Remar juntos é partilhar, partilhar alguma coisa, fora de qualquer lei, de qualquer contrato, de qualquer instituição.
Carxs praticantes,
Partimos de algumas inquietações iniciais e problemas com os quais nos sentimos implicadxs nesse momento. Escrevemos alguns parágrafos na forma de uma proposição-convocatória para abrir a hipótese de uma Zona de Contágio. Como algumas pessoas não leram ainda o material recolocamos abaixo os links:
A proposta é simples: iniciar uma conversação entre todxs, uma prática investigativa coletiva, a partir da situação limite que estamos habitando.
Para entrar nesse barco basta mandar um email para: conspire@tramadora.net
Contornando a saturação filosófica e os grandes esquemas conceituais que interpelam o acontecimento-Covid-19, queremos habitá-lo em sua dimensão experiencial, tecnomediada e que finalmente conecta velhas e novas tecnologias de domesticação e desempenho (da casa aos dispositivos que oferecem distração, praticidade e eficiência em um ambiente cada vez mais vigiado e controlado no qual se busca a todo custo bloquear a experiência como também todo o acontecimento).
Queremos praticar uma ciência de contato – ainda que seja desde o isolamento – e que atue na produção, sempre parcial e precária, de práticas e conhecimentos sobre questões que implicam a todos. Outras perguntas irão surgir no percurso. Desviar das rotas planejadas é sempre um sintoma de boa saúde para uma ciência de risco. Inventar novas e melhores perguntas que produzam uma comunidade de praticantes interessadxs em experimentá-las. O próprio desenho do laboratório e seu modo de pesquisar são problemas que fazem parte da nossa investigação.
Como seguir juntxs em tempos de pandemia? Como fazer de nossa vulnerabilidade o risco comum de uma dupla condição: uma política da experimentação e uma prática (onto)epistêmica corporificada, situada e que possa retomar nossa inteligência coletiva relacional de viver graças aos outros, de pensar graças aos outros. Nos importa pensar quem somos o \”nós\” contingencial desse percurso investigativo. Convidamos a uma prática para iniciar a conversa e experimentar sustentá-la por algum tempo (dois ou três meses?), atentos ao percurso, suas aberturas e possíveis desdobramentos.
Movimento 1: apresentação, interação assincrônica, criação e compartilhamento
Como cada um de nós é forçado a pensar pelo acontecimento covid-19? Como esse acontecimento dispara novos problemas, entendimentos e experiências e criações intuições?
“Essa experimentação é política, pois não se trata de fazer com que as coisas “melhorem”, e sim de experimentar em um meio que sabemos estar saturado de armadilhas, de alternativas infernais, de impossibilidades elaboradas tanto pelo Estado como pelo capitalismo. A luta política aqui, porém, não passa por operações de representação, e sim, antes, por produção de repercussões, pela constituição de “caixas de ressonância” tais que o que ocorre com alguns leve os outros a pensar e agir, mas também que o que alguns realizam, aprendem, fazem existir, se torne outros tantos recursos e possibilidades experimentais para os outros. Cada êxito, por mais precário que seja, tem sua importância” (I. Stengers).
Para nos apresentarmos, sugerimos agora que cada um compartilhe, de alguma forma, o modo pelo qual está habitando essa encruzilhada: um breve texto, fotografias, áudios, vídeos, performances. Um formato simples o suficiente para não produzir a sensação de \”mais uma tarefa\”; o prazer nos parece um bom indicador para essa breve produção.
Aqui podemos falar, a partir das nossas vidas e pesquisas, ou das duas coisas entrelaçadas, sobre os fios do provável ( de como sentimos, intuimos ou entrevemos a reorganização dos poderes tecnototalitários e dos dispositivos reordenadores da vida); e também sobre os fios do possível ( de como sentimos, intuimos ou entrevemos as formas de cooperação, novos acordos coletivos, a luta contra as normalizações dos excessos e pelas muitas formas de recusa). O material poderá ser enviado até o dia 22 de abril.
*Neste post (logo abaixo) você pode escrever usando a área de comentários e adicionar um arquivo de mídia: https://www.tramadora.net/?p=1772
Sua postagem se tornará pública para outrxs pessoas que por lá passarem também.
Um dia antes enviaremos o link para o ambiente virtual. Teremos alguns convidadxs pra disparar a conversa entre nós. Podemos combinar referências ao texto com o momento atual em diálogo com nossas produções/investigações (movimento 1).
Respiração diafragmática. Sem angústias ou ansiedade produtiva. A ideia é produzirmos um encontro entre praticantes de mundo em suspensão.
por: Camila Jourdan, professora de filosofia na UERJ e autora de \”2013 – memórias e resistências\”, ed. circuito, rio de janeiro, 2018.
Não há dúvida de que vivemos uma situação-limite. Ela é limite, primeiro, porque aponta para uma fronteira entre a sobrevivência e a morte, ela é limite porque, depois dela, tudo está em questão e o que valia antes, deixa de valer. Não sabemos o que ocorrerá depois dela, sabemos que nada mais será como antes. Vasta é a literatura filosófica que aponta para a oportunidade ética de situações-limites: elas nos permitem criar valores porque não é possível julgá-las sobre o esteio do que já estava estabelecido; elas não se fundam no que estava dado e, portanto, encarnam uma singularidade diante da qual é possível dizer o que realmente importa. O fundamental da situação-limite é justamente seu caráter sem precedência, não há um padrão, um modelo dado de valores simplesmente a serem aplicados, algo totalmente novo e, ao mesmo tempo, com valor de necessidade, então, pode surgir.
“Chamo situações-limite àquelas em que me encontro sempre que não posso viver sem luta nem dor, em que inevitavelmente assumo a culpa e em que tenho de morrer. Não se transformam, ou transformam-se apenas na sua aparência, sendo, em relação ao Dasein, definitivas. Não são previsíveis; enquanto Dasein nada mais vemos por detrás delas. São como uma parede que enfrentamos e na qual fracassamos. Não podem ser por nós alteradas, chegando-se apenas à clareza sem a qual não explicamos nem deduzimos outra coisa. Elas são com o próprio Dasein.” (Karl Jaspers, Philosophie)
1. Os limites da família tradicional: o que experienciamos nos últimos dias é como a família nuclear tradicional é incapaz de fornecer o suporte de que precisamos em uma situação de emergência. Fechados em lares nada seguros assistimos a violência contra os mais vulneráveis e a exploração das mulheres aumentarem. Fato é que a família patriarcal não nos fornece uma experiência de solidariedade e ajuda mútua primária nuclear, como se propaga. Ao contrário, ela é fonte de injustiças; violências e silenciamentos.
2. Os limites
do individualismo: nunca a televisão brasileira falou tanto em
coletividade! De repente, atomizados por imposição nos lembramos que nunca
fomos átomos. Subitamente, a presença de um vírus ameaçador nos leva a lembrar
que temos uma vivência comum, que partilhamos um mundo, que nossa imunidade
também depende da imunidade do outro, que habitamos um mesmo ambiente que agora
nos é evidente ao mesmo tempo que retirado. O que o outro faz pode afetar a
nossa vida ou morte. A liberdade liberal é uma evidente mentira quando uma
situação realmente séria é estabelecida, ela é uma liberdade negativa. Aliás,
ninguém permanece liberal quando o navio começa a afundar.
3. Os limites
do mercado e do capital: a fábula liberal de que o capital cuida de si como
uma força mágica autorreferente é suspensa em toda crise na qual os mais árduos
defensores do livre mercado clamam pela intervenção do Estado e convocam cada
indivíduo ao sacrifício. Diante de uma situação de emergência, o Estado de
bem-estar social, esta outra fábula, parece ressurgir da tumba que o neoliberalismo
havia lhe colocado. Fato é que, quando realmente precisamos uns dos outros, os
cânones do capitalismo não se sustentam porque o capital não é e nunca foi
capaz de cuidar de si mesmo. O capital é individualista e autoritário. É então
necessário fazer valer a vida em detrimento do Mercado e do trabalho. Não!,
grita o momento presente, sua vida não é equivalente à economia. Essa mentira
suja se faz cada vez mais clara: de um lado está o Mercado, de outro está nossa
sobrevivência.
4. Os limites
do Estado: mas se é pelo Estado que se clama, parece ser para que este
estabeleça um princípio do comum, o que ele não é de fato capaz de
expressar. O que fizeram os Estados e seus representantes nos últimos dias?
Aquilo que foram criados para fazer: disputas e espetáculo. Não só falham e
tardam no estabelecimento de medidas necessárias à nossa sobrevivência, como
criam novos problemas totalmente desnecessários. É até repetitivo citar aqui o
governo norte-americano saqueando máscaras de países pobres e entregando para
empresas privadas. Parecem que podem matar um vírus com o exército quando a
primeira medida que lhes ocorre é chamar a força nacional. Rapidamente são
estabelecidas mais e mais medidas para rastrear as pessoas e restringir
liberdades, enquanto os subsídios mínimos são postergados ou negados. Discursos
contraditórios; brigas internas visando eleições; informações escondidas;
agressões mútuas inter e entre estatais. Não pense que este é o fato mas que
não precisaria ser assim, não há Estado que não funcione pela lógica da
manutenção do seu próprio poder sobre outros Estados e sobre o seu povo. Sua
lógica não é a da comunidade, mas da preservação da sua própria identidade. O
Estado, um grande indivíduo, não a expressão dos limites do individualismo liberal.
Estados não pensam sobre como salvar vidas, pensam sobre como salvar a si
mesmos e seus interesses econômicos.
O que fazer quando toda uma forma de vida nos aparece como uma evidente mentira? É porque nossa forma de vida sempre foi uma mentira que nossa vida agora surge como totalmente sem forma. Não é possível perder o necessário a menos que ele jamais estivesse lá. O advento do ser-sem-mundo não é responsabilidade de um vírus, mas de uma maneira de viver que não se sustenta por si mesma. A produção-consumo desenfreada e com aparente vida própria na qual embarcamos mata, destrói, nos tira as condições mais básicas de nossa existência. Se não fosse o vírus, seria outra mazela ou uma alegada catástrofe “natural”. A carência de mundo é própria à dinâmica alienante do capital. Tudo que é produzido e reproduzido, nesta sociedade, comporta-se, afinal, como um vírus: sem vida própria, mas induzindo a vida à reproduzi-lo como se dependesse dele. De fato, não é apenas o vírus, são inúmeras as mazelas. A questão é se ainda há tempo de criar um mundo novo. Se ainda resta um comum a ser construído para além do Estado, do Mercado, da família e do indivíduo. Todas essas entidades, que se pretenderam substanciais, regidas pelo princípio da identidade, se mostraram uma farsa, totalmente incapazes de dar conta da nossa comunidade, de nossa mediação fundamental. Por elas, acabamos por perder o mundo. Há agora apenas uma sombra do que podemos vir a ser. Resta saber se ainda poderemos aproveitar a possibilidade ética de uma situação-limite. Pois, se o momento presente faz surgir com clareza o que é farsa, também pode atestar a concretude das verdades manifestas que nenhuma fake news pode subtrair, os momentos de vida ou morte são reveladores sobre o necessário: a importância da produção de conhecimento coletivo; da saúde universal e gratuita; das condições mínimas de sobrevivência que um dia animaram o estabelecimento de direitos universais. O que resistirá de pé neste limite?
“O sentido do mundo deve estar fora dele. No mundo, tudo é como é e tudo acontece como acontece; não há nele nenhum valor – e se houvesse, não teria nenhum valor. Se há um valor que tenha valor, deve estar fora de todo acontecer e ser-assim. Pois todo acontecer e ser-assim é casual. O que o faz não casual não pode estar no mundo; do contrário, seria algo, por sua vez, casual. Deve estar fora do mundo.” (Wittgenstein, TLP, 6.41)
Na mais árdua mazela as pessoas reencontram formas de vivências solidárias e cuidados coletivos imprevistos, não aquelas cristãs e humanistas, abstratas e caridosas, mas aquelas afetivas, concretas, que nos lembram qual vida queremos viver, o que nos constitui, o que tomamos como necessário. Perdidos, sem mundo, podemos reconfigurar seus limites, podemos operar mudanças fundamentais. Para além das telas, mas tornando, em alguns casos, essas que agora se interpõem em todas as esferas das relações como ferramentas, são inúmeras neste momento as redes de apoio mútuo que surgem ocupando o lugar do comum que a forma-Estado não é capaz de suprir. Pequenos grupos cooperativos, autogeridos e descentralizados que se mostram muito mais eficazes do que as alternativas institucionais para dar conta do momento presente.
Aqueles que sempre estiveram na exceção, que já viviam diante da emergência, que precisavam se arriscar e estiveram diante das prisões, são capazes de organizar focos de resistência no mundo todo. É preciso atentar para essas redes silenciosas e para o que tal experiência ainda pode nos legar no âmbito das possibilidades abertas.
