer, é um preço
razoável para evitar uma recessão econômica maior
(https://theintercept.com/2020/04/16/banco-central-presidente-coronavirus-economia/).
A projeção futura do quadro que pode derivar desse tipo de escolha
política, no momento em que o caos sanitário estiver instalado –
uma projeção que não pode ser ignorada por esses atores políticos
–, nos faz supor que eles contam com uma “fase 2” da
estratégia, baseada na força do Estado judiciário-policial, que
poderá atuar para impor um distanciamento social forçado, com
suspensão de direitos e imposição de todos os danos colaterais
dessa medida aos mais vulneráveis. Deveria ser desnecessário dizer
– mas não é! – que se trata de uma abominação moral que a
admissão de mortes evitáveis possa entrar nos cálculos que embasam
decisões políticas. Em tempos de embrutecimento dos espíritos,
também precisamos estar muito vigilantes em relação ao que
enunciam coletivamente as decisões que estão sendo tomadas, sob
pena de fazermos escolhas que podem trazer maior ameaça à nossa
sobrevivência como “espécie” do que o próprio vírus.
Perguntemo-nos, por exemplo, o que
enuncia politicamente que 15 bilhões de reais tenham sido liberados
para empresas de saúde privada que atendem, com grandes limitações
de cobertura, apenas 25% da população, supostamente a menos
vulnerável, enquanto para o restante 75% da população que depende
apenas do SUS, foi repassado muito menos que isso
(https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/04/a-insensatez-dos-planos-de-saude.shtml).
Mas
também nos perguntemos o que enuncia coletivamente o fato de dois
bilhões de seres humanos estarem confinados em suas casas, num
momento de grande crise da democracia em todo mundo. O que enuncia
coletivamente o fato de que, nesse momento, várias das principais
nações europeias se encontrem sob “estado de exceção”, com o
exército nas ruas? A linguagem é um vírus (conforme a fórmula
poética de William Burroughs). E não é muito animadora a
“linguagem” que circula nesse momento! Esse discurso de
mobilização de guerra, do vírus como inimigo, de exaltação da
“cidadania sacrificial” dos trabalhadores de saúde, é muito
preocupante! É o tipo de discurso político que se presta a
justificar suspensão de direitos e adoção de medidas “de
exceção”. Do mesmo modo que serve para justificar e banalizar as
consequências da instauração de mecanismos permanentes de
vigilância digital securitária e totalitária, como se fosse um
preço razoável a se pagar pela “liberdade”. Há tantos ou mais
perigos em algumas das respostas a esta pandemia, quanto na própria.
Precisamos saber escapar das “alternativas infernais”, o que
implica vencer o medo que nos paralisa e abrirmo-nos à emergência
de novos modos de vida e de relação com os conhecimentos e as
tecnologias…
3 – O editorial da última edição da revista Saúde em Debate(http://revista.saudeemdebate.org.br/sed/issue/view/37/v.%2044%2C%20n.%20124%2C%20jan-mar%2C%202020),do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), ressalta o impacto de medidas neoliberais na saúde como origem do cenário da pandemia na Itália e chama a atenção para as medidas de austeridade brasileiras,como a Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos). De que forma as consequências da falta de prioridade da saúde pelos governos e do subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde (SUS) são sentidas no cenário atual?
As
relações entre as medidas de austeridade neoliberais e o impacto
humano que terá essa pandemia são demais evidentes, já que essas
políticas foram diretamente responsáveis pelo sucateamento do
principal escudo de proteção que os países podem ter nessa crise,
que é um sistema de saúde público, robusto e de qualidade. Nesse
momento de crise aguda, fica palpável o quanto o sucateamento do
nosso SUS representa diretamente o sucateamento da vida dos
brasileiros. O quanto o desmanche desse e de outros sistemas de
proteção social precariza a vida e amplia a vulnerabilidade social.
Mas não é apenas por esses aspectos que os efeitos das políticas
neoliberais são sentidos no cenário atual. Elas representam mais do
que um receituário econômico e fiscal, elas definem todo um modo de
vida cujo esgotamento, pela insustentabilidade ambiental, social e
subjetiva, está cada vez mais patente. A pandemia feriu de morte
esse modo de vida e precipitou um colapso econômico que já estava
anunciado. Ela marca nossa entrada na era dos fenômenos naturais
extremos previstos na “emergência climática” e coloca uma
enorme pedra sobre o mito do crescimento ilimitado. O que não quer
dizer, nem de longe, que o capitalismo acabou, foi derrotado e
despertaremos agora para um mundo frugal e igualitário. Especula-se
muito sobre um suposto mundo pós-viral, sobre um mundo transformado
que emergirá dessa pandemia. O meu argumento é de que esse mundo
pós-viral já começou ou, de qualquer forma, o mundo transformado
por essa pandemia já se encontra em disputa nesse momento, já está
sendo construído nas respostas concretas que estão sendo
produzidas. O vírus não é capaz por si só de provocar uma mutação
social; nenhuma nova ordem mundial emergirá “naturalmente” desse
acontecimento. O mundo pós-viral já começou e está sendo
disputado, antes de mais nada, nas respostas que estamos produzindo
no próprio enfrentamento da pandemia. Por isso me estendi
consideravelmente nas primeiras questões desta entrevista, por isso
me pareceu importante procurar fazer uma análise (bio)política das
respostas que estamos produzindo. São dimensões importantes da
produção desse mundo pós-viral e não se pode dizer que, desse
ponto de vista, estejamos indo bem em toda parte. Estamos
especialmente mal posicionados nessa crise, uma vez que, do Brasil,
temos dificuldades de ver pela frente um cenário menos que sombrio.
