Tag: América Latina

  • 100 anos da Revolução Russa: um olhar.

    Por Salvador Schavelzon.

     

    Hoje, 7/11/2017, há cem anos da Revolução russa, alguns nos perguntamos por uma leitura desse acontecimento mais do que comemorativa, interessada na atualidade que essa revolução possa ter num momento em que custa encontrar caminhos eficazes de contestação do poder constituído e de construção de um mundo novo. Para os que se mobilizaram e organizaram em 1917 essas duas coisas pareciam possíveis. Eles estavam melhor que nós e não contavam com os fracassos das experiencias socialistas do século XX nem com o esgotamento da própria proposta política da esquerda. Era só questão de avançar pelo caminho que estava dado.

    O projeto de esquerda construído nos cem anos anteriores a 1917, enquanto o mundo liberal burguês se consolidava na Europa, entusiasmava espíritos sensíveis e críticos da sociedade. Hoje esses espíritos preferem fazer outra coisa, ou não fazer nada. Se esse projeto fracassou, no entanto, junto com a ideia de ciência e de sociedade que carregava, estamos também melhor que os bolcheviques. Imaginem se fôssemos capazes de voltar ao momento da revolução russa, mas dessa vez com um século de experiencia política nas costas. Possivelmente pensaríamos antes em ação do que em comemoração, em mudar a vida antes do que em mudar o mundo. Tentaríamos ficar abertos e sensíveis ao que acontece ao nosso redor, mais do que em tentar transformar os outros, leva-los como base ou objeto da nossa revolução.

    Mesmo que tomemos distancia de tudo o que foi feito pelos revolucionários russos naquela ocasião, e especialmente pela esquerda que trouxe até hoje essa referência do \”quê\” e do \”como\” fazer luta política, há algo desse acontecimento que sobrevive a todo revisionismo e tentativa de explicação redutora. Algo muito forte acontecia pela força da organização autônoma que se opôs à ordem conservadora-burguesa então dominante, deixando o comando na classe trabalhadora que havia feito possível a revolução. Os que não tinham nada conseguiram virar o jogo e desarmar o sistema de dominação do modo como estava estabelecido pelo império e sua continuidade liberal progressista.

    Comecemos com assumir que Kronstadt e o gulag fazem sempre parte da discussão aberta pela revolução. Até porque tem revolucionários que foram massacrados e que merecem ser lembrados. Não se acomodaram ao regime, que sempre oferece a possibilidade de se deixar assimilar. Podemos fazer uma evocação romântica que silencie todo desvio para ficar com a imagem gloriosa de 1917, sem manchas. O Lenin cristificado, o Trotsky fundamental injustiçado ou ainda os sovietes anarquistas que foram reprimidos ou aniquilados. A esquerda ocidental já tentou atribuir os erros da revolução à tradição despótica asiática, ou às características da psicologia pessoal do Stalin. Não é suficiente. Apreender a densidade da revolução exige assumir a experiencia política completa, com tragédia, farsa e toda uma problemática, como dificuldades que não se resolvem num racha que proponha começar de um novo lugar, separando o bem do mal e se colocando a salvo do conflito. Assim nos conectamos com o acontecimento e não com ela como ideia. E assim fazemos dela um problema político que se conecta com os de qualquer época: o problema de quando a ruptura com a ordem se torna uma ordem nova, a revolução se burocratiza, seus precursores são excluídos enquanto autoridades se impõem de forma parecida ao que motivou a revolução. O problema pode levar ao fatalismo. Mas o desafio é entender como a luta política deve sempre encontrar novas formas e caminhos.

    Se os bolcheviques expressavam rasgos asiáticos, sejam eles bem-vindos, porque precisamos de diferença quando é o excesso de aridez ocidental hoje aqui nosso problema. Tragam xamãs da estepe russa, nômades afegãos ou os métodos comunitários dos camponeses eslavos que sem dúvida enriqueceram as estruturas de poder dual dos sovietes em Outubro. Os problemas da esquerda e da direita do poder, são hoje bem ocidentais. Como foram também para a União Soviética. O stalinismo é a exacerbação da repressão política da dissidência, opositores políticos purgados e enviados a fazer trabalho forçado como no tempo do Czar. E isso aconteceu na revolução francesa, com o macarthismo nos Estados Unidos, e nas ditaduras latino-americanas. Hoje nos Estados Unidos, na Rússia ou no Brasil, um regime prisional perverso se constitui como forma de governo dos pobres e marginais. Mas o stalinismo é mais do que isso. Sem socialismo soviético, a Rússia se encontra com Europa e Estados Unidos em mais coisas do que se separa. Não é por acaso. Foi construído lá, em nome da revolução, um sistema de trabalho e produção que caminhou em paralelo aos de ocidente. Um sistema social, com populações enquadradas e socializadas no consumo e sonhos de bem-estar familiar, que passaria também pela flexibilização do burocratismo fordista para hoje se integrar no neoliberalismo global sem nação nem Estado, como devia ter sido o poder proletário. Controle policial interno e geopolítica da guerra de nações militarizadas no âmbito externo, já no caminho empreendido pelos bolcheviques depois da revolução, como novo poder estatal dos sovietes incorporados como órgãos de gestão desse mesmo sistema de trabalho.

    Liberais gostam de apresentar a União Soviética de Stalin como regime oposto à democracia liberal do livre mercado. Não é incorreto dizer que a Rússia soviética era um regime anti-marxista ou anti-comunista, e que incorporou muito dos dois regimes com os quais rivalizava: o ocidental liberal capitalista e o do Império autocrático que o antecedera. Já com Lênin, e nas propostas econômicas dos trotskistas, é adoptado o caminho modernizador da industrialização e crescimento econômico com produção rural de grande escala, modo escolhido de gerar riqueza e gerenciar a vida social, implantado sem evitar a violência e destruição de mundos que esses processos tiveram no ocidente e em todo lugar. Difícil pensar como poderia ter sido distinto, e as consequências de outra escolha em relação ao papel crucial da União Soviética na derrota do nazismo na segunda guerra mundial e o atendimento da nova população urbana  proletarizada. A URSS foi um grande Estado de Bem-Estar. Mas hoje é importante sim uma crítica que vem ganhando corpo a partir da década de ‘60, embora tivesse expressões minoritárias já na época da Revolução (com Bukharim, e outros), sobre a necessidade de pensar alternativas a um modelo que é ao mesmo tempo horizonte do desenvolvimento capitalista e, aqui entre nós, o programa da esquerda estatal e partidária latino-americana. O crescimento e a aliança com os industriais, e os empresários do agronegócio de expansão etnocida foi para vários economistas do PT no governo da Dilma, a alternativa para sair do modelo neoliberal mais ortodoxo. A retórica da industrialização, não realizada, foi também o que se constituiu como projeto político do Evo Morales depois de romper com os movimentos indígenas. Uma evocação da Revolução Russa hoje deve abordar o problema do modelo econômico, e também da democracia, aspecto inseparável e que também dirigentes como Trotsky e Luxemburgo alertaram (por exemplo a respeito da Assembléia Constituinte e necessidade de aprovação da tomada do poder pelos proletários).

     

    \"\"

    A revolução russa, de fato, continua entre nós com suas tragédias, linguagens e possibilidades de ruptura. E se faz necessária de ser pensada para encontrar lugares políticos onde tudo parece fechado, nos debates da esquerda, ou quando mesmo fora do governo, vemos os projetos deste campo apoiados no soberanismo welfarista, no lugar em que depois da revolução internacionalista o processo revolucionário se encontra falando da pátria mãe, com aquela imagem do Stalin pilotando o barco que seria a URSS, e isso quando não é apresentada como inexorável a agenda liberal dos bancos, como em Brasil de 2015, a capitulização do Syriza e as tentativas de Podemos, na Espanha, para encontrar um atalho para o poder fazendo um acordo de governo com o PSOE, aceitando preservar os consensos de ‘78 contra os que nasceram em 2014. 1917 e a posição bolchevique no contexto da Europa é ruptura com respeito aos nacionalismos e as socialdemocracias acordistas, numa esteira internacionalista e proletária, que desconfia dos acordos com a burguesia nacional.

    Não é suficiente nos conformar com o mantra de “outro tempo, outra realidade”. Se resgatamos a Revolução Russa, é preciso nos conectar com sua potência que era derivada de situações políticas bem concretas. O poder dos sovietes e, ai sim, a abertura para o indeterminado e selvagem que dificilmente possamos traduzir. O poder para os sovietes, em 1917, não significava necessariamente coletivização forçada, industrialismo acelerado com metas alienantes, e carreira militarista com ocidente. Significava não apoiar o governo provisional formado por liberais e progressistas, a pesar de este ser um avanço a respeito das posições “fascistas” do czarismo mas como bloqueio do que Lênin e Trotsky, como jacobinos sensíveis, viram como tradução política do comunismo possível: o poder para os trabalhadores, para os de baixo, reorganizando o sistema e direcionamento social . A revolução mostrou assim um caminho que possivelmente hoje possa ser imaginado sem jacobinos, e sem proletários, como corpos e sociedades que se constituem como único poder político sem mediações e com autonomia. Mas era também a concreção do que antes apenas havia sido ensaiado sem sucesso ou imaginado.

    Se tivéssemos que ficar apenas com um gesto, um movimento para entender a essência da revolução de outubro, talvez possamos ir para uma situação política clara, onde o governo provisório se recusava a interromper a participação de Rússia na guerra, e atrasava as reformas e medidas sociais às que se havia comprometido. Os bolcheviques sabiam que os moderados nunca fariam as reformas prometidas, porque isso implicaria para eles perder o poder. A sacada, que era minoritária e contrária inclusive à posição adoptada pelo partido bolchevique, era não colaborar com esse governo e defender a posição que apostava nos soldados, operários e camponeses mobilizados. Num telegrama de março de 1917, Lênin era claro: “Nossa tática: absoluta desconfiança, nenhum apoio ao novo governo, suspeitemos sobretudo de Kerenski, armamento proletariado única garantia, eleição imediata Duma de Petrogrado, nenhuma aproximação de outros partidos…”. E a estratégia? Não importa, porque são as táticas certas as que conseguem as coisas.

    Trazendo para nossa realidade essa ruptura que abre para o imponderável, ainda com o risco de que todos os que defendem essa posição sejam fuzilados, lembramos dos debates brasileiros de 2016 em que tendências marxistas do PT raciocinavam como se Dilma Rousseff tivesse que se defendida porque fazia as vezes de Kerenski, sem quem uma posterior revolução não seria possível. Lembrando os raciocínios mecanicistas da ortodoxia marxista, a ideia é que a revolução se estuda passo a passo e sem Kerenski (Dilma) não poderia haver o avanço posterior necessário. No entanto a revolução é justamente se jogar num vácuo de insurreição que possa abrir o que está fechado, como golpe ao governo provisional, para os bolcheviques, mas também como junho de 2013 para a juventude do Brasil que sabia que o PT era um limite que não poderia deixar de agir de forma coordenada com a classe dominante, e os partidos conservadores com os que tinha aceito governar. A interrupção do governo com mecanismos ilegais, assim, entendidos como parte normal do funcionamento de um sistema de governança ao qual esquerda e direita se entregaram.

    Para além da idea PT, que ainda alguns seguram, mesmo fora do partido, o momento de ir além do governo provisional no Brasil foi não apenas desouvido, mas também reprimido pela esquerda no poder. A partir daí o consignismo apelativo “golpe”, “fora temer”, “diretas já”, “Lula 2018” aparece como um letargo discursivo, sem corpo, nem povo mobilizado que se proponha fazé-lo efetivo. Independentemente de poder ser assumido ou não como uma posição correta, em determinado momento, as consignas levadas pela esquerda e aparelhos da órbita lulista, se mostram como avesso do “Pão, Paz e Terra”, como lema que nomeava o que pouco antes era impossível (sair da guerra, resolver a fome), mas no entanto se realizava enquanto o mundo em que era impossível desababa, a partir de conectar, ao contrário dos slogans no Brasil, com as energias entorno da feitura de um “nós” coletivo que ao mesmo tempo nasceu de, e fez possível a revolução. Essas energias vitais faltam à esquerda que se projeta contra junho de 2013, na eleição de 2014, na Copa e hoje novamente em pactos eleitorais com a direita, reivindicando como lugar de poder o apelo a um direito adquirido de ser o Estado e a legalidade, no controle das narrativas da esquerda, mesmo que desse lugar não seja possível mudar os condicionantes do real.