O
LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e
Tecnologias de Monitoramento) compreende a gravidade da atual
situação que estamos devido a pandemia causada pelo novo
coronavírus, que se espalha por diferentes partes do planeta há
mais de 3 meses. Nossa posição é que apenas o apoio mútuo, o
autocuidado, a autogestão e a ação direta são capazes de conter a
morte em massa que já vem ocorrendo em todo planeta e que se anuncia
no Brasil. Mais do que conter as mortes, essa posição nos orienta
sobre a reposta ao que a pandemia colocou para todo planeta: qual
vida queremos viver? Compreendendo “vida”, para além do fato
biológico, e “morte”, para além dos registros estatísticos e
georreferenciados. O que nos preocupa são as clivagens sociais e
políticas que poderão decorrer desse acontecimento
em termos de perda de liberdades, produções diferenciadas de status
de cidadania e aprofundamento da exploração do trabalho e das
desigualdades sociais.
Compreendemos
que governos de Estados, empresas, empresários e grandes corporações
multinacionais estão mostrando, de forma reiterada, que veem na
situação de crise
apenas a urgência de salvar suas instituições e seus lucros,
mostrando pouco interesse nas consequências já em curso na vida das
pessoas e nas que ainda estão por vir. Mais ainda: bancos, empresas
de tecnologias computo-informacionais, bem como políticos e líderes
de organizações internacionais não hesitam em escancarar a crise
como uma “janela de oportunidades” para novos negócios e a
consequente intensificação da exploração do trabalho (em
especial, na ampliação do trabalho remoto) e mutação nas formas
de produção da obediência, nos controles
eletrônicos a céu aberto
e na ampliação do dispositivo
monitoramento.
Somos um grupo de pesquisa dedicado à análise de políticas de segurança e monitoramentos e estamos, há um ano, desenvolvendo uma pesquisa sobre como estas medidas produzem a forma do autoritarismo no século XXI (“Políticas de segurança: a conformação transterritorial das democracias securitárias”, 2019-2020), a qual denominamos democracia securitária.
Reconhecemos
o impacto da declaração da OMS (Organização Mundial da Saúde),
de 11 de março de 2020, que decreta o que vivemos como uma
“pandemia”. No entanto, não nos arvoramos a cobrir tudo o que
diz respeito à pandemia – não contamos com pesquisadores da área
médica e epidemiológica. Mas acreditamos, desde nossa alocação na
universidade pública, que as análises possibilitadas pelas Ciências
Humanas têm muito a dizer sobre o que se passa no planeta hoje,
quais mutações esta situação de emergência pode gerar e quais
saídas as coletividades humanas podem construir, tão inusitadas e
radicais quanto a situação declarada como calamidade que se impõe.
A proposta deste boletim semanal é produzir uma compilação de informações, breves análises de nossos pesquisadores e cenários possíveis, unicamente no que diz respeito às políticas de segurança no planeta e com especial atenção ao Brasil, divididos em cinco tópicos.
Com o acontecimento COVID-19, o Laboratório Zona de Contágio instaura-se como um dispositivo de pesquisa coletiva e experimentação. Se o fortalecimento de governos tecno-autoritários já era uma ameaça à vida comum, a intrusão viral potencializa a disseminação de uma cultura imunitária e securitária de contornos fascistas no tecido da própria vida social. Tudo é risco.
Estamos lançando uma investigação coletiva que se proponha a pensar agora pelos cortes que fazem atravessar corpos, a casa, o risco da respiração compartilhada, os novos arranjos da biovigilância, as tecnopolíticas de gestão do normal e do que excede. O poder é logístico, está por todos os lados. Por isso, uma ciência de risco precisa dar atenção aos \”agenciamentos que geram transformações metamórficas em nossa capacidade de afetar e sermos afetados – e também de sentir, pensar e imaginar\”.
Disparamos perguntas que nos implicam com o acontecimento covid-19.
Pensar porque estamos obrigados, potencialmente infectados e febris. Diante dos intensos fluxos filosóficos, da saturação metafísica, semiótica, informacional, gostaríamos de propor uma desaceleração do pensamento; uma respiração diafragmática. Uma ciência de risco é objetora de tudo que nos envenenou: produtividade, crescimento, competição, originalidade, os grandes esquemas conceituais. Uma ciência de risco é aquela que habita as encruzilhadas e as práticas de permanecer um pouco mais com a confusão.
Como primeiro movimento de um percurso incerto e aberto de investigação coletiva, desejamos criar conversas com praticantes que se sintam afetados por essas questões. Seja a partir de uma criação qualquer (texto, fotografias, áudios, vídeos, performances) compartilhada entre nós, ou de um fio investigativo que possamos juntos rastrear: os fios do provável (a reorganização dos poderes tecnototalitários e dos dispositivos reordenadores da vida); os fios do possível (as formas de cooperação, novos acordos coletivos, a luta contra as normalizações dos excessos e pelas muitas formas de recusa). Uma ciência menor que atua com a experimentação e a invenção de uma linguagem comum, pelos sentidos que dão passagem a uma experiência singular e coletiva.
Atenção às infraestruturas mínimas da vida coletiva que adquirem visibilidade e urgência – a metrópole é um grande dispositivo de renuncia sobre nossas próprias vidas. Como a vida na cidade e na casa é percebida no interior desse acontecimento? O que estamos fazendo das nossas vidas?
Rastrear os pequenos gestos, as formas de recusa nada épicas, os imperativos do desempenho que descem pelo ralo enquanto temos que dar conta da louça acumulada antes da próxima reunião online. Como nossa vida é agora interpelada pela lógica da produção e do fazer, pela culpa do contato ou do isolamento, como imaginam nossas resistências e invenções cotidianos para existir? Precárixs. Lançadas em uma correnteza de indeterminação; atentas para os modos diferenciais de tornar algumas vidas dignas de serem protegidas e outras não. Nossos corpos como infraestrutura invisível que sustenta toda a ficção do \”homem livre empreendedor\”. Para não \”voltar ao normal!\”; Para retomar a insistência da vida não a qualquer custo – mas uma vida que possa criar movimentos de abertura, uma que desliza e escapa de suas estabilidades e antigos compromissos, aquela que aposta nos riscos dos encontros.
Rastrear as decisões logísticas e tecnológicas que prometem \”segurança\”, \”saúde\” e \”bem-estar\”, \”praticidade\” e \”desempenho\” a despeito da nossa incapacidade de cuidarmos de nós mesmos; a despeito da nossa incapacidade de sustentar outras saídas. Assumir nossas vulnerabilidades compartilhadas. Como esse acontecimento nos releva os arranjos em que estamos enredados? Podemos habitar de outra forma a cidade, o mundo, a terra – não como \”cidadãos\”, mas como criaturas?
Somos convocados a oferecer provas de um bom comportamento como soldados de uma guerra que não é nossa. Interpeladas cotidianamente por dispositivo de mobilização de corpos e boas condutas. Alternativamente, quais são as novas alianças que estamos criando e que desejamos ainda criar? Uma ciência de risco é sempre uma ciência que hesita, uma ciência de retomada de uma inteligência coletiva e que funciona apesar e contra os chamamentos da nação, da pátria ou da grande Ciência e seus regimes de autoridade e verdade.
Protótipo 1 – como criar uma conversação em tempos de pandemia?
Explicações de um mundo \”real\”, assim, não dependem da lógica da \”descoberta\”, mas de uma relação social de \”conversa\” carregada de poder.
Neste primeiro movimento a idéia é que possamos nos relacionar através de nossas criações, formas de expressão sobre o experienciado, fragmentos coletados do mundo, situações vividas, sentidas, relatos, hesitações – sejam seus ou não.
Se você deseja entrar nesse barco, envie um email (tecnologia de desaceleração) para: conspire@tramadora.net
Criamos um canal de transmissão no Telegram onde iremos proliferar os caminhos da pesquisa: https://t.me/tramadora
Além do processo investigativo, realizaremos um ciclo de estudos insurgentes. Encontros virtuais para discussão de algum texto ou conversarmos com algumx convidadx. O primeiro encontro será dia 23/04, quinta-feira, a partir das 19:30hs, numa plataforma de videoconf [link com a programação será divulgado em breve]
(este texto foi escrito pela prática de existência entre oito olhares em comum decisão cotidiana de permanecer em relação: é fruto de trocas de impressões, lembranças de infância e relação à distância no presente em pandemia num grupo de whatsapp entitulado \”Irmãos\”)
Sob o contexto da pandemia viral de covid-19 narramos esses dias que passaram e ainda não vieram; esses dias tão nossos, desse tempo que sempre será de todos os que vivem para ver e contar a pandemia. Nossos corpos irão contar e narrar sobre ela a cada dia, num cotidiano inevitável de praticar sociedade no isolamento físico, transformando o próprio corpo em um coletivo de isolamento vivo de corpos de carne e vísceras com vida. Uma narrativa vai aparecer aos poucos no texto, referência que me leva a narrar nossa prática social de isolamento físico sob aspectos que afetam meu corpo por este relato, que ativam a racialização dos povos asiáticos em território de brasis, a intolerância xenofóbica que surge na guerra semiótica trumpista de \”vírus chinês\” e posicionamentos que se dizem minimamente sérios, mas, ainda assim, não deixam de reproduzir velhos preconceitos do mundo ocidentalizado sobre os povos asiáticos – e, no contexto mais recente, a China.
Tem sido enorme o compartilhamento de artigos, fontes jornalísticas e posicionamentos de pensadores, intelectuais e pesquisadores das mais diversas áreas acadêmicas reconhecidas como produtoras de pensamento baseados em dados científicos, neutros, objetivos, epistemologicamente testados nos laboratórios de fazer o mundo ocidentalizado pensar sobre a China. Sobre a população chinesa, o Estado chinês, a produção industrial chinesa, a medicina chinesa e as técnicas de controle da população que supostamente estão deixando o mundo escandalizado e maravilhado, ao mesmo tempo. O antigo medo do comunismo chinês e dos autoritarismos asiáticos inventados para os inimigos racializados como amarelos no mundo dos homens brancos, aparece em sutis formulações acadêmicas (no discurso apropriado pela esquerda, também, ehin!) e nas mais escancaradas falas dos caretas mais tacanhos a gritar \”chinesa porca!\” para uma jovem descendente de japoneses.
Proponho, então, uma investigação que agacha o pensamento para perceber o corpo e com o corpo atravessado por uma narrativa asiática em pinceladas de preferências que dão pistas sobre uns tipos de corpos que seremos inevitavelmente convocados a praticar em bairro de São Paulo, em bairro de Rio de Janeiro, em bairro de Belo Horizonte e Salvador, em bairro de Campo Grande e Florianópolis, em bairro de cidades do interior dos estados destas e outras capitais, em comunidade indígena nos territórios espalhados por todo um território continental de Brasil, em comunidades rurais, quilombolas e de beira mar. Muitos grupos. Espalhados grupos. Espalhados corpos. Minha intenção, hoje, é perseguir pistas que apontem para encontrar o corpo que desejamos fazer juntos para sobreviver. Fazer sobreviver corpo de gente que pode morrer pelo simples fato de ter circulado no mesmo vagão de metrô com outro corpo de gente.Quero apresentar um modo de como procurar estas pistas nos nossos corpos e com o corpo que me ensinaram a narrar como asiático, amarelo, nipônico, nikkei.
O pensamento de cócoras
Quando o emaranhado das minhas vísceras se teceram no útero de minha mãe, foi se embaraçando a elas um fio vermelho que sai do meu dedo mindinho. Esse fio foi encapeado em minhas vísceras como se encapeiam fios de cobre retorcidos de uma \”fiação\”. Minha \”fiação\” de veias, vísceras e músculos está emaranhada nesse fio que sai de meu dedo mindinho esquerdo e põe a minha rede de vasos sanguíneos (que passam pelo meu coração e artérias) esticada em uma variação exponencial de pontas múltiplas. Imagine a ponta dupla de um fio de cabelo. Agora imagine a quantidade de pontas conectadas com esse fio que sai de meu dedinho mindinho e se ramifica em uma ponta e mais uma e mais outra, sempre que uma existência aparece. O contrário também acontece: quando uma existência desaparece, desaparece uma ponta que faz com que o fio afrouxe. Como muitas coisas passam a existir e outras passam a deixar de existir todos os dias, o fio e todas as suas pontas mantém o equilíbrio das forças que esticam e afrouxam essa rede que conecta todas as existências com todas as existências. O nome desse fio é Akai Ito ou, traduzindo literalmente, \”fio vermelho do destino\”. Akai Ito é praticamente invisível, poucas criaturas vivas e não vivas, visíveis e invisíveis, humanas e não humanas são capazes de perceber a movimentação sutil e ininterrupta de todas as pontas e entrecruzamentos dessa fiação de múltiplas pontas. Akai Ito conecta em rede tudo o que se movimenta no plano das existências. Seria melhor pôr: o que passa a existir estica Akai Ito para mais uma saída amarrada à ponta dessa nova existência e, então, o que deixa de existir, na verdade, passa a engrossar de novo o fio todo a partir do ponto mesmo em que deixou de existir. Estão me acompanhando? O meu primeiro exemplo de existência (eu mesma) fala do emaranhado encapeado em minhas vísceras, uma existências com coração. Há aquelas existências sem coração (mas com espírito), cuja superfície mantém o vírus ativo por muitos dias (como as superfícies metálicas, plásticas, de madeira, etc…) Há as existências de corpos híbridos.
