Category: Zona de Contágio

  • É tempo de descobrir corpos coletivos – a circulação de covid-19 no Akai Ito, o \”fio vermelho do destino\”

    por: Maria Morita+7

    (este texto foi escrito pela prática de existência entre oito olhares em comum decisão cotidiana de permanecer em relação: é fruto de trocas de impressões, lembranças de infância e relação à distância no presente em pandemia num grupo de whatsapp entitulado \”Irmãos\”)

    Sob o contexto da pandemia viral de covid-19 narramos esses dias que passaram e ainda não vieram; esses dias tão nossos, desse tempo que sempre será de todos os que vivem para ver e contar a pandemia. Nossos corpos irão contar e narrar sobre ela a cada dia, num cotidiano inevitável de praticar sociedade no isolamento físico, transformando o próprio corpo em um coletivo de isolamento vivo de corpos de carne e vísceras com vida. Uma narrativa vai aparecer aos poucos no texto, referência que me leva a narrar nossa prática social de isolamento físico sob aspectos que afetam meu corpo por este relato, que ativam a racialização dos povos asiáticos em território de brasis, a intolerância xenofóbica que surge na guerra semiótica trumpista de \”vírus chinês\” e posicionamentos que se dizem minimamente sérios, mas, ainda assim, não deixam de reproduzir velhos preconceitos do mundo ocidentalizado sobre os povos asiáticos – e, no contexto mais recente, a China.

    Tem sido enorme o compartilhamento de artigos, fontes jornalísticas e posicionamentos de pensadores, intelectuais e pesquisadores das mais diversas áreas acadêmicas reconhecidas como produtoras de pensamento baseados em dados científicos, neutros, objetivos, epistemologicamente testados nos laboratórios de fazer o mundo ocidentalizado pensar sobre a China. Sobre a população chinesa, o Estado chinês, a produção industrial chinesa, a medicina chinesa e as técnicas de controle da população que supostamente estão deixando o mundo escandalizado e maravilhado, ao mesmo tempo. O antigo medo do comunismo chinês e dos autoritarismos asiáticos inventados para os inimigos racializados como amarelos no mundo dos homens brancos, aparece em sutis formulações acadêmicas (no discurso apropriado pela esquerda, também, ehin!) e nas mais escancaradas falas dos caretas mais tacanhos a gritar \”chinesa porca!\” para uma jovem descendente de japoneses.   

    Proponho, então, uma investigação que agacha o pensamento para perceber o corpo e com o corpo atravessado por uma narrativa asiática em pinceladas de preferências que dão pistas sobre uns tipos de corpos que seremos inevitavelmente convocados a praticar em bairro de São Paulo, em bairro de Rio de Janeiro, em bairro de Belo Horizonte e Salvador, em bairro de Campo Grande e Florianópolis, em bairro de cidades do interior dos estados destas e outras capitais, em comunidade indígena nos territórios espalhados por todo um território continental de Brasil, em comunidades rurais, quilombolas e de beira mar. Muitos grupos. Espalhados grupos. Espalhados corpos. Minha intenção, hoje, é perseguir pistas que apontem para encontrar o corpo que desejamos fazer juntos para sobreviver. Fazer sobreviver corpo de gente que pode morrer pelo simples fato de ter circulado no mesmo vagão de metrô com outro corpo de gente.Quero apresentar um modo de como procurar estas pistas nos nossos corpos e com o corpo que me ensinaram a narrar como asiático, amarelo, nipônico, nikkei. 


    O pensamento de cócoras  

    Quando o emaranhado das minhas vísceras se teceram no útero de minha mãe, foi se embaraçando a elas um fio vermelho que sai do meu dedo mindinho. Esse fio foi encapeado em minhas vísceras como se encapeiam fios de cobre retorcidos de uma \”fiação\”. Minha \”fiação\” de veias, vísceras e músculos está emaranhada nesse fio que sai de meu dedo mindinho esquerdo e põe a minha rede de vasos sanguíneos (que passam pelo meu coração e artérias) esticada em uma variação exponencial de pontas múltiplas. Imagine a ponta dupla de um fio de cabelo. Agora imagine a quantidade de pontas conectadas com esse fio que sai de meu dedinho mindinho e se ramifica em uma ponta e mais uma e mais outra, sempre que uma existência aparece. O contrário também acontece: quando uma existência desaparece, desaparece uma ponta que faz com que o fio afrouxe. Como muitas coisas passam a existir e outras passam a deixar de existir todos os dias, o fio e todas as suas pontas mantém o equilíbrio das forças que esticam e afrouxam essa rede que conecta todas as existências com todas as existências. O nome desse fio é Akai Ito ou, traduzindo literalmente, \”fio vermelho do destino\”. Akai Ito é praticamente invisível, poucas criaturas vivas e não vivas, visíveis e invisíveis, humanas e não humanas são capazes de perceber a movimentação sutil e ininterrupta de todas as pontas e entrecruzamentos dessa fiação de múltiplas pontas. Akai Ito conecta em rede tudo o que se movimenta no plano das existências. Seria melhor pôr: o que passa a existir estica Akai Ito para mais uma saída amarrada à ponta dessa nova existência e, então, o que deixa de existir, na verdade, passa a engrossar de novo o fio todo a partir do ponto mesmo em que deixou de existir. Estão me acompanhando? O meu primeiro exemplo de existência (eu mesma) fala do emaranhado encapeado em minhas vísceras, uma existências com coração. Há aquelas existências sem coração (mas com espírito), cuja superfície mantém o vírus ativo por muitos dias (como as superfícies metálicas, plásticas, de madeira, etc…) Há as existências de corpos híbridos.

    É muito complexa a rede Akai Ito, é um destino comum de existência a que ele nos emaranha nas vísceras. Inevitável na medida em que da prática presente, da movimentação do agora, é impossível escapar. Práticas de ancestralidades emergem no presente disposto na rede que existe a insistências desses finos fios vermelhos saindo pelos mindinhos de descendentes da rede infinita. Uma constelação se cruza com meu corpo em cada olhar e respiro de um desconhecido corpo de gente que entrou nos mesmos vagões que entrei. As consequências da movimentação de cada uma e todas as pontas que esticam, puxam, afrouxam de um lado e esticam de outro, enlaçam e modificam voltas e voltas e retorcidas que fazem com que o movimento de agora perpasse uma pessoa que eu sequer cruzei. Um exemplo para pensar como o fio do meu dedinho chega na ponta de uma pessoa que sequer conheço: a transmissão do vírus covid-19 entre corpos de coração pulsante do tipo de existência gente. Mas podemos pensar também que, por exemplo, o tipo de existência gente com quem cruzei andando na calçada da rua é atravessada pela minha movimentação a ponto de passarmos a implicar uma existência que – dali para frente – vai acompanhar essas duas gentes que se cruzam até os tempos mais distantes a partir do instante dessa conexão de aproximação, cruzamento e afastamento de corpos que caminham. A começar pelo tempo dispendido com o encontro que faz com que cruzemos ou não cruzemos todas as outras pessoas com quem vamos nos cruzar durante uma caminhada por alguns quarteirões ou muitos deles. Em 5 minutos a mais de um encontro de padaria numa cidade como São Paulo e já perdemos os instantes de nos encontrar (que seja apenas com um olhar) com uma quantidade enorme de pessoas. Também, faz parte desses 5min. de atraso a possibilidade de ter cruzado com estas e não aquelas pessoas. Há encontros duradouros, há encontros breves, intensos, graves ou pouco perceptíveis, numerosos ou com poucos corpos.

    Cotidianamente há encontros dos mais variados: fortuítos, planejados, ansiados, inexistentes, impossíveis, possíveis. Na circulação dos nossos corpos pela narrativa pandêmica, há um fato inquestionável: um microorganismo de atividade viral denuncia uma conexão tão absurda quanto Aki Ito, ou seja, a conexão entre ser uma existência com coração de gente responsável pela doença que faz um outro coração de gente parar de pulsar sua existência, pelo simples fato de ter segurado a existência de metal de uma barra de metrô. A zona de vizinhança de um grupo de pontas de Akai Ito é um encontro provisório pelo tempo em que as escolhas livres continuarem a relação entre as existências que se avizinham. Um vírus que transforma essa zona de vizinhança em zona de contágio, faz com que a população global passe a ser, toda ela – agora mesmo – a minha (a sua e a nossa) vizinhança de porta. Somos mais vizinhos da China, de Cingapura, de Itália, de EUA, de Japão e de qualquer outro país quanto mais consequências de corpos infectados existirem nos encontros entre as pontas de Aki Ito. Sempre que uma existência de gente deixar de pulsar em Akai Ito, uma ponta de qualquer parte do globo pode ter sido responsável pelo encontro dela com uma atividade viral em plenas condições de adentrar as vísceras de quem encostar nas mesmas existências de metal, madeira, plástico (…).  