    Essa leitura, que busca pontos de apoio nas lutas e comuns possíveis, era de consenso em 2013 e hoje divide a esquerda, com boa parte dela dependente das agendas eleitorais,  com poucos homens falando de cima e longe, no teatro das instituições que transformam eles mais do que permitem ser transformadas. O ciclo progressista sul-americano gerou uma mística que ainda cativa, com a imagem positiva, especialmente na distância, de Mujica, Chávez, Evo Morales, ou do governo Lula, no Brasil, que reunifica a esquerda do governo inclusive com seus críticos e dissidentes anteriores, na frente do avanço e vitória eleitoral de oposições de direita. Não analisaremos aqui essas experiencias de governo. Mas cabe notar que a ideia de revolução é apropriada pela experiencia progressista para descrever um ciclo de bonança económica que favoreceu bancos, grupos empresários e liberou um processo de intensificação da exploração de recursos minerais, da agricultura e do petróleo, com amplo impacto sobre populações e territórios, mas como base necessária para garantir estabilidade econômica para os negócios, que se traduzia em estabilidade política, e mesmo sem lugar para transformações estruturais, ou de profundidade, que por exemplo reorganizasse a educação, promovendo um sistema diferente, em lugar de ampliar a matrícula pelo caminho do suporte de universidades particulares de má qualidade; ou sem questionar a organização capitalista e segregadora da cidade; a segurança e violência policial como ferramenta de contenção social; ou um consenso de civismo que impeça a repressão e perseguição de ativistas e protestas sociais. Embora houve programas sociais amplamente expandidos, e diferentes níveis do governo puderam tender a promover um governo social, antes que neoliberal, o desafio político que uma experiencia política revolucionária de esquerda nos evoca, nos deve levar a decretar que o caminho progressista mostrou seu limite e, por tanto, dificilmente possa ser pensado hoje como solução eleitoral que deveria organizar em seu favor a toda a esquerda.

     

    \"\"

    A defesa dos progressismos poderia dizer: isso é o que era possível, ser revolucionários nos anos 2000 foi fazer o que estes governos fizeram. Mas não, a revolução russa não foi apenas o aproveitamento pontual de uma conjuntura, que se alcancaria mais ou menos de acordo com a situação política ou alinhamento dos astros. O poder proletário, a revolução onde tudo se abre e passa a ser discutido foi um acontecimento único que mostrou que a história e o poder pode ser desafiado. Era possível, então, pedir mais para os governos progressistas latino-americanos. E exatamente isso foi junho de 2013 no Brasil; as marchas camponesas e de trabalhadores no Equador; as assembleias de 2002 na Argentina, depois do fracasso do governo que iria a tirar o país do neoliberalismo; ou a Bolívia da guerra da água e do desafio indígena ao poder estatal, inclusive, por alguns momentos, dentro do Estado.

    O final do progressismo, no Brasil e em outros lugares, é constatado na nostalgia e fraqueza política, que uma e outra vez é exposta no movimento pessado de uma esquerda de aparelhos e grupos que gritam no microfone e se colocam de forma autoflageladora, vitimizante e ao mesmo tempo arrogante, sem ter podido dar lugar a um ciclo de mobilização que se oponha ao frágil governo Temer, nem à uma mística de resistência para além de algumas expressões estéticas, mas bem longe de imaginar uma nova sociedade, como as artes e técnicas mostraram na Rússia da revolução, a pesar da repressão e represálias que viriam para os que ousaram pensar ou criar por fora dos canais autorizados da esquerda oficial, devenida Estado. Difícil não voltar então à tradição da esquerda que se referência na revolução russa, quando o que está em pauta, no Brasil e no mundo, é uma disputa que se continua dando na linguagem do século XX, e encontra de um lado uma direita furiosa que imagina uma esquerda socialista conspiradora, prestes a implementar um programa de comunismo de guerra (posição atribuída até para keynesianos ou nacionalistas estatistas); frente a uma reação da esquerda que responde atrincheirada nas bandeiras vermelhas, como se estivesse dentro de um filme de Eisenstein, ou então o avesso, na sua variante populista, se aproximando ao adversário da pátria e a ordem implementada de cima pra baixo, como se a forma de combater o xenófobo intolerante que na Grécia, Rússia e outros lugares mostra expressões abertamente nazistas, seja disputar os baixos instintos de um povo formatado pelo Estado; em lugar de desafiar o tempo, superar as formas dadas; multiplicar as lutas e desejos ali onde as esquerdas e direitas do Estado se ocupam em domesticá-las.

    No campo político ocupado pela direita social, dita liberal, e a esquerda velha e nova, em perfis identitaristas ou do Estado como resposta para tudo, vemos duas parcelas minoritárias de expressão política polarizada se reproduzindo de forma desconectada do dia a dia da população, como debate espetacular sem ancora na vida das pessoas e, no entanto, em uma ilusão de totalidade, como se estivéssemos de fato disputando a sociedade nessas discussões, numa batalha de Leningrado ou na resistência contra o nazismo, onde o tudo ou nada estaria em jogo, enquanto no campo das materialidades a esquerda que pretende salvar o Brasil do fascismo acabou de co-governar com seus inimigos. A pretensão de representar na pele o destino da nação, a esquerda não faz mais do que continuar assimilando formas de funcionar e de pensar das elites, como ficou claro na imposição de um projeto político que não foi votado e que não evitava a austeridade, o ajuste e o corte de direitos sociais, as alianças com pastores homofóbicos e a relação de proteção com a política que assassina. Em definitiva, com o que agora chamam de fascismo, que é também o que nos leva a recuperar a Revolução de Outubro.

    Favorecidos pela plataforma de disputa eleitoral e a difusão dessa oposição em compartilhamentos de redes sociais e plataformas de comunicação via celular, os herdeiros da revolução e do fascismo ou catolicismo conservador não se aproximam hoje da ruptura, mas do aperfeiçoamento da ordem, nas suas variantes progressista ou conservadora, numa bolha inflacionada de retórica e desonestidade política de parte da esquerda que pede o voto novamente. Existe fascismo na mesma medida em que a esquerda encarna revolução. Isto é, como gestos, desejos íntimos, propostas e visões de mundo, mas isso não significa que esse seja o quadro que descreva a ordem social possivel. O oposto de 1917, onde a nova ordem evitava o surgimento de um fascismo, a restauração autocrática ou uma república burguesa padrão.

    Quando uma formação política de esquerda se entrega à administração dos assuntos da burguesia, sem buscar alternativas políticas anti capitalistas ou anti neoliberais, apenas cabe o  rompimento, caminhar no deserto ou apostar em lutas vivas, mesmo que decretadas como menores, “apenas sociais” e não políticas, ou que não seriam estratégicas porque se opõem à máquina de desenvolvimento ou ao anseio de retomar o crescimento e avanço das empresas nacionais. A chantagem do \”possível\”, a esquerda com possibilidades de freiar o fascismo, é o obstáculo para outra política que supere o fascismo políticamente, na construção de um mundo onde ele não faça sentido.

    Em conseguencia, e honrando a vigência do corte no tempo aberto pela revolução de outubro, a esquerda demostra poder entrar novamente num modo de funcionamento stalinista, neutralizador das energias revolucionárias, burocratizante e autoritário.  Na frente do fascismo, às vezes explícito, às vezes projetado como ameaça e auto-legitimação para pedir apoio eleitoral ou chamar para uma praça que permanece vazia, a esquerda latino-americana vem mostrando reações desse tipo com vozes críticas. Assim são excluídas da imprensa progressista ou diretamente difamadas posições de ambientalistas ou organizações indígenas históricas na Bolívia e Equador, ou se reclassifica junho de 2013 no Brasil, impulso vital, transformado em responsável do ódio contra o PT, assim como já naquela época, grupos anarquistas e autônomos ou Black Blocs, foram criminalizados por referentes intelectuais de esquerda e membros do governo, como reação ao que viam corretamente como expressão política que os impugnava.

    A pergunta que fica no ar é até que ponto fascismo e stalinismo se precisam e constroem mutuamente. Pensando na União Soviética e aqui, quais caminhos políticos garantem combater o fascismo de forma mais eficiente? Quando dentro da esquerda encontramos tendências que por trás da oposição retórica mostram uma afinidade (industrialismo, nacionalismo, verticalismo, repressão da dissidência) vemos não só que se tivéssemos tido um governo de esquerda revolucionário, muitas ações poderiam ter sido feitas contra um fascismo micropolítico que evidentemente reflete o pensamento conservador de boa parte da população, e a subjetividade neoliberal que não é desarmada com as políticas públicas do progressismo. Se a nossa sensibilidade de esquerda nos mobiliza contra o fascismo, não era para ter buscado caminhos diferentes do que alianças com o grande capital financeiro? Com modelos de produção que destrói florestas e vida no campo? Com a ocupação do Haiti e uma relação de potência imperial com países irmãos?

    Em vista da situação, não é possível saber se é possível outra esquerda. Nem faz sentido se perguntar sobre quais posições são mais revolucionárias. Muitas revoluções foram feitas por acaso, por quem não devia ou estava preparado para assumir um papel revolucionário. A revolução muda as pessoas e o mundo, e por isso faz sentido hoje pensar a política como relacionada com outros mundos, esses que não separam natureza e sociedade e no pensamento indígena, mas também em projetos urbanos e na experimentação de laboratório mostram que a sociedade que os séculos XIX e XX imaginaram está sendo superada em vários lugares.

    Como pensar hoje o sujeito da revolução. Neste século houve mudanças no capitalismo, no trabalho, na subjetividade e na visão que temos sobre o mundo, existente e desejado, ao ponto de ser necessário abrir um debate não apenas sobre as condições para a revolução, mas também sobre quem, de fato, deveria fazer uma revolução hoje, caso isso seja politicamente necessário e possível. Não se trata apenas de adequar a ideia de classe às condições de trabalho fora da fábrica, como os teóricos do trabalho imaterial e o capitalismo cognitivo já fizeram. Se trata também de entender uma realidade onde a própria ideia de homem, se encontra transfigurada, afetada por tendências post-humanistas; de incorporação dos não humanos ao entendimento do jogo político; e da percepção de muitos de que o mundo; não é mais um ambiente físico inerte onde se desenvolveria a ação do homem como sujeito histórico e predestinado a algo, numa “sociedade” ou “civilização” que o conteria. Não há teleologia que possa ser sustentada hoje sem conflito, não há sujeito nem história que possa ser entendida de forma iluminista e estável. Isso nos leva, de um lado, para as margens, as comunidades, os sujeitos excluídos da narrativa moderna, por ser híbridos, desasujeitados, misturados, invisíveis para os códigos e formas de percepção anterior, inclusive ou especialmente da esquerda. Movimentos territoriais, étnicos, etc., não organizados a partir do local de trabalho, já têm sido incorporados pela teoria e prática da esquerda. Também a esquerda os tem capturado, manipulado ou utilizado como base para os mesmos fins que antes partidos de massa ou sindicatos foram burocratizados. A ideia de sujeito histórico, no entanto, inseparável da vanguarda que se torna esse sujeito, o conduz ou orienta, continua presente nas formas de ação política. Não buscamos aqui dar conta desse debate, mas é válido registrar que depois de cem anos da revolução russa, não apenas o conceito de revolução não descreve o tipo de transformação que muitos revolucionários estão buscando, mas também que o quem, como, para quê e aonde da revolução, estão hoje abertos e tensionados. Devires antes que movimentos e sentidos dos processos, conexões antes que organizações e agenciamentos vividos em lugar de marchas históricas. Em lugar de golpes e rupturas de violência militar a revolução se coloca como impossível se não é pensada como afetos, relações, contestação da ordem, não apenas político-econômica (como se fosse pouco!) mas também dos princípios autoritários de uma sociedade capitalista que separa muito do que pode permanecer junto, privatiza, mercantiliza e bloqueia fluxos vitais de um mundo que pode ser outro, ainda hoje.