Mas há questionamentos e movimentos importantes se dando em muitas
partes, que vão na direção de uma transformação profunda na
organização política e econômica de nossas vidas…
4 – Como pensar comunicação e saúde nesse contexto de pandemia e disseminação de fake news? Quais elementos são importantes paradifusão de informações relacionadas (epidemiológicas, políticas,econômicas) ao Covid-19 de forma segura?
O
tema do meu mestrado, há quase 30 anos, foi justamente o das
epidemias, trabalhado numa perspectiva semiótica e comunicacional.
Procurei desenvolver um único
esquema
interpretativo para a análise, tanto de fenômenos epidêmicos (de
doenças), quanto comunicacionais (de comunicação social), com o
intuito de analisar a epidemia de HIV/AIDS em seus primeiros anos,
considerando a relação entre a dinâmica de propagação viral e a
dinâmica de propagação da informação. Identifiquei a existência
de dois “esquemas epidêmicos”, que correspondem a duas dinâmicas
comunicacionais distintas, observáveis tanto na propagação de
agentes infecciosos, quanto de informação: o “contágio” e a
“irradiação”. As epidemias de contágio, que se propagam ao
sabor dos contatos sociais, são mais lentas (os casos se distribuem
ao longo do tempo) do que as epidemias irradiadas, tipo fonte comum
(em que muitos casos se apresentam simultaneamente). A ideia geral é
que uma epidemia de contágio (de doença) pode ser combatida com uma
contraepidemia irradiada (de informação). É uma questão
“dromológica” (como diria Paul Virilio), uma questão de
velocidade, de corrida entre “informações”: o objetivo é que
determinadas “informações” consigam chegar nas pessoas antes do
vírus (seja na forma de uma vacina, enquanto uma “informação
imunobiológica”, ou na forma da informação necessária para se
praticar a proteção individual e coletiva).
Do
ponto de vista da comunicação social, o grande modelo de
comunicação irradiada que dispúnhamos, no início dos anos 1990,
era o chamado “broadcasting”, o modelo fornecido pelas grandes
mídias de massa que dominaram o século XX, como o rádio e a
televisão. Ainda que se reconheça (e se preconize como estratégia)
que os modelos de comunicação irradiada e por contágio estejam (e
devam ser) quase sempre hibridizados, a lógica do “broadcasting”
possui duas características fundamentais para as estratégias de
comunicação em contexto de epidemia: a rapidez de difusão e o
controle centralizado da informação pelo polo emissor. Ora, o
cenário das tecnologias de comunicação e informação passaram por
uma verdadeira revolução nos últimos 30 anos, capitaneada pelo
crescimento e pela popularização da internet e o advento das mídias
sociais. Produziram-se profundas alterações na “ecologia
comunicacional” humana, que acabaram abalando alicerces importantes
das estratégias comunicacionais em contexto de epidemia. O advento
das mídias sociais produziu duas mudanças importantes na dinâmica
comunicacional por “contágio”: primeiramente, imprimiram uma
velocidade sem precedentes à “epidemia de contágio”, produzindo
uma dinâmica apropriadamente chamada de “viral” na propagação
da informação; além disso (e em função dessa lógica viral, que
transforma cada um numa central de “broadcasting”, produzindo um
dilúvio informacional), a dinâmica de propagação da informação
por contágio passa a obedecer não apenas à lógica que governa,
por exemplo, os encontros/contatos que se dão entre os corpos num
território, mas a uma outra lógica que passa a governar os
contatos/conexões que se dão na rede eletrônica. Essa outra lógica
é introduzida pelos algoritmos que, nesse sentido, estruturam as
“redes de contágio” (segundo interesses comerciais e estratégias
de marketing) de um modo que acaba contribuindo para a constituição
de uma socialidade em “bolhas”, com enormes repercussões
subjetivas e políticas. Em síntese, as mídias sociais aumentaram
desenfreadamente a difusão da informação, mas de qualquer
informação, reduzindo as possibilidades de serem controladas
centralmente por um polo emissor autorizado. Ao mesmo tempo, as
“redes de contágio” não são aleatórias e, sim, estruturadas
para promoverem a constituição de “clusters” que expressam,
segundo uma lógica “mercadológica” que organiza o espaço
social em “nichos”, a distribuição dos múltiplos novos centros
irradiadores de autoridade. Essa nova “ecologia comunicacional”
instaurada pelas mídias digitais é bastante crítica para as
estratégias comunicacionais tradicionais de enfrentamento de
epidemias…
Em
outubro do ano passado, o Johns
Hopkins Center for Health Security (em parceria com o Fórum
Econômico Mundial e a Fundação Bill & Melinda Gates) realizou
um exercício de simulação de uma severa pandemia de coronavírus,
com o objetivo de identificar os grandes problemas que teríamos hoje
para produzir as respostas necessárias para minimizar seus graves
efeitos sociais e econômicos, avaliando o quanto estaríamos ou não
preparados para produzi-las (o tamanho do “preparedness gap”): o
Event 201 (https://www.centerforhealthsecurity.org/event201/).
Nesse exercício, um dos segmentos de discussão foi inteiramente
dedicado às questões de comunicação
(https://youtu.be/LBuP40H4Tko)
e o principal ponto crítico levantado foi o problema da “epidemia
de desinformação” ou o problema da “preservação da
integridade da informação”. A nossa incapacidade de lidar com o
fenômeno contemporâneo das chamadas “fake news”, na visão dos
experts que participaram do exercício, foi, de longe, o maior
“despreparo” identificado para o enfrentamento de uma pandemia,
no que tange as questões de comunicação.