     O morcego originário ou o devir racializado?

    Acredito que Akai Ito também seja narrativa potente o suficiente para nos perguntarmos se há como afirmar a origem da atividade atual da mutação de coronavírus. A origem é sempre narrativa e esta narrativa da origem na pulsação do coração que bombeia a existência dos animais vendidos nos mercados chineses não nos dá outro efeito senão o velho hábito de inventar origens, ainda que elas passem a existir. Vejam: não estou questionando os estudos que comprovam em maior ou menor grau a circulação do contágio do novo coronavírus entre as existências que pulsam com coração de morcegos, cobras, porcos, aves e que afetam a fiação da pulsação das pontas \”gente\” em Akai Ito. Apenas gostaria de apontar a necessidade de deixar essa descoberta num plano de perseguição menos importante. Afinal, importa mais o fato de que foi na China a zona de vizinhança em que o vírus foi percebido do que descobrir se – de fato – o covid-19 se originou em território chinês. Hábito de tentar controlar um caminho que seja visível de um certo sequenciamento de atividade viral, que teve um suposto início em território Chinês e aparentemente num certo mercado a céu aberto e \”hábitos de higiene questionáveis\”. Narrar essa origem da atividade viral na versão covid-19 é inventar o povo chinês no corpo racializado do \”Perigo Amarelo\” para significar os corpos da população que ocupa aquele território. Nada muito distante do interesse de construir uma narrativa que encontre eco no neoliberalismo ocidental posicionado em relação a população chinesa. Aí identificados estão os preconceitos com os hábitos alimentares, religião e modo de existir. Não é fortuíto que as manifestações de Donald Trump passem tanto pelo vocabulário empatado na expressão \”vírus chinês\” ou que um tipo de coração de gente que pulsa em Bolsonaro filho tenha passado a vergonha de ser respondido no twitter pela embaixada da China no Brasil. A xenofobia escancarada está em memes ruins sobre sopas de morcego e a este humor barato devemos apenas não nos deixar levar por mitos rasteiros.

    Sabemos, muitos japoneses e muitos nikkeis, que em Akai Ito esse caminho é invisível e, se ele é invisível, praticar a ação de salvar vidas tem a ver com termos percebido como circula um vírus nos nossos fios invisíveis e o que devemos fazer para que os nós (ou nódulos) de Akai Ito sejam desfeitos (já que demos muitos nós nos nossos fios em aproximações e distanciamentos, em pontes aéreas ou aglomerando muitas pontas de mindinho em um mesmo salão de festas de casamento com cantoras famosas, né?). A população global deu esses nós, o vírus apenas nos faz descobrir que há existências que podem atravessar nossos fios invisíveis, presos nas vísceras de nossos mindinhos, com mais rapidez com que nossos corpos conseguem chegar da Itália em algum aeroporto brasileiro. Para nós, brasileiros, o \”vírus veio da Itália\”, para Trump \”veio da China\”, para a população da China veio do mundo invisível. A China é o território de origem da visibilidade que descobriu essa atividade viral, não do próprio vírus.

    Além disso, outra formulação estanque está contagiando a vizinhança que gosta de traçar narrativas para o contexto econômico, social e governamental chinês. Algumas até preocupadas em demonstrar crítica às técnicas de controle de Estados autoritários sobre as populações e, de quebra, sair com uma formulação alinhada com um discurso anti-capitalista. Fofos. Fofos ocidentais e ocidentalizados a ver a China como grande Outro, incapaz de praticar modos libertários (e liberais) para obter uma disciplinarização de corpos contra a transmissão viral. Essa narrativa é muito sutil, nela os povos de diferentes países asiáticos têm sido classificados como os maiores controladores de população (em maior ou menor grau de capitalismo ou comunismo) e, portanto, via essa capacidade de controle sobre as massas doutrinadas encontramos uma das principais explicações para o sucesso do achatamento da curva de transmissão em casos exemplares de uma \”China de Estado forte e autoritário\”, uma \”Coreia controladora da quantidade de corpos testados\”, um \”Japão de hábitos tão higiênicos perto dos porcos chineses que nem precisam de isolamento social\”.

    Ora, em Akai Ito, sabemos que nossa existência implica uma movimentação coletiva que, nesse momento, deve implicar uma ação social de distanciamento e isolamento físico das existências que pulsam como gente. O Japão? Se é um povo mais higiênico que o povo chinês? Não… Vocês não entenderam. Explico de novo: em Akai Ito, descobrir a circulação do vírus no território chinês, nos fez descobrir que nos tornamos vizinhos da China e da Itália e do resto do mundo, todo mundo ao mesmo tempo. Essa descoberta aconteceu no mesmo instante em que se identificou o novo coronavírus como causa da morte de uma ponta de existência que afrouxou a linha que sai puxada do meu dedinho, pois gera o mesmo efeito de morte das existências de gentes e gentes a ocupar as covas do cemitério da Vila Formosa. Akai Ito é mesmo invisível, mas a movimentação que sai do dedinho esquerdo do homem que adoeceu durante o trabalho no mercado a céu aberto de Wuhan, tensionou todas as cordas que saem de todos os nossos dedinhos esquerdos em gentes espalhadas por todo o globo. A circulação de uma existência infectada do outro lado do globo gera efeitos em como o covid-19 circula no transporte público das capitais dos estados de Brasil.                  

     Em entrevista recente publicada na Folha de S. Paulo, Achille Mbembe afirma a democratização do poder de matar. E isso não significa que há uma democratização na possibilidade de permanecer vivo, via direito de acesso irrestrito e universal aos aparelhos de saúde. O filósofo camaronês, define e formula a existência da necropolítica: a prática que age para ter poder de aniquilar existências via técnicas e narrativas que exterminam pessoas racializadas nas colônias, por exemplo. Com o poder político da morte, do apagamento da existência de uma gente e grupos inteiros de gentes, no contexto de uma pandemia, Mbembe observa a potência da circulação de um vírus em que o poder necropolítico está implicado na minha movimentação pelo metrô na semana retrasada como responsável pela morte das vítimas fatais desta semana. 

    Agachando bem para pensar, minhas vísceras não são capazes de narrar a explicação de, na China, o achatamento da curva se dar como um dos casos asiáticos exemplares na contenção da transmissão de corpo para corpo. Mas esta existência sabe que, no Japão, Akai Ito é uma narrativa antiga, tão antiga quanto os povos indígenas do território de Hokkaido, do território de Okynawa (antigos reinos independentes). Nos territórios como estes, muitos povos considerados como minorias étnicas nipônicas não têm os mesmos direitos de saneamento e acesso à saúde como nas províncias em que estão os centros financeiros e produtivos como Tóquio, Hamamatsu ou Shizuoka. Akai Ito é modo de existir sem possibilidade de cair na ilusão de ter como escapar do destino comum de nos transformarmos entre nós que existimos em tudo e tudo o que existe em nós. Inevitável destino presente de, tão simplesmente, ser nós todos enquanto somos existências concomitantes. Akai Ito é prova narrativa de que uns corpos se sabem coletivos, vizinhos, conectados em fiação de ininterrupto movimento, esticamento e afrouxamento. Com um vírus como o covid-19, fica evidente em Akai Ito o quão é fácil perder o controle do efeito de uma simples ação como a de apertar as mãos em cumprimento, abraçar, beijar e, até mesmo, segurar o mesmo objeto. O contato físico do toque é uma vibração de encontro muito intensa em Akai Ito. Cada vez mais intensa fica, na medida em que os encontros perduram e os graus de intimidade fazem avançar ações de proximidade física. A permanência da nossa rede de existências destinadas no mesmo fio vermelho depende, agora, de distanciamento físico como prática de ser comunidade. Há narrativas transmitidas na zona de vizinhança de Wuhan, onde se descobriu a potência da atual vizinhança global. Meu agachamento não saberia perceber que transmissão de narrativa está por trás da capacidade técnica de oferecer testes para a imensa maioria da população, como em Taiwan, Coreia, Cingapura, Vietnã, Hong Kong e outras zonas de vizinhança asiáticas. Afinal, são povos tão diferentes e que se transmitem narrativas de corpos coletivos em outras tantas possibilidades e deuses e entidades e mundos invisíveis que nos cercam.

