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  • Investig(ações) insurgentes: corpos-sensores por uma política experimental da presença

    Ciclo \”Habitar as Fronteiras\” no Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP. Dias 7 e 14 de abril de 2020.

    Diante da debilidade existencial intensificada por inúmeros dispositivos de produção de uma vida neoliberal, os encontros convidam ao diálogo pesquisadorxs-praticantes que tencionam as habituais fronteiras entre ciência e luta, vida e política. Assumir a nossa crise da presença como condição de uma vulnerabilidade compartilhada para investigar os diversos dispositivos que a produzem, mas também experimentar como reativar \”uma maior atenção ao devir da presença dos entes\” no mundo vivo; retomar nossa capacidade de \”co-pertencimento e co-produção a cada situação vivida\”.

    Partimos de experiências investigativas em que saberes e práticas de lutas emergem de corpos como sensores; formas de vida que sentem, percebem e enunciam, a partir de sua singularidade os diversos dispositivos de erosão do mundo Comum. São também essas experiências que resistem e inventam formas de vida não proprietárias, não securitárias e que intuem que é o movimento de abertura ao acontecimento o que pode sustentar práticas coletivas de insistência na vida como interdependência: tecnologias de aquilombamento, retomadas indígenas, ocupações, as experiências de travessia do corpo-trans, tecnologias de cuidado, territórios do comum e saberes ancestrais/tradicionais, laboratórios cidadãos.

    07/04, terça-feira, das 19h00 às 21h30 – Encontro com Bru Pereira – antropóloga e educadora, mestre em Ciências Sociais pela UNIFESP; Edson Teles – professor de filosofia na UNIFESP; Maria Fernanda Novo – doutora em filosofia pela UNICAMP. Mediação de Jean Tible – professor de Ciência Política (FFLCH/USP).

    14/04 (terça-feira), das 19h00 às 21h30 – Oficina com Alana Moraes – antropóloga, doutoranda pela UFRJ e Henrique Parra – professor de Ciências Sociais da UNIFESP. Pesquisadores do Pimentalab/LAVITS e do coletivo Tramadora.

    Oficina: ao adotar a gestão de crise como técnica de governo, o capital não se limitou apenas a substituir o culto ao progresso pela chantagem da catástrofe, ele quis reservar para si a inteligência estratégica do presente\” (C.I). A oficina é um convite para habitar por um pouco mais de tempo os problemas comuns que nos obrigam a pensar juntos. Inspirados na ideia de um \”parlamento de corpos\” queremos retomar a inteligência compartilhada e a potência da situação presente. O parlamento emergente de corpos afetados se instaura a partir de formas de conhecer que possam transformar (narrar/inventar/mediar) a experiencia de um corpo-sensor em um conhecimento de luta coletiva dos corpos vivos, que nada tem a ver com a produção de maiorias ou consensos. A oficina convida os participantes a investigar o problema da crise da presença diante da crescente mediação técnica da vida social e as consequentes alterações do regime de sensibilidade que sustentam ou destroem um mundo comum. Diante da multiplicidade de dispositivos tecnológicos que fazem da vida uma sequencia prevista de condutas, procedimentos e desempenhos funcionais, praticamos uma atenção àquilo que o corpo não aguenta mais, como ponto de partida da construção de formas de vida não fascistas.

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    corpo-como-sensor é uma proposição ético-política da vida em sua ontologia corpórea extremamente vulnerável, um terreno de travessias e cruzamentos no qual a representação dá lugar à experimentação, à variação e ao risco dos encontros. Em há um mundo por vir? (2015), Viveiros de Castro e Débora Danowski se perguntam quem seria o demos de Gaia, “o povo que se sente reunido e convocado por essa entidade, e quem é seu inimigo” (2015:120). Para os autores, não se trata mais de buscarmos um “sujeito revolucionário”, mas seguir uma etnopolítica que suspenda a própria noção de \”sujeito capaz de agir como um só povo\”.

    Diante da crise de presença alimentada por inúmeros dispositivos de produção de uma vida neoliberal, o seminário convida ao diálogo praticantes que tensionam as habituais fronteiras entre ciência e política, entre natureza e cultura. Nesse sentido, pensar a nossa crise de presença como condição epocal seria também investigar os diversos dispositivos que a produzem, mas, por outro lado, experimentar como reativar \”uma maior atenção ao devir da presença dos entes\” no mundo vivo; retomar nossa capacidade de \”co-pertencimento e co-produção a cada situação vivida\”. Partimos de investigações em que saberes e práticas emergem de corpos-como-sensores; formas de vida que sentem, percebem e enunciam, a partir de sua singularidade os diversos dispositivos de erosão do mundo Comum. São também essas experiências que resistem e inventam formas de vida não proprietárias, não securitárias, experiências que intuem que é o movimento de abertura e composição com o acontecimento de encontros o que pode sustentar práticas de insistência na vida em interdependência: tecnologias de aquilombamento, retomadas indígenas, ocupações, as experiências de travessia do corpo-trans, tecnologias de cuidado, territórios do comum e saberes ancestrais/tradicionais, laboratórios cidadãos.

    Habitar uma política do sintoma que não nos permite \”interpretar\” tendo em vista um lugar seguro do diagnóstico que contorne ou neutralize o mal-estar.. Nessa condição de precariedade de um mundo sem refúgio, a invenção de linguagens, sentidos compartilhados, infraestruturas e tecnologias de suporte à essas formas de vida é inseparável de uma prática experimental de composições de alianças e arranjos sociotécnicos que dão forma a outras individuações coletivas, a emergentes comunidades de afetados. Trata-se de escapar dos imperativos de resultado e impacto, reino da estratégia e da eficiência tecnocrática, para habitarmos um terreno de experimentações de composições sempre situadas, que funcionem como caixas de ressonância de formas de vida não-fascista.

  • Oficina – Idéias para Adiar o Fim do Mundo

    Disputando os rumos das tecnologias e da sociedade: o Comum e formas de luta

    com Alana Moraes e Henrique Parra

    Tramadora/Pimentalab/LAVITS

    Programação Completa:

    Slides Apresentados:

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  • Encontro Tecnopolíticas, Territórios e Direitos Humanos

    Laboratório Tático do Comum – LabTaCo

    Casa do Povo – 10 de dezembro, das 10h às 18h

    O evento será a primeira de uma série de atividades realizadas pelo coletivo Intervozes com o objetivo de construir o Laboratório Tático do Comum – LabTaCo, um laboratório itinerante para a produção de comunicação e tecnologias abertas em diversos territórios. Neste primeiro encontro, queremos conhecer as experiências de quem já botou o seu bloco na rua. Vamos conversar sobre as potências e dificuldades de cada experiência, a fim de apontar os caminhos e obstáculos para essa construção.

    PROGRAMAÇÃO

    10h – INTERVOZES – Boas vindas e apresentação inicial do projeto Laboratório Tático do Comum.
    10h15 – COLETIVO ETINERÂNCIAS – Gabriel Kieling e Raissa Capasso: Histórias de um laboratório itinerante de tecnologias sociais, digitais e ancestrais.
    11h – CINEMÃO – Cid Brandão: Cinema nas comunidades, dificuldades e transformações do acesso ao cinema.
    11h45 – HACKLAB e ÔNIBUS HACKER – Lívia Ascava – Tecnologia e democracia.
    12h30 – COLETIVO SANGA – Luiza Gianesella e Daniel Assumpção: Tecnoarte para educação criativa e democrática.

    13h15 – Almoço Coletivo e bate papo

    15h – INSTITUTO PRÓ COMUM – Rodrigo Savazoni: O Comum na Encruzilhada – a experiência de construção de um laboratório cidadão na Bacia do Mercado em Santos –SP.
    15h45 – TRAMADORA – Alana Moraes e Henrique Parra: Protótipo, experimentação, política do meio.
    16h30 – COMISSÃO GUARANI YVYRUPA – Wera Alexandre Guarani e Marcelo Hotimsky: O uso de mídias e a comunicação guarani.
    17h15 – Bate papo de encerramento

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  • A guerra na pele – corpos marcados

    por Andrea Roca e Rodrigo Millán [1]

    Em uma das passagens de O torcicologologista, Excelência de Gonçalo M. Tavares, o leitor se defronta com a seguinte pergunta: 5 gramas de folhas brancas são equivalentes às 5 gramas que pesa a belíssima borboleta da Nova Guiné? Não. A beleza, argumenta-se, transbordaria a lógica da aritmética. No cerne da revolta do Chile neste histórico outubro de 2019, aqui, lembramo-nos de Tavares não para pensar na beleza e sim no seu adverso: o peso do horror.