Para
os especialistas que participaram do Event 201, as respostas para uma
situação de desinformação epidêmica desenfreada, num cenário de
pandemia severa (a epidemia de coronavírus imaginada no exercício
teria matado 65 milhões de pessoas), poderiam chegar ao “internet
shutdown”. Nesse caso, teríamos a imposição de uma situação,
de fato, de “isolamento social” e não apenas distanciamento. Uma
situação em que a interrupção dos contatos físicos não seria
suficiente, em que seria também preciso deter o espalhamento da
“peste” através das mídias virtuais. Os especialistas ponderam
o pânico e outros prejuízos colaterais que um “shutdown”
causaria, mas o concebem como um cenário limite com mídia
social desenfreada, governos em colapso e cidadãos se revoltando.
Diante de um cenário menos severo (que, talvez, corresponda ao
nosso), o que propõem? Fundamentalmente, propõem que, de algum
modo, se reconstitua uma fonte confiável de informação. O
diagnóstico que fazem da “crise comunicacional” (com o qual, em
linhas gerais, concordo) é de que se trata, em última instância,
de uma “crise de confiança”. Há uma desconfiança generalizada
em relação às instituições (ao chamado “sistema”) como fonte
confiável de informação. Principalmente, em relação à mídia
tradicional e à ciência, mas também em relação aos governos. Os
governos sempre suscitaram alguma desconfiança, mas a situação se
agrava quando alguns governos passam a atuar abertamente no ramo das
“fake news”, ampliando ainda mais a crise de credibilidade da
instituição que representaria o poder público. Numa dimensão
afetiva, instaura-se um problemático mundo social fundado em
relações de desconfiança; numa dimensão cognitiva, abre-se o
caminho para o chamado mundo da “pós-verdade”. Ainda não
entendemos bem o que significa esse fenômeno, suas causas, seus
sentidos, mas há pistas interessantes trazidas por alguns estudiosos
de que não se trata tanto de uma oposição à “verdade”, quanto
de uma oposição aos “sistemas de produção da verdade”, em
geral, opacos nas suas “regras de produção da verdade” e, via
de regra, arrogantes e autoritários na sua comunicação social.
Esse entendimento é importante, porque nos sinaliza que há
tentativas de se reconstituir o valor das “verdades”, há
estratégias que buscam se opor ao mundo da “pós-verdade”, que
podem, de fato, exacerbá-lo. Não seriam muito promissoras, por
exemplo, as estratégias assentadas na ridicularização da
ignorância ou na afirmação do poder absoluto e infalível de
qualquer discurso de verdade. Se aceitamos a tese de que o problema
não seria tanto uma “crise da verdade”, quanto uma “crise de
confiança” nos “donos da verdade”, então, a questão
primordial permanece sendo como restaurar um regime de socialidade
fundado em relações de confiança. Nesse sentido, o que seria
logicamente mais favorável a este restabelecimento: estratégias
comunicacionais que buscam afirmar a superioridade indiscutível de
determinadas fontes sobre outras ou estratégias comunicacionais mais
dialógicas? De todo modo, a questão da crise de confiança nas
instituições de saber-poder ainda precisa ser muito mais
aprofundada, indo às origens fundamentalmente políticas dessa
crise, para podermos realmente avançar nessa questão das
“estratégias comunicacionais”…
Elidindo
completamente o problema da raiz política dessa crise, os experts
recuperam velhas fórmulas das teorias da comunicação de massa,
como o “two steps flow of information”, adaptadas ao mundo da
comunicação em rede. Essa estratégia busca hibridizar os dois
modelos comunicacionais/epidêmicos: a irradiação e o contágio.
Por um lado, garantindo a centralidade de uma fonte de informação
confiável, por outro, reconhecendo que as fontes efetivamente
confiáveis para as pessoas são os sujeitos identificados como
“líderes de opinião” para suas comunidades. Com esse intuito,
fazem um exaustivo mapeamento de possíveis “lideranças”, que
poderiam se constituir em fontes de informação confiáveis, mas não
fica claro como elas poderiam efetivamente desempenhar esse papel em
meio ao regime geral de desconfiança em relação a todas elas:
organismos internacionais (OMS), governos, mídia tradicional,
corporações, empresários, cientistas, médicos, trabalhadores da
saúde etc. E diante da dificuldade em se resolver uma “crise de
confiança” com estratégias meramente comunicacionais, voltam-se
para as tentativas de controle dos meios, das plataformas
tecnológicas de comunicação, e passam a depositar esperança nos
algoritmos que permitiriam a identificação de campanhas ou
“clusters” de desinformação, acionando mecanismos de “bloqueio
epidêmico”, que poderiam variar de uma “advertência” de que a
informação foi checada “falsa” (já em funcionamento em algumas
plataformas sociais) à remoção automática do conteúdo da rede
e/ou punição para os responsáveis.
É
interessante notar como o enfrentamento das duas epidemias (de
coronavírus e de “fake news”) acaba recebendo abordagens
inteiramente homólogas: nas situações extremas, pode-se apelar
para o “shutdown” da rede; mas a tendência mais promissora,
porque preserva o funcionamento da rede, é a instalação de
mecanismos de vigilância algorítmica de todas as informações
circulantes. As mesmas preocupações já levantadas em relação às
estratégias de enfrentamento da pandemia se recolocam, com redobrada
preocupação, nesse terreno, sobre o risco que há em se banalizar
a instauração de mecanismos permanentes de vigilância algorítmica
como se fosse um preço razoável a se pagar pela suposta garantia da
“veracidade” do que circula na rede. Aqui também as grandes
escolhas não são técnicas, mas políticas.