    Sem clareza sobre o sujeito, o futuro, o espaço territorial da revolução, vejamos se, pelo menos, conseguimos pensar hoje esse poder social popular que foi a base da revolução de 1917. Os Sovietes, que não deixaram de encontrar internamente um esgotamento e refuncionalização, quando o poder do estado soviético os colocou para trabalhar. A falta de clareza, aqui, pode ser virtude e não diletantismo ou falta de compreensão dos devires sociais. A falta de clareza é adequada na falta de forma e caráter fluido que substitui as formas do trabalho, participação política, organização coletiva e afetiva. Esse poder de baixo, que nada consegue representar, menos ainda as formas republicanas e liberais voltadas para o indivíduo proprietário até agora. Sem uma forma de luta por caminhos previsíveis (aquele chamado eterno para uma greve geral revolucionária que quando acontece encontra fora dela à esquerda que sempre a procurou); sem chance nem vontade para um movimento que se oponha ao Estado no campo dos armamentos e dispositivos de repressão e segurança militar, o que temos é o que está acontecendo. As lutas. Comunidades quilombolas que se organizam contra agronegócio e mineradoras que invadem suas terras. Ocupações de escolas, de terrenos, de prédios, de espaços institucionais, de ruas, de propriedades ociosas, de lugares do Estado. A sexualidade vivida de uma nova maneira, ou a arte significativa fora dos circuitos comerciais. Territórios ancestrais, que são re-ocupados, ou ainda ocupados, com outras lógicas diferentes as que mandam os poderosos. Territórios que não se vendem, como a família de pastores que se recusa a entregar o último pedaço de terra no setor controlado pela empresa mineira Yanacocha, em Cajamarca, Peru. Criar poder territorial, e novas instituições, horizontais e livres, nos bairros, nas comunidades, na rede de computadores. Os sem teto ou estudantes que ocupando começam a construir a educação ou a cidade que querem. As fábricas, ainda, porque a revolução proletária ainda existe onde tem trabalho para ser reapropriado, ou interrompido por greves que certamente hoje estão muito mais abertas a virar lutas que se conectam com uma recusa do mundo da exploração do trabalho, com hortas comunitárias, lutas de periferias ou centros. Se partidos e nações fazem hoje algum sentido é para serem ocupados. Um problema dos progressismos latino-americanos é que perderam essa conotação. Não eram índios, trabalhadores, camponeses, mulheres, militantes de direitos humanos ocupando instituições. Se tornaram uma nova elite, geralmente branca, deixando a índios e sem terra bem longe das decisões, virando o Estado que muitos deles sempre foram, no pequeno poder de sindicatos, universidades, carreiras políticas. Outros deixaram de lutar aceitando a força de processos que, sem contrapoder e resistência, transforma até os melhores intencionados em peças de uma máquina de administração.

     

    \"\"

    Os sovietes são trabalhadores organizados contra o patrão, ocupações libertárias e também uma plataforma online que consiga fazer confluir energias de ruptura. O desafio é sintonizar, todos com todos contra o poder, e ativando um poder multitudinário que mostrou, em vários lugares, que quando acorda pode tudo e depois permanecerá como marca. O poder dual dos bolcheviques, que se tornou um novo Estado, pode hoje estar num outro nível, porque o capitalismo está ao mesmo tempo mais distante, articulado globalmente com uma rapidez difícil de neutralizar pelos meios tradicionais, de forma imaterial e também mais perto, dentro de nós, com dispositivos de dívida, isolamento, e neoliberalismo nas relações, direitos e formas de vida. Em lugar de criar um Estado, um banco, um partido, conseguir estar além, e, no entanto, envolver nesse além nossas vidas, que possam começar a funcionar com outra lógica, do comum, das táticas que neutralizem o poder, mesmo na cidade e no centro da produção capitalista. A revolução russa teve sucesso em se impor como nova realidade para todos os que antes se acreditavam súbditos do czar. No mundo de hoje pensar para além da mercantilização da vida e o neoliberalismo dentro de nós é possível também.

    Como contra poder, com instituições novas do comum e armas para disputar uma subjetividade formatada pelo capital que constrói outro mundo, enquanto decreta a obsolescência do que o precedeu. O importante dos sovietes é como se constituem como nova realidade, antes invisível ou reprimida pelo poder anterior, mas se tornando fato quando passou a ter as respostas que os trabalhadores mobilizados queriam ouvir. Os sovietes seriam também reprimidos, invisibilizados, refuncionalizados depois de que se criara um poder soviético. E esse talvez seja o problema que se coloca para os espíritos libertários de hoje. É possível sovietes sem Estado soviético? Existe possibilidade de “todo o poder para os sovietes” sem que uma instância separada, autônoma do movimento, uma nova burocracia que diga os representar, mas tome seu lugar, seja possível?

    A revolução russa é criação de condições para que aconteça o impossível. Ela desafiou a história, e não era o produto de um processo que a tinha por fim. Aconteceu contra o mais esperável: o estabelecimento de uma república burguesa na Rússia, como as da Europa ocidental, ou a repressão do movimento radicalizado nas ruas, como ocorreu meses antes de Outubro, e em 1905. A revolução Russa é também a revolução que não aconteceu antes na Alemanha, e que também não foi estopim de uma revolução mundial. Ela aconteceu contra a repetição e o poder, e é isso que nenhum poder conseguirá fazer que não aconteça mais. Onde há poder há resistência, e todo poder em algum momento cai. O fascismo existe, mas nosso objetivo principal não é derrotá-lo. Nosso objetivo anterior é fazer a nossa revolução, e é isso que vai impossibilitá-lo.

     

    São Paulo,

    Terça-feira 7 de Novembro de 2017

     

  • Tessituras de uma cultura tecnopolítica

    de Henrique Parra – também publicado no Pimentalab

    Com um pequeno intervalo de 30 minutos, acompanhei no mesmo dia duas atividades que, no contraste de suas diferenças, indicam o tamanho do desafio que temos pela frente. A boa notícia é que não nos falta ação, mas sim capacidade de transversalidade e conexão. Um dos desafios, para além de superar nossa fragmentação, é compreender os agenciamentos do mundo sociotécnico em que estamos imersos e fomentar uma cultura técnica que dê suporte e amplifique os modos de vida que desejamos fazer proliferar.

    \"\"

    Dois seminários públicos: o primeiro, na sede da FUHEM Ecosol, ONGs de pesquisa social e formação, onde ocorreu o lançamento da publicação Estado do Poder 2017, cuja edição foi dedicada à cultura/ideologia e suas formas de participação nos mecanismos globais de dominação. No lançamento da publicação assisti a uma excelente intervenção da pesquisadora-ativista boliviana Elizabeth Peredo Beltrán (Poder e Patriarcado) sobre o chamado \”fim do ciclo progressista na América Latina\”, dentre outras apresentações.

    O segundo seminário foi um achado acidental. No dia anterior, trombei com uma propaganda de página inteira no jornal impresso que lia no café. A imagem da campanha me pareceu tão exótica que se não fosse minha curiosidade semiótica jamais teria chegado ao conteúdo textual que eles queriam difundir. Esta atividade era o lançamento de uma campanha nacional – Caminho do Sol  – de mobilização pelos direitos de pequenos produtores à geração e comercialização de energia solar (fotovoltaica).

    \"\"

     

    Imaginar outras infraestruturas tecnopolíticas

    O relato sobre a experiência política boliviana, insere-se num debate mais amplo sobre o chamado \”fim do ciclo progressista na América Latina\”. De certa forma, o discurso de \”fim do ciclo\” é um recurso performático que deseja traçar uma linha entre um antes e um depois, procurando ativar no presente outras interpretações, horizontes e projetos políticos. A própria idéia de \”fim de ciclo\” é tema de muitas controvérsias (experimente dar uma pesquisada no termo \”fim do ciclo progressista\”). Há uma versão de \”fim de ciclo\” proclamada pelas forças reacionárias e meios de comunicação corporativos que anunciam o esgotamento dos projetos da esquerda, e uma versão de \”fim de ciclo\” que pretende criar outras interpretações no campo da própria esquerda.

    Faço uma sinopse, muita imprecisa e simplificada, para destacar alguns argumentos. É elaborada uma reflexão crítica sobre os limites das experiências de governo da esquerda latino-americana (Bolivia, Brasil, Equador, Venezuela, Argentina…) desses últimos 15 anos. As análises recuperam a história de lutas sociais que antecederam esses governos, construções de amplos movimentos sociais e redes de organizações de base em ciclos de 15, 20, 30 anos (a depender do país) até que um grupo/partido político oriundo dessas construções chega ao poder em escala nacional. Em seguida problematiza-se as tensões e dilemas que emergiram entre a lógica de governo e as dinâmicas da prática política dos movimentos, lançam perguntas desafiadoras sobre os limites da ação governamental (na tomada do Estado), e as armadilhas que se instalaram para a ação política. Por fim, abrem-se novas perguntas sobre os possíveis caminhos de um novo ciclo de luta política, cujo foco estaria orientado para a construção de políticas não estado-cêntricas. O Estado é importante, mas sua ocupação-gestão não seria o principal espaço da construção dessas alternativas. Neste percurso é também elaborada uma crítica ao fato de que, as políticas de inclusão social apoiaram-se num modelo de crescimento econômico que era dependente de programas de desenvolvimento de caráter extrativista, concentradores de renda, com forte dependência e alianças espúrias com as grandes corporações e capital financeiro, combinação esta que mostrou-se insustentável. Certamente, os argumentos são muito mais complexos. Há boas referências sobre essa discussão [veja Raquel Gutierrez Aguilar. Horizontes comunitario-popular: producción de lo comun más allá de las politicas estado-centricas].

    Dentro deste amplo debate, comentarei apenas um ponto: as grandes obras de infraestrutura (usinas, estradas etc). Com frequencia as grandes obras de infraestrutura são vistas como um problema em razão do enorme impacto socioambiental no meio em que são inseridas. Porém, pouco se discute sobre a maneira como um determinado modelo de infraestrutura é o resultado de todo um arranjo sociotécnico que faz com que um certo projeto/desenho se apresente como a melhor resposta a um conjunto de variáveis: um desenho de uma hidroelétrica em oposição a outros modelos de hidroelétricas; o traçado da construção de uma rodovia, a cadeia de produção e distribuição alimentar, o fornecimento de água nas cidades etc.

    Evidentemente, há sempre alternativas e decisões políticas em jogo, mas com muita frequência escapa ao debate tanto a descrição do conjunto das determinações que \”elegem\” um modelo de infraestrutura, como a proposição de alternativas que sejam capazes de oferecer outras respostas, neste caso, com uma eficiência simultaneamente societal e tecnopolítica.

    Se pretendemos produzir energia para que a vida de muitas pessoas sejam melhores num determinado espaço tempo, como podemos fazê-lo? Se vamos abastecer com água ou alimentos uma cidade, como podemos fazer isso de maneira diferente, agora e para gerações futuras? Não podemos ignorar este problema se desejamos fazer política com/para os 99%.

    O desenho de uma infraestrutura não é neutro, e seus efeitos no mundo não poderão ser posteriormente controlados por um projeto ou ideologia política. Claro, há sempre uma margem de flexibilidade, mas ela tende a ser cada mais vez menor a medida que os efeitos desta infraestrutura se reticulariza e se inscreve em encadeamentos sociais e técnicos mais amplos.

    Por analogia, podemos pensar o Estado como uma tecnologia de poder. O desafio de governar essa máquina não pode ser reduzido a uma problema de governabilidade e nem transformado num desafio de escalabilidade da luta social. A mudança nos meios de ação (extra-Estado X Estado) e a dimensão da ação (local x nacional x mundo), implica em profundas transformações em todos os entes envolvidos nessa relação. Não se trata apenas de um aumento na complexidade no sistema. Nada se mantém o mesmo. Técnica e política estão sempre entrelaçadas em sua inscrição e efetivação no mundo. Por isso, a proposta de criar outros horizontes políticos para um novo ciclo de lutas, não poderá se limitar à disputa de narrativas ou visões de mundo. Precisamos de práticas, corpos, ferro, aço, água…

     

    Energia = natureza + cultura + técnica + política

    Os problemas indicados acima ficam evidentes quando você resolve experimentar na prática a construção dessas alternativas. Esta é a potência de um protótipo. Neste processo surgem conflitos com atores e forças que desconhecíamos e um novo universo de expropriação do comum se evidencia.

    A campanha \”Sol e Justiça\” surge da mobilização de 60 mil famílias que investiram suas economias em iniciativas coletivas de produção e comercialização de energia fotovoltaica e que atualmente sofrem com a mudança de prioridade do governo. O estado espanhol pretendia fomentar a diversificação da sua matriz energética, no sentido de reduzir o impacto ambiental do modelo atual. Porém, no momento em que começam a proliferar diversas iniciativas de autoconsumo, associações, cooperativas e pequenas empresas que produzem e comercializam enérgia elétrica, as forças em jogo ficam mais evidentes e a política de incentivo estatal muda radicalmente. No caso em questão, grandes empresas internacionais fornecedoras de energia eletrica lograram impor novas regras, através do governo Espanhol, que fossem mais favoráveis aos seus investimentos. Como resultado, as 60 mil famílias ficaram afogadas com dívidas assumidas para a construção de um modelo energético que seria alternativo.

    São muitas as variáveis que afetam as condições de viabilidade de uma nova tecnologia ou atividade econômica: os mecanismos de autorização e controle para instalação de placas solares nas residências devem respeitar determinados protocolos, com fiscalização inclusive das empresas privadas que fazem o fornecimento de energia elétrica nas residências; os critérios para financiamento publico são modificados e outras formas de apoio estatal são exclusivos para determinada escala de empreendimento, entre outros. Em suma, tudo é feito de forma que o modelo que irá se apresentar como o mais \”eficiente\” é aquele que fortalece uma certa configuração de mundo. Neste caso, compreendemos rapidamente como a luz solar deixa de ser um Comum e se torna um recurso que deve ser submetido a um regime de escassez e monetarização.