    No atravessamento da narrativa de Akai Ito que me faz entender a implicação da ação desse corpo como ação coletiva, percebo o surtir do efeito de controle da transmissão do vírus entre um povo como o povo japonês como um inevitável modo de agir para quem vive sem muito segredo uma existência coletiva com as pedras e insetos do quintal; os prédios, asfaltos e túneis de metrô da cidade. Em Akai Ito consigo explicar até uma noção básica do contato físico entre pessoas no Japão: cumprimentar se curvando é uma atitude de respeito com o corpo da outra existência, afinal, é prudente confiar o contato físico de intensidade na fiação e emaranhado de relações de Akai Ito àqueles de maior intimidade e com maior grau de conhecimento do seu corpo. Essa escolha de avançar o grau de contato físico deve ser autônoma e livre escolha de modo de relacionar e conectar a intensidade do fio que sai do meu mindinho ao fio que sai do mindinho de outra existência de gente. Não consigo conceber a possibilidade de definir, assim, os motivos que levam esse efeito ser produzido, aos olhos do Ocidente, em toda a Ásia. Mas gostaria de arriscar um chute.

    ***

    Continuo agachada para chutar que meus irmãos e irmãs produzidos como existência racializada amarela, em diferentes cantos de diferentes territórios asiáticos, transmitem narrativas para existências segundo certo modo de existir que se percebe como uns corpos coletivos circulantes entre um \”sempre nós\”. Algumas vozes nas sociedades europeias, norte-americanas, entre outros territórios ocidentalizados, se narram espantadas, maravilhadas e, até mesmo, críticas, sobre a capacidade dos Estados asiáticos de controle de transmissão viral diretamente ligadas à capacidade de controle de um Estado forte sobre a população. Como se fossem Estados capazes de controlar a população praticamente incapaz de não se render ao controle de dados na internet, sendo facilmente domesticados a ponto de um aplicativo avisar um cidadão de Wuhan que seu vagão de metrô tem potencial de circulação ativa de covid-19. De fato, são irreproduzíveis determinados comportamentos de populações asiáticas em países europeus ou aqui no Brasil. Não nego que a fonte de dados coletados nas redes sociais se transforma, nesses contextos, em técnicas de controle populacional. Mas contra esse controle e formas de fugir dele, cabe ao europeu intelectual não querer que as populações da China se entreguem às suas críticas caretas ou que seja reconhecido por ser mais um que critica Estados totalitários com destreza.

    ***

    Com todo o respeito: acabar com o neoliberalismo colonial (ou o colonialismo neoliberal?) tá bem na ordem do dia para existências intelectuais de países que não pararam as linhas de produção, com número de casos de infectados suficiente para qualquer outro país asiático ter – pelo menos – interrompido o chão de fábrica ou organizado um rodízio de funcionários para evitar aglomerações. Lutar contra totalitarismos asiáticos já é a luta do povo amarelo racializado como minoria étnica por seus próprios conflitos internos de unificação territorial em China, Japão, Coreia do Sul, Cingapura, Vietnã (…).        

    Enquanto sobrevivemos a nós mesmos no período de quarentena, entregamos conteúdo para os processadores de dados e afetos em todo o compartilhamento de textos e posts que fizemos enquanto torcemos acompanhando o BBB20, maratonamos séries nos sites de streaming, publicamos stories no instagram no nosso cotidiano entediado e conectado às redes: consumindo clicks, likes, visualizações, textões e #tbts. A proposta do modo de ação de meu corpo, ontem virou postagem e mensagem nas minhas redes e se transforma nas postagens e mensagens nas redes sociais de quem me distancio fisicamente. Esses dados processados são vendidos para quem lucra com o nosso consumo e vai capturar nossos corpos e subjetividades nesse momento de isolamento físico. Nossos dados serão como pedra de toque para continuar no controle de narrativas sobre eu, você, nós, a Ásia, a Europa e o que os EUA tem a ver com isso. Se há espanto no modo de controlar a população via dados coletados na internet por Estados asiáticos, também me espanta a ocidentalidade achar tão grave que \”na China o governo controla as pessoas por aplicativos\” sem se ligar que no Ocidente sairemos dessa consumindo tudo o que desejamos em tempos de punhetagem na quarentena.

    Para finalizar o chute – lembrando que a diversidade interna da população que ocupa o território chinês tem, certamente, ferramentas e modos de resistir tensionadores da transcendência com a qual lidam no Estado que os quer representar -, gostaria de apontar no modo de controle de governamentabilidade na China, um modo de perceber a própria ação coletiva (presente em narrativas de se perceber em uns corpos coletivos) e que, talvez, tenha muito mais a ver com uma tentativa de controle da não percepção (e falta de noção real e visível) do alcance das movimentações coletivas a partir da circulação de apenas uma existência viva. Um modo de perceber a vulnerabilidade da rede de existência coletiva que se implica o tempo todo em efeitos que podem ser incontroláveis nas nossas ações. Desconfio que haja, na transmissão das narrativas asiáticas, a transmissão de uma noção corpórea que se preocupa com a circulação coletiva de existências que afetam outras existências. Uma preocupação não apenas para com a própria zona de vizinhança (portanto da própria zona de contágio), mas que, ao transformar a própria zona de vizinhança em zona de contágio, sabe que pode fazer zonas de contágio acontecerem do outro lado do globo e, ser assim, imediatamente vizinho dela. Akai Ito é invisível, não podemos enxergar. A preocupação com a origem num discurso científico, apenas produz um efeito visível de um sequenciamento cuja origem só se torna visível como invenção; pois o vírus poderia ter sido visível em mortes por pneumonia em qualquer parte do mundo cujas causas de insuficiência respiratória ficaram sem maiores explicações. Se covid-19 foi percebido circulando em nossa rede de gentes pela primeira vez na China, não significa que lá surgiu.

    Akai Ito é uma prova narrativa de que meu dedo mindinho está diretamente ligado ao dedo mindinho de quem circulava no transporte público de Milão no mês passado, nas ruas de Hanoy em Fevereiro, nos trens para Hamamatsu no meio de janeiro ou no metrô de Wuhan em dezembro. Ou, não me espantaria, num morcego ocidental carregando um vírus desconhecido no meio do ano passado (ou retrasado, não importa)… Mas isso seria invenção minha. 

    foto: obra da artista japonesa Chiharu Shiota

  • A Pandemia e as consequências da quarentena para o trabalho

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    Foto: Luis Eduardo Tavares

    por: Marta Bergamin

    Os trabalhadores autônomos, o precariado, os desempregados, os que vivem de bicos, já estavam submetidos a um regime intensamente desprotegido de trabalho e de pouco acesso a direitos sociais. A proibição de trabalho que a quarentena representa para muitos nessa chegada da pandemia no Brasil, acrescenta muitas dificuldades à vida já extremamente precarizadas dessa multidão de brasileiros.

    As estratégias contra o adoecimento dessa parte substantiva da população faz parte dos mecanismos produzidos para lidar com a extrema incerteza que a vida autônoma ou do precariado apresenta como realidade. Adoecer não pode fazer parte do cardápio de homens e mulheres sem emprego fixo. O dia precisa ser garantido com o trabalho. Adoecer significa não ganhar o do dia, o dinheiro da semana. Dejours1, psicanalista que estuda as relações de trabalho, descreve essas estratégias para lidar com as doenças como parte do sofrimento do trabalho penoso. Mas para essa classe, é especialmente radical a impossibilidade de adoecer. Esconder doenças, driblar vizinhos, colegas de lida, familiares, para que a doença não apareça se apresenta como a primeira forma de lidar com ela. A doença só aparece quando se precisa ir ao médico, ao hospital e somente, assim, ela é visibilizada.

    Com a chegada da pandemia nos territórios mais pobres do país a doença pega nas estratégias da vida, porque essas estratégias montadas para o trabalho são parte fundamental do cotidiano. Tanto as estratégias partilhadas quanto as estratégias mais individualizadas são formadas para lidar com uma vida sem previsibilidade alguma. Não à toa que no negacionismo criminoso do governante maior do país notamos o reforço por essa estratégia de negação que a Covid-19 seja doença grave. Reforçar a ideia de que existe um grupo de risco e que os adultos devem voltar ao trabalho sem grandes riscos está conectado às estratégias populares de negar-se doente. Negar o medo de adoecer. Simplesmente negar a gravidade para que a gravidade não exista. Os países que adotaram essa estratégia, que teoricamente colocaria a economia em primeiro lugar, mostraram que a dinâmica da doença rapidamente a põe por terra, o isolamento social se mostrou mais eficaz. É preciso parar. Parar as engrenagens do mundo do trabalho tal como a conhecemos.