5 – Qual a sua opinião sobre o desenvolvimento da área de Comunicação Social e Saúde no campo da Saúde Coletiva no Brasil nas últimas três décadas?
Sem
dúvida, nessas últimas décadas, houve um desenvolvimento
importante dessa área no campo da Saúde Coletiva, expresso na maior
presença da pesquisa específica em Comunicação e Saúde nos
periódicos do campo (além da criação de uma revista
especializada, com mais de 20 anos de existência), mas também na
multiplicação de temas e focos de investigação envolvendo
problemáticas “comunicacionais” ou passíveis de uma abordagem
“comunicacional”, em outras áreas da Saúde Coletiva. A
micropolítica do trabalho vivo em saúde e as “tecnologias leves”,
o acolhimento como trabalho afetivo e técnica de conversa, as
dimensões intersubjetivas do cuidado em saúde, a humanização do
cuidado e da gestão, o desafio da cogestão, o desafio da
interprofissionalidade, do trabalho em equipe, da articulação do
trabalho em rede, a coordenação do cuidado, o apoio matricial, a
educação permanente, a educação popular em saúde, são apenas
alguns exemplos que dão testemunho desse crescimento das abordagens
e temas envolvendo uma problemática “comunicacional” no campo da
Saúde Coletiva. Todas pautas de pesquisa em estreita relação com
desafios concretos postos no cotidiano dos serviços e nos processos
de construção do SUS.
Mas
há outro modo de se compreender o desenvolvimento da área nas
últimas décadas, que leva em consideração os deslocamentos de
paradigmas que se deram nesse período. Uma análise mais fina e
detida poderia identificar ainda outros deslocamentos, mas vou
destacar, neste momento, dois principais, sintetizados em dois
acontecimentos epocais marcantes e decisivos: a epidemia de HIV/AIDS
e a internet.
De
novo, uma epidemia. Uma epidemia que, em meio à profusão de efeitos
produzidos no mundo contemporâneo, veio colocar em xeque concepções
arraigadas e estratégias tradicionais de comunicação em saúde. O
enfrentamento de uma epidemia que, em seus primeiros anos, contava
apenas com formas de prevenção baseadas em mudanças de
comportamento (sobretudo, na esfera sexual), forçou uma revisão
profunda das concepções a respeito da determinação do
comportamento que, até então, orientavam as estratégias
convencionais de comunicação em saúde. Pode-se dizer que a
epidemia de HIV/AIDS colocou em crise os modelos de comunicação
transmissionistas, fundados em esquemas “behavioristas” de
compreensão da determinação do comportamento, convocando modelos
mais dialógicos e esquemas de compreensão da determinação do
comportamento que concebem uma forte influência de determinantes
estruturais, coletivos e institucionais. Esse importante deslocamento
de paradigma está bem representado em todos os desenvolvimentos
teórico-práticos produzidos no campo pelo conceito-operante de
vulnerabilidade, cuja operacionalidade tem sido exercitada nas
análises e proposta de enfrentamento da epidemia atual…
A
importância do segundo acontecimento – o crescimento e a
popularização da internet e das mídias sociais – também já
foi, não casualmente, ressaltada nos comentários que fiz sobre as
dimensões comunicacionais envolvidas na epidemia atual, sobre as
profundas mudanças produzidas pelas tecnologias digitais de
comunicação em rede em nossa “ecologia comunicacional” e seus
impactos para a comunicação em saúde. No meu entendimento, o
deslocamento de paradigma, nesse caso, também golpeia o
“transmissionismo” tradicional, pois, cada vez menos, a
experiência de comunicação coletiva se comporta como no modelo do
“broadcasting” e, cada vez mais, como um fenômeno de “produção
de comum”; cada vez menos, comunicação como transmissão
“telefônica” ou “televisiva” de mensagem e, cada vez mais,
como produção em “redes” de diferentes formas de “inteligência
coletiva”.
São
deslocamentos importantes, com consequências profundas para os modos
de se colocar problemas teórico-práticos no campo da Saúde
Coletiva, cujos impactos na produção científico-tecnológica da
área ainda estão se fazendo sentir, mas devem dar um grande salto
no chamado mundo pós-coronavírus. De fato, as novas tecnologias de
comunicação e informação fundem, no mais alto grau, suas
potencialidades de emancipação e de controle dos coletivos humanos.
Por um lado, a potência de produzir inteligência coletiva, enquanto
expressão das dinâmicas multitudinárias imanentes a todo corpo
coletivo, capazes de produzir potência de ação coletiva. Por outro
lado, o sequestro dessa “inteligência” e de nossa potência de
ação coletiva, não mais apenas pelo Estado (talvez, por isso,
possamos perceber com maior nitidez a expressão de uma inteligência
coletiva em resposta ao que se impõe como um desafio coletivo de
proteção da vida, lá onde o Estado está mais ausente:
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/04/11/favela-de-sao-paulo-vira-exemplo-em-acoes-contra-o-coronavirus.ghtml),
mas também, cada vez mais, por determinadas aplicações de
inteligência algorítmica que vêm construindo a infraestrutura do
chamado “capitalismo de vigilância”. São questões que me
parecem capitais na encruzilhada biopolítica em que nos encontramos
e que devem assumir um lugar bem maior e bem mais central nas
discussões da Saúde Coletiva nos próximos anos.