É muito complexa a rede Akai Ito, é um destino comum de existência a que ele nos emaranha nas vísceras. Inevitável na medida em que da prática presente, da movimentação do agora, é impossível escapar. Práticas de ancestralidades emergem no presente disposto na rede que existe a insistências desses finos fios vermelhos saindo pelos mindinhos de descendentes da rede infinita. Uma constelação se cruza com meu corpo em cada olhar e respiro de um desconhecido corpo de gente que entrou nos mesmos vagões que entrei. As consequências da movimentação de cada uma e todas as pontas que esticam, puxam, afrouxam de um lado e esticam de outro, enlaçam e modificam voltas e voltas e retorcidas que fazem com que o movimento de agora perpasse uma pessoa que eu sequer cruzei. Um exemplo para pensar como o fio do meu dedinho chega na ponta de uma pessoa que sequer conheço: a transmissão do vírus covid-19 entre corpos de coração pulsante do tipo de existência gente. Mas podemos pensar também que, por exemplo, o tipo de existência gente com quem cruzei andando na calçada da rua é atravessada pela minha movimentação a ponto de passarmos a implicar uma existência que – dali para frente – vai acompanhar essas duas gentes que se cruzam até os tempos mais distantes a partir do instante dessa conexão de aproximação, cruzamento e afastamento de corpos que caminham. A começar pelo tempo dispendido com o encontro que faz com que cruzemos ou não cruzemos todas as outras pessoas com quem vamos nos cruzar durante uma caminhada por alguns quarteirões ou muitos deles. Em 5 minutos a mais de um encontro de padaria numa cidade como São Paulo e já perdemos os instantes de nos encontrar (que seja apenas com um olhar) com uma quantidade enorme de pessoas. Também, faz parte desses 5min. de atraso a possibilidade de ter cruzado com estas e não aquelas pessoas. Há encontros duradouros, há encontros breves, intensos, graves ou pouco perceptíveis, numerosos ou com poucos corpos.
Cotidianamente há encontros dos mais variados: fortuítos, planejados, ansiados, inexistentes, impossíveis, possíveis. Na circulação dos nossos corpos pela narrativa pandêmica, há um fato inquestionável: um microorganismo de atividade viral denuncia uma conexão tão absurda quanto Aki Ito, ou seja, a conexão entre ser uma existência com coração de gente responsável pela doença que faz um outro coração de gente parar de pulsar sua existência, pelo simples fato de ter segurado a existência de metal de uma barra de metrô. A zona de vizinhança de um grupo de pontas de Akai Ito é um encontro provisório pelo tempo em que as escolhas livres continuarem a relação entre as existências que se avizinham. Um vírus que transforma essa zona de vizinhança em zona de contágio, faz com que a população global passe a ser, toda ela – agora mesmo – a minha (a sua e a nossa) vizinhança de porta. Somos mais vizinhos da China, de Cingapura, de Itália, de EUA, de Japão e de qualquer outro país quanto mais consequências de corpos infectados existirem nos encontros entre as pontas de Aki Ito. Sempre que uma existência de gente deixar de pulsar em Akai Ito, uma ponta de qualquer parte do globo pode ter sido responsável pelo encontro dela com uma atividade viral em plenas condições de adentrar as vísceras de quem encostar nas mesmas existências de metal, madeira, plástico (…).
O morcego originário ou o devir racializado?
Acredito que Akai Ito também seja narrativa potente o suficiente para nos perguntarmos se há como afirmar a origem da atividade atual da mutação de coronavírus. A origem é sempre narrativa e esta narrativa da origem na pulsação do coração que bombeia a existência dos animais vendidos nos mercados chineses não nos dá outro efeito senão o velho hábito de inventar origens, ainda que elas passem a existir. Vejam: não estou questionando os estudos que comprovam em maior ou menor grau a circulação do contágio do novo coronavírus entre as existências que pulsam com coração de morcegos, cobras, porcos, aves e que afetam a fiação da pulsação das pontas \”gente\” em Akai Ito. Apenas gostaria de apontar a necessidade de deixar essa descoberta num plano de perseguição menos importante. Afinal, importa mais o fato de que foi na China a zona de vizinhança em que o vírus foi percebido do que descobrir se – de fato – o covid-19 se originou em território chinês. Hábito de tentar controlar um caminho que seja visível de um certo sequenciamento de atividade viral, que teve um suposto início em território Chinês e aparentemente num certo mercado a céu aberto e \”hábitos de higiene questionáveis\”. Narrar essa origem da atividade viral na versão covid-19 é inventar o povo chinês no corpo racializado do \”Perigo Amarelo\” para significar os corpos da população que ocupa aquele território. Nada muito distante do interesse de construir uma narrativa que encontre eco no neoliberalismo ocidental posicionado em relação a população chinesa. Aí identificados estão os preconceitos com os hábitos alimentares, religião e modo de existir. Não é fortuíto que as manifestações de Donald Trump passem tanto pelo vocabulário empatado na expressão \”vírus chinês\” ou que um tipo de coração de gente que pulsa em Bolsonaro filho tenha passado a vergonha de ser respondido no twitter pela embaixada da China no Brasil. A xenofobia escancarada está em memes ruins sobre sopas de morcego e a este humor barato devemos apenas não nos deixar levar por mitos rasteiros.
Sabemos, muitos japoneses e muitos nikkeis, que em Akai Ito esse caminho é invisível e, se ele é invisível, praticar a ação de salvar vidas tem a ver com termos percebido como circula um vírus nos nossos fios invisíveis e o que devemos fazer para que os nós (ou nódulos) de Akai Ito sejam desfeitos (já que demos muitos nós nos nossos fios em aproximações e distanciamentos, em pontes aéreas ou aglomerando muitas pontas de mindinho em um mesmo salão de festas de casamento com cantoras famosas, né?). A população global deu esses nós, o vírus apenas nos faz descobrir que há existências que podem atravessar nossos fios invisíveis, presos nas vísceras de nossos mindinhos, com mais rapidez com que nossos corpos conseguem chegar da Itália em algum aeroporto brasileiro. Para nós, brasileiros, o \”vírus veio da Itália\”, para Trump \”veio da China\”, para a população da China veio do mundo invisível. A China é o território de origem da visibilidade que descobriu essa atividade viral, não do próprio vírus.
Além disso, outra formulação estanque está contagiando a vizinhança que gosta de traçar narrativas para o contexto econômico, social e governamental chinês. Algumas até preocupadas em demonstrar crítica às técnicas de controle de Estados autoritários sobre as populações e, de quebra, sair com uma formulação alinhada com um discurso anti-capitalista. Fofos. Fofos ocidentais e ocidentalizados a ver a China como grande Outro, incapaz de praticar modos libertários (e liberais) para obter uma disciplinarização de corpos contra a transmissão viral. Essa narrativa é muito sutil, nela os povos de diferentes países asiáticos têm sido classificados como os maiores controladores de população (em maior ou menor grau de capitalismo ou comunismo) e, portanto, via essa capacidade de controle sobre as massas doutrinadas encontramos uma das principais explicações para o sucesso do achatamento da curva de transmissão em casos exemplares de uma \”China de Estado forte e autoritário\”, uma \”Coreia controladora da quantidade de corpos testados\”, um \”Japão de hábitos tão higiênicos perto dos porcos chineses que nem precisam de isolamento social\”.
Ora, em Akai Ito, sabemos que nossa existência implica uma movimentação coletiva que, nesse momento, deve implicar uma ação social de distanciamento e isolamento físico das existências que pulsam como gente. O Japão? Se é um povo mais higiênico que o povo chinês? Não… Vocês não entenderam. Explico de novo: em Akai Ito, descobrir a circulação do vírus no território chinês, nos fez descobrir que nos tornamos vizinhos da China e da Itália e do resto do mundo, todo mundo ao mesmo tempo. Essa descoberta aconteceu no mesmo instante em que se identificou o novo coronavírus como causa da morte de uma ponta de existência que afrouxou a linha que sai puxada do meu dedinho, pois gera o mesmo efeito de morte das existências de gentes e gentes a ocupar as covas do cemitério da Vila Formosa. Akai Ito é mesmo invisível, mas a movimentação que sai do dedinho esquerdo do homem que adoeceu durante o trabalho no mercado a céu aberto de Wuhan, tensionou todas as cordas que saem de todos os nossos dedinhos esquerdos em gentes espalhadas por todo o globo. A circulação de uma existência infectada do outro lado do globo gera efeitos em como o covid-19 circula no transporte público das capitais dos estados de Brasil.
Em entrevista recente publicada na Folha de S. Paulo, Achille Mbembe afirma a democratização do poder de matar. E isso não significa que há uma democratização na possibilidade de permanecer vivo, via direito de acesso irrestrito e universal aos aparelhos de saúde. O filósofo camaronês, define e formula a existência da necropolítica: a prática que age para ter poder de aniquilar existências via técnicas e narrativas que exterminam pessoas racializadas nas colônias, por exemplo. Com o poder político da morte, do apagamento da existência de uma gente e grupos inteiros de gentes, no contexto de uma pandemia, Mbembe observa a potência da circulação de um vírus em que o poder necropolítico está implicado na minha movimentação pelo metrô na semana retrasada como responsável pela morte das vítimas fatais desta semana.
Agachando bem para pensar, minhas vísceras não são capazes de narrar a explicação de, na China, o achatamento da curva se dar como um dos casos asiáticos exemplares na contenção da transmissão de corpo para corpo. Mas esta existência sabe que, no Japão, Akai Ito é uma narrativa antiga, tão antiga quanto os povos indígenas do território de Hokkaido, do território de Okynawa (antigos reinos independentes). Nos territórios como estes, muitos povos considerados como minorias étnicas nipônicas não têm os mesmos direitos de saneamento e acesso à saúde como nas províncias em que estão os centros financeiros e produtivos como Tóquio, Hamamatsu ou Shizuoka. Akai Ito é modo de existir sem possibilidade de cair na ilusão de ter como escapar do destino comum de nos transformarmos entre nós que existimos em tudo e tudo o que existe em nós. Inevitável destino presente de, tão simplesmente, ser nós todos enquanto somos existências concomitantes. Akai Ito é prova narrativa de que uns corpos se sabem coletivos, vizinhos, conectados em fiação de ininterrupto movimento, esticamento e afrouxamento. Com um vírus como o covid-19, fica evidente em Akai Ito o quão é fácil perder o controle do efeito de uma simples ação como a de apertar as mãos em cumprimento, abraçar, beijar e, até mesmo, segurar o mesmo objeto. O contato físico do toque é uma vibração de encontro muito intensa em Akai Ito. Cada vez mais intensa fica, na medida em que os encontros perduram e os graus de intimidade fazem avançar ações de proximidade física. A permanência da nossa rede de existências destinadas no mesmo fio vermelho depende, agora, de distanciamento físico como prática de ser comunidade. Há narrativas transmitidas na zona de vizinhança de Wuhan, onde se descobriu a potência da atual vizinhança global. Meu agachamento não saberia perceber que transmissão de narrativa está por trás da capacidade técnica de oferecer testes para a imensa maioria da população, como em Taiwan, Coreia, Cingapura, Vietnã, Hong Kong e outras zonas de vizinhança asiáticas. Afinal, são povos tão diferentes e que se transmitem narrativas de corpos coletivos em outras tantas possibilidades e deuses e entidades e mundos invisíveis que nos cercam.
No atravessamento da narrativa de Akai Ito que me faz entender a implicação da ação desse corpo como ação coletiva, percebo o surtir do efeito de controle da transmissão do vírus entre um povo como o povo japonês como um inevitável modo de agir para quem vive sem muito segredo uma existência coletiva com as pedras e insetos do quintal; os prédios, asfaltos e túneis de metrô da cidade. Em Akai Ito consigo explicar até uma noção básica do contato físico entre pessoas no Japão: cumprimentar se curvando é uma atitude de respeito com o corpo da outra existência, afinal, é prudente confiar o contato físico de intensidade na fiação e emaranhado de relações de Akai Ito àqueles de maior intimidade e com maior grau de conhecimento do seu corpo. Essa escolha de avançar o grau de contato físico deve ser autônoma e livre escolha de modo de relacionar e conectar a intensidade do fio que sai do meu mindinho ao fio que sai do mindinho de outra existência de gente. Não consigo conceber a possibilidade de definir, assim, os motivos que levam esse efeito ser produzido, aos olhos do Ocidente, em toda a Ásia. Mas gostaria de arriscar um chute.