    Nessa medida, as estruturas do neoliberalismo foram produzindo trabalhadores engajados em um individualismo na sua “viração” da vida, que acabam por levar para a informalidade os padrões de controle, de riscos, de custos do trabalho para si. O auto-controle exercidos pelos trabalhadores autônomos, que estão com todos os custos e riscos do trabalho incorporados como parte do seu “empreendorismo”, entregam o sentido do trabalho à tecnologia (como é a dinâmica dos überizados). A banalização do mal vinda com o aprofundamento do neoliberalismo, diz Dejours (2006), é processada pelo trabalho, pelos valores do trabalho incorporados individualmente2. Cada investida do capital no esvaziamento do sentido do trabalho tem significado um achatamento na renda do trabalho. Desta forma, se trabalha cada vez mais para se ganhar cada vez menos. E o rebatimento disto na subjetividade das pessoas é um sentido do trabalho cada vez mais esvaziado que despersonaliza e quebra esse sentido para uma produção subjetiva forte.

    Com a pandemia há uma parada nas dinâmicas do mundo do trabalho. Ou adaptações estão sendo formadas para lidar com esse momento estranho. Será necessário mudar para que o país cesse de só reproduzir um distanciamento entre pobres e ricos numa crescente desigualdade social.

    No Brasil as reformas trabalhista e da previdência apostaram na informalidade para grande parte da população, o que significa que grande parte dos trabalhadores com rendimentos já muito rebaixados ficarão desprotegidos na vida laboral e na velhice. Com a crise trazida pela epidemia demorou para o governo perceber que os pobres estavam em pauta, a primeira proposta era de suspensão de salários por meses para salvar as empresas a partir dos custos do trabalho. Os pobres só eram foco, até aqui, para se avançar sobre na sua renda, na sua escassa poupança para defender os interesses do grande capital.

    Interessante deixar surgir novas lógicas, novas formas de pensar o que é a vida em sociedade. Viver num mundo comum. A renda básica universal lançada agora em forma de ajuda emergencial para essa classe desprotegida da sociedade é uma dessas intensas mudanças que podem vir para ficar. A ideia de que uma renda universal é uma saída para as mudanças do mundo do trabalho que já tinham chegado definitivas por aqui, e demanda planejamentos de longo prazo.

    Com a pandemia temos uma parada. Uma parada do trabalho nos moldes até aqui processados. A noção de produção do necessário vai mudando a estrutura produção-comércio-dinheiro. Fazer a indústria produzir o que é necessário nesse momento para equipar a saúde com máscaras, luvas, construir hospitais, comida, remédios, maquinários de saúde. Não é mais a lógica inversa que perverte nossas necessidades. Estamos num outro momento em que a necessidade ancora o que deve ser produzido. A lógica anterior criava incessantes fetiches para escoar a produção (produção no final de mais dinheiro – de dinheiro’).

    As mudanças em 2020 vieram mais violentas e rápidas do que estávamos esperando! O esgotamento do neoliberalismo que captura continuamente cada vez mais territórios, pode ganhar planos de modificações. Já tínhamos uma ideia de que as mudanças que o incremento tecnológico estava por impor aos processos produtivos mudanças radicais do modo de trabalhar. Mas não havia preparação alguma para novidades tão contundentes como essa imposta agora pela chegada de um processo mundial que vai impondo uma crise de proporções globais, brutais especialmente aos pobres de todo o mundo.

    O país estava tão despreparado para lidar com a pobreza que não consegue por em marcha com rapidez o repasse de uma renda mensal a quem precisa, não havia nenhuma perspectiva de enfrentamento à desigualdade. A possibilidade de saques de fome e de revolta se configuram como reais forma de luta para quem ficou sempre esquecido para a distribuição da riqueza comum, mas sempre lembrado para manter a economia que interessa ao capital funcionando. E as revoltas populares podem fazer visível as feridas que não se fecham rapidamente. As revoltas chilenas estão no tabuleiro como alerta para despertar as lutas sociais e as reinvindicações que exigem ação para trazer renda às famílias brasileiras quanto falta a possibilidade de trabalho.

    Latour (2020)3, nós provoca a pensar como vamos impedir que essa lógica anterior não venha logo dar as caras assim que a pandemia passar. O tempo do trabalho, se no passado medido pelo relógio de pulso, e até ontem medidos pela velocidade vertiginosa dos smartphones (mesmo os tempos do desemprego andavam totalmente ocupados pelos trabalhos überizados, para lá de precários), agora parou. Desacelerou. A vida tem outras atividades. Fazer comida, cuidar das crianças, arrumar as coisas da casa, trabalhos invisibilizados e destinados às mulheres que podem retornar como tarefas cotidianas com produção de sentido.

    O trabalho continua no centro da vida social. Será tempo de reconfigurar essa centralidade que estava ancorada na retirada de proteção social para os pobres aliada à queda da renda do trabalho nas franjas da sociedade.

    Um momento interessante em que as temporalidades da cidade, guiadas essencialmente pelo trabalho, foram interrompidas para muitos. Foram ao menos deslocadas para a casa. O que certamente exige novas negociações de uma sociabilidade reduzida ao núcleo familiar.

    Que momento estamos vivendo! Uma oportunidade se abrirá depois da catástrofe. Disputar um novo mundo, com novas temporalidades do trabalho. Das ruínas do neoliberalismo sairá um outro mundo! À luta!

    Marta Bergamin é socióloga, professora da Escola de Sociologia e Política.

    1 Dejours, C. A loucura do trabalho, São Paulo: Cortez, 2015.

    2 Dejours, C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: ed. FGV, 2006.

    3 Latour, B. “Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise”. 2020. Disponível em: https://www.tramadora.net/category/zonadecontagio/

  • Para além da calamidade

    por: Camila Jourdan

    Professora de filosofia na UERJ

    autora do livro 2013 – memórias e resistências, Circuito, 2018  

    O primeiro movimento oportuno é aquele que cessa o querer ser produtivo. A ideia de que nossa saúde mental está em relação de bicondicionalidade com nossa capacidade produtiva é um dos cânones interiorizados dos quais precisamos nos livrar. O momento é de cuidarmos de si e dos outros, redescobrirmos formas que não sejam a mediação pelo capital, o que significa ao mesmo tempo não ser pelo Estado, nem pelo Mercado. A dimensão ética é evidente: de um lado a sobrevivência, de outro, a economia. Nunca tão claramente se pode expressar a oposição central entre o capital e a vida como quando alguém afirma: “o país não pode parar porque morrerão 5 ou 7 mil pessoas.” Mas o que é que se pararia exatamente? Ora, não há nada para se lamentar vendo este sistema ruir, podemos lamentar, claro, pelos pequenos comerciantes e produtores que perdem seu sustento, mas que essa máquina inteira entre em colapso só pode ser incentivado como uma saída, uma possibilidade aberta. Jamais sofreremos pelo mundo do capital entrar em ruínas porque temos um mundo novo em nossos corações.

    Mas nosso maior desafio agora é o isolamento que impede que maneiras imprevistas de solidariedade possam surgir. Em uma greve, existem organizações coletivas diretamente relacionadas à parada da produção, comitês, pequenas organizações, algo vindo do concreto que toma o lugar das unidades abstratas do capital. Mas como concretizar-se coletivo ainda que sozinho? Uma possível resposta é a revolta que agora está por toda parte, e que abre uma porta para a coletividade, pois jamais é um átomo aquele que se revolta. A revolta tem uma dimensão ética justamente porque ela nos permite saber pelo que vale arriscar a sua vida em um movimento que vai do singular ao coletivo: “eu me revolto, logo existimos”. E se temos isso tão fortemente hoje, tornar-se-ia possível responder também pelo sentido da nossa existência, pois aquilo sem o que não há vida a ser defendida é o que pode também justificá-la. Jamais imaginamos viver uma situação imprevista como esta, onde tudo, absolutamente tudo, parece estar em jogo e é mantido em suspenso. Mas é um enorme privilégio poder viver uma situação imprevista, de tal modo que o pior que poderia acontecer agora é tudo isso passar e voltarmos à normalidade. Isso, de não estar dado, é o que torna tão fundamental o momento presente. Pois não éramos nós aqueles que reclamávamos pelo aparente caráter indestrutível do sistema reinante? Não é justo ser imprudente agora com os que podem ser mais afetados. Mas é possível vislumbrar um caminho autônomo, arrancando dos governos o que é necessário à vida? Sem dúvida, jamais romantizar a mazela, pois seria aceitar a morte e a miséria, mas entender que ela torna evidente o que já estava posto antes e era disfarçado pela suposta normalidade.

    “Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. (…) Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não vai durar muito, seria idiota”. E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos.” Albert Camus, A peste

    Agora temos patrão matando empregado literalmente; divisão sexual do trabalho gritando em todos os lares; falência da família nuclear estampada na rotina; limites do individualismo no telejornal da TV; escolha direta entre quem pode viver e quem deve morrer. E é também verdade que alguns daqueles que se julgavam inatingíveis foram atingidos. Ninguém está imune a peste, embora ela atinja as pessoas de forma diferente, ou seja, ela não nos faz iguais, ela explicita as desigualdades. A resposta de todos os governos é o aprofundamento do controle e das medidas de exceção, escorados numa retórica salvacionista. Uma pessoa muito querida me disse: “O coronavírus de fato não possui letalidade alta, é o capitalismo que nunca foi capaz de cuidar das pessoas.” O que vamos fazer com tudo isso que aparece de modo tão insustentável? O que vamos fazer com nosso tempo acumulado se este nos for restituído? Resta-nos ainda o desafio de ser livre, apesar dos flagelos.