Por
fim, cabe ainda um comentário sobre a comunicação em saúde, para
além das dimensões tecnológicas, lembrando que essa problemática
é a que mais aproxima as questões de saúde das fronteiras da arte
e da cultura. Trata-se de lembrar e reconhecer o quanto os principais
fenômenos vitais de importância para a saúde humana no mundo
contemporâneo dizem respeito a processos de comunicação e cultura.
É nesse terreno, por exemplo, que poderíamos situar todas as
investigações e experimentações práticas que têm buscado
explorar as tensões e eventuais sinergias existentes entre a saúde
e a grande mídia, em particular, entre o sistema público de saúde
e a sua presença, a sua representação, na produção cultural
brasileira. Há muitas formas possíveis de se argumentar sobre a
relevância para o campo da Saúde Coletiva das intervenções e
pesquisas que se realizam nessa fronteira com a arte e a cultura, mas
podemos, mais uma vez, apoiarmo-nos na experiência presente da
pandemia para ressaltar essa relevância. Em tempos em que se coloca
uma ameaça à saúde individual e coletiva, em escala global,
fortemente tendente a reforçar concepções mais reducionistas de
saúde, mais focadas nos elementos biológicos e organicistas e nas
ameaças portadas por um agente infeccioso; em tempos que nos induzem
a uma visão de saúde mais reduzida, mais circunscrita à
problemática da preservação da vida e da garantia de uma certa
segurança de que nós sobreviveremos às ameaças biológicas que
nos cercam; em tempos, enfim, em que se abre uma certa oposição
entre a saúde e a qualidade de vida e o bem-estar, já que a
preservação da primeira, neste momento, parece depender de
abdicarmos destas últimas, já que a preservação da vida e da
saúde, neste momento, parece mesmo nos obrigar a atravessar um
processo de profundo mal-estar e de afastamento de tudo que
configurava nossos ideais de qualidade de vida, incluindo a
possibilidade do convívio social; é justamente neste momento que as
riquezas maiores que encontramos nas fronteiras entre a saúde, a
arte e a cultura, ganham ainda mais relevância. Vivemos tempos não
apenas para serem padecidos, mas enfrentados. Tempos não apenas para
enfrentamento do vírus e da epidemia, mas também de todas as
tendências regressivas que esses tempos podem imprimir em nosso modo
de vida e nossas concepções sobre a saúde. Enfrentar esses tempos
exigirá, e muito, o exercício irrequieto da arte e da cultura, em
sua função de abrir o campo de possibilidades, de excitar a
imaginação de outros mundos possíveis e de nos permitir esperançar
a sobrevivência de formas de vida que digam sim à vida! Trata-se do
reconhecimento da arte e da cultura como produtoras de saúde
enquanto potência de vida, mas também como produtoras de uma
“cultura da saúde” em que a saúde não se reduza à mera
sobrevivência de “vidas nuas”. É desse modo também que vejo as
potencialidades da área da Comunicação e Saúde para o
desenvolvimento do nosso campo e o tipo de contribuição que pode
vir a dar para alguns de nossos maiores desafios atuais…
Até o momento, sabemos que duas abordagens vêm, de algum modo, dando resultados no enfrentamento da epidemia de COVID-19.
Chamaremos a primeira de testagem agressiva e sustentada. Ela busca ativamente pessoas que possam estar infectadas (testagem dos sintomáticos, busca e testagem dos contatos, visitação domiciliar, controle de temperatura, quarentena dos positivos). Esta tem sido basicamente a resposta na Coréia do Sul, Japão e em cidades-estados como Singapura e Hong Kong. Na Coréia do Sul, após testar 222 mil pessoas, houve um decréscimo dos casos novos, mas chegaram a quase 10 mil casos confirmados e 75 mortes. Os demais têm menos de mil casos.
Esta resposta exige um sistema de vigilância epidemiológica forte com recursos para buscar, testar, tratar e isolar pessoas, combinado ao uso intensivo de controles por celular, monitoramento do uso de cartão de crédito e, inclusive, por satélites. Para que seja bem-sucedida, além de um sistema de saúde robusto, é preciso que as pessoas isoladas recebam apoio psicossocial, alimentar e de outras necessidades. Na Coréia do Sul, o sistema de saúde é de acesso universal e gratuito, e considerado o melhor entre os países membros da OCDE.
Esta abordagem é conhecida como estratégia de alto risco, em que o foco está na procura, avaliação e cuidado dos já afetados. Trata-se de uma estratégia fundamentalmente focada nos indivíduos considerados de “alto risco” para a disseminação da doença. Neste caso, os já comprovadamente infectados. Temos razões para acreditar que esse “modelo coreano” tenderá a ser expandido a partir dessa pandemia. Não sem inúmeras implicações ético-políticas que merecem ser discutidas, já que ela envolve graves infrações do direito à privacidade e a implementação de mecanismos de controle individualizado dos cidadãos dignos de um episódio de “Black Mirror”.
Chamaremos a segunda abordagem de distanciamento social. Trata-se de uma estratégia de saúde pública que busca reduzir drasticamente o contato entre pessoas, de tal modo a diminuírem ao máximo as chances de contato entre infectados e não-infectados. Ela envolve medidas de larga escala, como cancelamento de eventos e fechamentos de espaços públicos, bem como decisões individuais de evitar multidões e manter distância mínima entre pessoas. Em situações mais extremas, isso pode significar interromper a circulação de pessoas em regiões, cidades, estados ou até em um país inteiro, bem como promover grande mobilização social para que os cidadãos adotem oautoconfinamento voluntário e prolongado. Independentemente da situação clínica de cada um, o distanciamento social é adotado por todos os habitantes de um dado local e não apenas pelos afetados. Esta abordagem é conhecida como estratégia populacional.