    A redemocratização chilena foi, entre tantas coisas, uma aritmética coletiva dolorosa. Aprendemos a contar em centenas, em milhares, as mulheres e homens torturados, desaparecidos e executados políticos. Em 1991, a Comissão da Verdade e Reconciliação trabalhou rapidamente na quantificação das vítimas da violação dos direitos humanos cometida pela ditadura cívico militar de Pinochet (1973-1990). Contas, aliás, não conclusivas por várias razões, entre elas, pela negação das Forças Armadas e da Ordem Pública de que existissem qualquer informação que contribuíssem à persecução criminal dos seus membros. Isso não deve ser uma surpresa, se considerarmos que o próprio ditador foi o Comandante em Chefe das Forças Armadas até 1998, e Senador da República até 2002.

    Hoje, em outubro de 2019, às contagens funestas voltaram no Chile. Por decreto de Sebastián Piñera, o país viveu 10 dias sob Estado de Exceção Constitucional de Emergência. Isto, em resposta a onda de protestos e revoltas espalhadas na capital, e logo, no resto do território. A atuação das forças policiais e militares nesses dias, forçaram-nos a contar, mais uma vez, em centenas, em milhares. Conforme dados entregados pelo Instituto Nacional dos Diretos Humanos (INDH), no período de exceção, houve 1.132 civis hospitalizados. A associação dos oftalmologistas denunciou lesões oculares graves em 120 manifestantes. De outro lado, 3.200 pessoas foram presas pela polícia, das quais 340 eram crianças e adolescentes. As detenções em casos que ainda devem se contabilizar, incluíram golpes, sessões de tortura e de vexame sexual. A violência policial, conforme testemunham vários jovens, foi acompanhada de ameaças verbais que remetiam ao passado ditatorial: “Vamos fazer agora como antes fazíamos”. Por certo, a corporação defende-se das acusações: os abusos são exceções. O comandante geral de Carabineros de Chile, Mario Rozas, quando perguntado sobre os erros dos Carabineros nas últimas duas semanas, afirmou estar muito conforme com o trabalho realizado pelo corpo policial: sempre atento aos direitos humanos. Sobre o número de manifestantes vitimizados, na lógica do empate, o comandante enfatizou a cifra de 700 policiais e militares feridos. Nenhum deles, no entanto, em estado grave; nenhum deles, morto.

    O terror, tal como a beleza, simplesmente, excede a aritmética. Os números higienizam demais, funcionam dentro de uma escala de normalização. Os números escondem os corpos. É no campo das imagens, onde desponta o peso neto do sofrido nestes dias. Centos de fotografias e vídeos que circulam nas redes sociais, vemos o sangue escorrer pelas pernas, costas e rostos. As selfies transformam-se em ferramenta, desta vez, não de vaidade e sim de denúncia: os jovens, hoje, caolhos, por culpa das balas de borracha, fotografam seus rostos mutilados e chamam a continuar a luta. No Facebook, circula o testemunho de um jovem universitário cujo anus foi despedaçado com um cassetete pela polícia. As armas ditas não letais, nestes dias, de revolta e crise, apresentadas como o que realmente são: artefatos de tormento.

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    Neste universo numérico fatídico, há ainda uma cifra mais discreta, que nem chega a uma dezena mas que releva o jogo completo. Tratam-se dos 5 manifestantes assassinados pela polícia e militares: Romario Veloz, Manuel Rebolledo, Alex Núñez, Kevin Gómez e José Miguel Uribe. Todos eles, jovens populares. Mesmo que a letalidade estatal pareça arbitrária, é seletiva. São os corpos dos pobres da cidade, seu alvo preferencial. Contudo, nestes 10 dias, inclusive, vimos a militares reprimindo inusitadas passeatas de jovens da elite em bairros nobres de Santiago solidarizando com as demandas por uma vida digna, o aumento do salário mínimo e o fim da ocupação militar. Esta repressão, sim, foi uma exceção.

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    Há outros números mais elusivos. O governo informou 10 pessoas achadas mortas em lojas e supermercados saqueados e logo, incendiados. Na região dos rumores, há suspeitas de que se tratariam de pessoas mortas e lançadas nos locais incendiados. Os laudos forenses e investigações deverão trazer luz sobre esses acontecimentos. Ainda, está a contagem mais imprecisa dos desaparecidos. O dia 28 de outubro, o INDH afirmou que das 72 denúncias de desaparecimentos, 68 delas já tinham sido resolvidas, logo que essas pessoas retornassem a suas casas. Ainda quatro pessoas permaneciam sem tomar contato com as suas famílias.

    Os números revelam e ocultam a um só tempo. Nos primeiros dias, o governo informou publicamente as cifras de falecidos sem dizer os seus nomes. Isto, permaneceu assim por mais de três dias até que Piñera resolveu lamentar as mortes. A displicência dos governantes com respeito aos falecidos, foi respondida com força nas ruas: os nomes dos mortos disseminaram-se pelas paredes de Santiago e o resto do país. Os rostos dos jovens foram carregados em cartazes nos multitudinários protestos. Em ato de denúncia estético política, ativistas anônimos pigmentaram de vermelho as águas das fontes mais importantes da região central da cidade.

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    Os corpos, o campo da batalha que Sebastián Piñera deu inicio à noite da segunda-feira, 21 de outubro. Acompanhado do Ministro de Defesa, Alberto Espina, e do Comandante do Exército, Javier Iturriaga, em transmissão televisiva, declarou: “Estamos em guerra contra um inimigo poderoso, implacável […] disposto a queimar nossos hospitais, nossas estações do metrô, nossos supermercados, com o único propósito de produzir o maior dano possível a todos os chilenos”. A mensagem bélica foi respondida nas ruas: “Não estamos em guerra. Estamos unidos” – um dos tantos slogans que se multiplicaram nas manifestações e nos canais virtuais. Acerca da declaração de guerra, o pai de José Miguel Uribe, jovem de 25 anos, morto a tiros por militares em Curicó, pequena cidade de 100 mil habitantes localizada a 200 quilômetros ao sul de Santiago, culpava a Piñera. A declaração de guerra, abriu a margem de ação dos militares para o horror. “Eles andavam com uma panelinha, batendo uma panelinha, isso faziam, e os militares não acharam melhor coisa que matar a um moleque”, comentava com dor à imprensa. Mais de 10 mil pessoas saíram nessa cidade para exigir justiça para “El Chino”, como era chamado por seus amigos. Por certo, foi a maior mobilização de rua da história desse centro urbano.

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    Frente a violência policial e a vulneração dos direitos humanos, um grupo de deputados já deu início ao processo de acusação constitucional contra o mandatário e o ex-ministro do Interior, Andrés Chadwick, removido do seu cargo na passada segunda-feira, 28 de outubro. O domingo 27 de outubro, a aprovação de Piñera caiu a um 14% segundo a pesquisa Cadem, a cifra mais baixa a um mandatário desde o retorno da democracia. O governo decretou o fim do estado de exceção, essa mesma noite. A ONU celebrou a decisão, nos dias em que se prepara a visita de uma missão para os Diretos Humanos que permanecerá três semanas no país. A esse trabalho, soma-se a equipe de Anistia Internacional (AI) que já chegou no Chile. Rapidamente, declararam que as primeiras impressões eram desastrosas e davam conta de violações aos direitos humanos, com consequências traumatizantes para as vítimas diretas da violência, assim como para a sociedade no seu conjunto. O dia 30 de outubro, em um sentido diferente, o novo Intendente metropolitano, Felipe Guevara, afirmou que o primeiro direito humano era a segurança, qualificando os abusos policiais como simples fatos pontuais. A estratégia negacionista é seguida por alguns políticos e intelectuais de direita que afirmam que, na verdade, quem vulneraram os direitos humanos foram os baderneiros que destruíram e saquearam a cidade. De tal modo, tergiversam o sentido do conceito: denunciar os abusos e crimes dos agentes do Estado contra a população civil.