    Nos últimos dias, mais e mais pessoas entregaram voluntariamente seus dados na internet. Todas, absolutamente todas as atividades cotidianas foram voluntariamente transferidas pra rede mundial de computadores sob a justificativa de se evitar contágio e consequente quebra do sistema de saúde com a morte de alguns milhões. Aulas, reuniões, compras, atividades recreativas e laborativas, conversas familiares cotidianas, todas sendo realizadas de dentro de casa e alimentando o algoritmo com nossas compras, gostos, hábitos, opiniões, desejos. A impressão que se tem é que a vida real vai sendo substituída por uma representação holográfica, pela mediação das máquinas de comunicar, na qual as relações comerciais, sobretudo, precisariam ser mantidas. Mesmo aqueles resistentes à tecnologia, deixaram de lado esta resistência por um bem maior, e se entregaram de corpo e alma ao espaço virtual para tentar enfrentar a quarentena com menos solidão. Agora que nossos vínculos sociais ficaram de vez reduzidos ao teclado e ao touch; que não podemos sequer apertar a mão de um amigo diretamente; o que restará de nossa subjetividade? De nossas crianças que não verão teatros, ou aulas, ou contações de histórias, ou florestas, mas apenas telas?! Mas não há o que argumentar contra isso, alguns dirão. A realidade não-virtual nos é apresentada agora como perigosa, potencialmente mortal. Por que não usar tais ferramentas em um momento de emergência como este? Certamente que não devemos recusar a tecnologia agora, mas não usá-la indiscriminadamente, pois a sociedade de controle não criou o vírus, mas se aproveita dele para impôr-se como realidade distópica ainda maior. Seria possível usarmos a tecnologia a nosso favor? Quais ferramentas autônomas temos ao nosso dispôr para dizer ‘fucking google’ ? Como desalienar a tecnologia em prol de uma vida que não seja estruturada pela abstração? Creio que é um pouco isso que poderíamos pensar agora.

    É útil refletir sobre as medidas que nos estão sendo impostas, pois, como sempre não serão as pessoas que serão “salvas”, mas as instituições financeiras. Sobrará, como de todas as crises, aqueles que têm mais. Até mesmo o pânico pode ser vendável. De tal modo, que se chega a supor corte de salário sem renda mínima ou se ameaça prender as pessoas que estão saindo às ruas, corta-se transporte público pela metade e fecha-se os pequenos comércios, sem que os autônomos tenham qualquer alternativa de subsistência. Aqueles que não morrerem de fome; não entrarem em depressão ou crise de ansiedade desde agora, certamente ainda terão sequelas psicológicas enormes pelos meses de confinamento e mania de limpeza impostos. No horizonte, o aceno do ‘estado de sítio’, permitindo poderes absolutos ao soberano. Nada melhor para evitar uma insurreição do que a ameaça de um vírus mortal, se, durante meses, a população do Chile não saía das ruas em revolta, agora todos se prostram dentro de casa, temendo pelos próximos acontecimentos. E os grupos chilenos que mesmo assim saíram, foram detidos e jogados na cadeia. Na rua não pode aglomerar, mas na prisão pode.  E, diga-se de passagem, teorias conspiratórias são tão enganosas quanto desnecessárias, obviamente o vírus não foi criado em laboratório, o que não significa que ele seja “natural”, pois nada é simplesmente natural na relação entre ser humano e natureza, o modo de produção predatório ao qual estamos submetidos cria tragédias e catástrofes, das quais também se retroalimenta, de tempos em tempos. Se não viesse o vírus, as catástrofes já se avizinham há tempos e, algumas, aí já estão.

    Todas essas medidas até poderiam parecer uma simples preocupação com a saúde das pessoas, se houvesse contrapartes no sistema de saúde. Mas o que se vê até agora é que simplesmente as pessoas não estão sendo testadas. Isso tem uma dimensão política, evidentemente, porque casos crescentes pressionam o governo a tomar providências e geram revolta. A temeridade diante do sistema de saúde quebrado não deve ser igualada à preocupação com as pessoas no reino do capital, ela apenas lembra que as pessoas ainda estão aí, talvez de um modo um pouco indesejado, e que, se podem trabalhar, podem também se revoltar; que se morrem aos montes sem atendimento, isso pode fazer o castelo de cartas mercadológico, senão ruir totalmente, ao menos perder a aparência sólida.  Há uma escolha em se investir na segurança, aprofundando o Estado policial e as medidas de exceção, e não se investir na saúde, no diagnóstico, que seria o primeiro passo para o controle do vírus, e não das pessoas, bem como o tratamento. Se isso arrisca a economia, pode também fomentá-la, com milhares correndo para comprar itens que não precisam e bancos oferecendo empréstimos para “salvar” negócios e endividar pessoas. Já faz tempo que vivemos essa economia da crise, a diferença agora é que o inimigo é invisível e um vírus mortal. É possível prender e monitorar quem está na rua. Mas, de fato, ninguém sabe onde está o vírus. E de tal maneira que isso aprofunda o medo, ninguém sabe quem está ou não contaminado, e o medo obviamente nos impede de agir, impede a solidariedade básica com o outro que é agora visto não como a condição necessária da vida, mas como uma possibilidade de morte. A situação é insólita, um vírus desconhecido para o mundo, os sintomas variam de pessoa para pessoa, é possível ter e ser assintomático, todos são contaminados em potenciais, mas não é possível ter certeza de que se está ou não contaminado. Até o momento em que as pessoas passam a morrer de suspeita. Morre-se não de um vírus, mas de uma suspeita de vírus. “Morreram hoje no Rio de Janeiro três pessoas com suspeita”, dizem os jornais. Não saber se se tem o vírus ou não, ficar em quarentena e reiniciá-la todas as vezes que tiver que sair de casa, um ciclo crescente de angústia.

    Esta semana o filósofo coreano Byung-Chul Han afirmou que Zizek está errado em pensar que um vírus poderia abrir uma possibilidade para vencer o capitalismo, por mais que ele deixe clara a falência deste sistema, um vírus não pode fazer uma revolução, na medida que isola e indivudualiza. Um vírus apenas poderia tornar ainda mais forte a sociedade de controle e o estado de exceção. Para ele, todas as medidas restritivas só fortaleceriam o sistema reinante, que ressurgiria ainda mais potente, inspirado nos controles de big data chinês e na obediência confucionista. De fato, não acreditamos que um vírus possa mudar nossa forma de vida, só a luta muda a vida. Mas nós somos daqueles que acreditam na revolta diante das mazelas. Ainda não sabemos o que virá, a maneira como vamos lidar com esta desestruturação profunda é o que agora abre possibilidades, para além do isolamento, para que a vida se imponha ao capital e aos governos.

  • Coronavírus e fascismo de Bolsonaro nos fazem esperar por nova era, de Sidarta Ribeiro

    Artigo publicado na Ilustríssima, Folha de S. Paulo, março, 2020.

    Aos negacionistas, em especial aos médicos que embarcaram na gripezinha do atleta Jair Bolsonaro, relembro a tira da genial Laerte, citada há poucos dias pelo poeta e guerrilheiro cultural Gregorio Duvivier: a grande ficha está caindo.

    A crise está apenas começando. A Covid-19 vitima os pobres de forma brutal, mas também atinge a classe média e os ricos de modo inédito desde a descoberta dos antibióticos. Ave Caesar, morituri te salutant!

    Vivemos o início da primeira onda da Covid-19, e as consequências serão dramáticas se não utilizarmos o melhor da ciência. Negar o desastre e minimizar nossa responsabilidade levarão à multiplicação das mortes e a condições graves que ficarão sem tratamento, quando nosso Sistema Único de Saúde for saturado.

    Reze fervorosamente pela saúde de nossas enfermeiras e nossos enfermeiros, que diariamente arriscam seus pescoços enquanto o pervertido das flexões de pescocinho vai na contramão do mundo e conclama aglomerações.

    A OMS foi explícita: todo esforço precisa ser feito para achatar a curva de infecção, reduzindo mortes e ganhando tempo precioso para que as equipes de saúde lidem com os casos mais graves sem se desorganizarem, estafarem ou contaminarem.