Esta foi a estratégia primordialmente adotada pela China, na cidade de Wuhan, província de Hubei. Foram adotadas várias medidas progressivamente mais restritivas à circulação de pessoas: numa primeira etapa, isolando Wuhan e outras áreas da província de Hubei, visando impedir a exportação de casos; numa segunda etapa, restringindo a circulação de pessoas dentro das cidades, construindo um verdadeiro cordão sanitário. Essas medidas foram o tempo todo mescladas à testagem agressiva e sustentada.
Como na Coréia do Sul, o esforço também tem sido enorme. Segundo a OMS, “em Wuhan mais de 1800 equipes de epidemiologistas, com um mínimo de 5 pessoas/equipe, estão rastreando dezenas de milhares de contatos por dia. O acompanhamento dos contatos próximos dos casos suspeitos é meticuloso, com uma alta porcentagem destes completando a avaliação médica. Entre 1% e 5% dos contatos foram posteriormente casos confirmados em laboratório para COVID-19”. Há alguns dias, não há casos novos e, hoje, a China acumula 81.116 casos e 3231 mortes.
As estratégias populacionais possuem, via de regra, muito maior potencial para obter resultados coletivos que a estratégia de alto risco, mas também possui suas desvantagens. Há consequências econômicas e psicossociais importantes. Afeta o cotidiano de vida e trabalho, ampliando a ocorrência de sofrimento psicossocial, da fome e da pobreza em vastos setores da população. A implementação também pode ser difícil, dada a necessidade de mobilização coletiva para o autoconfinamento prolongado. Exige do Estado uma alta capacidade de controlar centralmente a informação, de coordenar a gestão das ações para sustentar a vida das pessoas e de exercer poder coercitivo externo. Esse “modelo chinês” também possui inúmeras implicações ético-políticas, com outras violações de direitos civis e políticos, que podem impor limites à sua aplicação em sociedades democráticas e abertas.
O “modelo chinês”, confirmando o maior impacto coletivo das estratégias populacionais, conseguiu, ao que tudo indica, interromper a transmissão e zerar o número de casos novos. O “modelo coreano” vem sendo bem-sucedido na estratégia de “achatamento da curva de contágio”, sem zerar totalmente a transmissão, mas conseguindo uma desaceleração considerável, que preserva a capacidade de resposta do sistema de saúde e faz com que a Coréia do Sul venha apresentando uma das menores letalidades. Ambas as estratégias não eliminam o problema do estoque de suscetíveis – daqueles que ainda não se infectaram e podem vir a se infectar se o vírus continuar em circulação –, colocando em dúvida a sustentabilidade do panorama atual nos dois “modelos”.
O caso italiano, que vem sendo tratado como o mais dramático de descontrole no número de casos novos e de óbitos, não adotou efetivamente nenhum dos dois modelos acima. Inicialmente, adotou apenas a testagem dirigida aossintomáticos, sem medidas efetivas de vigilância e busca ativa de novos casos.
Quando a situação saiu do controle, se viu obrigada a adotar o distanciamento social, mas de forma tardia e através de medidas radicais, baseadas em importantes restrições de direito e forte coerção policial. Importante dizer que, a despeito da generalização, houve diferenças de respostas entre várias regiões da Itália, sendo menos afetadas as regiões ou cidades onde se realizou testagem mais agressiva ou o “lockdown” foi instituído mais precocemente.
No Brasil, num momento em já nos encontramos em um nível de resposta que é de “emergência de saúde pública”, estamos tendendo a uma combinação dos dois “modelos”, mas com limites. Segundo o Procedimento Operacional Padronizado estabelecido pelo Ministério de Saúde, a testagem permanece restrita à confirmação diagnóstica de casos suspeitos, com indicação de avaliação dos contatos próximos, encaminhando-se para testagem apenas os casos sintomáticos detectados. Também não houve, até aqui, a busca ativa de pacientes internados em hospitais privados, como ficou evidenciado pelos casos do Hospital Sancta Maggiore, que só foram descobertos quando vieram a óbito, caracterizando uma forma de vigilância “passiva”. Portanto, uma estratégia ainda bem distante da testagem agressiva e sustentada praticada pela Coréia do Sul.
Por outro lado, também vem sendo adotada uma estratégia gradual de distanciamento social, mas com medidas menos drásticas do que a China e numa etapa posterior da epidemia. Sinteticamente, temos, até aqui, uma resposta ínfima na testagem se comparada à coreana e tímida de bloqueio na circulação se comparada à chinesa.
Não se trata de escolher entre um e outro “modelo”, nem sugerir que poderíamos ou deveríamos aplicar qualquer um deles na íntegra e acriticamente. Trata-se, sim, de cotejar as evidências de sucesso e insucesso que dispomos, num contexto que exige respostas rápidas, para agirmos da maneira mais efetiva possível para preservar vidas, sem violação de direitosfundamentais ou a aceitação resignada do impacto brutal que a epidemia terá sobre os mais vulneráveis. Nesse sentido, considerando o estágio em que já nos encontramos da progressão epidêmica, parece-nos urgente acelerar a combinação da testagem agressiva e sustentada e o distanciamento social, mas orientadas pelas singularidades da nossa estrutura econômica e social e pelos valores que estão na base de uma sociedade democrática e solidária.