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    Entre todas estas cifras, encerramos com a cifra mais bela, até agora, da revolta. Na sexta-feira passada, 1,5 milhões de manifestantes reuniram-se em um dos pontos mais importantes de Santiago, a Plaza Italia, para exigir a saída dos militares, o fim do estado de exceção, uma nova constituição, e o direito a uma vida digna. Talvez seja a maior passeata da história do Chile, só comparável, em números, com algum dos grandes comícios antes do plebiscito de 1988. Experiência inédita para muitos de nós, não só pela escala e sim, pela intensidade e sentimento de comunhão na luta contra a desigualdade. Se bem as mobilizações de rua dificilmente consigam novamente essa quantidade de participantes, elas continuam e não há previsão de isto parar no imediato. No entanto, o Ministério Público chileno investiga 840 acusações por violações dos direitos humanos. A mesma instituição divulgou ontem uma lista com a identificação dos nomes de 22 dos 23 falecidos nas últimas semanas de estado de exceção e protesta social. Como voltar à pretendida normalidade?

    [1] Andrea Roca é antropóloga pela Universidade do Chile e doutora em sociologia pela Universidade de São Paulo. Rodrigo Millán é sociólogo pela Universidade Católica do Chile e doutor em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo.

  • A revolta não é um enigma

    por Edson Teles

    O Chile arde nas chamas da revolta. O Estado cria a ficção do risco à ordem para autorizar ainda mais violência contra os corpos “inimigos”. Um aumento nas passagens do transporte público (alguns poderiam dizer: “mas foram somente 20 centavos”) acionou aquele que, sob pesadelos, dorme e habita as subjetividades do Outro.

    O Outro: o não-cidadão; o que recebe auxílio para diminuição de seu sofrimento; aquele que vive sob o drama de perder sua residência; de não ter como sustentar as refeições até o fim do mês; cujos filhos estão em escolas de baixa qualidade ou fora dela; que são empurrados pelos empreendimentos imobiliários para as franjas periféricas das cidades; os que experimentam tudo isso com ainda mais gravidade por serem não-brancos; os corpos aos quais a heteronormatividade supõe ser proprietária e sobre eles aplica sua violência; os endividados e sem tempo para qualquer outra coisa, a não ser trabalhar para pagar a dívida.

    As chamas se repetem, além das principais cidades do Chile, em Quito, Hong Kong, Barcelona, Argel, Beirute, Paris. E, também, no asfalto próximo aos morros na cidade do Rio de Janeiro, na rodovia Raposo Tavares em São Paulo, em alguma BR com perímetro urbano, em cidades próximas às mega obras da região Norte.

    Não tem enigma. A revolta é um dos resultados da democracia sob a ordem capitalista neoliberal. Não há violência excessiva na revolta. Há resistência contra inúmeras formas de violência institucional que se acumulam e explodem nas narrativas dos corpos em barricadas. Antes de ser violenta, a ação revoltosa é um bloqueio à violência.

    A democracia do neoliberalismo globalizado prometeu a participação política, mas ofereceu quase que somente conselhos estéreis e processos eleitorais controlados por sistemas partidários inacessíveis às lutas cotidianas. Discursou sobre a universalidade dos seres humanos mas criou categorias de corpos e hierarquizou a divisão das riquezas. Produziu ao longo do tempo um abismo cada vez maior entre pobres e ricos. E, em meio às ambiguidades de cada território, quando algo foi feito em sentido contrário à ordem estabelecida, logo surgiram os golpes, intervenções e ainda mais violências.

    Para a lógica capitalista se manter, não há outra forma a não ser militarizar cada vez mais a vida e a política. Ver um presidente chileno pronunciar seu discurso de início do estado de emergência em meio a um bando de militares, remetendo inapelavelmente à história de uma ditadura das mais sangrentas, é o ápice da militarização da política. A produção do inimigo interno, naquela época de Pinochet associada aos oposicionistas e ao projeto socialista em torno de Allende, se transfigura para uma política de segurança pública e de proteção da ordem democrática.

    É interessante lembrar que, desde a segunda metade dos anos 80 e nas décadas seguintes, o Chile deu à luz aos encapuchados (mascarados). Eram jovens ativistas que agiam em atos de memória aos mortos pela Ditadura, mas também às vítimas fatais do Estado durante suas ações anticapitalistas. Em geral, atacavam delegacias, viaturas da polícia repressora e símbolos do capitalismo. Seus atos foram condenados pela democracia da Concertación, governo da coalizão de centro-esquerda. Muitos foram para a prisão sob a acusação de vandalismo e, por vezes, terrorismo.

    A cada aniversário do golpe de 11 de setembro de 1973, quando os militares começaram suas caravanas de tortura, morte e desaparecimento, os encapuchados aparecem ao fim dos atos para se fazerem ouvir com seus coquetéis molotov’s contra os tanques e viaturas policiais. A performance da revolta, no Chile, foi ensaiada nas últimas décadas (lembramos que a recente revolta no Equador teve no Conselho Nacional de Organizações Indígenas um ponto de organização fundamental). Contudo, quando o atual presidente, Sebastián Piñera, acionou os militares para sufocarem os primeiros atos contrários ao aumento nas passagens do transporte, o que se viu explodir foi o acúmulo de uma política viva de memória em simbiose com a indignação contra a precarização geral da vida e, especificamente, dos serviços públicos. Isso foi demais. Até mesmo o recuo no aumento das passagens parece não docilizar mais os revoltosos.

    Tem-se dito que é a primeira vez que os militares foram acionados para irem às ruas desde a Ditadura. Contudo, já em 2010, durante os saques e conflitos sociais decorrentes do terremoto que atingiu o país, o Exército foi acionado, atuando somente na cidade de Concepción. Assim, foi a primeira vez em Santiago e desta vez com aparato de exceção e diretamente contra mobilizações políticas críticas a uma democracia excludente.

    Ouvi perguntas sobre porque não ocorre uma revolta como esta no Brasil. Lembro de uma grande revolta no país, cujo epicentro ocorreu em abril de 1983. Em São Paulo, assistiu-se a pelo menos três dias de saques e quebra-quebras com a derrubada das grades do Palácio dos Bandeirantes, onde residia havia duas semanas o governador Franco Montoro (eleito nas primeiras eleições para o cargo desde 1964).

    Antes dessa data, e mesmo depois, tais eventos ocorreram em maior ou menor grau em várias capitais ou grandes cidades do país durante aquele ano. Era uma mistura de saberes de lutas contra a situação econômica dos trabalhadores, mas também uma exigência das camadas populares em participar do jogo da transição. À época, os democratas acusavam provocadores de direita em meio aos manifestantes, além de acusar esses últimos de vândalos e desordeiros. Os militares, na pessoa do general-presidente João Figueiredo, diziam que as manifestações eram insufladas por radicais de esquerda. A homogeneidade da nascente campanha pelas Diretas Já (1983-1984) e os pactos obscuros da transição trataram de enterrar e invisibilizar a revolta.

    Em junho de 2013, por “apenas vinte centavos”, no caso da cidade de São Paulo, dezenas de milhares de revoltosos tomaram as ruas, se juntando a centenas de milhares pelo país, em uma das maiores revoltas do Brasil contemporâneo. Insuflados pela mídia conservadora e pelos pactos de governabilidade, logo se sedimentaram discursos de repressão e militarização da revolta (“desordeiros, arruaceiros, vândalos”). Desta vez, pelo que a história tem narrado, novamente os desejos de mudança acabaram por serem silenciados, ensejando aquilo que alimentaria o golpe institucional de 2016.

    Há que se somar a esses grandes acontecimentos as revoltas localizadas, que ocorrem cotidianamente quando algum jovem é vítima da violência de Estado e a comunidade sai às ruas em protesto. Não é incomum terminarem em barricadas no asfalto e bloqueios com ônibus queimados. Lembramos que no ano de 2014, no rescaldo da recém revolta nacional, cerca de 200 ônibus foram queimados na cidade de São Paulo. Em sua maioria, resultado de revoltas locais.