    Os danos da explosão viral por transmissão comunitária só poderão ser contidos se praticarmos consistentemente o distanciamento físico e a aproximação virtual. É preciso cessar todas as atividades presenciais não essenciais. É preciso prover água e sabão. É preciso abrir ao povo os hospitais privados. É preciso verdadeiramente agir como católico, evangélico, umbandista, espírita, muçulmano ou ateu: é preciso ser humano.

    Também é fundamental impedir que as formas brandas de infecção por Covid-19 se transformem em pneumonia. A hidroxicloroquina tem, sim, potencial para salvar vidas, mas sua eficácia clínica ainda não foi bem estabelecida, e seus perigosos efeitos colaterais precisam ser considerados por médicos prescritores, evitando a automedicação.

    Pessoas que já usam esse medicamento precisam ter seu tratamento garantido. É crucial abastecer os estoques, especialmente se a esperança depositada nesse remédio se confirmar.

    Em paralelo, é essencial liberar imediatamente os recursos para pesquisa contingenciados nos últimos anos —sobretudo o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico— para financiar o desenvolvimento e produção de testes, diagnósticos, remédios, vacinas, equipamentos de proteção individual e abordagens psicossociais que mitiguem o desespero da população.

    É uma vergonha indesculpável que o Brasil ainda não tenha quantidade suficiente de máscaras e testes para a Covid-19. Sem testagem ampla e rastreio minucioso, a infecção seguirá invisível e avançando. Tivemos vários meses para nos preparar —e não fizemos nada.

    Uma segunda onda de infecção da Covid-19 é esperada; temos que nos preparar para uma longa batalha. Haverá paralisia da produção de bens, interrupção dos serviços e quebra de empresas. Precisaremos de planejamento estratégico fundado na melhor ciência econômica —não a do rentismo abutre de Paulo Guedes, insensível ao sofrimento, mas a que almeja o verdadeiro bem-estar geral.

    O insuspeito direitista Ronaldo Caiado (DEM), médico e governador de Goiás, deu o diagnóstico cabal de Bolsonaro: “Ele deve ter sido contaminado por algum empresário que só enxerga cifrão […]. Está mais preocupado com CNPJ do que com CPF”. Felizmente, porém, sem CPF não existe CNPJ. Mais do que nunca, é preciso amar como se houvesse amanhã.

    É óbvio que precisamos de robustos investimentos do Estado para superar o abismo. É o que faz o mundo inteiro. Não se pode cortar salários; ao contrário, precisamos garantir renda mínima. É urgente suspender o pagamento dos juros e encargos da dívida pública e taxar os mais ricos para financiar o consumo dos mais pobres.

    Governo, bancos e grandes fortunas devem pagar a conta, caso não queiram ver todo o sistema colapsar. É urgente revogar a PEC 95, do teto de gastos, que impede nosso desenvolvimento. A crise nos encontra despreparados, sucateados, entorpecidos de neoliberalismo tosco e sádico.

    Pagamos à vista a dívida acumulada do descaso irresponsável com saúde, educação e ciência. Os ataques irracionais feitos a nossas universidades estão custando caríssimo. Se na última década tivéssemos investido os recursos previstos para ciência e tecnologia, saúde e educação, como fizemos entre 2003 e 2010, não estaríamos nesta situação.

    Mudar a estratégia é urgente. O futuro da ciência brasileira é o futuro do Brasil. É preciso recolocar o país nos trilhos. Ainda dá tempo de acordar desse pesadelo.

    Será que ainda dá tempo? Ou aceleraremos de olhos fechados rumo ao precipício final? Estaremos numa bifurcação da história, no umbral de uma transição de fase, num ponto de mutação?

    De olhos fechados, ergo os braços e encho lentamente os pulmões, inalando suavemente… suavemente… e seguro a respiração: 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, 0… e então me entrego completamente, até afinal explodir o corpo inteiro e me desintegrar no cosmos, como se o vulcão de Krakatoa tivesse entrado em erupção e eu fosse um jorro de átomos rumo ao infinito, liberto num urro primitivo nascido das profundezas do ser… enfim a paz do Big Bang. Enfim o amor cósmico. Tempo e espaço cessam e entendo que voltei para casa. Enfim…

    Não sei quanto tempo passa. Dez minutos, se tanto? Quando o ego finalmente ressurge da experiência e posso novamente conversar comigo, manifesta-se a visão do horror… vejo mortandade global, hospitais lotados, favelas fúnebres, presídios infernais, valas comuns e cortejos de ataúdes sem fim, enquanto líderes políticos e religiosos negam a realidade e pedem dízimo… tristeza, abandono, desamor.

    Vejo a peste tomando o planeta e colocando o capitalismo predatório de joelhos, enquanto a chacota necrofílica do presidente promove a contaminação. Vejo médicos ideologizados se descolando da realidade, vejo milicianos em pulsão de morte achacando o povo à vontade, vejo o esvaziamento das cidades. Mercados financeiros derretendo, produção industrial cessando, alimentos e remédios escasseando. O caos chegando.

    Uma planta, um cogumelo, um velho. Um enorme sapo coaxando sob uma molécula semelhante à serotonina. Uma voz grave que diz: 5-metoxi-dimetiltriptamina. Vejo um pulmão desinflamado. Um doente acamado. Um homem barbado sorrindo. Será a cura vindo?

    EUA, Europa, Rússia e Índia reagiram tarde à Covid-19, para salvaguardar a sociedade piramidal neoescravista. O México vai na mesma direção, mas pela esquerda, enquanto ao Brasil neofascista cabe ser o laboratório mais radical da tentativa desesperada de salvar o privilégio do 1% mais rico.

    Somos bucha de canhão da pandemia, balão de ensaio da anomia, experimento deliberado de extermínio generalizado. Não por acaso o real foi a moeda que mais se desvalorizou nas últimas semanas. Ao império interessa que o Brasil se arrebente. Fica mais fácil explorar a gente.

    Trump e Bolsonaro apostam que as pessoas toparão morrer para manter vivas as engrenagens da Matrix. Pedem que todos continuem a vender bem barato seus corpos, tempo, mente, sangue e respiração, para que os mais ricos fiquem ainda mais ricos, e que tudo o mais vá para o inferno.

    Perdidamente viciados em dinheiro —esse liberador de dopamina tão poderoso quanto a própria cocaína—, os bilionários entram em pânico pela antecipação da síndrome de abstinência. Querem acelerar a economia, sem se importar com as consequências. Insones, trêmulos e taquicárdicos, já não sabem sonhar o que jaz adiante.

    Querem mais do mesmo, até a última dose. Entre a nova era e o desmame do dinheiro, preferem a morte. Alheia, evidentemente. É por isso que o grande capital, que sempre se nutriu da ciência, desacoplou-se dela quando os alertas sobre catástrofes antropogênicas se tornaram incômodos. O negacionismo energúmeno da extrema direita é a soma da avareza com um profundo analfabetismo científico.

    Só que dessa vez não vai colar. “Deu ruim.” Assim como na overdose de cocaína, um pouquinho mais de droga será fatal. O colapso econômico pode nos levar rapidamente ao cenário Mad Max se a lógica de predadores contra presas não for superada.

    Pode até ser que no último instante a ciência venha a salvar os mercados do nocaute, soando o gongo redentor com uma descoberta milagrosa, justo quando o último assalto estiver quase no fim…. mas a esta altura é improvável que o socorro chegue a tempo.

    Foram anos de descaso, desmonte e sabotagem. O capitalismo abusou da regra três. O oportunismo criminoso das hienas financistas está sucumbindo por falência múltipla de órgãos.

    Depois da negação vêm assassinato e suicídio. Quando a invasão nazista fracassou em Stalingrado, o grande genocida Adolf Hitler freou a retirada das tropas alemãs para permitir aos psicopatas de suástica executar todos os judeus e demais indesejados. E então, quando se esgotaram todas as ilusões do monstro, ele simplesmente se matou.

    Em meio à hecatombe em curso, o aspirante a genocida BolsoNero continua a repetir que não podemos parar. “O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali. Ele sai, mergulha e não acontece nada com ele. Eu acho até que muita gente já foi infectada no Brasil, há poucas semanas ou meses, e ele já tem anticorpos que ajuda a não proliferar isso daí”, declarou o presidente.

    É evidente que fala de si, verme infectado saído do esgoto da ditadura. Imerso em Tânatos, quer imolar o Brasil inteiro, liderando a casa grande na tentativa de massacrar a senzala. Mas são os ricos que precisam dos pobres. Chegou a hora do despertar d@s escrav@s.