***
Continuo agachada para chutar que meus irmãos e irmãs produzidos como existência racializada amarela, em diferentes cantos de diferentes territórios asiáticos, transmitem narrativas para existências segundo certo modo de existir que se percebe como uns corpos coletivos circulantes entre um \”sempre nós\”. Algumas vozes nas sociedades europeias, norte-americanas, entre outros territórios ocidentalizados, se narram espantadas, maravilhadas e, até mesmo, críticas, sobre a capacidade dos Estados asiáticos de controle de transmissão viral diretamente ligadas à capacidade de controle de um Estado forte sobre a população. Como se fossem Estados capazes de controlar a população praticamente incapaz de não se render ao controle de dados na internet, sendo facilmente domesticados a ponto de um aplicativo avisar um cidadão de Wuhan que seu vagão de metrô tem potencial de circulação ativa de covid-19. De fato, são irreproduzíveis determinados comportamentos de populações asiáticas em países europeus ou aqui no Brasil. Não nego que a fonte de dados coletados nas redes sociais se transforma, nesses contextos, em técnicas de controle populacional. Mas contra esse controle e formas de fugir dele, cabe ao europeu intelectual não querer que as populações da China se entreguem às suas críticas caretas ou que seja reconhecido por ser mais um que critica Estados totalitários com destreza.
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Com todo o respeito: acabar com o neoliberalismo colonial (ou o colonialismo neoliberal?) tá bem na ordem do dia para existências intelectuais de países que não pararam as linhas de produção, com número de casos de infectados suficiente para qualquer outro país asiático ter – pelo menos – interrompido o chão de fábrica ou organizado um rodízio de funcionários para evitar aglomerações. Lutar contra totalitarismos asiáticos já é a luta do povo amarelo racializado como minoria étnica por seus próprios conflitos internos de unificação territorial em China, Japão, Coreia do Sul, Cingapura, Vietnã (…).
Enquanto sobrevivemos a nós mesmos no período de quarentena, entregamos conteúdo para os processadores de dados e afetos em todo o compartilhamento de textos e posts que fizemos enquanto torcemos acompanhando o BBB20, maratonamos séries nos sites de streaming, publicamos stories no instagram no nosso cotidiano entediado e conectado às redes: consumindo clicks, likes, visualizações, textões e #tbts. A proposta do modo de ação de meu corpo, ontem virou postagem e mensagem nas minhas redes e se transforma nas postagens e mensagens nas redes sociais de quem me distancio fisicamente. Esses dados processados são vendidos para quem lucra com o nosso consumo e vai capturar nossos corpos e subjetividades nesse momento de isolamento físico. Nossos dados serão como pedra de toque para continuar no controle de narrativas sobre eu, você, nós, a Ásia, a Europa e o que os EUA tem a ver com isso. Se há espanto no modo de controlar a população via dados coletados na internet por Estados asiáticos, também me espanta a ocidentalidade achar tão grave que \”na China o governo controla as pessoas por aplicativos\” sem se ligar que no Ocidente sairemos dessa consumindo tudo o que desejamos em tempos de punhetagem na quarentena.
Para finalizar o chute – lembrando que a diversidade interna da população que ocupa o território chinês tem, certamente, ferramentas e modos de resistir tensionadores da transcendência com a qual lidam no Estado que os quer representar -, gostaria de apontar no modo de controle de governamentabilidade na China, um modo de perceber a própria ação coletiva (presente em narrativas de se perceber em uns corpos coletivos) e que, talvez, tenha muito mais a ver com uma tentativa de controle da não percepção (e falta de noção real e visível) do alcance das movimentações coletivas a partir da circulação de apenas uma existência viva. Um modo de perceber a vulnerabilidade da rede de existência coletiva que se implica o tempo todo em efeitos que podem ser incontroláveis nas nossas ações. Desconfio que haja, na transmissão das narrativas asiáticas, a transmissão de uma noção corpórea que se preocupa com a circulação coletiva de existências que afetam outras existências. Uma preocupação não apenas para com a própria zona de vizinhança (portanto da própria zona de contágio), mas que, ao transformar a própria zona de vizinhança em zona de contágio, sabe que pode fazer zonas de contágio acontecerem do outro lado do globo e, ser assim, imediatamente vizinho dela. Akai Ito é invisível, não podemos enxergar. A preocupação com a origem num discurso científico, apenas produz um efeito visível de um sequenciamento cuja origem só se torna visível como invenção; pois o vírus poderia ter sido visível em mortes por pneumonia em qualquer parte do mundo cujas causas de insuficiência respiratória ficaram sem maiores explicações. Se covid-19 foi percebido circulando em nossa rede de gentes pela primeira vez na China, não significa que lá surgiu.
Akai Ito é uma prova narrativa de que meu dedo mindinho está diretamente ligado ao dedo mindinho de quem circulava no transporte público de Milão no mês passado, nas ruas de Hanoy em Fevereiro, nos trens para Hamamatsu no meio de janeiro ou no metrô de Wuhan em dezembro. Ou, não me espantaria, num morcego ocidental carregando um vírus desconhecido no meio do ano passado (ou retrasado, não importa)… Mas isso seria invenção minha.
Os
trabalhadores autônomos, o precariado, os desempregados, os que
vivem de bicos, já estavam submetidos a um regime intensamente
desprotegido de trabalho e de pouco acesso a direitos sociais. A
proibição de trabalho que a quarentena representa para muitos nessa
chegada da pandemia no Brasil, acrescenta muitas dificuldades à vida
já extremamente precarizadas dessa multidão de brasileiros.
As
estratégias contra o adoecimento dessa parte substantiva da
população faz parte dos mecanismos produzidos para lidar com a
extrema incerteza que a vida autônoma ou do precariado apresenta
como realidade. Adoecer não pode fazer parte do cardápio de homens
e mulheres sem emprego fixo. O dia precisa ser garantido com o
trabalho. Adoecer significa não ganhar o do dia, o dinheiro da
semana. Dejours1,
psicanalista que estuda as relações de trabalho, descreve essas
estratégias para lidar com as doenças como parte do sofrimento do
trabalho penoso. Mas para essa classe, é especialmente radical a
impossibilidade de adoecer. Esconder doenças, driblar vizinhos,
colegas de lida, familiares, para que a doença não apareça se
apresenta como a primeira forma de lidar com ela. A doença só
aparece quando se precisa ir ao médico, ao hospital e somente,
assim, ela é visibilizada.
Com
a chegada da pandemia nos territórios mais pobres do país a doença
pega nas estratégias da vida, porque essas estratégias montadas
para o trabalho são parte fundamental do cotidiano. Tanto as
estratégias partilhadas quanto as estratégias mais individualizadas
são formadas para lidar com uma vida sem previsibilidade alguma. Não
à toa que no negacionismo criminoso do governante maior do país
notamos o reforço por essa estratégia de negação que a Covid-19
seja doença grave. Reforçar a ideia de que existe um grupo de risco
e que os adultos devem voltar ao trabalho sem grandes riscos está
conectado às estratégias populares de negar-se doente. Negar o medo
de adoecer. Simplesmente negar a gravidade para que a gravidade não
exista. Os países que adotaram essa estratégia, que teoricamente
colocaria a economia em primeiro lugar, mostraram que a dinâmica da
doença rapidamente a põe por terra, o isolamento social se mostrou
mais eficaz. É preciso parar. Parar as engrenagens do mundo do
trabalho tal como a conhecemos.
Nessa
medida, as estruturas do neoliberalismo foram produzindo
trabalhadores engajados em um individualismo na sua “viração”
da vida, que acabam por levar para a informalidade os padrões de
controle, de riscos, de custos do trabalho para si. O auto-controle
exercidos pelos trabalhadores autônomos, que estão com todos os
custos e riscos do trabalho incorporados como parte do seu
“empreendorismo”, entregam o sentido do trabalho à tecnologia
(como é a dinâmica dos überizados). A banalização do mal vinda
com o aprofundamento do neoliberalismo, diz Dejours (2006), é
processada pelo trabalho, pelos valores do trabalho incorporados
individualmente2.
Cada investida do capital no esvaziamento do sentido do trabalho tem
significado um achatamento na renda do trabalho. Desta forma, se
trabalha cada vez mais para se ganhar cada vez menos. E o rebatimento
disto na subjetividade das pessoas é um sentido do trabalho cada
vez mais esvaziado que despersonaliza e quebra esse sentido para uma
produção subjetiva forte.
Com
a pandemia há uma parada nas dinâmicas do mundo do trabalho. Ou
adaptações estão sendo formadas para lidar com esse momento
estranho. Será necessário mudar para que o país cesse de só
reproduzir um distanciamento entre pobres e ricos numa crescente
desigualdade social.
No
Brasil as reformas trabalhista e da previdência apostaram na
informalidade para grande parte da população, o que significa que
grande parte dos trabalhadores com rendimentos já muito rebaixados
ficarão desprotegidos na vida laboral e na velhice. Com a crise
trazida pela epidemia demorou para o governo perceber que os pobres
estavam em pauta, a primeira proposta era de suspensão de salários
por meses para salvar as empresas a partir dos custos do trabalho. Os
pobres só eram foco, até aqui, para se avançar sobre na sua renda,
na sua escassa poupança para defender os interesses do grande
capital.
Interessante
deixar surgir novas lógicas, novas formas de pensar o que é a vida
em sociedade. Viver num mundo comum. A renda básica universal
lançada agora em forma de ajuda emergencial para essa classe
desprotegida da sociedade é uma dessas intensas mudanças que podem
vir para ficar. A ideia de que uma renda universal é uma saída para
as mudanças do mundo do trabalho que já tinham chegado definitivas
por aqui, e demanda planejamentos de longo prazo.
Com
a pandemia temos uma parada. Uma parada do trabalho nos moldes até
aqui processados. A noção de produção do necessário vai mudando
a estrutura produção-comércio-dinheiro. Fazer a indústria
produzir o que é necessário nesse momento para equipar a saúde com
máscaras, luvas, construir hospitais, comida, remédios, maquinários
de saúde. Não é mais a lógica inversa que perverte nossas
necessidades. Estamos num outro momento em que a necessidade ancora o
que deve ser produzido. A lógica anterior criava incessantes
fetiches para escoar a produção (produção no final de mais
dinheiro – de dinheiro’).
As
mudanças em 2020 vieram mais violentas e rápidas do que estávamos
esperando! O esgotamento do neoliberalismo que captura continuamente
cada vez mais territórios, pode ganhar planos de modificações. Já
tínhamos uma ideia de que as mudanças que o incremento tecnológico
estava por impor aos processos produtivos mudanças radicais do modo
de trabalhar. Mas não havia preparação alguma para novidades tão
contundentes como essa imposta agora pela chegada de um processo
mundial que vai impondo uma crise de proporções globais, brutais
especialmente aos pobres de todo o mundo.
O
país estava tão despreparado para lidar com a pobreza que não
consegue por em marcha com rapidez o repasse de uma renda mensal a
quem precisa, não havia nenhuma perspectiva de enfrentamento à
desigualdade. A possibilidade de saques de fome e de revolta se
configuram como reais forma de luta para quem ficou sempre esquecido
para a distribuição da riqueza comum, mas sempre lembrado para
manter a economia que interessa ao capital funcionando. E as revoltas
populares podem fazer visível as feridas que não se fecham
rapidamente. As revoltas chilenas estão no tabuleiro como alerta
para despertar as lutas sociais e as reinvindicações que exigem
ação para trazer renda às famílias brasileiras quanto falta a
possibilidade de trabalho.
Latour
(2020)3,
nós provoca a pensar como vamos impedir que essa lógica anterior
não venha logo dar as caras assim que a pandemia passar. O tempo do
trabalho, se no passado medido pelo relógio de pulso, e até ontem
medidos pela velocidade vertiginosa dos smartphones (mesmo os tempos
do desemprego andavam totalmente ocupados pelos trabalhos überizados,
para lá de precários), agora parou. Desacelerou. A vida tem outras
atividades. Fazer comida, cuidar das crianças, arrumar as coisas da
casa, trabalhos invisibilizados e destinados às mulheres que podem
retornar como tarefas cotidianas com produção de sentido.
O
trabalho continua no centro da vida social. Será tempo de
reconfigurar essa centralidade que estava ancorada na retirada de
proteção social para os pobres aliada à queda da renda do trabalho
nas franjas da sociedade.
Um
momento interessante em que as temporalidades da cidade, guiadas
essencialmente pelo trabalho, foram interrompidas para muitos. Foram
ao menos deslocadas para a casa. O que certamente exige novas
negociações de uma sociabilidade reduzida ao núcleo familiar.
Que momento estamos vivendo! Uma oportunidade se abrirá depois da catástrofe. Disputar um novo mundo, com novas temporalidades do trabalho. Das ruínas do neoliberalismo sairá um outro mundo! À luta!
Marta Bergamin é socióloga, professora da Escola de Sociologia e Política.
1
Dejours, C. A loucura do trabalho, São Paulo: Cortez, 2015.