    Seja no Chile dos encapuchados ou dos revoltosos de hoje, ou no Brasil do Quebra-quebra de 1983 ou da revolta de junho de 2013, seja ainda nos momentos em que o “morro desce e não é carnaval”, o que temos se destaca é a sistemática tentativa de desqualificação de uma ação política. Pois pode-se discordar do modo como se resiste à violência do Estado, mas tentar retirar destas ações seu caráter político e crítico é trabalhar para aplainar o terreno para outro golpe, mais um ano de genocídio do povo negro, aumento do feminicídio, desemprego etc.

    A revolta e seus motivos não são enigmas. Compreender o porquê de corpos que preferem colocar a própria vida em risco a ficar em casa em meio a um toque de recolher não é a questão. O enigma é como fazemos para não entrar nos cálculos das razões de governo na hora em que a potência das ruas explode e queima.

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    Publicado em 21/10/2019 no Blog da Boitempo

  • Hasta que Valga La Pena Vivir

    Si mi pelo es real mi voz es real.  
    Si mi pecho es real, mi sombra es real.
    Si mi hambre es real, mi lucha es real.

    REAL - E$tado Unido feat Stéphanie Janaina

    #HastaQueValgaLaPenaVivir

    Escribo como escuchadora de palabras, frases, voces e hyperlinks, las cuáles flotan como partículas, dentro de la atmósfera de este baile salvaje. La frecuencia de las ondas de sonido de la radio, en cualquier casa de Chile mudó, así como lo hizo el algoritmo. Escribo desde Fuera de cualquier orden de comando del iluminismoepistemológico-patriarcal. Con el cuerpo vibrando en esta otra frecuencia, la frecuencia extranjera y alienígena que dobla la curva del tiempo y la Historia. Escribo y escucho con tejer, de la misma forma que lo hicieron las tejedoras-arpilleras durante los años ´80. Reactivando las memorias en las fibras del tejido.

    Se divisa un color fuego-fluorescente, que desdibuja y descolora los grises y cenizosos focos tonales en la topología del Sur presente: neoliberal, en sus derivas y alianzas neofascistas, neo-extractivistas, neoconservadoras. Santiago de #ChileDespierta el día #18O, con les adolecentes-estudiantes dispuestes a jugar, bailar. Así como (algunas) niñes traen a les muñecxs y múltiples objetos de vuelta a la vida del juego, les estudiantes-adolecentes hacen revivir y reactivar, no tan solo el metro en #evasión, pero a una tierra y su pueble. Y es que este largo, boscoso y a su vez, desértico territorio que convive junto con el #OcéanoPacíficoEnCacerolazo, (que también acoge las partículas de hueso de nuestres desaparecides el año ´73), reactiva placas tectónicas, mareas, tsunamis. Esta vez no como el show televisivo de la “catástrofe natural”, pero como un pueble que sabe que la tierra #Noles pertenece, pero que nosotras pertenecemos a ella, la tierra. Y por tanto la reactivamos, para vibrar y #Despertar.

    Es la vibración tectónica de un cuerpo-pueblos que reverbera al poder sentirse, y auto percibirse: un juego de reactivar las cosas, para auto-expropiarse del estado de agotamiento neoliberal en nosotres, y que nace desde la ética del saber del cuerpo del pueblo. Es decir, desde este mal encuentro, con el presente estado de cosas en nosotras mismas. Si la piel es lo más profundo, el pueblo de la tierra baila, llora, y se emociona profundamente, en medio de los #cacerolazos, los cuerpos sacrificados en antenas de luz, y los saqueosentre un sinfín de gestos expresivos del pueblo (y violencias de los militares), en una fiesta tribal, en la cuál hay que bailar hasta dejar toda la piel.

    Ya no es El baile de los que sobran de los Prisioneros, canción del pueblo a fin del régimen dictatorial en los ´80. Este actual baile tribal del pueblo-cuerpo excede y destruye la memoria cristalizada. El pueblo guarda las fuerzas de las memorias, para expropiarse, curarse y cuidarse. La legión extraterrestre y extranjera se reterritorializa.

    Durante la noches de #toquedequeda (7 en total en Santiago), se proyectan las imágenes (entre otras tantas acciones) de nuestres muertes, en la actual-ruina del edificio de la compañía española, Telefónica, arquitectura de la casa del “pacto social” (matrimonio entre neoliberalismo y reformas sociales) ejercido durante el retorno a la democracia, a comienzos de los años ´90, por los partidos de la Concertación. Las imágenes de les muertes del pueblo-cuerpo se proyectan, no tan solo para señalar la violencia del #E$tado en su modalidad femicida y “Empredicidia” (@CoordinadoraFeminista8M, 2019). Pero sus rostros, se proyectan y reaniman para para que otras vidas ganen en consistencia, en realidad. Reanimamos, #Despertamos.

    En medio de estos bailes, los pueblos de las tierras del desierto, en el salar de Atacama, bloquean el acceso a las minas de litio del país, parte de la #HuelgaGeneral, que no sólo incluye trabajdrxs y sindicatos, pero #VentanasEnHuelga entre otras cosas, personas y objetos. Son los indígenas-pueblo que ponen el cuerpo frente al mineral colonizado. Y es el texto-calle del pueblo-cuerpo que des-reprime la voz-robada en forma de poesía: No era depresión, era capitalismo.El pueblo-cuerpo tiene la inteligencia de estar a la altura de la vida. Hace ya varios años el colectivo No es lo mismo ser loca que loco, denunciaba y reexistía frente al abuso psiquiátrico-patriarcal. Es la alianza entre lo urbano y el desierto que hackea cualquier trazo romántico, del matrimonio extractivista en sus diversas modalidades y composiciones, en este caso, la fármaco-anestesia general del malestar. Les indígenas-pueblo, y l-s mapuche-pueblos abrazan y cuidan al pueblo-cuerpo.

    Les trabajador-s de la salud pública y un grupo de psicólogxs@devenir.cl se organiza para realizar atendimientos gratuitos al pueblo-cuerpo. Auto-organización espontánea de los cuidados, que excede la escucha psicológica de un sujeto, pero que acompaña al cuerpo-pueblo en su devenir de la subjetividad, o más bien en su dessubjetivación del estado de vaciamiento y agotamiento neoliberal en nosotres. Una alianza vibratoria entre el Cuerpazo del pueblo-cuerpo, y les escuchador-s, al servicio del devenir. No es casual algunos militares-insurgentes también subviertan las órdenes del ejército y bailen con el pueblo-cuerpo. Hijxs de genocidas de la dictadura, se organizan, no tan sólo para denunciar el abuso y las torturas del ejercito, pero llaman a la desobediencia.

    Muches cuerpos-pueblo, incluyendo guaguas (bebés), y ancianos con diversidad funcional, desafían las órdenes de los militares, por agotamiento, vaciamiento. Es simplemente la expresión del impasse de vivir una muerte en vida, de esa gorda salud dominante que nos vendieron y que pagamos muy caro. Como dice una nieta-pueblo: mis abuelos sobrevivieron a la dictadura, pero murieron en manos de la salud pública. Una crisis de cuidados, que ya vienen denunciando las feministas, así como organizaciones alrededor de la salud pública, desde el comienzo del movimiento estudiantil en 2006-2011, y que transversalizó la organización hacia muchos planos de la existencia.