    O simulacro econômico nunca foi tão irreal, e o que parecia sólido se desmancha no ar. Quebra das cadeias produtivas, desemprego, depressão econômica. Como disse o jornalista clarividente Pepe Escobar, o dólar vai virar papel higiênico verde. Game over…

    Roberto Justus, Junior Durski e Osmar Terra vão pagar caro pelo que disseram. Serão varridos pelas evidências, e o povo vai cobrar a fatura. Como no filme “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), do cineasta apocalíptico Rogério Sganzerla, “quem tiver de sapato não sobra…”.

    A síndrome respiratória aguda grave e a maligna austeridade econômica vão ceifar milhares, milhões, talvez dezenas de milhões de vidas. Talvez mais… não estamos preparados para tanta tristeza, para o trauma em escala global.

    Como cansou de alertar o xamã ianomâmi Davi Kopenawa, o céu está caindo sobre as nossas cabeças. Remédio de índio é duro, mas funciona. Chegou a hora da purga. Como avisou a cartunista e transxamã Laerte, a grande ficha está caindo.

    Agora só nos resta compreender que vida e morte são duas faces da mesma ficha. Quando a poeira baixar, daqui a meses ou mesmo anos, teremos a chance de construir um sistema econômico justo, sustentável, racional e amoroso. Menos dopamina e mais serotonina.

    Baixada a febre do vício em dinheiro e da pressa de correr rumo a lugar nenhum, talvez tenhamos a chance de recomeçar. Talvez, apenas talvez…

    Não podemos perder essa oportunidade, se houver. Veremos a redução da poluição e a desaceleração do aquecimento global. Virá uma nova ordem, bem mais chinesa do que norte-americana. Emergirá um Sistema Único de Saúde planetário. Ubuntu.

    Que venha então a cura. Finalmente teremos a chance de olhar para dentro e, com toda a sabedoria acumulada desde a aurora paleolítica, criar uma sociedade digna de tod@s human@s e demais animais, plantas, fungos, algas, bactérias… e vírus.

    A mudança está apenas começando. Depois da pós-verdade, só interessa a verdade. Precisaremos de Buda, Cristo e todas as filhas de Gandhi.

    Precisaremos de Aqualtune, Akotirene, Dandara e Zumbi. Precisaremos de Ester Sabino, Jaqueline de Jesus e Ana Tereza Ribeiro de Vasconcelos. Precisaremos tratar o trauma. Despertar do samsara. Amar a alma. Cessar o carma. Render-se ao darma. Em português moderno: surrender.

    E sem arma.

  • Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise

    por: Bruno Latour

    tradução: Déborah Danowski


    Domingo, 29/03/ 2020

    Pode haver algo de indecoroso em se projetar pela imaginação no período pós-crise, enquanto os trabalhadores da área da saúde estão, como se diz, “na linha de frente”, milhões de pessoas perdem seus empregos, e muitas famílias em luto não podem sequer enterrar seus mortos. E entretanto, é agora que devemos lutar para que, uma vez terminada a crise, a retomada da economia não traga de volta o mesmo velho regime climático que temos tentado combater, até aqui em vão.

    De fato, a crise sanitária está embutida em algo que é, não uma crise – algo sempre passageiro –, mas uma mutação ecológica duradoura e irreversível. Temos boa probabilidade de  “sair” da primeira, mas não temos nenhuma chance de “sair”da segunda. As duas situações não têm a mesma escala, mas é muito esclarecedor relacioná-las. Em todo caso, seria uma pena não aproveitarmos a crise sanitária para descobrir outras formas de adentrar a mutação ecológica, sem ser às cegas. A primeira lição do corona virus é também a mais espantosa. De fato, ficou provado que é possível, em questão de semanas, suspender, em todo o mundo e ao mesmo tempo, um sistema econômico que até agora nos diziam ser impossível desacelerar ou redirecionar.

    A todos os argumentos apresentados pelos ecologistas sobre a necessidade de alterarmos nosso modo de vida, sempre se opunha o argumento da força irreversível do \”trem do progresso\”, que nada era capaz de tirar dos trilhos, \”em virtude\”, dizia-se, \”da \”globalização\”. Ora, é justamente seu caráter globalizado que torna tão frágil o famoso desenvolvimento, o qual, ao contrário,pode sim ser desacelerado e finalmente parado. De fato, não são apenas as multinacionais ou os acordos comerciais ou a internet ou as agências de turismo que estão globalizando o planeta: cada entidade desse mesmo planeta tem sua maneira própria de integrar os outros elementos que compõem, em um dado momento, o coletivo. Isso é verdade para o CO2,que aquece a atmosfera global por sua difusão no ar; para as aves migratórias,que transportam novas formas de gripe; mas também é verdade, como estamos dolorosamente reaprendendo, para o coronavírus, cuja capacidade de ligar \”todos os humanos\” passa pela via aparentemente inofensiva dos nossos perdigotos.

    Contra a globalização, uma globalização ainda maior: se o objetivo é conectar bilhões de humanos, os micróbios estão aí para isso mesmo! Daí esta incrível descoberta: havia de fato no sistema econômico mundial, escondido de todos os olhares, um sinal de alarme vermelho vivo, junto a uma grande alavanca de aço que cada chefe de Estado podia puxar de uma só vez para fazer parar \”o trem do progresso\” com um estridente guincho dos freios. Se, em janeiro, o pedido para fazer uma curva de 90 graus que nos permitisse aterrizar ainda parecia uma doce ilusão, agora ele se torna muito mais realista: qualquer motorista sabe que para ter alguma chance de se salvar fazendo uma rápida manobra no volante sem sair da estrada é melhor primeiro desacelerar.

    Infelizmente, não são só os ecologistas que veem nessa pausa súbita no sistema de produção globalizado uma grande oportunidade de fazer avançar seu programa de aterrissagem. Os adeptos da globalização, aqueles que, em meados do século XX, inventaram a ideia de escapar das restrições planetárias, também veem nela uma excelente oportunidade de se desvencilhar ainda mais radicalmente do que resta de obstáculos à sua fuga para fora do mundo. Para eles, essa é uma oportunidade boa demais de se livrarem do resto do Estado social, da rede de segurança dos mais pobres, do que ainda resta de regulamentação contra a poluição e, mais cinicamente ainda, de se livrarem de toda essa gente em excesso que atulha o planeta.

    Não esqueçamos, de fato, que devemos assumir que esses adeptos da globalização estão conscientes da mutação ecológica, e que todos os seus esforços nos últimos 50 anos consistiram em negar a importância das mudanças climáticas e,ao mesmo tempo,em escapar de suas consequências, construindo fortalezas que possam garantir seus privilégios, bastiões inacessíveis àqueles que terão que ser deixados para trás. Eles não são ingênuos a ponto de acreditar no grande sonho modernista da partilha universal dos \”frutos do progresso\”; a novidade é sua franqueza: eles agora sequer se preocupam em fazer as massas acreditarem nessa ilusão. São eles que aparecem todos os dias na Fox News e que estão no poder de todos os estados negacionistas do planeta,de Moscou a Brasília e de Nova Delhi a Londres e Washington. O que torna a situação atual tão perigosa não são apenas as mortes que se acumulam diariamente, mas a suspensão geral de um sistema econômico que proporciona, àqueles que querem ir ainda mais longe em sua fuga para fora do mundo planetário, uma excelente oportunidade de \”recolocar tudo em questão\”.

    Não devemos esquecer que o que torna os adeptos da globalização tão perigosos é que eles sabem que perderam, sabem que a negação das mudanças climáticas não poderá continuar indefinidamente, que não há mais nenhuma chance de conciliar seu \”desenvolvimento\” com os vários “envelopes” do planeta com os quais a economia terá que se haver mais cedo ou mais tarde. Isto é o que os torna dispostos a tentar de tudo para se aproveitar mais uma (última?) vez das condições excepcionais, para poder durar um pouco mais e proteger a si próprios e aos seus filhos. A \”suspensão do mundo\”, esta frenagem, esta pausa imprevista, dá-lhes a oportunidade de fugir mais depressa e para mais longe do que jamais imaginaram.Os revolucionários do momento são eles. É aqui que devemos agir. Se a oportunidade serve para eles, serve para nós também. Se tudo pára, tudo pode ser recolocado em questão, infletido, selecionado, triado, interrompido de vez ou, pelo contrário, acelerado.