O Brasil, em princípio, se encontraria entre as países que teriam potencialmente uma das melhores capacidades de resposta por contar com um sistema universal e gratuito de saúde. Mas sabemos que a história do SUS é marcada pelo subfinanciamento crônico, agravado, nos últimos anos, pelo desfinanciamento, com o comprometimento de áreas estratégicas. Para aumentarmos nossa capacidade de testagem, precisamos adotar medidas urgentes de reversão desse cenário e fortalecimento do SUS, em especial, da atenção básica e da vigilância epidemiológica e sanitária, além da assistência médica e multiprofissional necessária para o atendimento dos doentes.
Para tornar efetivo o distanciamento social, precisamos ampliar a mobilização social para o autoconfinamento voluntário prolongado, acionando medidas de mitigação das consequências indesejáveis desse confinamento, em especial,para as populações mais vulneráveis. Medidas que são, de fato, pré-condições para que essas populações possam aderir ao distanciamento social. Em outras palavras, é preciso uma orientação firme e inequívoca das autoridades sanitárias para que o distanciamento social massivo seja praticado. Mas, como sabemos, é na implementação dessa medida que vêm se expressando as mais brutais desigualdades perante essa epidemia. Somos todos suscetíveis, mas a vulnerabilidade é profundamente desigual. São milhões e milhões de brasileiros que vivem do ganho diário para sobreviver, trabalhadores precarizados, sem proteção social, vivendo sem condições adequadas de moradia e de saneamento urbano, quando não vivendo nas ruas. Fundamentalmente, são estes brasileiros que não poderão aderir às medidas de distanciamento social, não porque não queiram, mas porque não podem.
Diante do imperativo desafio de desacelerar a epidemia e preservar tanto quanto possível nossa capacidade de cuidar dos casos mais graves sem o colapso do sistema de saúde (que, presumivelmente, aumentará o número de mortes e não apenas pelo coronavírus), precisamos acelerar e ampliar tanto a estratégia de alto risco, quanto a populacional. Sabemos, contudo, pela experiência de outros países, que as medidas de distanciamento social radical acabam se impondo de forma draconiana quando a epidemia progride para o descontrole. No ponto da curva ascendente de novos casos em que nos encontramos no Brasil, entendemos que o distanciamento social se apresenta como medida emergencial prioritária e mandatória, mas ainda temos a chance de decidir de que maneira iremos implementá-lo. Essa decisão, tecnicamente embasada, apresenta-se, contudo, como uma clara bifurcação política a respeito do papel esperado de um Estado na gestão de uma crise dessa magnitude e gravidade. De um Estado que, obviamente, não se resigna à passividade e a meramente contabilizar os casos e as mortes e narrar os próximos capítulos da catástrofe. Queremos um Estado judiciário-policial que atuará para impor um distanciamento social forçado, com suspensão de direitos e imposição de todos os danos colaterais dessa medida aos mais vulneráveis ou um Estado social e de defesa dos direitos fundamentais, que proverá os meios necessários para que todos, independentemente das condições de vida, possam efetivamente adotar o distanciamento social voluntário.
Não podemos conceber em hipótese alguma que a admissão de mortes que poderiam ser evitadas entre nos cálculos que embasam nossas decisões. O princípio deve ser: ninguém será deixado para trás. Em tempos de embrutecimento dos espíritos, também precisamos estar muito vigilantes em relação ao que enuncia coletivamente nossas decisões, sob pena de fazermos escolhas que podem trazer maior ameaça à nossa sobrevivência como “espécie” do que o próprio vírus.
No meio do fogo cruzado acerca das políticas sobre assédio sexual, eu gostaria de me manifestar enquanto contrabandista entre dois mundos: o \’dos homens\’ e o \’das mulheres\’ (dois mundos que poderiam muito bem não existir, mas que alguns se empenham em manter separados por um tipo de muro de Berlim), para dar-lhe notícias a partir da posição de \’objeto encontrado\’, ou melhor, de \’sujeito perdido\’ durante a travessia.
Não falo aqui como um homem que pertenceria à classe dominante, daqueles aos quais se atribui o gênero masculino no nascimento e que foram educados como membros da classe governante, àqueles a quem se concede o direito ou de quem se exige (e é uma chave interessante de análise) que exerça a soberania masculina. Tampouco falo como mulher, visto que eu, voluntariamente e intencionalmente, abandonei essa forma de encarnação política e social. Expresso-me aqui como um homem trans. Portanto não reivindico, de forma alguma, a representação em qualquer coletivo. Não falo nem posso falar como heterossexual, nem como homossexual, embora conheça e viva ambas as situações, uma vez que, quando alguém é trans, tais categorias tornam-se obsoletas. Falo como desertor de gênero, um fugitivo da sexualidade, um dissidente (às vezes desajeitado, já que desprovido de códigos pré-estabelecidos) do regime da diferença sexual.
Como uma auto-cobaia da política sexual que experimenta, ainda não tematizada, viver de cada lado do muro e que, ao atravessá-lo diariamente, começa a cansar-se, senhoras e senhores, da rigidez recalcitrante de códigos e desejos que impõe o regime hetero-patriarcal.
Deixe-me dizer-lhes, do outro lado do muro, que o quadro é muito pior do que a minha experiência como lésbica me permitiu imaginar. Desde que vivo como-se-eu-fosse-homem no mundo dos homens (consciente de encarnar uma ficção política) consegui verificar que a classe dominante (masculina e heterossexual) não abandonará seus privilégios por que enviamos muitos tweets ou demos alguns gritos. Desde os tumultos da revolução sexual e anti-colonial do século passado, os patriarcas heterodoxos embarcaram em um projeto de contra-reforma – ao qual agora se juntaram vozes \’femininas\’ que desejam continuar a ser \’importunadas /perturbadas\’. Esta será a Guerra dos Mil Anos – a mais longa, sabendo-se que afeta políticas e processos reprodutivos através dos quais um corpo humano constitui-se como sujeito soberano. De fato, será a mais importante das guerras, porque o que está em jogo não é nem o território nem a cidade, mas o corpo, o prazer e a vida.