    Ainda assim, a ação prática desses coletivos aprende com os bloqueios e passa a elaborar alternativas que, a despeito do ambiente inicialmente desfavorável, cria soluções e arranjos sociotécnicos que se relevam melhor adaptados, graças à uma combinação de engenhosidade técnica e estratégias de colaboração social.

    Os desdobramentos futuros desses arranjos é um campo de cultivos e batalhas. O campo dos \”estudos em inovação\” indicam que muitas inovações sociotécnicas que foram concebidas para transportar valores emancipatórios ou solidários, quando deslocadas ou apropriadas em outros arranjos, acabam frequentemente perdendo a capacidade de efetivação daqueles princípios políticos que desejavam difundir. Hoje temos comida orgânica tanto associada a modelos alternativos de vida (sistemas de produção local, com redes de consumo coletiva etc) como formas de produção e comercialização de orgânicos que fortalecem as estruturas tradicionais de concentração de renda e formação de oligopólios [veja alguns trabalhos de Adrian Smith].

    \"\"

     

    foto: Campanha Orgulho Solar

     

    Problema semelhante acontece com a produção fotovoltaica. Você pode fazer parte de uma rede autogerida que produz, distribui e utiliza energia solar (veja http://ecooo.es ), ou você pode ser o locatário de uma unidade de produção numa grande fazenda de produção de energia solar (veja https://www.cosol.com.br/ ). Cada um desses arranjos sociotécnicos mobiliza mundos e modos de subjetivação absolutamente distintos.

    \"\"

     

    foto:  COSOL – condomínio solar

     

    Tessituras de uma cultura tecnopolítica

    Terminei o dia com a sensação de que havia cruzado por dois mundos que pouco se comunicam. De um lado ativistas, sociólogos e ecologistas que lutam por um mundo socialmente justo e ambientalmente sustentável, sabem construir movimentos, organizações e comunidades, mas buscam formas para tornar durável as frágeis formas de vida que experimentam. De outro, engenheiros e economistas que criam tecnologias e iniciativas portadoras de novos arranjos socioeconômicos, que lutam para superar as adversidades (jurídicas, financeiras, culturais) que inviabilizam suas atividades. Tudo se passa como se fossem dois mundos a parte.

    Pergunto-me sob as possíveis formas de diálogo, aprendizados mútuos e alianças. Há, felizmente, sinais de que cada um desses mundos começa a se mover em direção ao outro. O fato de que as iniciativas comunitárias de energia solar estejam começando a se organizar como movimento social é um exemplo; o crescimento das redes de agroecologia e sua incorporação na pauta de distintos movimentos sociais também; a maior transversalidade do feminismo em diversas práticas sociais, entre outros casos.

    Talvez, um novo aprendizado diante da fragilidade institucional que nos assola neste momento, seja o reconhecimento da existência de outras formas de fazer política. A criação e o suporte de modos de vida em comum, exige também a produção deste comum. Para que este comum exista e possa se sustentar no tempo, começamos a reconhecer os diversos elementos e práticas, materiais e imateriais que lhe dão suporte. Técnica e cultura, política e tecnologia, valores e práticas caminham juntos, se entrelaçando. Uma tecnologia alternativa sem uma comunidade que lhe dê suporte não sobreviverá assim por muito tempo. Um coletivo que não cuida das infraestruturas que dão suporte a suas práticas não terá vida longa. Um movimento social que negligencia os corpos de seus participantes, não será capaz de criar uma comunidade política saudável.

    São essas diversas e interdependentes dimensões que talvez componham juntas outras cartografias políticas. Quais são as infraestruturas necessárias? Como criar e sustentar um corpo, individual e coletivo? Quais são nossos protocolos? Nossas tecnologias? Qual é a comunidade que dá existência e suporte à essas práticas? Quais são as práticas que produzem nossa comunidade? Quais são nossas formas de conhecer e de transmitir os conhecimentos? Tudo ao mesmo tempo agora.

    PS: este post é parte da série de relatos que irei realizar durante o período de pós-doc em Madrid. Mais informações sobre o projeto atual: http://wiki.pimentalab.net/index.php?title=Projetos_Pesquisa

  • A geopolítica do caos e o fim de ciclo na América Latina (Emiliano Teran Mantovani)

    Por Emiliano Teran Mantovani

    (tradução Giovanna Marra)

    \"\"

     

    \”…se as medidas excepcionais são o fruto dos períodos de crise política e, enquanto tais, estão compreendidas no terreno político e não no terreno jurídico constitucional, elas se encontram na paradoxal situação de serem medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direito, e o estado de exceção se apresenta como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal\”.

    Giorgio Agamben

     

                O Grande Tabuleiro Mundial se requenta. O conflito social está se propagando por toda a moldura do sistema-mundo, produto não só das extraordinárias desigualdades socioeconômicas e da devastação de fontes de vida e territórios, senão também da terrível vulnerabilização que se provocou sobre os tecidos sociais nesses mais de 30 anos de neoliberalismo global. Como sintoma e consequência destes processos, direitas e extremas direitas ganham cada vez mais terreno em numerosas partes do planeta.

    Na América Latina, as entusiasmantes ilusões emancipatórias que se propagavam durante o auge dos governos progressistas estão sendo desfeitas por um horizonte de resistências, agora basicamente a partir da perspectiva das organizações populares de base e movimentos sociais. Se trata de um horizonte mais incerto, mas necessariamente mais combativo.

    Este panorama para América Latina não deve ser simplesmente interpretado como uma potencial \”volta ao passado\”, como um regresso na linha do tempo à 1990. Importantes transformações ocorreram na região, suficientes para afirmar que já nada será igual por aqui. Deve-se olhar adiante advertindo não só tendências histórico-estruturais senão também identificado as marcas sui generis do tempo em que vivemos.

    A crise civilizatória parece prefigurar uma geopolítica do caos, onde também opera uma estratégia do contingente, do instável, que por ser mais versátil, flexível, aberta e descentralizada não deixa de ser violenta e profundamente reacionária – por exemplo, a chamada \”Doutrina Obama\” esteve marcada por essas marcas [1]. Neste marco, é fundamental ressaltar os elementos:

     

    1. alguns mecanismos tradicionais de intermediação com o econômico (como os estados de bem-estar e políticas de assistência social massiva) e com o político (como os sistemas de partidos e instituições eleitorais, marcos jurídicos de direitos civis) parecem estar em processo de franco esgotamento histórico, seja porque sua legitimidade social está minada, porque não podem sustentar-se no tempo ou porque representam um obstáculo frente a necessidade que tem o capital de um ajuste radical. Portanto, este aponta à processos massivos e intensivos de apropriação direta da riqueza e do trabalho, sem intermediação nem negociação nem sedução, principalmente no Sul Global, mas avançando também no Norte. Nesse sentido, a guerra deixa de ser somente acontecimento histórico e vai se constituindo como exercício permanente de micro-política e como referente dos regimes de poder e dos estados de direito.
    2. mas a apropriação direta não supõe necessariamente uma atuação imperial na forma de um rolo compressor, senão baseada em estratégias diferenciadas que permitam sustentar ao máximo possível os processos de acumulação, os mercados e a circulação de capital. A isso poderíamos chamar uma política do cinismo: a combinação de retalhos de assistência social, regionalizações de consumo, zonas de \”paz\” com estados de guerra territorial, estados de exceção seletivos, configuração de democracias sitiadas, regimes de poder regional paraestatais, entre outros, que vão se desenvolvendo dependendo de fatores de conjuntura e as diversas reações sociopolíticas que provocam.

    A partir da análise geopolítica do discurso oficial progressista latino-americano, se promoveu a total centralidade da contradição Império vs Nação-periferia (basicamente EUA vs os governos progressistas), interrompendo uma análise de multi-escalas e deixando engavetadas as próprias contradições domésticas Estado-Governo – território/população.

    Ao mesmo tempo, se impulsionou uma prevalência do império-acontecimento (por exemplo, para o casa da Venezuela, uma eventual intervenção militar norte-americana) deixando de lado o império-processo, o qual expressa os múltiplos mecanismos de penetração e transformação desde dentro das tramas sociais, das forças contra hegemônicas, das facetas desafiantes dos regimes políticos nacionais, com o fim de ir prejudicando  e mudando-os para facilitar a acumulação de capital e a apropriação de recursos e trabalho. Essa forma de intervenção pode conseguir o desmantelamento e a desativação progressiva de um processo contra-hegemônico de mudança, ainda que na superfície dado regime político busque manter uma fachada popular-emancipatória. Nesse sentido, é vital ressaltar a contradição Império-território/população.

    Esta análise integrada macro-micro-político, de múltiplas escalas espaciais, esta fenomenologia do imperialismo, é útil ao menos por duas razões:

    Primeiro, fatores como o caos global e os altos níveis de incertezas, risco e volatilidade sistêmica, nos quais muitas das macro-instituições tradicionais são cada vez menos funcionais e se requer de ação direta; a lógica de penetração total do neoliberalismo a escala planetária; a potencial desregulação ou mutação dos Estados latino-americanos frente esta nova etapa; a vulnerabilidade de povos e comunidades frente esta situação; a disputa geopolítica pelos recursos naturais; entre outros, ressaltam a especial importância do foco sobre a dinâmica nos territórios. Uma estratégia de apropriação direta supõe analisar mais de perto o que ocorre nos mesmos, e nos tecidos sociais, onde se estão desenvolvendo vitais disputas pela vida a escala global.

    Segundo, dita análise poderia contribuir a fazer visíveis os diferentes atores envolvidos nas intervenções que o capital transnacional impulsiona, e que são canalizadas em escalas globais, regionais, nacionais e locais. Permite destacar as operaçòes de interface geográfico mediante as quais opera o capital para finalmente chegar ao tecido da vida socioecológica. Dessa forma, por exemplo, é possível ressaltar a relação orgânica, ainda que não necessariamente explícita, que tem o extrativismo com estas formas de operação imperial.

    Nas disputas geopolíticas e nacionais nesses novos tempos para a América Latina, não só se abriu o cenário para a aparição de governos favoráveis a um ou outro bloco global de poder, senão também a configuração de novas e complexas \”governamentalidades\” (Foucault) nos territórios e os tecidos da vida. Controlar e administrar o caos, assim como aproveitar e canalizar as mudanças essenciais que se produziram nos tecidos socioterritoriais, parece ser um objetivo central nessas disputas pelo mandato político. Convém avaliar pois, o terreno espinhoso onde se estão desenvolvendo as lutas atuais e as que virão.

     

    O terreno espinhoso de lutas por vir: reconfigurações nas entranhas da América Latina

     

    O ciclo progressista latino-americano que parece se concluir, e que teve impactos diretos e indiretos em toda a região, pode ser também lido como uma nova onda modernizadora para a região, impulsionada não só pelo boom dos commodities que iniciara na década passada, senão também por ampliações e novos dispositivos na distribuição social dos excedentes captados nesse processo.

    Colocar que América Latina já não será igual supõe reconhecer que esta onda modernizadora gerou importantes transformações nas molduras sociais; nos territórios urbanos, camponês e indígenas; em suas estruturas políticas – o que inclui as formas de exercício do poder e as lutas populares -; nas expectativas e padrões culturais; e nos metabolismos sociais; o qual tem e terá notáveis efeitos para toda a vida na região.

    Se bem variam em diversos graus e não operam de maneira absoluta, nos diferentes países latino-americanos é possível verificar algumas tendências compartilhadas tais como:

    . Crescimento dos processos de urbanização, modernização territorial e da população dentro das cidades, com tendências persistentes ao incremento para os próximos anos [2].

    . Caotização e vulnerabilidade das cidades – recorde-se por exemplo, a crise hídrica em São Paulo desde 2014 ou as inundações em Buenos Aires em 2013. Expectativas de \”modos de vida imperial\” (U. Brand) em cada vez mais gente, o que está se unindo contraditoriamente com a atual situação de queda dos preços dos commodities.

    . Avanço da fronteira extrativa em toda a região. Relançamento e expansão em grande escala em setores do extrativismo que não foram os tradicionais para cada país, como o caso da mineradora na Venezuela ou Equador, ou o petróleo no Brasil. Avanço dos extrativismos de alto risco por meio do impulso de exploração de hidrocarbonetos não convencionais, tais como a perfuração e fracking na jazida de Vaca Muerta, Argentina; ou os crudes pesados e extrapesados na Colômbia e Venezuela [3].