2
Dejours, C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro:
ed. FGV, 2006.
autora do livro 2013 – memórias e resistências, Circuito, 2018
O primeiro movimento oportuno é aquele que cessa o querer ser produtivo. A ideia de que nossa saúde mental está em relação de bicondicionalidade com nossa capacidade produtiva é um dos cânones interiorizados dos quais precisamos nos livrar. O momento é de cuidarmos de si e dos outros, redescobrirmos formas que não sejam a mediação pelo capital, o que significa ao mesmo tempo não ser pelo Estado, nem pelo Mercado. A dimensão ética é evidente: de um lado a sobrevivência, de outro, a economia. Nunca tão claramente se pode expressar a oposição central entre o capital e a vida como quando alguém afirma: “o país não pode parar porque morrerão 5 ou 7 mil pessoas.” Mas o que é que se pararia exatamente? Ora, não há nada para se lamentar vendo este sistema ruir, podemos lamentar, claro, pelos pequenos comerciantes e produtores que perdem seu sustento, mas que essa máquina inteira entre em colapso só pode ser incentivado como uma saída, uma possibilidade aberta. Jamais sofreremos pelo mundo do capital entrar em ruínas porque temos um mundo novo em nossos corações.
Mas nosso maior desafio agora é o isolamento que impede que maneiras imprevistas de solidariedade possam surgir. Em uma greve, existem organizações coletivas diretamente relacionadas à parada da produção, comitês, pequenas organizações, algo vindo do concreto que toma o lugar das unidades abstratas do capital. Mas como concretizar-se coletivo ainda que sozinho? Uma possível resposta é a revolta que agora está por toda parte, e que abre uma porta para a coletividade, pois jamais é um átomo aquele que se revolta. A revolta tem uma dimensão ética justamente porque ela nos permite saber pelo que vale arriscar a sua vida em um movimento que vai do singular ao coletivo: “eu me revolto, logo existimos”. E se temos isso tão fortemente hoje, tornar-se-ia possível responder também pelo sentido da nossa existência, pois aquilo sem o que não há vida a ser defendida é o que pode também justificá-la. Jamais imaginamos viver uma situação imprevista como esta, onde tudo, absolutamente tudo, parece estar em jogo e é mantido em suspenso. Mas é um enorme privilégio poder viver uma situação imprevista, de tal modo que o pior que poderia acontecer agora é tudo isso passar e voltarmos à normalidade. Isso, de não estar dado, é o que torna tão fundamental o momento presente. Pois não éramos nós aqueles que reclamávamos pelo aparente caráter indestrutível do sistema reinante? Não é justo ser imprudente agora com os que podem ser mais afetados. Mas é possível vislumbrar um caminho autônomo, arrancando dos governos o que é necessário à vida? Sem dúvida, jamais romantizar a mazela, pois seria aceitar a morte e a miséria, mas entender que ela torna evidente o que já estava posto antes e era disfarçado pela suposta normalidade.
“Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. (…) Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não vai durar muito, seria idiota”. E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos.” Albert Camus, A peste
Agora temos patrão matando empregado
literalmente; divisão sexual do trabalho gritando em todos os lares; falência
da família nuclear estampada na rotina; limites do individualismo no telejornal
da TV; escolha direta entre quem pode viver e quem deve morrer. E é também
verdade que alguns daqueles que se julgavam inatingíveis foram atingidos.
Ninguém está imune a peste, embora ela atinja as pessoas de forma diferente, ou
seja, ela não nos faz iguais, ela explicita as desigualdades. A resposta de
todos os governos é o aprofundamento do controle e das medidas de exceção, escorados
numa retórica salvacionista. Uma pessoa muito querida me disse: “O coronavírus
de fato não possui letalidade alta, é o capitalismo que nunca foi capaz de
cuidar das pessoas.” O que vamos fazer com tudo isso que aparece de modo tão
insustentável? O que vamos fazer com nosso tempo acumulado se este nos for
restituído? Resta-nos ainda o desafio de ser livre, apesar dos flagelos.
Nos últimos dias, mais e mais pessoas entregaram voluntariamente seus dados na internet. Todas, absolutamente todas as atividades cotidianas foram voluntariamente transferidas pra rede mundial de computadores sob a justificativa de se evitar contágio e consequente quebra do sistema de saúde com a morte de alguns milhões. Aulas, reuniões, compras, atividades recreativas e laborativas, conversas familiares cotidianas, todas sendo realizadas de dentro de casa e alimentando o algoritmo com nossas compras, gostos, hábitos, opiniões, desejos. A impressão que se tem é que a vida real vai sendo substituída por uma representação holográfica, pela mediação das máquinas de comunicar, na qual as relações comerciais, sobretudo, precisariam ser mantidas. Mesmo aqueles resistentes à tecnologia, deixaram de lado esta resistência por um bem maior, e se entregaram de corpo e alma ao espaço virtual para tentar enfrentar a quarentena com menos solidão. Agora que nossos vínculos sociais ficaram de vez reduzidos ao teclado e ao touch; que não podemos sequer apertar a mão de um amigo diretamente; o que restará de nossa subjetividade? De nossas crianças que não verão teatros, ou aulas, ou contações de histórias, ou florestas, mas apenas telas?! Mas não há o que argumentar contra isso, alguns dirão. A realidade não-virtual nos é apresentada agora como perigosa, potencialmente mortal. Por que não usar tais ferramentas em um momento de emergência como este? Certamente que não devemos recusar a tecnologia agora, mas não usá-la indiscriminadamente, pois a sociedade de controle não criou o vírus, mas se aproveita dele para impôr-se como realidade distópica ainda maior. Seria possível usarmos a tecnologia a nosso favor? Quais ferramentas autônomas temos ao nosso dispôr para dizer ‘fucking google’ ? Como desalienar a tecnologia em prol de uma vida que não seja estruturada pela abstração? Creio que é um pouco isso que poderíamos pensar agora.
É útil refletir sobre as medidas que nos estão sendo impostas, pois, como sempre não serão as pessoas que serão “salvas”, mas as instituições financeiras. Sobrará, como de todas as crises, aqueles que têm mais. Até mesmo o pânico pode ser vendável. De tal modo, que se chega a supor corte de salário sem renda mínima ou se ameaça prender as pessoas que estão saindo às ruas, corta-se transporte público pela metade e fecha-se os pequenos comércios, sem que os autônomos tenham qualquer alternativa de subsistência. Aqueles que não morrerem de fome; não entrarem em depressão ou crise de ansiedade desde agora, certamente ainda terão sequelas psicológicas enormes pelos meses de confinamento e mania de limpeza impostos. No horizonte, o aceno do ‘estado de sítio’, permitindo poderes absolutos ao soberano. Nada melhor para evitar uma insurreição do que a ameaça de um vírus mortal, se, durante meses, a população do Chile não saía das ruas em revolta, agora todos se prostram dentro de casa, temendo pelos próximos acontecimentos. E os grupos chilenos que mesmo assim saíram, foram detidos e jogados na cadeia. Na rua não pode aglomerar, mas na prisão pode. E, diga-se de passagem, teorias conspiratórias são tão enganosas quanto desnecessárias, obviamente o vírus não foi criado em laboratório, o que não significa que ele seja “natural”, pois nada é simplesmente natural na relação entre ser humano e natureza, o modo de produção predatório ao qual estamos submetidos cria tragédias e catástrofes, das quais também se retroalimenta, de tempos em tempos. Se não viesse o vírus, as catástrofes já se avizinham há tempos e, algumas, aí já estão.
Todas essas medidas até poderiam parecer uma simples preocupação com a saúde das pessoas, se houvesse contrapartes no sistema de saúde. Mas o que se vê até agora é que simplesmente as pessoas não estão sendo testadas. Isso tem uma dimensão política, evidentemente, porque casos crescentes pressionam o governo a tomar providências e geram revolta. A temeridade diante do sistema de saúde quebrado não deve ser igualada à preocupação com as pessoas no reino do capital, ela apenas lembra que as pessoas ainda estão aí, talvez de um modo um pouco indesejado, e que, se podem trabalhar, podem também se revoltar; que se morrem aos montes sem atendimento, isso pode fazer o castelo de cartas mercadológico, senão ruir totalmente, ao menos perder a aparência sólida. Há uma escolha em se investir na segurança, aprofundando o Estado policial e as medidas de exceção, e não se investir na saúde, no diagnóstico, que seria o primeiro passo para o controle do vírus, e não das pessoas, bem como o tratamento. Se isso arrisca a economia, pode também fomentá-la, com milhares correndo para comprar itens que não precisam e bancos oferecendo empréstimos para “salvar” negócios e endividar pessoas. Já faz tempo que vivemos essa economia da crise, a diferença agora é que o inimigo é invisível e um vírus mortal. É possível prender e monitorar quem está na rua. Mas, de fato, ninguém sabe onde está o vírus. E de tal maneira que isso aprofunda o medo, ninguém sabe quem está ou não contaminado, e o medo obviamente nos impede de agir, impede a solidariedade básica com o outro que é agora visto não como a condição necessária da vida, mas como uma possibilidade de morte. A situação é insólita, um vírus desconhecido para o mundo, os sintomas variam de pessoa para pessoa, é possível ter e ser assintomático, todos são contaminados em potenciais, mas não é possível ter certeza de que se está ou não contaminado. Até o momento em que as pessoas passam a morrer de suspeita. Morre-se não de um vírus, mas de uma suspeita de vírus. “Morreram hoje no Rio de Janeiro três pessoas com suspeita”, dizem os jornais. Não saber se se tem o vírus ou não, ficar em quarentena e reiniciá-la todas as vezes que tiver que sair de casa, um ciclo crescente de angústia.
Esta semana o filósofo coreano Byung-Chul Han afirmou que Zizek está errado em pensar que um vírus poderia abrir uma possibilidade para vencer o capitalismo, por mais que ele deixe clara a falência deste sistema, um vírus não pode fazer uma revolução, na medida que isola e indivudualiza. Um vírus apenas poderia tornar ainda mais forte a sociedade de controle e o estado de exceção. Para ele, todas as medidas restritivas só fortaleceriam o sistema reinante, que ressurgiria ainda mais potente, inspirado nos controles de big data chinês e na obediência confucionista. De fato, não acreditamos que um vírus possa mudar nossa forma de vida, só a luta muda a vida. Mas nós somos daqueles que acreditam na revolta diante das mazelas. Ainda não sabemos o que virá, a maneira como vamos lidar com esta desestruturação profunda é o que agora abre possibilidades, para além do isolamento, para que a vida se imponha ao capital e aos governos.
Aos negacionistas, em especial aos médicos que embarcaram na gripezinha do atleta Jair Bolsonaro, relembro a tira da genial Laerte, citada há poucos dias pelo poeta e guerrilheiro cultural Gregorio Duvivier: a grande ficha está caindo.
A crise está apenas começando. A Covid-19 vitima os pobres de forma brutal, mas também atinge a classe média e os ricos de modo inédito desde a descoberta dos antibióticos. Ave Caesar, morituri te salutant!
Vivemos o início da primeira onda da Covid-19, e as consequências serão dramáticas se não utilizarmos o melhor da ciência. Negar o desastre e minimizar nossa responsabilidade levarão à multiplicação das mortes e a condições graves que ficarão sem tratamento, quando nosso Sistema Único de Saúde for saturado.
Reze fervorosamente pela saúde de nossas enfermeiras e nossos enfermeiros, que diariamente arriscam seus pescoços enquanto o pervertido das flexões de pescocinho vai na contramão do mundo e conclama aglomerações.
A OMS foi explícita: todo esforço precisa ser feito para achatar a curva de infecção, reduzindo mortes e ganhando tempo precioso para que as equipes de saúde lidem com os casos mais graves sem se desorganizarem, estafarem ou contaminarem.
Os danos da explosão viral por transmissão comunitária só poderão ser contidos se praticarmos consistentemente o distanciamento físico e a aproximação virtual. É preciso cessar todas as atividades presenciais não essenciais. É preciso prover água e sabão. É preciso abrir ao povo os hospitais privados. É preciso verdadeiramente agir como católico, evangélico, umbandista, espírita, muçulmano ou ateu: é preciso ser humano.
Também é fundamental impedir que as formas brandas de infecção por Covid-19 se transformem em pneumonia. A hidroxicloroquina tem, sim, potencial para salvar vidas, mas sua eficácia clínica ainda não foi bem estabelecida, e seus perigosos efeitos colaterais precisam ser considerados por médicos prescritores, evitando a automedicação.
Pessoas que já usam esse medicamento precisam ter seu tratamento garantido. É crucial abastecer os estoques, especialmente se a esperança depositada nesse remédio se confirmar.
Em paralelo, é essencial liberar imediatamente os recursos para pesquisa contingenciados nos últimos anos —sobretudo o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico— para financiar o desenvolvimento e produção de testes, diagnósticos, remédios, vacinas, equipamentos de proteção individual e abordagens psicossociais que mitiguem o desespero da população.