ROBOCOP E ALIEN
O que caracteriza a posição dos homens em nossas sociedades tecnopatriarcais e heterocêntricas é que a soberania masculina se define pelo uso legítimo de técnicas de violência (contra mulheres, contra crianças, contra homens não-brancos, contra animais, contra o planeta como um todo). Poderíamos dizer, ao ler Weber com Butler, que a masculinidade é para a sociedade o que o estado é para a nação: o titular e o legítimo usuário da violência. Essa violência se expressa socialmente sob a forma de dominação, economicamente sob a forma de privilégio, sexualmente sob a forma de agressão e estupro. A soberania das mulheres, ao contrário, está ligada à sua capacidade de gerar. As mulheres são subjugadas sexual e socialmente. Somente as mães são soberanas. No âmbito desse regime, a masculinidade se define necropoliticamente (pelo direito dos homens de dar a morte), ao passo que a feminilidade se define biopoliticamente (pela obrigação das mulheres de dar a vida). Pode-se dizer que a heterossexualidade necropolítica é algo como a utopia da erotização do acoplamento entre Robocop e Alien, pensando que, com um pouco de sorte, um dos dois se satisfaça.
A heterossexualidade não é apenas, como demonstra Wittig, um regime de governo: é também uma política do desejo. A especificidade do regime é encarnar um processo de sedução e dependência romântica entre agentes sexuais \”livres\”. As posições de Robocop e Alien não são escolhidas individualmente, nem são conscientes. A heterossexualidade necropolítica é uma prática de governo que não é imposta por aqueles que governam (os homens) às governadas (as mulheres), mas uma epistemologia que determina as respectivas definições e posições de homens e mulheres por meio de regulação interna. Esta prática de governo não toma a forma de lei, mas de uma norma não escrita, uma transação de gestos e códigos cujo efeito é o de estabelecer na prática da sexualidade uma divisão entre o que se pode e o que não se pode fazer. Esta forma de servidão sexual baseia-se em uma estética da sedução, uma estilização do desejo e uma dominação historicamente construída e codificada, erotizando a diferença de poder e perpetuando-a. Esta política de desejo é o que mantém vivo o antigo regime de sexo-gênero, apesar de todos os processos legais de democratização e empoderamento das mulheres. Este regime necropolítico heterossexual é tão degradante e destrutivo quanto foram a vassalagem e a escravidão na época do Iluminismo.
É PRECISO MODIFICAR O DESEJO
O processo de denúncia e visibilidade da violência que vivemos faz parte de uma revolução sexual inevitável e também lenta e sinuosa. O feminismo queer situou a transformação epistemológica como condição para a possibilidade de mudança social. Tratava-se de questionar a epistemologia binária e a naturalização dos gêneros, afirmando que existe uma multiplicidade irredutível de sexos, gêneros e sexualidades. Entendemos hoje que a transformação libidinal é tão importante quanto a transformação epistemológica: o desejo tem que ser modificado. É preciso aprender a desejar liberdade sexual.
Faz anos que a cultura queer tem sido um laboratório de invenção de nova estética da sexualidades dissidentes, face a técnicas de subjetivação e aos desejos da heterossexualidade necropolitica hegemônica. Muitos de nós já abandonaram a estética da sexualidade Robocop-Alien há muito tempo. Aprendemos com as culturas butch-fem e BDSM, com Joan Nestle, Pat Califia e Gayle Rubin, com Annie Sprinkle e Beth Stephens, com Guillaume Dustan e Virginie Despentes, que a sexualidade é um teatro político em que desejo, não a anatomia, escreve o roteiro. É possível, dentro da ficção teatral da sexualidade, desejar lamber as solas dos sapatos, querer ser penetrado por cada abertura ou caçar o amante em um bosque como se fosse uma presa sexual. No entanto, dois elementos diferenciais separam a estética queer daquela da normalização hetero do antigo regime: o consentimento e a não-naturalização das posições sexuais. A equivalência dos corpos e a redistribuição do poder.
ESTÉTICA DA HETEROSSEXUALIDADE
Como um homem-trans, eu me desidentifico com a masculinidade dominante e sua definição necropolítica. O que é mais urgente não é defender o que nós somos (homens ou mulheres), mas rejeitá-lo, desidentificarmo-nos da coerção política que nos obriga a desejar o padrão e a reproduzi-lo. Nossa práxis política é desobedecer normas de gênero e sexualidade. Eu fui uma lésbica a maior parte da minha vida, e depois, trans nos últimos cinco anos, estou tão longe de sua estética da heterossexualidade como um monge budista levitando em Lhasa está do supermercado Carrefour. Sua estética do antigo regime sexual não me faz gozar. \’Importunar\’ alguém não me excita. Não me interessa escapar da minha miséria sexual pondo a mão na bunda de uma mulher no transporte público. Não sinto qualquer tipo de desejo pelo kitch erótico-sexual que vocês propõem: caras que se aproveitam da sua posição de poder para dar uma rapidinha e passar a mão em bundas. A estética grotesca e assassina da heterossexualidade necropolítica me enoja. Uma estética que renaturaliza diferenças sexuais e coloca homens na posição de agressores e mulheres na de vítimas (dolorosamente agradecidas ou felizmente incomodadas).\”