    Podría seguir tejiendo puntos, en un sinfín de modos de reexistencia del pueblo-cuerpo y sus formas de alianzas de las almas, las cosas, y les cuerpes. Como grita, con los pelos de la piel erizados, una de las cantantes del chile-pueblo, en un #CacerolazoCultural: “Estamos poniendo el corazón, el alma, esta revolución es por la dignidad!”. Recomiendo los dos textos (I, II) de @MartaDillon de #NiunaMenosArgentina para seguir navegando en esta enorme zona de intensidad. Como dice una amiga por mensaje de voz: “todo va en un movimiento en donde no se puede captar todo, del todo. No es rápido, ni lento, es fluctuante”

    Ayer #26O, @SebastiánPiñera, llamaba a la paz, bajando el #EstadodeEmergencia. Sigue sin escuchar la frecuencia del cambio de meseta, por que este acontecimiento excede la dialéctica de la percepción de esa partición de lo sensible. Habitamos un tiempo en dónde no hay pasado, presente, ni futuro. Es un tiempo espiral y extendido que se actualiza rítmicamente, en un #ChileenMovimiento el año 2019 en el planeta tierra. Al igual que ese metro que dejó de avanzar en línea recta, y evadió ese tiempo neoliberal.

    El pueblo-cuerpo del territorio tectónico de #ChileDespertó, se hace parir, muriendo. Como en cualquier nacimiento, hay dolor, llanto, violencia, alegría. Bien lo sabemos las que parimos les mini-cuerpes con el pañuelo verde en nuestras gargantas. El cuerpo-pueble no se deja seducir, al igual que las feministas. Lo escribe como acto de salud, un grafiti de la calle dice: El neoliberalismo nació y murió en Chile.

    El pueblo-cuerpo accede al ritmo de la marea, la cordillera, el viento. Por que el pueblo pertenece a la tierra y no al contrario. Y quizás es que nuestra ancestrología patagónica de tierra del Fuego, les Selknam, las primeros indígenas extrerminad-s en la constitución del #E$tadodeChile, hace ya más de 200 años, también nos hablan y hacen vibrar. Elles organizaban su existencia en base a los movimientos del viento. Y lo que pide el pueblo-cuerpo es simple: una reexistencia vía #asambleaconstituyente en base a los criterios de la pulsión de vida, y las categorías políticas del Agotamiento, en una lucha que se autoriza a sí misma a ejercer, excediendo los antagonismos del movimiento social. La #AsambleaConstituyente ya está escrita en la calle.

    Y si #Piñera llama a la paz, pues nosotr-s puebles llamamos a la vida. Por que la vida es un riesgo, por que la vida no es fácil, por que la vida hay que inventarla, por que la vida es en sí misma una variación de intensidades, planos, rupturas, nacimientos, abortos. Las escuchadoras de voces sabemos. Y para sostener la intensidad de vivir, debemos también cuidarnos.

    Paula Cobo-Guevara

    27 de Octubre, 2019.

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    foto: Susana Hidalgo

  • O são joão guerreiro contra o império

     por Maria Morita


    Cêis sabem a história de João Batista?

    Ele era de uma comunidade nômade do rio Jordão, de uma região na altura do monte Carmelo. No período que Jerusalém era ocupada por Roma, rolou muito conflito entre Roma e Constantinopla. A quebrada entre Jerusalém e Constantinopla era de povos nômades e vilas muito pobres num caminho de genocídio.

    Galiléia não é muito longe da região do Monte Carmelo, mas dá uma bela caminhada! 
    Os sacerdotes nômades se recusaram a tributar pra Roma naquele período. As disputas por território com a capital cosmopolita oriental era a \”polarização visível\”, digamos assim… Mas as quebradas entre os centros cosmopolitas mantinham práticas religiosas dos povos dessas regiões. João Batista era uma espécie de sumo sacerdote das práticas do judaísmo antigo em uma comunidade nômade que manteve o carisma contemplativo e nômade da prática daquele povo. Foram chamados \”zelotas\” pelo Império Romano, um jeito de dizer que eram \”radicais\”, \”xiitas\” conspiradores contra Roma, fundamentalistas religiosos loucos do deserto que não aceitavam cobrar taxas do seu povo.

    Os soldados romanos estupravam a quebrada de João Batista até a Galiléia. Cobravam os impostos da capital, tabelavam o preço da remissão dos pecados. 


    Jesus fica conhecido por perdoar os pecados e ser sacrificado pelos pecados da humanidade. Isso é a narrativa bonitinha pra: mataram um dos caras que organizou um motim, uma marcha de 40 dias pelo deserto, com todas as pessoas condenadas à morte e espancamento porque se o preço de não ter jejuado era caro, imagina quanto num devia as putas? Jesus se batizou no Jordão com o zelota João Batista e chegou ocupando Jerusalém, foi acusado de subversão e de \”proibir pagar impostos a César\” (Isso tá em Lucas, cap 22). Jesus também era zelota.

    Nessa mesma narrativa do evangelho de Lucas tem um trecho que descreve as mulheres que sofriam com a condenação \”deste homem que encontramos fazendo subversão e incitando o povo da Galiléia até a não pagar impostos a César!\”, diziam os sumos sacerdotes. E as mulheres choravam e batiam no peito em desespero de saber da condenação de Jesus. A fala de Jesus pra essas mulheres é muito forte, porque ele diz algo como: \”não choreis por mim, filhas da Judeia, chorais por vós mesmas e por seus filhos. Porque vai chegar um dia que felizes daquelas que nunca tiveram filhos, nunca amamentaram, para que possam fugir pras colinas e se esconder. Porque se fazem assim com as árvores jovens, o que não farão com as árvores velhas?\”. 


    É nisso que eu penso quando a Débora Silva (Mães de Maio) diz uma frase \”respeita as mãe!\”. Brisa toda que me pega forte nessa narrativa de Lucas, uma escolha política do que é evangelho cristão, João Batista é uma figura que me põe a desdivinizar a figura de Jesus pra divinizar o que há de menos divino mas é tão sagrado: nóis cum nóis. Não temos que nos tornar deuses para sermos dignos d\’Ele, pois que sejamos capazes de preferir que Marielle estivesse de FATO VIVA ao invés de termos, agora, uma palavra de ordem para \”Marielle Vive\”. 

    Esses dias escutei o Hermes Trismesgistro do Jorge Ben e tem aquela frase \”o que está embaixo é como o que está no alto e o que está no alto é como o que está embaixo\”. João Batista também lembrei que ele teve a cabeça prometida pra Herodes, né? E num é que decapitaram o cara, memo? Antes mesmo da condenação de Jesus. Lembrei de uma coisa do capítulo do Lucas que narra a captura, condenação e execução de Cristo. Nas referências bíblicas desse evangelho de Lucas as passagens sobre a perseguição dos sumos sacerdotes de Roma, os sumos sacerdotes vendidos de Jerusalém contam sobre Jesus indo em todos os templos de toda a quebradeira da Judeia e falando pro povo que a remissão dos pecados não pode estar ligada à pagamento de impostos pra Roma. Então, num dos templos tentam prender Jesus depois que ele fala que o povo é a \”pedra angular\”, ou seja, akela peça da situação que muda o ângulo da porra toda e faz com que o que estava embaixo se vire do avesso pra estar em cima. O povo pira e os sacerdotes não conseguem prender Jesus nessa ocasião porque, segundo Lucas, tinham medo do povo!

    O povo num ia deixar levar Jesus, não! Bom… o ponto é que eu gosto de pensar nessas narrativas pensando em como o cristianismo num tem nada a ver com o cristianismo, sabe? E no entanto, esse desejo de liberdade que é o desejo de continuar vivendo só sendo o que se é, com a dignidadezinha que num é nem que a gente merece, mas a que a gente tem direito, mesmo, é um desejo de viver que aparece na narrativa bíblica, também. Mas que dignidadezinha cretina que se precisa pra ser como se deseja ser. Então esse desejo tem a ver também com o cristianismo, mas o cristianismo não é esse desejo. Só Cristo pode ter sido o verdadeiro e único cristão, afinal… Em várias passagens o Nietzsche solta essa. Na pegada nietzscheana de ficar com o saracutico no saracuteco com o cristianismo histórico, eu tenho me lembrado de referências bíblicas em cada agulhada que o Nietszche dá nessa minha humanidade. É depois de ter pirado nuns aforismos do Humano Demasiado Humano que eu fico pensando nessa fita que eu escrevi sobre a Marielle. Afinal, olha que confortável referenciar-se à figura política de Marielle através de uma palavra de ordem depois de termos, nós, a matado. E quando digo que nós a matamos não é nada pra além de nos responsabilizar como sociedade estruturalmente racista, machista, lgbtqifóbica. E então a gente mata todo dia, né, sociedade?