É uma vergonha indesculpável que o Brasil ainda não tenha quantidade suficiente de máscaras e testes para a Covid-19. Sem testagem ampla e rastreio minucioso, a infecção seguirá invisível e avançando. Tivemos vários meses para nos preparar —e não fizemos nada.
Uma segunda onda de infecção da Covid-19 é esperada; temos que nos preparar para uma longa batalha. Haverá paralisia da produção de bens, interrupção dos serviços e quebra de empresas. Precisaremos de planejamento estratégico fundado na melhor ciência econômica —não a do rentismo abutre de Paulo Guedes, insensível ao sofrimento, mas a que almeja o verdadeiro bem-estar geral.
O insuspeito direitista Ronaldo Caiado (DEM), médico e governador de Goiás, deu o diagnóstico cabal de Bolsonaro: “Ele deve ter sido contaminado por algum empresário que só enxerga cifrão […]. Está mais preocupado com CNPJ do que com CPF”. Felizmente, porém, sem CPF não existe CNPJ. Mais do que nunca, é preciso amar como se houvesse amanhã.
É óbvio que precisamos de robustos investimentos do Estado para superar o abismo. É o que faz o mundo inteiro. Não se pode cortar salários; ao contrário, precisamos garantir renda mínima. É urgente suspender o pagamento dos juros e encargos da dívida pública e taxar os mais ricos para financiar o consumo dos mais pobres.
Governo, bancos e grandes fortunas devem pagar a conta, caso não queiram ver todo o sistema colapsar. É urgente revogar a PEC 95, do teto de gastos, que impede nosso desenvolvimento. A crise nos encontra despreparados, sucateados, entorpecidos de neoliberalismo tosco e sádico.
Pagamos à vista a dívida acumulada do descaso irresponsável com saúde, educação e ciência. Os ataques irracionais feitos a nossas universidades estão custando caríssimo. Se na última década tivéssemos investido os recursos previstos para ciência e tecnologia, saúde e educação, como fizemos entre 2003 e 2010, não estaríamos nesta situação.
Mudar a estratégia é urgente. O futuro da ciência brasileira é o futuro do Brasil. É preciso recolocar o país nos trilhos. Ainda dá tempo de acordar desse pesadelo.
Será que ainda dá tempo? Ou aceleraremos de olhos fechados rumo ao precipício final? Estaremos numa bifurcação da história, no umbral de uma transição de fase, num ponto de mutação?
De olhos fechados, ergo os braços e encho lentamente os pulmões, inalando suavemente… suavemente… e seguro a respiração: 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, 0… e então me entrego completamente, até afinal explodir o corpo inteiro e me desintegrar no cosmos, como se o vulcão de Krakatoa tivesse entrado em erupção e eu fosse um jorro de átomos rumo ao infinito, liberto num urro primitivo nascido das profundezas do ser… enfim a paz do Big Bang. Enfim o amor cósmico. Tempo e espaço cessam e entendo que voltei para casa. Enfim…
Não sei quanto tempo passa. Dez minutos, se tanto? Quando o ego finalmente ressurge da experiência e posso novamente conversar comigo, manifesta-se a visão do horror… vejo mortandade global, hospitais lotados, favelas fúnebres, presídios infernais, valas comuns e cortejos de ataúdes sem fim, enquanto líderes políticos e religiosos negam a realidade e pedem dízimo… tristeza, abandono, desamor.
Vejo a peste tomando o planeta e colocando o capitalismo predatório de joelhos, enquanto a chacota necrofílica do presidente promove a contaminação. Vejo médicos ideologizados se descolando da realidade, vejo milicianos em pulsão de morte achacando o povo à vontade, vejo o esvaziamento das cidades. Mercados financeiros derretendo, produção industrial cessando, alimentos e remédios escasseando. O caos chegando.
Uma planta, um cogumelo, um velho. Um enorme sapo coaxando sob uma molécula semelhante à serotonina. Uma voz grave que diz: 5-metoxi-dimetiltriptamina. Vejo um pulmão desinflamado. Um doente acamado. Um homem barbado sorrindo. Será a cura vindo?
EUA, Europa, Rússia e Índia reagiram tarde à Covid-19, para salvaguardar a sociedade piramidal neoescravista. O México vai na mesma direção, mas pela esquerda, enquanto ao Brasil neofascista cabe ser o laboratório mais radical da tentativa desesperada de salvar o privilégio do 1% mais rico.
Somos bucha de canhão da pandemia, balão de ensaio da anomia, experimento deliberado de extermínio generalizado. Não por acaso o real foi a moeda que mais se desvalorizou nas últimas semanas. Ao império interessa que o Brasil se arrebente. Fica mais fácil explorar a gente.
Trump e Bolsonaro apostam que as pessoas toparão morrer para manter vivas as engrenagens da Matrix. Pedem que todos continuem a vender bem barato seus corpos, tempo, mente, sangue e respiração, para que os mais ricos fiquem ainda mais ricos, e que tudo o mais vá para o inferno.
Perdidamente viciados em dinheiro —esse liberador de dopamina tão poderoso quanto a própria cocaína—, os bilionários entram em pânico pela antecipação da síndrome de abstinência. Querem acelerar a economia, sem se importar com as consequências. Insones, trêmulos e taquicárdicos, já não sabem sonhar o que jaz adiante.
Querem mais do mesmo, até a última dose. Entre a nova era e o desmame do dinheiro, preferem a morte. Alheia, evidentemente. É por isso que o grande capital, que sempre se nutriu da ciência, desacoplou-se dela quando os alertas sobre catástrofes antropogênicas se tornaram incômodos. O negacionismo energúmeno da extrema direita é a soma da avareza com um profundo analfabetismo científico.
Só que dessa vez não vai colar. “Deu ruim.” Assim como na overdose de cocaína, um pouquinho mais de droga será fatal. O colapso econômico pode nos levar rapidamente ao cenário Mad Max se a lógica de predadores contra presas não for superada.
Pode até ser que no último instante a ciência venha a salvar os mercados do nocaute, soando o gongo redentor com uma descoberta milagrosa, justo quando o último assalto estiver quase no fim…. mas a esta altura é improvável que o socorro chegue a tempo.
Foram anos de descaso, desmonte e sabotagem. O capitalismo abusou da regra três. O oportunismo criminoso das hienas financistas está sucumbindo por falência múltipla de órgãos.
Depois da negação vêm assassinato e suicídio. Quando a invasão nazista fracassou em Stalingrado, o grande genocida Adolf Hitler freou a retirada das tropas alemãs para permitir aos psicopatas de suástica executar todos os judeus e demais indesejados. E então, quando se esgotaram todas as ilusões do monstro, ele simplesmente se matou.
Em meio à hecatombe em curso, o aspirante a genocida BolsoNero continua a repetir que não podemos parar. “O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali. Ele sai, mergulha e não acontece nada com ele. Eu acho até que muita gente já foi infectada no Brasil, há poucas semanas ou meses, e ele já tem anticorpos que ajuda a não proliferar isso daí”, declarou o presidente.
É evidente que fala de si, verme infectado saído do esgoto da ditadura. Imerso em Tânatos, quer imolar o Brasil inteiro, liderando a casa grande na tentativa de massacrar a senzala. Mas são os ricos que precisam dos pobres. Chegou a hora do despertar d@s escrav@s.
O simulacro econômico nunca foi tão irreal, e o que parecia sólido se desmancha no ar. Quebra das cadeias produtivas, desemprego, depressão econômica. Como disse o jornalista clarividente Pepe Escobar, o dólar vai virar papel higiênico verde. Game over…
Roberto Justus, Junior Durski e Osmar Terra vão pagar caro pelo que disseram. Serão varridos pelas evidências, e o povo vai cobrar a fatura. Como no filme “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), do cineasta apocalíptico Rogério Sganzerla, “quem tiver de sapato não sobra…”.
A síndrome respiratória aguda grave e a maligna austeridade econômica vão ceifar milhares, milhões, talvez dezenas de milhões de vidas. Talvez mais… não estamos preparados para tanta tristeza, para o trauma em escala global.
Como cansou de alertar o xamã ianomâmi Davi Kopenawa, o céu está caindo sobre as nossas cabeças. Remédio de índio é duro, mas funciona. Chegou a hora da purga. Como avisou a cartunista e transxamã Laerte, a grande ficha está caindo.
Agora só nos resta compreender que vida e morte são duas faces da mesma ficha. Quando a poeira baixar, daqui a meses ou mesmo anos, teremos a chance de construir um sistema econômico justo, sustentável, racional e amoroso. Menos dopamina e mais serotonina.
Baixada a febre do vício em dinheiro e da pressa de correr rumo a lugar nenhum, talvez tenhamos a chance de recomeçar. Talvez, apenas talvez…
Não podemos perder essa oportunidade, se houver. Veremos a redução da poluição e a desaceleração do aquecimento global. Virá uma nova ordem, bem mais chinesa do que norte-americana. Emergirá um Sistema Único de Saúde planetário. Ubuntu.
Que venha então a cura. Finalmente teremos a chance de olhar para dentro e, com toda a sabedoria acumulada desde a aurora paleolítica, criar uma sociedade digna de tod@s human@s e demais animais, plantas, fungos, algas, bactérias… e vírus.
A mudança está apenas começando. Depois da pós-verdade, só interessa a verdade. Precisaremos de Buda, Cristo e todas as filhas de Gandhi.
Precisaremos de Aqualtune, Akotirene, Dandara e Zumbi. Precisaremos de Ester Sabino, Jaqueline de Jesus e Ana Tereza Ribeiro de Vasconcelos. Precisaremos tratar o trauma. Despertar do samsara. Amar a alma. Cessar o carma. Render-se ao darma. Em português moderno: surrender.
Pode haver algo de indecoroso em se projetar pela imaginação no período pós-crise, enquanto os trabalhadores da área da saúde estão, como se diz, “na linha de frente”, milhões de pessoas perdem seus empregos, e muitas famílias em luto não podem sequer enterrar seus mortos. E entretanto, é agora que devemos lutar para que, uma vez terminada a crise, a retomada da economia não traga de volta o mesmo velho regime climático que temos tentado combater, até aqui em vão.
De fato, a crise sanitária está embutida em algo que é, não uma crise – algo sempre passageiro –, mas uma mutação ecológica duradoura e irreversível. Temos boa probabilidade de “sair” da primeira, mas não temos nenhuma chance de “sair”da segunda. As duas situações não têm a mesma escala, mas é muito esclarecedor relacioná-las. Em todo caso, seria uma pena não aproveitarmos a crise sanitária para descobrir outras formas de adentrar a mutação ecológica, sem ser às cegas. A primeira lição do corona virus é também a mais espantosa. De fato, ficou provado que é possível, em questão de semanas, suspender, em todo o mundo e ao mesmo tempo, um sistema econômico que até agora nos diziam ser impossível desacelerar ou redirecionar.
A todos os argumentos apresentados pelos ecologistas sobre a necessidade de alterarmos nosso modo de vida, sempre se opunha o argumento da força irreversível do \”trem do progresso\”, que nada era capaz de tirar dos trilhos, \”em virtude\”, dizia-se, \”da \”globalização\”. Ora, é justamente seu caráter globalizado que torna tão frágil o famoso desenvolvimento, o qual, ao contrário,pode sim ser desacelerado e finalmente parado. De fato, não são apenas as multinacionais ou os acordos comerciais ou a internet ou as agências de turismo que estão globalizando o planeta: cada entidade desse mesmo planeta tem sua maneira própria de integrar os outros elementos que compõem, em um dado momento, o coletivo. Isso é verdade para o CO2,que aquece a atmosfera global por sua difusão no ar; para as aves migratórias,que transportam novas formas de gripe; mas também é verdade, como estamos dolorosamente reaprendendo, para o coronavírus, cuja capacidade de ligar \”todos os humanos\” passa pela via aparentemente inofensiva dos nossos perdigotos.
Contra a globalização, uma globalização ainda maior: se o objetivo é conectar bilhões de humanos, os micróbios estão aí para isso mesmo! Daí esta incrível descoberta: havia de fato no sistema econômico mundial, escondido de todos os olhares, um sinal de alarme vermelho vivo, junto a uma grande alavanca de aço que cada chefe de Estado podia puxar de uma só vez para fazer parar \”o trem do progresso\” com um estridente guincho dos freios. Se, em janeiro, o pedido para fazer uma curva de 90 graus que nos permitisse aterrizar ainda parecia uma doce ilusão, agora ele se torna muito mais realista: qualquer motorista sabe que para ter alguma chance de se salvar fazendo uma rápida manobra no volante sem sair da estrada é melhor primeiro desacelerar.