    . Crescimento nos metabolismos sociais (fluxos de materiais, energia e água), que ainda que em termos relativos (taxas de crescimento, fluxos per capita, etc.) poderiam diminuir em relação a décadas passadas, mostram notáveis tendências ao aumento em termos absolutos [4]. Isto ocorre não somente nas cidades, onde uma porção das populações foram incorporadas ao consumo de mais energia, materiais e água, senão também a raiz da expansão do extrativismo nos territórios da região.

    . Sistemas sociais mais complexos. Incorporação massiva de setores das classes pobres às classes médias [5]. Estratificações sociais mais heterogêneas e híbridas – por exemplo, bairros populares nos quais convivem diferentes \”classes\” sociais. Novas subjetividades nos jovens que adotam uma atitude frente a política e fazem um importante papel no desenvolvimento deste fim de ciclo.

    . Em alguns países se produziu o surgimento de novas burguesias, no seio dos processos de acumulação de capital impulsionados direta ou indiretamente pelas políticas dos governos, como no caso dos progressismos radicais da Venezuela e Bolívia – \”Boliburguesia\” e \”Burguesia Aymara\”, respectivamente.

    . Financeirização das classes populares e robustecimento qualitativo das economias informais. A pesar de que em vários países da região cresceu o emprego formal na última década – como na Argentina, Brasil e Chile -, devido às características dos modelos primários da região, o setor informal segue sendo muito significativo – uma média de 50% do total, sendo que em países como Paraguai, Colômbia, México, Guatemala ou Peru, se supera notavelmente esta cifra [6]. O processo de financeirização social lhe deu maior organicidade à economia informal e fortalece em termos qualitativos, na medida em que vigora suas redes, potencializadas pelo alto consumo. Poderíamos dizer que se socializou o setor terciário da economia, potencializando uma maior autonomização do setor informal. À raiz do fim do boom das commodities e uma re-explosão da economia informal. O que acontece quando a informalidade passa a ser um determinante de toda a economia e dos tecidos sociais?

    . Em diversos graus, dependendo dos territórios e países, as estruturas socioeconômicas e culturais dos povos indígenas e camponeses foram impactadas. Novas ruralidades e novas configurações no mundo indígena foram se desenvolvendo, com consequências a respeito da preservação de seus territórios, seus modos de vida, suas resistências e seus padrões culturais.

    . Surgimento de novas direitas, que assumem narrativas, projetos mais híbridos e flexíveis, com novos rostos, os quais buscam capitalizar as numerosas mudanças sociais, culturais e políticas da região. A crise dos progressismos reabriu o caminho a um potencial desprestígio dos ideais revolucionários e socialistas em amplos setores da população, com maior força na Venezuela.

    . Grupos de delinquência social, urbanos e rurais, que se transformaram a formas muito mais sofisticadas de ação, com maior capacidade de fogo e tecnológica, e com maior consciência de seu poder político, principalmente nos territórios que conseguem controlar.

    . Afirmação do que chamamos de um \”neoliberalismo mutante\” [7], o qual se configurou como um modo heterodoxo, híbrido, estratégico e flexível de acumulação de capital que muda, se reacomoda permanentemente, e no qual podem coexistir, por exemplo, mercantilização sem privatização ou financeirização com intervenção estatal, sem que isto implique o abandono de uma eventual guinada à ortodoxia ou ao horizonte de desapropriação massiva que o constitui.

    . Penetração múltipla das economias latino-americanas por diversos atores geopolíticos, onde teve crescente presença China e em menor medida os outros países dos BRICS. Destacam os nexos do gigante asiático com Venezuela, Equador, Brasil, Peru e Argentina [8]. Relativo deslocamento da hegemonia dos EUA. Brasil incrementou sua influência geopolítica, ressaltando seu papel na América do Sul. Em geral, o fim do ciclo está também marcado por uma espécie de guerra fria que se desenvolve a nível mundial.

    . Vivemos em um mundo ainda mais convulsionado que quando começou este período de perfil progressista.

    Sobre a superfície acidentada, móvel, irregular e volátil desta geografia política das muito diversas molduras sociais latinoamericanas vai se conformando cadeias de regimes de poder, diferenciados mas profundamente conectados com as disputas geopolíticas, os Estados da região e os processos de acumulação do capital a escala global. Convém examinar as tendências que configuram, desde cima, um marco de excepcionalidade e militarização de todos os âmbitos da vida; e desde baixo, uma cooptação do antagonismo, especialmente de suas facetas autoritário-delinquenciais.

     

    Gerindo o caos desde cima: regimes de exceção e militarização da vida

     

    Os tempos por vir na América Latina parecem apontar a tempos conflitivos, de revoltas e intensas disputas territoriais pelos recursos. Os Estados latino-americanos não só vaõ se adaptando às dinâmicas de crise econômica global através da crescente execução de reformas e ajustes macroeconômicos (desde a Reforma Energética no México até as Zonas Econômicas Especiais na Venezuela), senão também se vêm compelidos a desenvolver ou ampliar formas de cooperação com a lógica de guerra global imperante.

    Neste marco, e com olhar na administração e gestão dos cenários de crise e caos sistêmico, se desenha uma crescente política de militarização de todos os âmbitos da vida e a expansão de estados de exceção diferenciados. Situações ou contextos de contingência vinculados à uma \”ameaça excepcional\”, vão sendo canalizados através destes mecanismos de controle, seja por crise econômica (como o Estado de Exceção e Emergência Econômica decretado à nível nacional na Venezuela desde maio de 2016, para combater a \”guerra econômica\” e outros fatores [9]); luta contra o terrorismo e o narcotráfico (como o declarado pelo governo peruano em setembro de 2016, em três distritos de Huancavelica, Ayacucho e Cuzco [10]); fenômenos naturais (como a explosão do vulcão Cotopaxi em agosto de 2015, que implicou uma declaração de estado de exceção à nível nacional e mobilização de todas as forças armadas no Equador [11]); grandes eventos (como o estado de exceção declarado pelo governo brasileiro para os Jogos Olímpicos de agosto de 2016 [12]); e evidentemente revoltas populares e manifestações sociais de diversos tipos.

    Mas é fundamental destacar que o desenvolvimento deste processo não se dá só por decretos; a promulgação de leis antiterroristas e o endurecimento dos códigos penais; o estabelecimento de novas bases militares estadunidenses na região (especialmente no Peru, Paraguai e Colômbia); a modernização das forças militares, policiais e de inteligência; ou inclusive a busca de consolidação do Conselho de Defesa Sul-americano da UNASUR; senão de como todos os aspectos e âmbitos da vida social vão sendo atravessados progressivamente pela lógica militar/policial de controle, sítio, vigilância e repressão. De como o sistema de direitos e garantias sociais vai ficando cada vez mais suspenso para que se vá impondo um regime político de excepcionalidade permanente, que permite às forças de segurança oficial tomar o controle dos recursos, instituições e territórios \”vulneráveis\” pela \”ameaça extraordinária\”.

    Tudo isso vai se configurando independentemente de se a aliança geopolítica dos diferentes Estados latinoamericanos é com os Estados Unidos, com China ou com outros atores nacionais e corporativos.

    No entanto, como já sinalizamos, estes processos evoluem de maneiras diferenciadas nos países e territórios latino-americanos, ao tempo que não se trata necessariamente de regimes rolo compressor  ou de formas totalitária homogeneizantes, senão que respondem a estratégias variáveis, flexíveis e regionalizadas.

    Por um lado, deve-se tomar em conta as estruturas políticas domésticas, a significação geopolítica de cada país e regiões, a importância de seus recursos e a intensidade das resistências populares frente os diversos processos de intervenção do capital, para compreender como se atribuem e se recorrem às diferentes modalidade e intensidade de operação sobre os territórios e população.

    No México, a \”Guerra contra o Narcotráfico\” (2006+) e a Lei de Segurança Nacional (2011) geram um marco de brutal excepcionalidade permanente e generalizada, com numerosas similitudes à região centro-americana, em especial em El Salvador, Guatemala e Honduras.

    Na América do Sul, Colômbia destaca como regime constituído em boa medida pela excepcionalidade e por ser uma área geopolítica de pivô (ou charneira), sendo que o cenário pós-conflito não supõe necessariamente que se interrompa o processo de militarização imperante (com processos atuais de intensa repressão social e desaparição de ativistas) e o crescimento da assistência militar por parte dos EUA [13].

    Por sua vez, nos países de governos progressistas latino-americanos se produziu intensas disputas sociopolíticas atravessadas por atores rivais nacionais e internacionais, o qual incrementa os níveis de conflitividade geral, e portanto, os processos de militarização e cenários de excepcionalidade, sendo Venezuela o caso onde isto se desenvolve com mais intensidade.

    A Amazônia aparece como uma zona chave na evolução destes processos de conflito. Do mesmo modo, destacam-se formas de militarização urbana (ex. Caso brasileiro) e as complexas dinâmicas fronteiriças em toda a região (ex. A Tríplice Fronteira ou a fronteira Colombo-venezuelana).

    Por último, ainda que países como Chile, Uruguai ou Costa Rica não apareçam como grandes áreas estratégicas, de risco ou de insubordinação, podem aparecer processos deste tipo em menor escala ou setorizados, como ocorre com a crescente militarização e conflito na araucania chilena.

    Finalmente, é essencial insistir que o custo político, econômico e social, e as enormes dificuldades que acarretam a execução e manutenção de um regime total de excepcionalidade permanente a escala nacional, coloca a pertinência para o status quo do impulso de políticas setorizadas e de contingência.

    O fim do ciclo não tem que ser pensando única e necessariamente como um tsunami arrasador. Uma restauração conservadora na América Latina ou uma radicalização da acumulação por despossessão parece ir montando-se progressivamente, mediante políticas que, ainda que possam chegar a ser violentas e de ampliaçãodo descaso social, se configuram de maneiras seletivas e diferenciadas.

    Mais além destes dispositivos exibidos desde cima, é necessário também examinar como estes também podem expandir-se a partir das próprias tramas da vida social, analisar como vão se configurando desde baixo.

     

    Gerir o caos desde baixo: autoritarismos delinquenciais e o tecido social como campo de batalha.

     

    A pesar da progressiva configuração de todos estes dispositivos de controle, os marcos da legalidade e dos aparatos e instituições formais estão sendo cada vez mais transbordados pelas dinâmicas sociais, culturais, metabólicas e territoriais que se desenvolvem nas entranhas da região, e que descrevemos anteriormente.

    O crescimento de redes de narcotráfico, de amplas molduras de economias informais e comércio de contrabando, muitos deles de caráter transfronteiriço, e a acelerada expansão da mineração ilegal, principalmente na região amazônica, estão constituídos por grupos sociopolíticos que conseguem exercer cada vez mais poder sobre os territórios, configurar economias locais com cada vez maior afinco popular, gerar crescentes danos ambientais e impactar significativamente sobre os tecidos sociais e os processos de produção cultural e de subjetividade.

    O controle territorial dos cartéis mexicanos em várias regiões do país; o avanço político das \”maras\” na América Central (recordemos a greve de transporte convocada por Mara Salvatrucha e Barrio 18 em El Salvador, em julho de 2015 [14]), as estruturas de poder de grupos armados irregulares e gangues criminosas urbanas e rurais na Colômbia, e a forma acelerada como cresceram as mesmas na Venezuela; a expansão do tráfico de commodities na Amazônia e outras zonas do subcontinente (especialmente nas novas fronteiras de extração); são expressão de como estes grupos podem inclusive criar seus próprios regimes políticos, suas próprias formas de excepcionalidade, os quais podemos entender como autoritarismos delinquenciais regionalizados.

    Nestes circuitos e territorializações, não há área protegida, zonas de reserva, direitos humanos, regulações econômicas e jurídicas que o valha, não só porque não se impõe uma institucionalidade formal que os faça respeitar, senão porque  ao mesmo tempo vão se institucionalizando desde baixo estes outros formatos do \”paralelo\” – ilegal-informal.

    É comum impingir a ocorrência destes fenômenos a uma \”ausência de Estado\”, e ainda que de fato isto possa revelar um abandono ou deslocamento da institucionalidade estatal, convém também analisar processos de cooperação e articulação que estão se produzindo entre os âmbitos do formal/legal e o informal/ilegal.

    O capital e o Estado podem configurar uma poderosa biopolítica que opera em um duplo âmbito de ação: não somente na militarização da vida e sua lógica de controle de amplo espectro, impulsionada desde cima, senão também buscando cooptar as pulsões contra-hegemônicas, desde baixo.  Isto basicamente implica tentar canalizar o mal-estar popular, o transbordamento social, as pulsões de sublevação e de poder, pondo especial atenção nas poderosas estruturas delinquenciais, para favorecer formas de controle territorial e apropriação local do trabalho, os recursos, os corpos e o território, ao mesmo tempo que se possa dividir, fragmentar e vulnerabilizar ainda mais o tecido social que poderia conformar a alternativa contra-hegemônica. Dessa forma, o tecido social se converte em campo de batalha.