    Tem um aforismo que me cabe perfeito na sala de aula que é o Aforismo 125, de Gaia Ciência. Aquele famoso pelo escândalo na praça do mercado em que Nietzsche põe um personagem conceitual, O LOUCO, a gritar procurando por Deus e constatando \”Nós o matamos, nós somos seus assassinos! Deus está morto, Deus permanece morto e nós o matamos!\”. Em algum momento uma das perguntas desse homem louco é \”ainda existe um em cima e um embaixo?\”.

    É… Ainda existe… Eu refaço essa pergunta muitas vezes ao longo do ano sempre que dá uma merda com estudante \”indisciplinado\” ou até mesmo depois de terminar um assunto em que falamos de qualquer (qualquer mesmo) conceito que se coloca transcendente na história da filosofia: seja de Platão a Kant, seja dos teóricos do contratualismo (…). 

    Os saberes minoritários: É tudo aquilo que é angular e toda akela peça que se vira do avesso…. veeeeeesh, vira o mundo do avesso pelo ralo! Até engolir as cabeça que tão por cima, né não? 

    São João, São João

    Acende a fogueira da Revolução!   

    Viva São João,   

    Que batiza a revolta naz\’água do Jordão.   

    Ajuda, São João, porfavorzão,   

    nóis fazer rolar as cabeça dos patrão!   

    Amém.   


  • Gilets Jaunes: esperança e desespero

    por Frederico Lyra de Carvalho

    publicado também em: http://uninomade.net/tenda/gilets-jaunes-esperanca-e-desespero/ 

    O cineasta Philip Garrel, como todo grande artista, o parece ter uma boa intuição sobre o momento. No final de uma sessão de Les Amants réguliers, quando demandado para fazer uma comparação entre o momento atual e 1968, o assunto do filme, ele veio com um diagnóstico de época: antes era esperança (éspoir), agora é desespero (désespoir).  

    Uma senhorinha parou para conversar e foi logo me dizendo que este era o terceiro final de semana seguido em que ela subia de Bordeaux para Paris vestindo o colete amarelo. De ônibus um tal trajeto dura em torno de 8 horas. Não procurei saber se havia sido esse o transporte que ela utilizou para se deslocar, mas imagino ser o mais provável, afinal este tem sido o padrão. Vir de trem é caro. Se ela veio de ônibus, isto quer dizer que ela provavelmente também voltou com o mesmo transporte. Só aí já são 16h de trajeto. Além disso podemos imaginar que ela não deve ter ficado menos de 8h na rua. Isto é, este era o terceiro final de semana que ela gastava por inteiro para a insurreição. E ela prometeu voltar. É essa energia política que talvez devesse nos interessar mais e que, de certa forma, está dando as caras na França. Esse deslocamento territórial é um dos aspecto fundamental dos gilets jaunes. Como bem observou Eric Hazan, tirando os militantes de sempre, não encontramos praticamente nenhum parisienses na rua, são os provincianos que invadem e param a cidade. E isto é um fato novo, dessa vez “Paris não é um ator, mas um campo de batalha”. Antes era os dois. E eles só sobem para a capital por esta ser a cede do governo e pela visibilidade que dá: “é onde podemos ser escutados” disse-me um outro. Isto serve para observarmos uma outra novidade, que o que de mais impressionante está acontecendo não se dá em Paris, mas nas provincias. De certa forma, é um fenômeno semelhante ao que aconteceu no brexit, onde ficou claro que havia uma desconexão entre a capital cosmopolita e global e o restante do país. É nas cidades intermediárias, nas rotatórias, nas estradas, em acampamentos espalhados pelo país que novas alianças e relações estão se construíndo. Alguns estão acampados nas estradas e rotundas há semanas. Os bloqueios logísticos tem sido muito mais do que simples bloqueios. Mas nunca é demais frizar são, antes de tudo, bloqueios e os amarelos já bloquearam, entre outras, as fábricas da L\’Oreal, Monsanto, Vuitton e Airbus. Não está claro que o Estado consiga dar conta dessa fragmentação que parece ter tomado um curso acelerado. Ele não tem conseguido controlar de forma efetiva o que acontece em todas as provincias. Paris é a vitrine da insurreição, mas o principal foco parece estar além, espalhado em vários pedaços por toda a França.

    O que não quer dizer que não se passe nada na cidade luz, muito pelo contrário. Nesses dias de sábado de contragem regressiva para o natal, a cidade tem ficado irreconhecível. Parada. O mercado de natal, boa parte das lojas, a maioria dos museus e repartições publicas ficaram fechadas. Vários concertos e peças de teatro foram canceladas, alguns cinemas não abriram. Mas ela não está morta, está com uma outra vida. O “apocalipse” que foi propagandeado durante toda a semana pelas mídias e pelo governo no final se tornou, como era previsível, mais uma fakenews. A propaganda anti-gilets jaunes é intensa, mas não tem funcionado. Embora ele tenha começado logo cedo nos entornos do Arco do Triunfo, foi apenas por volta das 14h que o conflito se generalizou por toda a zona oeste. Uma outra novidade, segundo o mesmo Hazan. Por algumas horas boa parte da cidade era daqueles que por alí tranquilamente andavam. Poucas vezes o flaneur benhaminiano se sentiu tão em casa. Os gilets jaunes passeavam em pequenos grupos pelos quatro cantos da cidade, de um lado para o outro como se a cidade, por aquelas poucas horas, fosse deles. Como se em um improvisado movimento continuo inventassem uma nova maneira de ocupá-la. E tudo isso em silêncio; ouviam se os espectros da cidade e, mais ao fundo, os ecos das explosões. A paisagem sonora era outra. A profanação da rotina da cidade mais visitada do mundo revelou, por alguns instantes, aspectos dela que estavam esquecidos.

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    \”bloqueemos tudo!\”

    O dispositivo repressivo, no entanto, era enorme. O emprego de violência excessiva já virou a regra. 89 mil policiais foram espalhados por todo o território da França – 10 mil em Paris. Até tanques, do mesmo tipo utilisado na destruição da ZAD, deram as caras na capital. Se somarmos os bombeiros e outros destacamentos policiais esse número chega a 120 mil. Um número pouca vezes visto antes. E isso para um número oficial de 136 mil manifestantes – ou seja, quase um para um. No final houveram quase 2mil interpelações e 1700 detenções preventivas, ou seja, mais de 1% dos que foram para as ruas foram detidos, além dos mais de mil feridos, alguns em estado grave, e uma senhora morreu. Um fato importante ocorrido durante a semana que precedeu a manifestação foi a humilhação sofrida pelos liceanos de Mantes-la-Jolie. Em todo canto esta humilhação foi encenada. No dia mesmo houveram várias prisões preventivas ainda nos carro ou ônibus a caminho que chegavam em Paris, a maioria sob a alegação de serem potenciais participantes da manifestação. O caso mais emblemático foi o de Julien Coupat, um dos supostos autores do Comité Invisible, aquele mesmo personagem do caso Tarnac. Ele foi detido junto com um amigo na zona leste da cidade no momento em que entravam em um carro. Desde o primeiro ato amarelo, a represão tem batido todos os recordes na quantidade de uso de munições, especialmente nas granadas e no gás lacrimogêneo. Embora o dispositivo repressivo tenha, de certa maneira, conseguido segurar e proteger a fortaleza que se tornou Paris, a cidade ficou parada por um dia. Passou longe de qualquer normalidade. E dessa vez a insurreição se espalhou por outros locais da cidades. Não está claro se o Estado tem como seguir com essa política repressiva atual. Ele parece estar chegando no seu limite do uso de pessoal disponível e de eficiencia dessa tática. Um CRS (tropa de choque) deu uma entrevista para o L’Humanité dizendo que preferia tirar uma licença por motivo de doença do que estar do lado errado da barricada, e deixou no ar o fato de que outros colegas talvez tivessem feito o mesmo. Outro sugeriu que depois dos gilets jaunes, viriam os gilets bleus. Mas nunca é demais lembrar que a substituição do Exército pelos CRS é recente, ela data apenas do final da segunda guerra mundial. O dia 08 foi, de certa forma, menos conflituoso, houveram menos barricadas e menos incêndios que o dia 01. Os partidos e algumas organizações mais tradicionais estavam lá em boa quantidade, mas ficaram do outro lado da cidade. Nem todos ainda entenderam este novo papel complementar de retaguarda de um movimento difuso e autônomo. 