Infelizmente, não são só os ecologistas que veem nessa pausa súbita no sistema de produção globalizado uma grande oportunidade de fazer avançar seu programa de aterrissagem. Os adeptos da globalização, aqueles que, em meados do século XX, inventaram a ideia de escapar das restrições planetárias, também veem nela uma excelente oportunidade de se desvencilhar ainda mais radicalmente do que resta de obstáculos à sua fuga para fora do mundo. Para eles, essa é uma oportunidade boa demais de se livrarem do resto do Estado social, da rede de segurança dos mais pobres, do que ainda resta de regulamentação contra a poluição e, mais cinicamente ainda, de se livrarem de toda essa gente em excesso que atulha o planeta.
Não esqueçamos, de fato, que devemos assumir que esses adeptos da globalização estão conscientes da mutação ecológica, e que todos os seus esforços nos últimos 50 anos consistiram em negar a importância das mudanças climáticas e,ao mesmo tempo,em escapar de suas consequências, construindo fortalezas que possam garantir seus privilégios, bastiões inacessíveis àqueles que terão que ser deixados para trás. Eles não são ingênuos a ponto de acreditar no grande sonho modernista da partilha universal dos \”frutos do progresso\”; a novidade é sua franqueza: eles agora sequer se preocupam em fazer as massas acreditarem nessa ilusão. São eles que aparecem todos os dias na Fox News e que estão no poder de todos os estados negacionistas do planeta,de Moscou a Brasília e de Nova Delhi a Londres e Washington. O que torna a situação atual tão perigosa não são apenas as mortes que se acumulam diariamente, mas a suspensão geral de um sistema econômico que proporciona, àqueles que querem ir ainda mais longe em sua fuga para fora do mundo planetário, uma excelente oportunidade de \”recolocar tudo em questão\”.
Não devemos esquecer que o que torna os adeptos da globalização tão perigosos é que eles sabem que perderam, sabem que a negação das mudanças climáticas não poderá continuar indefinidamente, que não há mais nenhuma chance de conciliar seu \”desenvolvimento\” com os vários “envelopes” do planeta com os quais a economia terá que se haver mais cedo ou mais tarde. Isto é o que os torna dispostos a tentar de tudo para se aproveitar mais uma (última?) vez das condições excepcionais, para poder durar um pouco mais e proteger a si próprios e aos seus filhos. A \”suspensão do mundo\”, esta frenagem, esta pausa imprevista, dá-lhes a oportunidade de fugir mais depressa e para mais longe do que jamais imaginaram.Os revolucionários do momento são eles. É aqui que devemos agir. Se a oportunidade serve para eles, serve para nós também. Se tudo pára, tudo pode ser recolocado em questão, infletido, selecionado, triado, interrompido de vez ou, pelo contrário, acelerado.
Agora é que é a hora de fazer o balanço de fim de ano. À exigência do bom senso: “Retomemos a produção o mais rápido possível\”, temos de responder com um grito: “De jeito nenhum!”. A última coisa a fazer seria voltar a fazer tudo o que fizemos antes.Por exemplo,outro dia, mostraram na televisão um floricultor holandês, os olhos cheios de lágrimas, porque teve que jogar fora toneladas de tulipas já prontas para serem embarcadas: não podia mais enviaras tulipas de avião para os quatro cantos do mundo porque não tinha clientes. Só podemos lamentar, é claro; é justo que ele seja compensado. Mas então a câmera recuou, mostrando que suas tulipas são cultivadas hidroponicamente, sob luz artificial, antes de serem entregues aos aviões de carga no aeroporto de Schiphol, sob uma chuva de querosene. O que justifica a dúvida: \”Será realmente útil continuar esta forma de produzir e vender esse tipo de flores?”. Uma coisa leva a outra: se cada um de nós começarmos a fazer esse tipo de pergunta sobre cada aspecto de nosso sistema de produção, podemos nos tornar efetivos interruptores da globalização – tão efetivos, pois somos milhões, quanto o famoso coronavírus em sua maneira única de globalizar o planeta. O que o vírus consegue com a humilde circulação boca a boca de perdigotos–a suspensão da economia mundial –nós começamos a poder imaginar que nossos pequenos e insignificantes gestos, acoplados uns aos outros, conseguirão: suspender o sistema produtivo. Ao nos colocarmos esse tipo de questão, cada um de nós começa a imaginar “gestos barreira”, mas não apenas contra o vírus: contra cada elemento de um modo de produção que não queremos que seja retomado. Não se trata mais de retomar ou de transformar um sistema de produção, mas de abandonar a produção como o único princípio de relação com o mundo.
Não se trata de revolução, mas de dissolução, pixel por pixel. Como mostra Pierre Charbonnier, após cem anos de um socialismo que se limitou a pensar a redistribuição dos benefícios da economia, talvez seja o momento de inventar um socialismo que conteste a própria produção. É que a injustiça não se limita a penas à redistribuição dos frutos do progresso, mas à própria maneira de fazer o planeta produzir frutos. O que não significa decrescer ou viver de amor ou de brisa, mas aprender a selecionar cada segmento deste famoso sistema pretensamente irreversível, a questionar cada uma das conexões supostamente indispensáveis e a experimentar, pouco a pouco, o que é desejável e o que deixou de sê-lo.
Daí a importância fundamental de usar este tempo de confinamento imposto para descrevermos, primeiro cada um por si, depois em grupo, aquilo a que somos apegados, aquilo de que estamos dispostos a nos libertar, as cadeias que estamos prontos a reconstituir e aquelas que, através do nosso comportamento, estamos decididos a interromper. Quanto aos adeptos da globalização, esses parecem ter uma ideia muito clara do que querem ver renascer após a retomada: a mesma coisa, só que pior, com a indústria petrolífera e os gigantescos navios de cruzeiro como bônus. Cabe a nós opor a eles nosso contra-inventário.
Se, em apenas um ou dois meses, bilhões de humanos somos capazes, ao apito do árbitro, de aprender o novo \”distanciamento social\”, de nos afastar uns dos outros para sermos mais solidários, de ficar em casa para não sobrecarregarmos os hospitais, podemos perfeitamente imaginar o poder transformador desses novos gestos, barreiras erguidas contra a repetição de tudo exatamente como era antes,ou pior, contra uma nova investida mortífera daqueles que querem escapar de vez à força de atração da Terra. Como é sempre preferível acompanhar um argumento com um exercício, proponho este a seguir, derivado dos procedimentos do consórcio Oùatterrir, que submeto ao discernimento dos leitores até que seja possível apresentar uma versão digital aceitável. Aproveitemos a suspensão forçada da maior parte das atividades para fazer um inventário daquelas que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas.
Responda às seguintes perguntas, primeiro individualmente e depois coletivamente:
1ª pergunta: Quais as atividades agora suspensas que você gostaria de que não fossem retomadas?
2ª pergunta: Descreva por que essa atividade lhe parece prejudicial/ supérflua/perigosa/sem sentido e de que forma o seu desaparecimento/suspensão/substituição tornaria outras atividades que você prefere mais fáceis/pertinentes. (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 1).
3ª pergunta: Que medidas você sugere para facilitar a transição para outras atividades daqueles trabalhadores/empregados/agentes/empresários que não poderão mais continuar nas atividades que você está suprimindo?
4ªpergunta: Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que fossem ampliadas/ retomadas ou mesmo criadas a partir do zero?
5ª pergunta: Descreva por que essa atividade lhe parece positiva e como ela torna outras atividades que você prefere mais fáceis/ harmoniosas/ pertinentes e ajuda a combater aquelas que você considera desfavoráveis.
(Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 4).
6ª pergunta: Que medidas você sugere para ajudar os trabalhadores/empregados/agentes/empresários a adquirir as capacidades/meios/receitas/instrumentos para retomar/ desenvolver/criar esta atividade?
Surpreende a força do Coronavírus para fechar lojas, interromper a produção industrial – em alguns países – impor um isolamento social com prejuízo econômico ponderável. O Coronavírus fez real o sonho de muitos militantes revolucionários interrompendo a circulação de mercadoria, estabelecendo uma pausa indefinida na opressão do trabalho e na realização do lucro a partir do modelo de produção. Também fez realidade, no Brasil e em outros lugares, o que muitos economistas progressistas propunham em fóruns de debate ou cátedras universitárias, a aprovação de uma renda básica com 100 milhões de destinatários, num congresso conservador que há poucos dias atrás teria ignorado a proposta, ou considerado ela “comunista”.
O
Corona talvez até seja capaz de derrubar presidentes e exigir
confiscação de infraestrutura privada, pondo a sociedade toda em
função da sua restrição. Ele mostra, como força da
natureza-sociedade, que o capitalismo não é eterno mas frágil,
produto de relações, como a própria vida humana e os arranjos com
que ela funciona e se organiza.
Nesse ímpeto
mobilizador, até faz pouco tempo impensável, as pessoas sentem a
presença do medo de ser contagiados ou de contagiar pessoas
queridas, mas também respondem a algo de outra ordem, como uma
responsabilidade coletiva, como se o mundo de repente virasse um
corpo só, uma verdadeira comunidade, uma sociedade no sentido
sociológico clássico, onde uma moral é compartilhada e, a partir
dela, encontramos também um sentido e um direito que nasce desse
consenso do comum. Trabalhadores da saúde, da produção de
alimentos, e outros, se arriscam, como se estivessem indo para a
guerra. Ir no mercado, para alguns, é vivido como excursão militar.
Para outros a guerra é a continuidade do trabalho, da busca de
sustento, que não dá trégua.
Essa coesão social,
também nacional, da cidade, do bairro, da família, se impõe contra
a doença e contra qualquer opção individual que vá em direção
oposta, sem importar interesse de capitalista particular algum, ou
qualquer liberdade que antes era inquestionada. Essa repentina
\”sociedade\” não é geral, mas existe com força inusitada
entre muitos de nós. O repúdio social contra empresários que
mantêm os locais de trabalho funcionando é significativo, também a
rejeição generalizada, em alguns espaços sociais, contra quem não
cumpra com a recomendação de não circular, ou outros cuidados.
Esse consenso corporizado voluntariamente, chama muito a atenção
numa sociedade onde a ação coletiva e luta social contra a
exploração, a injustiça, contra as condições precárias de
trabalho que organizam a vida econômica, se encontravam muito
diminuídas ou eram praticamente inexistentes em escala
significativa.
A pandemia conseguiu
uma mobilização que parecia impossível, e talvez ainda pareça, se
o foco dela fosse acabar com o capitalismo, com a exploração
abusiva e um modelo social que reduz a expectativa de vida das
classes trabalhadoras e também mata, se vemos as consequências e
efeito da depredação de florestas e ambientes naturais, modos
contaminantes de produção e devastação, e as mortes invisíveis e
imensuráveis produto da depressão, do tédio, do risco no trabalho
ou na vida metropolitana, se disciplinando ou não ao que é dado.
O capitalismo também
mostra sua força, nesse contexto, e consegue reabrir lojas em alguns
lugares, consegue ainda lucrar com a pandemia e manter formas de
produção de valor ativas, ou descobrindo novas, tornando a pandemia
seu laboratório de ensaio de novas formas de expansão. A sua força
está principalmente na sua aceitação, onde suas mortes não são
contabilizadas. Acreditamos no feitiço das mercadorias como
acreditamos na letalidade de um vírus, mas não nos organizamos
coletivamente contra ela -mais do que marginalmente- mas a favor
dela, porque o sistema conseguiu colocar a continuidade da
sobrevivência ao seu favor. Pensamos que trabalhamos para viver, e
não pra morrer.
Não temos um social
organizado com sua moral e lei contra o capitalismo e o modelo atual
de organização da vida, numa verdadeira naturalização do seu
funcionamento. Os corações sensíveis que convocam hoje às
práticas coletivas de boa higiene, a ficar em casa para desacelerar
o contágio, dando existência, assim, à tal de sociedade coesa,
irão se desagregar pela própria lógica individualizadora da vida
sob regime da mercadoria, diluindo o vínculo comum que hoje aparece,
circunstancialmente, na proteção da vida biológica ameaçada por
um vírus. Logo depois de enterrar os mortos o mundo irá se
incorporar novamente às fileiras organizadas pelo capital, na
posição que toque a cada um.
A efetividade do
fenômeno Coronavírus para mobilizar uma sociedade, mesmo que essa
mobilização se mostre incompleta e, no Brasil, até contestada pela
cúpula do governo, é a efetividade do medo. Medo instintivo diante
de ameaça invisível, que não discrimina ninguém, embora os meios
de tratar sejam sim determinados pela condição social e econômica,
de forma diferenciada. O medo mostra que a sociedade, a existência
biológica e social dos seus integrantes, pode existir como ação
comum que se sobrepõe ao interesse do capital, pelo menos de forma
momentânea. Isso não era tão fácil de imaginar possível, longe
das revoluções do passado, sem revoluções futuras prefiguradas,
num momento onde o conceito de “programa” se mostra obsoleto,
tanto quanto qualquer imaginação teleológica sobre caminho de
mudança social.