    O lema mexicano em torno da tragédia de Ayotzinapa (2014) de\”No fué el narco, fué el Estado\”, que expressa um regime de co-governança e entrecruzamento de aparatos repressivos formais e grupos delinquenciais; as variadas expressões cooperativas entre setores militares e os grupos que impulsionam a expansão da mineração ilegal na região amazônica; ou bem o importante rol que vão adquirindo as instituições policiais no próprio auge da delinquência urbana; por mencionar alguns exemplos, revelam um padrão de poder que tem um caráter multiescalar, corporativo e reticular , no qual as fronteiras entre o formal/legal e o informal/ilegal vão se fazendo cada vez mais apagadas. Isto nos traz de novo à recorrente pergunta sobre o que é o Estado, pensando-o agora a partir da América Latina no século XXI.

    Tomando em conta o auge dos poderes territoriais delinquenciais e as ramificações e transbordamentos dos Estados mais além das margens do formal/legal, nos perguntamos também se trata-se somente de uma tendência conjuntural ou se estamos frente à configuração histórica de novas formas de estatalidade na região.  No marco da geopolítica latino-americana, estamos frente uma tendência regional estruturada e determinada pelas intensas disputas intercapitalista mundiais? São exemplos africanos e asiáticos (como o Boko Haram ou o ISIS), referentes a um padrão de apropriação radical nos territórios do Sul Global?

    Na biopolítica da disputa mundial, a batalha transcendental está se produzindo sobre os tecidos sociais e os territórios/ecossistemas. É fundamental levar em conta estas tendências nas análises dos tempos por vir para a região. Se trata de uma questão vital.

     

    O comum no caos: pensar-nos desde o conflito, disputar o antagonismo, tecer comunidade

     

    O caos sistêmico é também a revelação de um sistema extraordinariamente rachado, por onde sempre poderão colar-se às pulsões das revoltas e a transformação para a emancipação. O esgotamento do \”ciclo progressista\” muito provavelmente vai supor a abertura de novos ciclos de lutas populares na América Latina, as quais por sua vez poderiam promover o surgimento e expansão de novas modalidades, narrativas e formatos de operação nas mesmas. Mas um desenlace da atual encruzilhada regional, o mais favorável possível para um projeto popular-ecológico-emancipatório, passa por reconhecer os códigos de operação destes agressivos regimes de poder multi-escalares. Dizer que os próprios tecidos socioterritoriais são um campo de intensa batalha, como nunca antes na história do capitalismo, supõe  reconhecer que a força destrutiva do capital penetra nas redes da vida – sua força ecocida – e na própria constituição do popular-comunitário. Como se desenvolve e se desenvolverá o antagonismo do popular, o antagonismo dos pobres e excluídos em tempos de caos sistêmico? Que formas toma ou pode tomar?

    Intervir violentamente na própria produção constitutiva do popular-comunitário busca transformar sua potência em máquinas fragmentadas de guerra, em campo fértil para a distopia; canalizar o descontentamento social frente formas orgânicas de fascismo; formatar a comunidade para o combate ao que está fora dela – as maras centro-americanas podem ser interpretadas como comunidades/máquinas de guerra -; e assim voltar inviável a massividade de uma revolta emancipatória.

    Não basta pois, somente promover o antagonismo contra-hegemônico, senão inclusive disputar para tentar  canalizá-lo a um projeto coletivo e emancipatório do comum-diverso-ecológico, onde o humano se funde com a realidade material de sua geografia imediata, de seu ecossistema, e da reprodução e afirmação da vida.

    Isto implica privilegiar uma política a partir dos territórios e portanto, alcançar uma meta que até agora não se conseguiu no grosso dos projetos e narrativas da esquerda: descentrar o rol do Estado nas transformações sociais. Não se trata de ignorar sua presença, operação e poder, nem tampouco, como insistiram alguns autores, reivindicar um \”horizonte localista\”, senão impulsionar uma estratégia multi-escalar na qual a luta territorial e a reprodução material da vida são centrais e ponto de partida de toda a luta emancipatória.

    Quando pensamos nas estratégias e narrativas na escala global, a regional e inclusive a nacional, o que nos resta por reivindicar em quanto as grandes narrativas políticas, essas que podem unir numerosas subjetividades e agrupações em torno de um projeto comum? O socialismo? O desenvolvimento? A democracia?

    Frente o transbordamento dos contratos sociais e a configuração da guerra como fator de organização por excelência, devemos defender ao máximo os princípios e marcos mínimos dos estados de direito, de garantias mínimas sociais, os pilares do ideal da democracia? O que resta como projeto para a convergência de lutas, mais além do parapeito das estruturas institucionais da modernidade? É possível ressignificar os pilares fundamentais da chamada democracia? Uma democracia radical e ecológica poderia e deveria ser um eixo narrativo e programático que articule diversas iniciativas populares de luta? Podemos avançar juntos sem um grande projeto mobilizador?

    Talvez um dos paradoxos dos tempos que vivemos reside na forçosa combinação de uma esperança a qual não podemos renunciar, com a franqueza e valentia de reconhecer que o transbordamento do conflito, sua massividade, sua multiplicidade, nos habita cada vez mais. Seria o estouro social do Caracazo em 1989 na Venezuela somente um acontecimento histórico ou a expressão da configuração de um novo cenário político urbano, da inviabilidade das cidades latino-americanas, da latência de seu transbordamento?

    As intensas lutas de resistência indígenas e camponesas no Peru; as fogueiras e as guardas comunitárias em Cherán, México; as retenções de militares por parte de povos indígenas na Colômbia e Venezuela; os bloqueios nas estradas e assembléias populares em comunidades como Famatina, Argentina; os bloqueios a escavadoras e múltiplos métodos de ação direta para a resistência, realizados em numerosas localidades latino-americanas; são conflitos convencionais ou a resposta frente um radical avanço belicista a respeito das novas fronteiras de commodities? Acreditamos que pensar as alternativas passa também necessariamente por pensar-nos a partir do conflito.

    Talvez convenha reivindicar o  \”princípio de esperança\” não unicamente ancorado em um horizonte ideal por conseguir, senão também orientado a uma disposição que rodeia e fica contida no fazer, no devir, seja quando as águas estão calmas, seja quando haja avisos de tempestade. Entretanto, tecer e tecer comunidade, em cada âmbito e escala de luta, parece um objetivo vital nestes tempos. E não esquecer que o jogo segue aberto.

     

    Caracas, dezembro de 2016.

     

    Fontes consultadas

    – AFP. OIT: empleo informal en América Latina alcanza el 50%. Diario Pyme. Sin fecha. Disponible en http://www.diariopyme.com/oit-empleo-informal-en-america-latina-alcanza-el-50/prontus_diariopyme/2016-06-21/144744.html

    – Alba Ciudad. Conozca el Decreto de Estado de Excepción y Emergencia Económica firmado por el Presidente Maduro este 13 de mayo. 14 de mayo de 2016. Disponible enhttp://albaciudad.org/2016/05/decreto-estado-excepcion-estado-emergencia-mayo-2016/

    – BBC Mundo. El paro que demuestra el poder de las maras en El Salvador. 29 de julio de 2015. Disponible en http://www.bbc.com/mundo/noticias/2015/07/150729_america_latina_el_salvador_maras_pandillas_paro_transporte_aw

    – CEPAL. Ciudades sostenibles con igualdad en América Latina y el Caribe. HABITAT III, Conferencia de las Naciones Unidas sobre la Vivienda y el Desarrollo Urbano Sostenible Quito, 17 a 21 de octubre de 2016. Disponible en http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/40658/1/S1601057_es.pdf

    – Constante, Soraya. Correa declara el estado de excepción por la erupción de un volcán. El País. 17 de agosto de 2015. Disponible en http://internacional.elpais.com/internacional/2015/08/15/actualidad/1439662969_985121.html

    – EFE. Gobierno peruano declara estado de excepción en tres distritos por terrorismo. 11 de septiembre de 2016. Disponible en http://www.eluniversal.com.mx/articulo/mundo/2016/09/11/gobierno-peruano-declara-estado-de-excepcion-en-3-distritos-por-terrorismo

    – Justo, Marcelo. ¿Cómo terminar con el trabajo informal en América Latina? BBC Mundo. 29 de mayo de 2014. Disponible en http://www.bbc.com/mundo/noticias/2014/05/140527_economia_trabajo_informal_wbm

    – Krieg, Andreas. Externalizing the burden of war: the Obama Doctrine and US foreign policy in the Middle East. International Affairs 92: 1 (2016) 97–113. Disponible enhttps://www.chathamhouse.org/sites/files/chathamhouse/publications/ia/INTA92_1_05_Krieg.pdf

    – Roa Avendaño, Tatiana. Scandizzo, Hernán. Qué entendemos por energía extrema. OPSur-Oilwatch Latinoamérica. septiembre 28, 2016. Disponible en http://www.opsur.org.ar/blog/2016/09/28/que-entendemos-por-energia-extrema/

    – Telesur. Brasil declara estado de excepción para Olímpicos Río 2016. 17 de junio de 2016. Disponible en http://www.telesurtv.net/news/Brasil-declara-estado-de-excepcion-para-Olimpicos-Rio-2016-20160617-0043.html

    – Teran Mantovani, Emiliano. La crisis del capitalismo rentístico y el neoliberalismo mutante (1983-2013). Documentos de Trabajo Celarg, 2014, vol. 5, p. 1-27. Disponible enhttp://www.celarg.org.ve/Espanol/Imagenes/avances%20de%20investigacion/5.%20Documento%20N%C2%B05.%20Emiliano%20Teran%20(corregido).pdf

    – Teran Mantovani, Emiliano. Los rasgos del “Efecto China” y sus vínculos con el extractivismo en América Latina. Rebelión. 6 de febrero de 2014. Disponible en http://www.rebelion.org/noticia.php?id=180450 .

    – The White House. FACT SHEET: Peace Colombia — A New Era of Partnership between the United States and Colombia. 4 de febrero de 2016. Disponible en https://www.whitehouse.gov/the-press-office/2016/02/04/fact-sheet-peace-colombia-new-era-partnership-between-united-states-and

    – UNEP. Recent Trends in Material Flows and Resources Productivity in Latin America. 2013. Disponible en http://www.unep.org/dewa/portals/67/pdf/RecentTrendsLA.pdf

    – United Nations. World Urbanization Prospects 2014. United Nations New York, 2014. Disponible en https://esa.un.org/unpd/wup/Publications/Files/WUP2014-Highlights.pdf

    – United Nations. América Latina debe impulsar un modelo de crecimiento urbano que genere riqueza, sugiere el PNUD. 15 octubre 2016. Disponible en http://www.un.org/sustainabledevelopment/es/2016/10/america-latina-debe-impulsar-un-modelo-de-crecimiento-urbano-que-genere-riqueza-sugiere-el-pnud/

    [1] Sobre esta discussão, ver por exemplo: Krieg, Andreas. Externalizing the burden of war: the Obama Doctrine and US foreign policy in the Middle East.

    [2] Ver: United Nations. World Urbanization Prospects 2014; y CEPAL. Ciudades sostenibles con igualdad en América Latina y el Caribe.

    [3] Roa Avendaño, Tatiana. Scandizzo, Hernán. Qué entendemos por energía extrema.

    [4] UNEP. Recent Trends in Material Flows and Resources Productivity in Latin America.

    [5] United Nations. América Latina debe impulsar un modelo de crecimiento urbano que genere riqueza, sugiere el PNUD.

    [6] Justo, Marcelo. ¿Cómo terminar con el trabajo informal en América Latina? AFP. OIT: empleo informal en América Latina alcanza el 50%.

    [7] Teran Mantovani, Emiliano. La crisis del capitalismo rentístico y el neoliberalismo mutante (1983-2013).

    [8] Teran Mantovani, Emiliano. Los rasgos del “Efecto China” y sus vínculos con el extractivismo en América Latina.

    [9] Alba Ciudad. Conozca el Decreto de Estado de Excepción y Emergencia Económica firmado por el Presidente Maduro este 13 de mayo.

    [10] EFE. Gobierno peruano declara estado de excepción en tres distritos por terrorismo.

    [11] Constante, Soraya. Correa declara el estado de excepción por la erupción de un volcán

    [12] Telesur. Brasil declara estado de excepción para Olímpicos Río 2016.

    [13] The White House. FACT SHEET: Peace Colombia — A New Era of Partnership between the United States and Colombia.