    Crianças desenham o que vêm e ouvem na televisão, alguma brincam de gilets jaunes nas escolas. Este é o assunto dominante das conversas no metrô e nas salas de espera. Pela primeira vez a violência dos manifestantes é tolerada por aqueles que não saem à rua ou aqueles que saíram mas não partem para a ação direta. Fato novo que a mídia não tem conseguido dobrar. Um dos fatores mais importantes é que aqueles que tentaram se autoproclamar líderes ou representantes do movimento foram desautorizados e quase que imediatamente destituídos nas suas intenções mesmo. Não é para repetir isto que tantos vestem o colete amarelo. A auto-organização absoluta é que reina. Além disso, um dos eixos fundamentais das demandas das ruas é a cobrança pela efetivação do conteúdo do ideário de cidadão republicano. Pede-se um basta no formalismo retórico que esse discurso se tornou. A principal demanda, no fundo, é por justiça social. A extrema direita, embora presente, parece até aqui residual e inoperante. O teor social das demandas tem os afastado. E essa impressão foi reforçada com uma enquete publicada no Le Monde, onde, se por um lado, aparecem temas nacionais, os temas xenófobos não dão as caras. É nessa linha tênue que vão se dar as coisas. O que é uma luta nacional de massas em um país impérial, uma das mais importantes economias do mundo, em plena decomposição da globalização?

    Com efeito, é difícil prever o que se seguirá. Mas o certo é que Macron já foi derrotado na rua pouco menos de um mês depois da apoteose geopolítica que foi comemoração aos 100 anos do amistício da Primeira Guerra Mundial. O discurso que ele deu atestou isso. Como nos disse um senhor na rua: “chega de sentir medo sozinho, agora eles também vão ter que sentir medo, vamos mostrar do que somos capazes”. Que foi respondido por um CRS sem maiores arrodeios, olhos nos olhos com um outro manifestante: “se você quiser ficar vivo, fique em casa”. Tudo pode acontecer, inclusive nada. O que se passa é que nesse explosivo tempo presente que esmaga o horizonte com um peso infernal sobre todos os indivíduos, não há como projetar algo para além. O que resta é a ambiguidade da improvisação. De fato este interregno temporal é vivido como um pesadelo por todos. O cineasta Philip Garrel, como todo grande artista, o parece ter uma boa intuição sobre o momento. No final de uma sessão de Les Amants réguliers, quando demandado para fazer uma comparação entre o momento atual e 1968, o assunto do filme, ele veio com um diagnóstico de época: antes era esperança (éspoir), agora é desespero (désespoir).  

  • Assistimos à uma insurreição horizontal na França?

    Por Juan Pablo Pallamar (pesquisador da Universidade de Paris)

    em  colaboração com Ramon Szermeta.

     

     

    No sábado, 17 de novembro de 2018, iniciou-se o poderoso movimento contra as reformas fiscais do governo de Emmanuel Macron, batizado de “gilets jaunes”, os coletes amarelos. Trata-se de pessoas entre 30 e 50 anos, trabalhadores, considerável número ganha um salário mínimo. São na maioria casados, com filhos, com algum desempregado no núcleo familiar, usam os serviços sociais do estado e compõem a parte urbana da população que vive na periferia das grandes cidades, e são também franceses que vem das províncias do interior. Um grande volume dos manifestantes são também pessoas aposentadas. Muitos dos coletes amarelos não tinham participado antes em manifestações e se identificam como abstencionistas, ou seja, não votaram em ninguém nas últimas eleições.

    Genealogia dos Coletes Amarelos

    Em maio deste ano, Priscilla Ludosky, francesa, colocou nas redes sociais uma petição contra a taxa dos combustíveis anunciada pelo governo de Emmanuel Macron, no marco de uma vontade ecológica do país, mas também com o propósito de reequilibrar o orçamento nacional depois da supressão, no ano passado, do Imposto sobre as Grandes Fortunas (ISF, sua sigla em francês). Em outubro a petição registrava mais de 200 mil assinaturas e ao final de novembro superou um milhão.[1]

    Ainda no início de outubro, Eric Drouet e Bruno Lefèvre, dois motoristas da periferia leste de Paris, fazem um chamado pelo Facebook para uma manifestação no dia 17 de novembro: o objetivo é o bloqueio da periferia de Paris, fechando uma estrada vital para a circulação dos transportes privados da metrópole. A convocação feita um mês antes viralizou pelas redes sociais, sem a atenção da imprensa e nem do mundo político. Nos dias prévios, o governo tenta descreditar o movimento acusando-lhe de extrema-direita.

    No primeiro sábado de manifestações o movimento consegue bloquear muitas estradas no país. Carros e caminhões são impedidos de circular, desatando um dia de muita tensão social. Inclusive, são registradas algumas mortes de manifestantes atropelados por carros que tentaram romper os bloqueios. Ainda assim, o governo não só manteve sua posição, como seguiu ignorando o movimento. A partir daí, os protestos continuaram por todos os dias da semana nas estradas francesas. Os estoques dos supermercados não pareciam estar afetados e pelos olhos da imprensa o país seguia normalmente.

    No entanto, considerando a jornada de 17 de novembro como uma primeira vitória, os coletes amarelos não param e convocam a população para nova manifestação no sábado seguinte, agora nos Campos Elíseos da cidade de Paris. O governo manteve sua posição e sua indiferença. O protesto, inclusive, não foi autorizado nesse lugar simbólico.

    Pela manhã do sábado de 24 de novembro, milhares de pessoas já estão nos Campos Elíseos. Com a manifestação não autorizada, a polícia começa a dispersão das pessoas com gases e carros de jatos d’água. O resultado foi o contrário do esperado.

    Manifestantes se rebelam, sem lideranças, contra as forças da ordem. Em poucos minutos, uma das mais simbólicas avenidas da França – por onde marcharam as tropas nazistas de ocupação e também por onde desceram depois as tropas livres da França após a “grande guerra” – transformou-se em campo de enfrentamento aberto. Bombas lacrimogêneas, bombas de ruído, matracas, pedras, materiais de construção, cadeiras de restaurante, barricadas e carros queimados incendiaram os bairros da elite francesa. O bairro onde também se situa o palácio de governo da presidência da República, L’Élysée.

     

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    Chega a violência

    O resultado foi caótico. A imprensa rapidamente mobilizou a categoria moral da “violência”[2] para julgar os acontecimentos sócio-políticos desse dia, sob a ideia dos “violentos contra os violentados” e das “pessoas favoráveis a violência versus as pessoas contrarias a violência”. A mesma fórmula foi disseminada pelo governo Macron.

    Foi uma jornada de violência? Certamente, mas foi também um dia de profunda cólera popular contra o governo e especialmente contra Emanuel Macron. E mesmo assim o presidente decidiu não falar. Guardou silêncio e esperou até terça-feira para publicamente se dirigir ao país. Nos mais de 50 minutos de discurso sob a transição ecológica, ele proferiu apenas uma vez a palavra “coletes amarelos” e duas vezes a palavra “manifestações”. Centrou-se assim nas metas ecológicas do governo, reafirmando a vontade de manter suas posições.[3] De lá, Macron partiu para Argentina, na reunião do G20. Os coletes amarelos por sua vez, insatisfeitos e frustrados, reforçam as mobilizações e seu divórcio com o governo.

    Na terceira semana, os coletes amarelos já contavam com três quartos de apoio da opinião pública francesa, segundo as pesquisas.[4] Apesar da violência e da contra campanha da grande imprensa, a indiferença do governo galvanizou o apoio popular dos franceses com o movimento. O terceiro ato, sábado 1º de dezembro, marcou não apenas a fratura social entre as elites governantes e midiáticas, mas revelou o povo heterogêneo, diverso e inclusive contraditório. A rebelião se aprofundou e se estendeu. Não eram só as estradas, não era só os Campos Elíseos, com mais violência e força. Agora também no centro de muitas cidades do país irrompiam conflitos, fogo e protestos. A jornada vestiu a roupa da insurreição simbolizada na tomada e depredação do Arco do Triunfo, o monumento fundacional da França Livre do pós-guerra.