Como exercício
epistemológico e político, a reação ao coronavírus permite
imaginar que outros desafios coletivos serão possíveis. Sem ter
sido motivada pelo curso de um processo revolucionário, a máquina
social que é fonte de produção de muita injustiça, parou. E mesmo
que isso não possa ser comemorado, porque imediatamente resulta em
desamparo e dificuldades materiais mais pesadas para os mais pobres,
a reflexão sobre a possibilidade concreta dessa máquina sem comando
centralizado parar, tem que ser anotada. Sua fortaleza, necessidade,
inexorabilidade pode ser questionada de outra maneira, e seus
limites, visíveis também num momento de crise social, podem nos
levar a pensar sobre a possibilidade de alternativas à ordem que ela
impõe.
A ordem social
continua se impondo inclusive quando seu funcionamento normal está
suspenso. Não estamos diante do fim da máquina que organiza o mundo
social, econômico e cultural, mas há transformações em curso, e é
necessário pensar uma posição autônoma e anticapitalista que
possa pelo menos fazer a sua própria leitura do processo de
re-organização que viveremos enquanto a pandemia é enfrentada.
Esse problema, que se perde quando o enfrentamento da pandemia nos
impõe fazê-lo com as estruturas atuais de poder político e
organização econômica e social que, na realidade, não são
alheias ao cenário antropocênico, ou do capitaloceno1,
que nos levou até ela.
Certamente o
capitalismo saberá como sempre até aqui se metamorfosear e mutar
para continuar sua expansão e valorização contínua. De fato, a
pandemia também mostra capacidade de acelerar tendências num
cenário de renda básica para os pobres, capitalismo de plataforma,
monitoramento e controle expandido, crescimento do mercado online,
incluindo serviços básicos como educação e saúde, e com
descentralização de funções a todo nivel, inclusive dispensando
estruturas edilícias para o funcionamento empresarial. Estão se
concretando, aceleradamente, as formas de consumo que alguns setores
do capital projetavam fazia tempo.
Na mobilização
social, ouvimos vozes necessárias que, com certa inocência,
confirmam que não há preparo estatal para lidar com uma pandemia. A
destruição do sistema público estatal de saúde, a mercantilização
dos serviços, mostram que o desenvolvimento de um capitalismo sem
responsabilidade pela reprodução das pessoas que produzem e
consomem, não permite enfrentar um problema de saúde pública como
o atual. A consequência dessas vozes é o chamado para que seja
criado algo que, preocupantemente, o modelo atual de sociedade não
tem condições de proporcionar.
É de fato já
caducada a ideia de que uma sociedade organizada pelo trabalho criará
um sistema de previdência, educação, saúde, bem estar. O mesmo
não é viável nem desejável, se pensamos os problemas associados a
esse modelo nas sociedades que estiveram próximas de alcançá-lo.
Foi contra essa sociedade que as rebeliões estudantis e operárias
das décadas de 1960 e 1970 na europa, ou o desmoronamento interno da
União Soviética aconteceram. O capitalismo que vemos hoje é a
reação às lutas e transformações que vieram depois da
desestruturação de um modelo mais rígido, localizado, relacionado
com uma cultura, hierarquizada e burocratizada de funcionamento, e
uma estética árida e autoritária de disciplinamento enquadramento.
Qual será o
capitalismo que teremos então depois da pandemia? Ele nascerá do
apocalipse de corpos empilhados e já estava aqui, porque não é do
nada que uma pandemia nasce e se reproduz. Ela aproveita os canais de
circulação da sociedade mundial, e estas foram construídos pelo
desenvolvimento capitalista. A pergunta que cabe, ao mesmo tempo, é
sobre o lugar para a revolta, nesse capitalismo transformado, e sobre
os contornos para compor junto com ela, buscando potenciar sua força
e capacidade de enfrentar a máquina não apenas mobilizados pelo
medo à morte, mas também pela busca de outras formas de vida para
além do capital e a destruição autoritária e domesticadora que
este traz junto.
Na leitura do pós
coronavírus se entrevê facilmente a expansão da China, o
retrocesso da Europa, atores num mundo interligado. Mas esses poderes
se organizam também em função de lógicas externas a eles, que
atravessam todo, nas determinações de um mundo social onde a
sociedade e o Estado desaparecem ou são funcionalizados pelo peso de
formas precárias de sustento, formas concretas de usurpação do
tempo de trabalho, formas cada vez mais onipresentes de criação de
valor e subordinação da vida. A pandemia não interrompe mas
acelera, de fato, as novas formas de lucro com vidas a merce do
trabalho precário para subsistir, num deserto de indivíduos
endividados, dopados, violentados pelas autoridades e, ao mesmo
tempo, sem que a auto organização ou a organização social tenha
condições de existir.
Pandemia na
América do Sul
No nosso mundo
político latinoamericano, a pandemia do coronavirus terá efeitos na
política que administrará o novo capitalismo nascente. O arranjo
neoliberal, produto das transformações da segunda metade do século
XX, e que progressistas, conservadores e neoliberais administraram na
região configurando um regime estável entre 1990 e 2010, com sinais
de questionamento e crise anteriores à pandemia, será transformado.
Os trabalhadores, os
precários, os invisíveis não tem hoje representação política
nesse jogo de elites governantes. Mas sua força continua sendo
fundamental para o andamento de tudo, como confirmamos nesses dias,
na incapacidade do capitalismo de dispensar o trabalho, não apenas
em termos produtivos mas também subjetivos. Cabe entender, por
tanto, qual será o lugar dos setores mais vulneráveis a morrer, por
depender de sistemas de saúde precários e por serem obrigados pelas
condições a continuar se expondo ao vírus em transporte e
habitações sobre lotadas. A direita política tem interagido e
inclusive movilizado esses setores melhor que ninguém, mas
estimulando um convívio violento, o descarte dos considerados fracos
e, no contexto da pandemia, com uma desimplicância sacrificial.
No Chile onde
existia um processo de mobilização antineoliberal em curso, a
mobilização produzida pelo efeito coronavírus mostra um caráter
ambíguo, ao mesmo tempo revelando uma luta compartilhada para frear
uma ameaça viral, num alinhamento entre estado e sociedade
momentâneo que estava pouco tempo atrás interrompido, mas também
como empoderamento do Estado antes questionado, executando com seus
braços autoritários o controle das cidades, garantindo, agora no
mesmo sentido que os bons corações cuidadosos, o encerramento da
circulação, punindo desobediência com as recomendações
sanitárias transformadas em normativas estatais.
Vemos no Chile um
poder estatal clássico, garante da ordem pública, aproveitando o
coronavírus contra a recente mobilização, e recuperando poder de
iniciativa, tanto para adiar o referendo constituinte, como para se
apresentar como Estado-pai que cura, defende a saúde da população,
fecha fronteiras e higieniza praças e ruas. As advertências do
Agamben2,
sobre a substituição do terrorismo pela pandêmia, funciona bem
para entender como um estado questionado recupera credibilidade. As
brigadas autônomas de saúde que cuidavam dos feridos no confronto
com a polícia, na Praça da Dignidade, hoje lutam junto com as
instituições estatais contra o Coronavirus, ou se desmovilizam.
Na Argentina
encontramos um poder estatal dando as cartas e com a maior
legitimidade possível, de mãos dadas com a oposição e fechando
“la grieta” de antagonismo político que o kirchnerismo de Néstor
e Cristina tinham como eixo central na sua comunicação cotidiana. O
novo peronismo de Alberto Fernández, definido por ele mesmo como
“progressismo liberal”, tem força política para governar,
controlar, e até para errar, numa sociedade coesa pela luta contra a
pandemia que está alinhada politicamente com o governo.
No
Brasil a situação é completamente diferente. As atitudes do
Bolsonaro o colocam no lugar do caos e o enfrentamento com o consenso
coletivo anti Coronavirus. Seu papel tem sido ampliar a desordem, com
irresponsabilidade e omissão que causarão mortes e que tem recebido
o repúdio de situação, oposição, atores externos. No dia 26 de
março, um mês depois do primeiro caso detectado oficialmente,
quando se espera uma subida vertiginosa entre os casos
contabilizados, a comunicação oficial lançou a campanha “Brasil
não pode parar”, chamando a voltar ao trabalho, enquanto o
presidente reforça a ideia de que a gripe não deve ser levada a
sério, e estimula a realização de carreatas pelo país inteiro, a
favor da reabertura dos comércios.
Debochado
pela sociedade ilustrada, que se encontra em quarentena, Bolsonaro
consegue vários objetivos, sem que os panelaços dessa sociedade
urbana, ex votante do PT e outros partidos, “civilizada”, e
ciente dos perigos do coronavírus o afete. Bolsonaro ocupa o centro
da atenção, por um lado, e por outro consegue chegar a milhares de
trabalhadores precários, desempregados, os que vivem de bicos e
trabalho sem nenhum tipo de vínculo, sem capacidade de realizar
quarentena e, por tanto, preocupados pela necessidade de continuar
trabalhando.
Bolsonaro consegue
ao mesmo tempo, se alinhando com o vírus, e não com a luta contra
ele, representar a força de um capitalismo de baixo clero que fica
incomodado com fechar as portas, e com uma multidão ingovernável de
trabalhadores que, dado o regime de vida ao que estão submetidos,
não tem o coronavírus como principal preocupação. Lopez Obrador,
no México, e Ortega, na Nicarágua, exploram um papel parecido,
menosprezando o risco e apostando ao misticismo.
A esquerda
revolucionária se sente a vontade, nesse cenário, onde a mudança
social se respira por todo lugar, mas está perdida e sem linguagem
para entender e agir num mundo novo. Está em casa, também,
isoladamente, com repertórios de respostas que não dialogam com o
momento atual. Bolsonaro, ao contrário, interpela o trabalhador que
não pode parar, de fato, e que não parou. Uma greve geral por tempo
indeterminado, que em outro contexto seria um objetivo para abrir
caminhos de empoderamento dos de baixo, hoje praticamente existe de
fato, paralisando a escravidão do trabalho, mas mediada pela
prevenção de contágio, sem orientação ou perspectivas favorável
aos trabalhadores. Não é um dado menor que essa paralisação seja
imposta pelos aparelhos de segurança e legislação estatal,
buscando em cada lugar do território nacional que a lei seja
observada. Uma paralisação total que afete setores estratégicos,
encontraria hoje uma oposição inclusive de setores empresários que
apóiam a luta contra o contágio. A paralisação atual tem um
caráter de pausa, e não de organização distributiva ou
reorganização da produção e organização econômica da vida.
No contexto da
contenção da pandemia, a esquerda não tem força política para
exigir medidas importantes, de cuidado frente ao vírus, de
acompanhamento de pessoas infectadas, de prevenção generalizada,
como seria a desmercantilização dos insumos de consumo e remédios
necessários, sem privilégios e diferenciações no atendimento,
sentando as bases de um sistema mais justo que seja implementado com
controle de baixo e total abertura.
Se
no Chile o coronavírus com sua força trouxe o fim de mobilizações,
assembleias territoriais, enquanto o Estado continua perseguindo
manifestantes da primeira linha com processos judiciais; na Argentina
também o Estado, que se encontrava em crise pela dificuldade de
controlar as variáveis econômicas, recupera sua áurea de
responsabilidade, liderando com a lei na mão, aquela que todos os
argentinos vão se ocupar de cumprir e fazer cumprir a seus
familiares, vizinhos, e qualquer um que passe pela sua frente, em
alguns casos com vigia nas janelas, ou internamente de cada um para
si mesmo, sendo chamado a obedecer, talvez por um período muito
longo por vir, e que será sempre prorrogado.
Colocado
no lugar do desgoverno, no Brasil, a cúpula do Estado se propôs
participar de uma jogada perversa, onde o colapso do sistema e o
disparo das mortes os destruiria, mas uma situação mais controlada
permitirá aumentar a popularidade, num comando irresponsável que dá
lugar a uma crise permanente de governo e desgoverno. Este movimento
joga Bolsonaro numa existência instável e lembra o daqueles milhões
que, por necessidade da barriga e não como opção política, se
arriscam em motos, jazidas de mineração ou trabalhos mal
remunerados. Aqueles que não podem parar pelo coronavírus e
inclusive enfrentam situações de assédio redobrado, não apenas
para continuar trabalhando, mas também sendo obrigados a conviver em
situações de risco de morte e doença na atual situação
pandêmica.
Enfrentamos
hoje uma emergência sanitária onde a prioridade é salvar vidas.
Mas cabe perguntar, para onde vamos? Como é o novo capitalismo que
nasce da destruição do anterior, ou na reorganização dos seus
setores mais dinâmicos, e como se desenvolve a revolta, a luta dos
de baixo e a disputa contra a mercantilização contínua de todos os
espaços da vida e da morte. Na América Latina, presidentes fazem
seus cálculos e jogos polarizando contra o coronavírus ou se
encontrando com o corpo social contra ela. Nos dois casos cabe
perguntar, qual é o lugar que ainda temos para desobedecer, inventar
e construir espaços de liberdade e auto-controle da vida?
1
cf. Jason W. Moore
Anthropocene or
Capitalocene? Nature, History and the Crisis of Capitalism,
2016, PM Press.