    [14] BBC Mundo. El paro que demuestra el poder de las maras en El Salvador.

     

     

     

     

  • O processo bolivariano desde dentro. Sete chaves para entender a crise atual

    Por Emiliano Teran Mantovani

    (tradução Giovanna Marra) \"\"

    Não é possível entender a crise atual na Venezuela sem analisar em conjunto os fatores que se desenvolvem \”desde dentro\”, e que não são explicados em seu conjunto pelos principais meios de comunicação. Apontamos sete chaves da crise atual nas quais se ressalta que não se pode compreender o que ocorre na Venezuela sem levar em conta a intervenção estrangeira e que o conceito de \”ditadura\” nem explica o caso venezuelano, nem é uma especificidade regional desse país. Por sua vez, apontamos que se está transbordando o contrato social, as instituições e os marcos da economia formal e que se está canalizando o devir e as definições políticas da atual situação pela via da força e através de um bom número de mecanismos informais, excepcionais e subterrâneos. Propomos que o horizonte compartilhado dos blocos partidários de poder é neoliberal, que estamos frente uma crise histórica do capitalismo rentista venezuelano e que comunidades, organizações populares e movimentos sociais se enfrentam a um progressivo esvaziamento do tecido social.

     

    O tratamento que se dá a Venezuela nos grandes meios de comunicação internacionais é sem dúvida especial em todo o mundo. Não tenha dúvidas que hajam demasiadas tergiversações, demasiado maniqueísmo, demasiados slogans, demasiadas manipulações e omissões.

    Mais além das versões cretinizantes da linguagem midiática que interpreta tudo o que ocorre no país na chave de uma \’crise humanitária\’, \’ditadura\’ ou \’presos políticos\’, ou bem de uma narrativa heróica da Venezuela do \’socialismo\’ e a \’revolução\’ que interpreta tudo o que ocorre no país na chave de uma \’guerra econômica\’ ou \’ataque imperial\’, há muitos temas, sujeitos e processos que são invisibilizados, que ocorrem mar adentro e que essencialmente constituem o cenário político nacional. Não é possível entender a crise atual na Venezuela sem analisar em conjunto os fatores que se desenvolvem \’desde dentro\’.

    O critério de ação e interpretação baseado na lógica \’amigo-inimigo\’ responde mais a uma disputa entre elites dos partidos políticos e grupos econômicos que aos interesses fundamentais das classes trabalhadoras e da defesa dos bens-comuns. É necessário apostar por visões integrais do processo de crise e conflito nacional, que contribuam a traçar as coordenadas para transcender ou enfrentar a conjuntura atual.

    Apresentamos 7 chaves para sua compreensão, analisando não só a disputa governo-oposição, mas também processos que estão se desenvolvendo nas instituições políticas, nos tecidos sociais, nas tramas econômicas, ao passo que se ressaltam as complexidades sobre o neoliberalismo e os regimes de governo e governança no país.

     

    Não é possível compreender o que ocorre na Venezuela sem tomar em conta a intervenção estrangeira

     

    O rico e vasto conjunto dos chamados \’recursos naturais\’ do país; sua posição geo-estratégica; seu desafío inicial às políticas do Consenso de Washington; sua influência regional para a integração; assim como suas alianças com China, Rússia ou Irã; lhe outorgam um notável significado geopolítico à Venezuela. Entretanto, existem setores intelectuais e midiáticos que continuamente buscam obviar as muito fluidas dinâmicas internacionais que impactam e determinam o devir político no país, onde se ressalta o persistente acionar intervencionista do Governo e os diferentes poderes fáticos dos Estados Unidos.

    Nesse sentido, estes setores se encarregam de ridicularizar a crítica ao imperialismo, e apresentam o Governo Nacional como único ator de poder em jogo na Venezuela, e portanto  como o único objeto de interpelação política.

    No entanto, desde a instauração da Revolução Bolivariana se desenvolveu um intenso intervencionismo estadunidense na Venezuela, o qual se agravou e tornou-se mais agressivo a partir da morte do presidente Chávez (2013) e do contexto de esgotamento do ciclo progressista e restauração conservadora na América Latina. Vale recordar a Ordem Executiva assinada por Barack Obama em março de 2015 no qual se declarava a Venezuela como uma ameaça inusual e extraordinária para a segurança nacional dos EUA – \’an usual and extraordinary threat to the national security and foreign policy of the United States\’ [1]. Já sabemos o que ocorreu aos países que são catalogados dessa maneira pela potência do norte.

    Atualmente, ademais das ameaçadoras declarações do Chefe do Comando Sul,  o Almirante Kurt W. Tidd (6 de abril de 2017), colocando que a \’crise humanitária\’ na Venezuela poderia obrigar a levar adiante uma resposta regional – \’The growing humanitarian crisis in Venezuela could eventually compel a regional response\’ [2] – e da evidência da agressividade da política exterior de Donald Trump com o recente bombardeio à Síria, o Secretário Geral da Organização de Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, encabeça junto a vários países da região a tentativa de aplicação da Carta Democrática para abrir um processo de \’restituição da democracia\’ no país.

    Os ideólogos e operadores midiáticos da restauração conservadora na região se mostram muito preocupados pela situação de Direitos Humanos (DDHH) na Venezuela, mas não conseguem explicar em sua análise porque estranhamente não se faz nenhum esforço supranacional do mesmo tipo frente à espantosa crise de DDHH em países como México e Colômbia. Nesse sentido, parece que a indignação moral é relativa e preferem calar-se.

    Seja pois, por razões de intencionalidade política ou ingenuidade analítica, estes setores despolitiza o rol de organismos supranacionais desconhecendo as relações geopolíticas de poder que os constituem, que fazem parte de sua própria natureza. Uma coisa é uma leitura paranóica de todas as operações impulsionadas por estes organismos globais e outra muito diferente é uma interpretação puramente procedimental de seu acionar, obviando os mecanismos de dominação internacional e controle de mercados e de recursos naturais que se canalizaram através destas instituições de governança global e regional.

    Mas há algo importante que adicionar. Se falamos de intervenção, não podemos somente falar dos EUA. Na Venezuela existem crescentes formas de intervencionismo chinês na política e as medidas econômicas que se foram tomando, o que aponta a perdas de soberania, incremento da dependência com a potência asiática e processos de flexibilização econômica.

    Uma parte da esquerda preferiu calar estas dinâmicas, dado que parece que a única intervenção que merece ser assinalada é a estadunidense. Mas ambos propósitos de ingerência estrangeira estão se desenvolvendo para favorecer a acumulação capitalista transnacional, a apropriação de \’recursos naturais\’ e que nada tem a ver com as as reivindicações populares.

     

    O conceito de \’ditadura\’ não explica o caso venezuelano

     

    Quase desde o início da Revolução Bolivariana a Venezuela foi intitulada como \’ditadura\’. Este conceito segue sendo objeto de amplos debates na teoria política devido a que tenha sido desafiado pelas transformações e complexificação dos regimes e exercícios de poder contemporâneos, sobretudo na atual época globalizada, o que coloca sérios vazios e imprecisões em suas definições.

    A \’ditadura\’ soa estar associada a regimes políticos ou tipos de governos nos quais todo o poder está concentrado, sem limitações, em uma só pessoa ou um grupo delas; há uma ausência de divisão de poderes; ausência de liberdades individuais, de liberdade de partidos, liberdade de expressão; e inclusive em ocasiões o conceito foi vagamente definido como \’o oposto a democracia\’.

    O termo \’ditadura\’ na Venezuela foi utilizado e massificado no jargão midiático de maneira bastante superficial, visceral e de uma forma moralizante, praticamente para colocá-lo como uma espécie de especificidade venezuelana, distinguindo-se assim dos outros países da região, onde em teoria haveria regimes \’democráticos\’.

    A questão é que na Venezuela na atualidade dificilmente se pode dizer que todo o poder está concentrado sem limitações em uma só pessoa ou um grupo delas, devido a que no país estamos frente a um mapa de atores, que se é hierarquizado, é também fragmentado e volátil – sobretudo depois da morte do presidente Chávez -,  pela existência de diversos blocos de poder que podem aliar-se ou enfrentar-se entre eles e que transborda a dicotomia governo-oposição.

    Ainda que exista um governo com um componente militar importante, com crescentes expressões de autoritarismo e com certa capacidade de centralização, o cenário é altamente movediço. Não há dominação total de cima à baixo, e há certa paridade entre os grupos de poder em disputa. Em troca o conflito poderia transbordar-se, tornando ainda mais caótica a situação.

    O feito de que a oposição venezuelana controle a Assembléia Nacional, a qual ganhou contundentemente pela via eleitoral, assinala ademais que antes que uma pura ausência de divisão de poderes, há em troca uma disputa entre eles, até agora favorável à combinação Executivo-Judicial.

    Antes que falar de um regime político homogêneo, estamos frente uma ampla e conflitiva rede de forças. A metástase da corrupção faz com que o exercício do poder se descentralize ainda mais, ou se dificulte sua centralização por parte do Poder Constituído.

    O que sim tem a ver com o velho conceito romano de ditadura, é que neste contexto o Governo Nacional está governando por meio de decretos e medidas especiais no marco de um declarado \’estado de exceção\’ que se oficializa desde inícios de 2016. Em nome da luta contra a guerra econômica, o avanço da delinquência e do paramilitarismo e os avanços subversivos da oposição, numerosas mediações institucionais e procedimentos democráticos estão sendo omitidos. Destacam-se por sua gravidade políticas de segurança como a Operação de Liberação do Povo (OLP), que representam intervenções de choque diretas dos corpos de segurança do Estado em diferentes territórios do país (rurais, urbanos, bairros periféricos), para \”combater a quadrilha\”, os quais soam ter polêmicos saldos em mortes; a paralisação do referéndum revogatório; a suspensão das eleições ao governo em 2016 sem assim deixar claro quando se realizarão; crescentes repressões e excessos policiais frente ao descontamento social, produto da situação no país; e um incremento de processos de militarização, ressaltando as zona fronteiriças e as declaradas de \’recursos naturais estratégicos\’.

    Este é o mapa político que, junto às diversas formas de intervenção estrangeira, configuram o cenário de guerra de baixa intensidade que atravessa praticamente todos os âmbitos da vida cotidiana dos venezuelanos. Este é o marco em que se desenvolvem as liberdade individuais, a oposição e pluralidade partidária, a convocatória e realização de marchas, expressões de dissidência e críticas nos meios de comunicação, entre outras formas da chamada democracia na Venezuela.

     

    III. Na Venezuela se está transbordando o contrato social, as instituições e os marcos da economia formal

     

    Se há algo que poderia definir-se como uma especificidade do caso venezuelano é que seu cenário sociopolítico atual está desgarrado, profundamente corrompido e altamente caotizado. Temos sustentado que no país estamos frente uma das crises institucionais mais severas de toda América Latina [3], fazendo referência com isso ao conjunto das instituições jurídicas, sociais, econômicas, políticas, entre outras, que conformam a República venezuelana.

    A crise histórica do modelo de acumulação rentista petroleiro, a metástase da corrupção no país, severas vulnerabilidades ao tecido social desde o \’período neoliberal\’ e em especial desde 2013, e a intensidade dos ataques e disputas políticas, transbordou em seu conjunto os marcos das instituições formais de todos os âmbitos da sociedade, canalizando grande parte das dinâmicas sociais pela via de mecanismos informais, subterrâneos e ilegais.

    No âmbito econômico, a corrupção se transformou em um mecanismo transversal e motor de distribuição da renda petroleira, desviando enormes somas de divisas à discrição de poucos, e minando as bases da economia formal rentista. Isto ocorre de maneira determinante com PDVSA [4], a principal indústria do país, assim como com fundo chave como o Fundo Chino-Venezuelano ou com numerosas empresas nacionalizadas.

    O colapso da economia formal fez da informalidade praticamente um dos \’motores\’ de toda a economia nacional. As fontes de oportunidade sociais, seja de ascensão social ou de possibilidade de maiores ganancias, se encontram com frequência no chamado \’bachaqueo\’ de alimentos (o comércio ilegal, a altíssimo preços, dirigidos ao mercado negro) [5] ou outras formas de comércio nos diversos mercados paralelos seja de divisas, medicinas, gasolina, etc.

    No âmbito político-jurídico, o estado de direito carece de respeito e reconhecimento por parte dos principais atores políticos, os quais não só se desconhecem mutuamente se não que recorrem a movidas políticas dispostos a tudo para vencer um ao outro. O governo nacional enfrenta ao que considera as \’forças inimigas\’ com medidas de exceção e comoção, enquanto grupos da oposição mais reacionários desenrolam operações violentas de vandalismo, confrontação e ataque a infraestruturas. Neste cenário diminui sobremaneira o estado de direito, tornando muito vulnerável à população venezuelana.