    “Nem ultradireita, nem ultraesquerda: o ultrapovo”.[5] Black blocs, ultranacionalistas, trabalhadores e aposentados, mas, sobretudo coletes amarelos convergiram, sem pauta clara, nem diálogo, nem política comum, levando a política francesa a um novo ciclo histórico. Não querem nem um dos partidos políticos atuais entre eles, não querem sindicatos, mas há uma ampla diversidade de pensamentos e objetivos que tornam complexa a leitura política de quem eles são e de qual pode ser o resultado político do êxito do movimento. O qual é, talvez, o ponto que mais preocupa a elite francesa.

    O que começou em protesto contra a reforma ecológica do governo, denunciada como uma ecologia de elite, uma falsa-ecologia paga pelos contribuintes médios e pobres, foi reforçado no fato de Macron ter eliminado o ISF logo no início de seu mandato, favorecendo as grandes fortunas da França, e hoje, as classes populares trabalhadoras pagam mais taxas sobre os hidrocarbonetos, num quadro geral de corte governamental dos transportes públicos e dos serviços sociais.

     

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    O desastre do governo frente ao ritmo da crise

    Emmanuel Macron volta da Argentina. No Arco do Triunfo saúda as polícias e, espontaneamente, de novo, dezenas de pessoas dando conta da sua presença, gritam contra ele: demissão, demissão. Desta vez não temos a atitude do Macron de antes do G20, nem do Macron durante os encontros com lideranças mundiais. Desta vez, o rosto do presidente fica fechado, grave, sério.

    Foi necessário passar três semanas para que no dia 03 de dezembro, o governo fizesse um gesto. Um gesto que, no meio de debates virulentos entre os partidos, os sindicatos e mesmo entre os coletes amarelos, que começam a ser convidados aos estúdios de televisão, ficou deslocado, atrasado. O governo decide congelar a taxa sobre os combustíveis, mas parece ser tarde. Nas redes sociais, nos programas de televisão, já se fala de outras reivindicações, de uma dissolução do parlamento e de novas eleições, inclusive da demissão de Macron e de uma constituinte.

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    Haverá uma convergência dos movimentos sociais?

    Por outra parte, o movimento não conta ainda com a participação decisiva de jovens abaixo os 30 anos. Apenas na terceira semana, os estudantes secundaristas saíram para as ruas. Em muitas cidades da França como, por exemplo, na periferia de Paris e em cidades como Sant-Étienne e Clermont-Ferrand, que ficam no centro do país, estabelecimentos educativos, escolas e liceus, foram tomados ou bloqueados por barricadas ou simplesmente por atos que terminaram em enfrentamentos similares aos recentes. É outro movimento social. Tem objetivos setoriais, relativos a educação, a seu financiamento, ao acesso a universidade e a oposição frente as reformas do governo no plano educacional. Ainda assim, a pauta dos estudantes toma nova forca com a onda nacional gatilhada pelos coletes amarelos e há então possibilidade de convergência. O mesmo acontece com os sindicatos, os movimentos dos trabalhadores das ferrovias que no primeiro semestre tinham realizado uma greve de quase seis meses e com os trabalhadores da saúde que parecem se fortalecer neste novo cenário social e político que o povo francês está criando.

    Este movimento, inclusive deve estar sendo atentamente monitorado pelas autoridades dos outros países da Comunidade Europeia. Durante essas três semanas de mobilizações, tem se registrado em menor escala protestos de coletes amarelos na Bélgica, Alemanha, Sérvia e Holanda, o qual abre pela primeira vez a possibilidade de futuros cenários de convergência social ao nível regional, a escada europeia.[6] Trata-se assim de um movimento que pode se estender além do território nacional, pois é também uma frustração social de massas que abre um novo espaço popular de disputa política no qual ainda está tudo por se fazer.

     

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    Macron fraturou o contrato social francês

    Parece que nada que o governo Macron fizer nos próximos dias poderá distensionar o clima de fratura nacional entre elites e trabalhadores que está hoje lavrado. Depois de anunciar o congelamento da taxa dos combustíveis e algumas horas depois ao reafirmar a anulação definitiva da taxa, o Primeiro-Ministro, com baixa presença da imprensa e em silêncio, se dirigiu durante a noite para a cidade de Puy-em-Velay (no centro da Franca) com a finalidade de visitar o prédio regional do governo que foi inteiramente queimado pelos manifestantes no sábado anterior e foi recebido pelos funcionários locais e a polícia, numa operação discreta. Péssima ideia. Um grupo de moradores percebendo sua presença, manifestou-se com insultos e exigências de renuncia. Pego de supressa, Macron decide regressar de imediato a Paris, num comboio de apressados carros de janelas pretas.

    Macron aparenta ter poucas saídas frente a uma pressão que sugere se emergir tanto da política econômica de seu governo quebrando definitivamente o contrato social francês que vem sendo agredido por seus antecessores, como de uma arrogância contra os setores populares (majoritários) que foi denunciada reiteradamente durante as últimas semanas. Assim, um novo sábado de protestos está sendo convocado pelo movimento e o discurso do governo e da imprensa está orientado a atiçar o medo, a violência e assim tentar dissuadir o máximo de pessoas de participarem das mobilizações. Será um sábado chave para Macron que já anunciou a mobilização de um contingente extraordinário de policias (mais de 80 mil agentes). Mas, será também vital para o futuro dos coletes amarelos, dos quais se escuta que não vão renunciar até conseguir seus objetivos em definitivo e irão além da anulação da taxa aos combustíveis, que já conseguiram esta semana.[7] Será um fim de semana decisivo para um movimento que não tem e não quer lideranças. Agora eles só querem se entender diretamente com o Presidente da República.

     

    [1] Aline LECLERC, « Priscilla Ludosky, porte-parole des « gilets jaunes » : « Ce n’est qu’un premier rendez-vous, on en attend d’autres » », 28 novembre 2018, https://www.lemonde.fr/societe/article/2018/11/28/priscilla-ludosky-porte-parole-des-gilets-jaunes-ce-n-est-qu-un-premier-rendez-vous-on-en-attend-d-autres_5390007_3224.html.

    [2] Laurent MUCCHIELLI, « Comment analyser sociologiquement la colère des Gilets Jaunes? », Club de Mediapart, consulté le 6 décembre 2018, https://blogs.mediapart.fr/laurent-mucchielli/blog/041218/comment-analyser-sociologiquement-la-colere-des-gilets-jaunes-0.

    [3] Emmanuel. MACRON, « Discours de Macron sur l’écologie trois jours après les évennements 24 novembre à Paris. », 27 novembre 2018, https://www.youtube.com/watch?v=UKfHm58PujQ.

    [4] Bernard MORVAN, « Gilets jaunes. Les analyses de Sandra sont plus vivantes que celles de Jeanne Emmanuelle », BREIZH-INFO.bzh (blog), 29 novembre 2018, https://www.breizh-info.com/2018/11/29/106822/gilets-jaunes-macron-hutin.

    [5] Alain BAUER, « «Gilets jaunes: l’ultrapeuple est de retour» », L’Opinion, 2 décembre 2018, https://www.lopinion.fr/edition/politique/gilets-jaunes-l-ultrapeuple-est-retour-l-analyse-d-alain-bauer-170562.

    [6] Emma DONADA, « D’autres pays d’Europe ont-il leur mouvement des gilets jaunes ? », Libération.fr, 7 décembre 2018, https://www.liberation.fr/checknews/2018/12/07/d-autres-pays-d-europe-ont-il-leur-mouvement-des-gilets-jaunes_1695931.

    [7] Robert JOUMARD, « Analyse des revendications des Gilets jaunes », Club de Mediapart, consulté le 6 décembre 2018, https://blogs.mediapart.fr/robert-joumard/blog/051218/analyse-des-revendications-des-gilets-jaunes.