    Cada vez reina uma maior impunidade, a qual se expandiu à todos os setores da população. Isto não só faz que se enquiste ainda mais a corrupção, que surge indetível, senão que implica que a população não espere nada do sistema de justiça, e cada vez mais a exerça com suas próprias mãos.

    O colapso do contrato social gera tendências de \’salve-se quem puder\’ na população. A fragmentação do poder também contribuiu a que se gerem, cresçam e se fortaleçam diversos poderes territoriais, como são os chamados \’sindicatos mineiros\’ que controlam com armas minas de ouro no estado Bolívar, ou grupos criminosos que dominam setores de Caracas como El Cementerio ou La Cota 905 [6].

    O marco apresentado implica nada mais e nada menos que o devir e as definições políticas da atual situação no país estão se desenvolvendo em grande medida pela via da força.

     

    A crise de largo prazo do capitalismo rentístico venezuelano

     

    O afundamento dos preços internacionais do crude foi determinante no desenvolvimento da crise venezuelana, mas não é o único fator que explica este processo. Desde a década dos anos 80 existem crescentes sintomas de esgotamento do modelo de acumulação baseado no extrativismo petroleiro e na distribuição de renda que gera. A atual fase de caotização da economia nacional (2013-hoje) é também produto do devir econômico dos últimos 30 anos no país. Por quê?

    Vários razões explicam. Em torno de 60% dos crudes venezuelanos são pesados e extra-pesados. Estes crudes são economicamente mais custosos e requerem maior uso de energia e o emprego de processamentos adicionais para sua comercialização. A rentabilidade do negócio que alimenta o país vai descendendo com respeito a tempos anteriores, quando prevaleciam crudes convencionais. Isto ocorre ao mesmo tempo que o modelo exige cada vez mais ingressos rentísticos e cada vez mais inversão social não só para paliar as crescentes necessidades de uma população que segue aumentando.

    A hiper-concentração populacional nas cidade (mais de 90%) promove um uso de renda orientado fundamentalmente no consumo (de bens importados) e muito pouco em formas produtivas. As épocas de bonanza promovem o fortalecimento do setor extrativo (primário) – os efeitos da chamada \’Doença Holandesa\’ – o que vulnerabiliza notavelmente aos já débeis setores produtivos. Logo finalizada a bonança (como ocorreu nos fins dos anos 70 e agora desde 2014), a economia fica mais dependente e ainda mais débil para enfrentar uma nova crise.

    A corrupção sócio-política do sistema também possibilita fugas e descentralizações fraudulentas da renda, o que impede o desenvolvimento de política coerentes de distribuição para paliar a crise.

    A crescente volatilidade dos preços internacionais do crude, assim como mudanças na balança de poder global em torno do petróleo (como a progressiva perda de influência da OPEP) tem também significativos impactos na economia nacional. Enquanto se desenvolvem todos esses vaivéns econômicos no país, os recursos ecológicos seguem sendo minados  e esgotados, o que ameaça os meios de vida de milhões de venezuelanos para o presente e o futuro.

    A atual solução que impulsiona o Governo nacional foi incrementar notavelmente o endividamento externo, distribuir a renda de maneira mais regressiva para a população, expandir o extrativismo e favorecer ao capital transnacional.

    Em resumo, qualquer das elites que governe nos próximos anos, terá que enfrentar, sim ou sim, os limites históricos que foi alcançado com o velho modelo rentista petroleiro. Não bastará somente esperar um golpe de sorte para que os preços do petróleo subam. Virão mudanças transcendentais e há que se estar preparados para enfrentá-las.

     

    Socialismo? Na Venezuela está sendo levado a cabo um processo de ajuste e flexibilização econômica progressivo.

     

    No país está se desenvolvendo um processo de ajuste progressivo e setorizado da economia, flexibilizando prévias regulações e restrições ao capital, e desmantelando paulatinamente os avanços sociais alcançados em tempos anteriores à Revolução Bolivariana. Essas mudanças aparecem mascaradas em nome do Socialismo e da Revolução, ainda que representem políticas cada vez mais rechaçadas pela população.

    Destacam-se políticas como a criação das Zonas Econômicas Especiais, as quais representam liberalizações integrais de partes do território nacional, uma figura que entrega a soberania aos capitais estrangeiros que passariam a administrar praticamente sem limitações ditas regiões. Se trata de uma das medidas mais neoliberais desde a Agenda Venezuela implementada pelo governo de Rafael Caldera nos anos 90, sob as recomendações do Fundo Monetário Internacional.

    Também ressaltam a paulatina flexibilização dos convênios com as corporações estrangeiras na Faixa Petrolífera do Orinoco; liberalização de preços de alguns produtos básicos; crescente emissão de bônus soberanos; desvalorização da moeda, criando-se um tipo de câmbio flutuante (Simadi); aceitação de alguns trâmites comerciais diretamente em dólares, por exemplo, no setor turismo; ou o fiel cumprimento dos pagamentos de dívida externa e os serviços da mesma, o que implica um recorte nas importações e consequentes problemas de escassez de bens de consumo básico.

    Está se impulsionando o relançamento de um extrativismo flexibilizado, apontando fundamentalmente frente às novas fronteiras da extração, onde destaca-se o mega-projeto do Arco Mineiro do Orinoco, o qual suscita instalar como nunca antes a mega-mineradora em um território de 111.8000 kms de extensão, ameaçando fontes de vida chave para os venezuelanos, em especial para os povos indígenas. Estes projetos supõe ademais o encadeamento a largo prazo aos esquemas de dependência que produz o extrativismo [7].

    Cabe destacar que estas reformas se combinam com a manutenção de algumas políticas de assistência social, contínuos aumento dos salários nominais, algumas concessões a demandas das organizações populares e o uso de uma narrativa revolucionária e anti imperialista. Isto evidentemente tem como um de seus principais objetivos a manutenção dos apoio eleitorais que ficam.

    Estamos em presença do que chamamos de um \’neoliberalismo mutante\’, na medida em que se combinam formas de mercantilização, financeirização, e desregulação com mecanismos de intervenção estatal e assistência social.

    Parte da esquerda esteve muito focada em evitar a chegada de governos conservadores ao poder para assim evitar a \’volta do neoliberalismo\’. Mas esquecem de mencionar como governos progressistas também avançaram em várias medidas seletivas, mutantes e híbridas do perfil neoliberal, que finalmente afetam o povo e a natureza [8].

     

    A alternativa? O projeto dos partidos da \’Mesa da Unidade Democrática\’ (MUD) é neoliberal

     

    A direitista \’Mesa da Unidade Democrática\’ (MUD) é o bloco predominante da oposição partidária ao Governo nacional, ainda que uma oposição de esquerda venha crescendo lentamente e seja factível que o siga fazendo. Esta esquerda crítica, ao menos a mais definida, não se identifica com a MUD e não se articula politicamente com esta.

    A MUD não é um bloco homogêneo, e em troca existem setores que vão, desde influentes grupos radicais de extrema direita – que poderíamos chamar \’uribistas\’ – até chegar a alguns setores de conservadorismo light, e de liberalismo de elite com certa tendência distribucionista. Estes diversos grupos têm uma relação conflitiva entre eles e com eventuais confrontos e insolências mútuas.

    Apesar de suas diferenças, aos diferentes grupos da MUD unem-se ao menos três fatores fundamentais: sua matriz ideológica, as bases de seu programa econômico e sua agenda reacionária frente ao Governo nacional e frente a possibilidade de uma profunda transformação de corte popular emancipatório. Nos referiremos às duas primeiras.

    Sua matriz ideológica está profundamente determinada pela teoria neoclássica e pelo liberalismo conservador, enaltecendo obsessivamente a propriedade privada, o fim da \’ideologização\’ por parte do Estado e o auge das liberdades empresariais individuais.

    Estes pilares ideológicos são mais claros na programática deste bloco que em seus próprios discursos midiáticos, onde a retórica é simplista, superficial e cheia de lemas. A síntese mais acabada de seu modelo econômico se encontra nos \’Alinhamento para o Programa de Governo de Unidade Nacional (2013-2019)\’ [9]. Se trata de uma versão neoliberal mais ortodoxa do extrativismo petroleiro, em relação ao projeto do atual Governo venezuelano.

    Destaca-se o fato de que, a pesar de hastear a bandeira da \’mudança\’ e da \’Venezuela produtiva\’, sua proposta coloca levar a extração de petróleo na Venezuela até 6 milhões de barris diários, colocando ênfase no incremento as cotas da Faixa Petrolífera do Orinoco. Ainda que se acusem, briguem e assinalem publicamente, as propostas petroleiras de Henrique Capriles Radonski (Petróleo para seu Progresso) [10] e Leopoldo López (Petróleo na Melhor Venezuela [11]) são gêmeas, e consentem com o \’Plano da Pátria\’ 2013-2019 impulsionado pelo Governo nacional. A mudança anunciada não é mais que outro encadeamento com o extrativismo, mais rentismo e desenvolvimentismo, e as consequências econômicas e impactos sócio-ambientais e culturais que carrega este modelo.

     

    VII. A fragmentação do \’povo\’ e a progressiva minada do tecido social

     

    Em todos esses processos de guerra de baixa intensidade e caos sistêmico, o principal afetado é o povo trabalhador. A potente coesão sócio-política que se configurara nos primeiros anos da Revolução Bolivariana sofreu não só um desgaste mas uma progressiva desarticulação. Mas estas afetações chegaram inclusive à própria medula dos tecidos comunitários do país.

    A precariedade para cobrir as necessidades básicas da vida cotidiana; os incentivos à resolução individual e competitiva dos problemas socioeconômicos da população; a metástase da corrupção; a canalização dos conflitos e disputas sociais por via da força a perda de referenciais ético-políticos e o desgaste da polarização devido ao descrédito dos partidos; a agressão direta a experiências comunitárias fortes ou importante e a líderes comunitários por parte de diversos atores políticos e territoriais; fazem parte deste processo de vulnerabilização dos tecidos sociais que aponta a minar os verdadeiros pilares de um potencial processo de transformação popular-emancipatório ou das capacidades de resistência da população frente um maior avanço das forças regressivas no país.

    Enquanto isso, diversas organizações de base popular e movimentos sociais ao longo do país insistem em construir uma alternativa desde seus territórios. Os tempos dirão qual será sua capacidade de resistência, adaptação e sobretudo sua habilidade coletiva para articular-se entre eles e disputas com maior fortaleza o rumo do projeto político nacional.

    Se existe uma solidariedade irrenunciável que deveria impulsionar-se desde as esquerdas na América Latina e no mundo, deve ser com esse povo lutador, esse que historicamente carregou sobre seus ombros a exploração e os custos da crise. Esse que frequentemente transbordou e se reapropriou das ruas buscando que suas demandas sejam escutadas e atendidas. Esse que na atualidade se enfrenta aos complexos dilemas que supõe os atuais tempos de refluxo e regressões. Este que parece ser o verdadeiro ponto de honra das esquerdas. O custo de dar as costas a estas contra-hegemonias populares em nome de uma estratégia de conservação do poder poderia ser muito alto.

     

    Caracas, abril de 2017.

     

    [1] https://obamawhitehouse.archives.gov/the-press-office/2015/03/09/executive-order-blocking-property-and-suspending-entry-certain-persons-c

    [2] http://www.southcom.mil/Portals/7/Documents/Posture%20Statements/SOUTHCOM_2017_posture_statement_FINAL.pdf?ver=2017-04-06-105819-923

    [3] http://www.rebelion.org/noticia.php?id=207450

    [4] http://www.correodelorinoco.gob.ve/impacto/maduro-hay-que-ir-a-sanear-profundamente-a-pdvsa-corrupcion-todos-ambitos/

    [5] http://www.eluniversal.com/noticias/economia/leon-bachaquero-invierte-400-revender-gana-mil_21462

    [6] http://efectococuyo.com/principales/van-al-menos-24-fallecidos-en-enfrentamientos-entre-cicpc-y-bandas-delincuenciales; http://www.radiomundial.com.ve/article/enfrentamiento-en-cota-905-deja-14-muertos-y-134-detenidos-audio

    [7] http://www.alainet.org/es/articulo/175893

    [8]   http://www.alainet.org/es/articulo/172285

    [9]   http://static.telesurtv.net/filesOnRFS/opinion/2015/12/09/mud_government_plan.pdf

    [10] http://www.eluniversal.com/noticias/politica/plan-petroleo-para-progreso-henrique-capriles-radonski_359574

    [11]   http://www.leopoldolopez.com/en-la-mejor-venezuela-duplicaremos-la-produccion-petrolera-para-impulsar-el-bienestar-y-el-progreso/