    Agora é que é a hora de fazer o balanço de fim de ano. À exigência do bom senso: “Retomemos a produção o mais rápido possível\”, temos de responder com um grito: “De jeito nenhum!”. A última coisa a fazer seria voltar a fazer tudo o que fizemos antes.Por exemplo,outro dia, mostraram na televisão um floricultor holandês, os olhos cheios de lágrimas, porque teve que jogar fora toneladas de tulipas já prontas para serem embarcadas: não podia mais enviaras tulipas de avião para os quatro cantos do mundo porque não tinha clientes. Só podemos lamentar, é claro; é justo que ele seja compensado. Mas então a câmera recuou, mostrando que suas tulipas são cultivadas hidroponicamente, sob luz artificial, antes de serem entregues aos aviões de carga no aeroporto de Schiphol, sob uma chuva de querosene. O que justifica a dúvida: \”Será realmente útil continuar esta forma de produzir e vender esse tipo de flores?”. Uma coisa leva a outra: se cada um de nós começarmos a fazer esse tipo de pergunta sobre cada aspecto de nosso sistema de produção, podemos nos tornar efetivos interruptores da globalização – tão efetivos, pois somos milhões, quanto o famoso coronavírus em sua maneira única de globalizar o planeta. O que o vírus consegue com a humilde circulação boca a boca de perdigotos–a suspensão da economia mundial –nós começamos a poder imaginar que nossos pequenos e insignificantes gestos, acoplados uns aos outros, conseguirão: suspender o sistema produtivo. Ao nos colocarmos esse tipo de questão, cada um de nós começa a imaginar “gestos barreira”, mas não apenas contra o vírus: contra cada elemento de um modo de produção que não queremos que seja retomado. Não se trata mais de retomar ou de transformar um sistema de produção, mas de abandonar a produção como o único princípio de relação com o mundo.

    Não se trata de revolução, mas de dissolução, pixel por pixel. Como mostra Pierre Charbonnier, após cem anos de um socialismo que se limitou a pensar a redistribuição dos benefícios da economia, talvez seja o momento de inventar um socialismo que conteste a própria produção. É que a injustiça não se limita a penas à redistribuição dos frutos do progresso, mas à própria maneira de fazer o planeta produzir frutos. O que não significa decrescer ou viver de amor ou de brisa, mas aprender a selecionar cada segmento deste famoso sistema pretensamente irreversível, a questionar cada uma das conexões supostamente indispensáveis e a experimentar, pouco a pouco, o que é desejável e o que deixou de sê-lo.

    Daí a importância fundamental de usar este tempo de confinamento imposto para descrevermos, primeiro cada um por si, depois em grupo, aquilo a que somos apegados, aquilo de que estamos dispostos a nos libertar, as cadeias que estamos prontos a reconstituir e aquelas que, através do nosso comportamento, estamos decididos a interromper. Quanto aos adeptos da globalização, esses parecem ter uma ideia muito clara do que querem ver renascer após a retomada: a mesma coisa, só que pior, com a indústria petrolífera e os gigantescos navios de cruzeiro como bônus. Cabe a nós opor a eles nosso contra-inventário.

    Se, em apenas um ou dois meses, bilhões de humanos somos capazes, ao apito do árbitro, de aprender o novo \”distanciamento social\”, de nos afastar uns dos outros para sermos mais solidários, de ficar em casa para não sobrecarregarmos os hospitais, podemos perfeitamente imaginar o poder transformador desses novos gestos, barreiras erguidas contra a repetição de tudo exatamente como era antes,ou pior, contra uma nova investida mortífera daqueles que querem escapar de vez à força de atração da Terra. Como é sempre preferível acompanhar um argumento com um exercício, proponho este a seguir, derivado dos procedimentos do consórcio Oùatterrir, que submeto ao discernimento dos leitores até que seja possível apresentar uma versão digital aceitável. Aproveitemos a suspensão forçada da maior parte das atividades para fazer um inventário daquelas que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas.

    Responda às seguintes perguntas, primeiro individualmente e depois coletivamente:

    1ª pergunta: Quais as atividades agora suspensas que você gostaria de que não fossem retomadas?

    2ª pergunta: Descreva por que essa atividade lhe parece prejudicial/ supérflua/perigosa/sem sentido e de que forma o seu desaparecimento/suspensão/substituição tornaria outras atividades que você prefere mais fáceis/pertinentes. (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 1).

    3ª pergunta: Que medidas você sugere para facilitar a transição para outras atividades daqueles trabalhadores/empregados/agentes/empresários que não poderão mais continuar nas atividades que você está suprimindo?

    4ªpergunta: Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que fossem ampliadas/ retomadas ou mesmo criadas a partir do zero?

    5ª pergunta: Descreva por que essa atividade lhe parece positiva e como ela torna outras atividades que você prefere mais fáceis/ harmoniosas/ pertinentes e ajuda a combater aquelas que você considera desfavoráveis.

    (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 4).

    6ª pergunta: Que medidas você sugere para ajudar os trabalhadores/empregados/agentes/empresários a adquirir as capacidades/meios/receitas/instrumentos para retomar/ desenvolver/criar esta atividade?

  • Coronavírus: apocalipse, continuidade e efeitos na América do Sul

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    por: Salvador Schavelzon

    27 de março de 2020

    Surpreende a força do Coronavírus para fechar lojas, interromper a produção industrial – em alguns países – impor um isolamento social com prejuízo econômico ponderável. O Coronavírus fez real o sonho de muitos militantes revolucionários interrompendo a circulação de mercadoria, estabelecendo uma pausa indefinida na opressão do trabalho e na realização do lucro a partir do modelo de produção. Também fez realidade, no Brasil e em outros lugares, o que muitos economistas progressistas propunham em fóruns de debate ou cátedras universitárias, a aprovação de uma renda básica com 100 milhões de destinatários, num congresso conservador que há poucos dias atrás teria ignorado a proposta, ou considerado ela “comunista”.

    O Corona talvez até seja capaz de derrubar presidentes e exigir confiscação de infraestrutura privada, pondo a sociedade toda em função da sua restrição. Ele mostra, como força da natureza-sociedade, que o capitalismo não é eterno mas frágil, produto de relações, como a própria vida humana e os arranjos com que ela funciona e se organiza.

    Nesse ímpeto mobilizador, até faz pouco tempo impensável, as pessoas sentem a presença do medo de ser contagiados ou de contagiar pessoas queridas, mas também respondem a algo de outra ordem, como uma responsabilidade coletiva, como se o mundo de repente virasse um corpo só, uma verdadeira comunidade, uma sociedade no sentido sociológico clássico, onde uma moral é compartilhada e, a partir dela, encontramos também um sentido e um direito que nasce desse consenso do comum. Trabalhadores da saúde, da produção de alimentos, e outros, se arriscam, como se estivessem indo para a guerra. Ir no mercado, para alguns, é vivido como excursão militar. Para outros a guerra é a continuidade do trabalho, da busca de sustento, que não dá trégua.

    Essa coesão social, também nacional, da cidade, do bairro, da família, se impõe contra a doença e contra qualquer opção individual que vá em direção oposta, sem importar interesse de capitalista particular algum, ou qualquer liberdade que antes era inquestionada. Essa repentina \”sociedade\” não é geral, mas existe com força inusitada entre muitos de nós. O repúdio social contra empresários que mantêm os locais de trabalho funcionando é significativo, também a rejeição generalizada, em alguns espaços sociais, contra quem não cumpra com a recomendação de não circular, ou outros cuidados. Esse consenso corporizado voluntariamente, chama muito a atenção numa sociedade onde a ação coletiva e luta social contra a exploração, a injustiça, contra as condições precárias de trabalho que organizam a vida econômica, se encontravam muito diminuídas ou eram praticamente inexistentes em escala significativa.

    A pandemia conseguiu uma mobilização que parecia impossível, e talvez ainda pareça, se o foco dela fosse acabar com o capitalismo, com a exploração abusiva e um modelo social que reduz a expectativa de vida das classes trabalhadoras e também mata, se vemos as consequências e efeito da depredação de florestas e ambientes naturais, modos contaminantes de produção e devastação, e as mortes invisíveis e imensuráveis produto da depressão, do tédio, do risco no trabalho ou na vida metropolitana, se disciplinando ou não ao que é dado.

    O capitalismo também mostra sua força, nesse contexto, e consegue reabrir lojas em alguns lugares, consegue ainda lucrar com a pandemia e manter formas de produção de valor ativas, ou descobrindo novas, tornando a pandemia seu laboratório de ensaio de novas formas de expansão. A sua força está principalmente na sua aceitação, onde suas mortes não são contabilizadas. Acreditamos no feitiço das mercadorias como acreditamos na letalidade de um vírus, mas não nos organizamos coletivamente contra ela -mais do que marginalmente- mas a favor dela, porque o sistema conseguiu colocar a continuidade da sobrevivência ao seu favor. Pensamos que trabalhamos para viver, e não pra morrer.

    Não temos um social organizado com sua moral e lei contra o capitalismo e o modelo atual de organização da vida, numa verdadeira naturalização do seu funcionamento. Os corações sensíveis que convocam hoje às práticas coletivas de boa higiene, a ficar em casa para desacelerar o contágio, dando existência, assim, à tal de sociedade coesa, irão se desagregar pela própria lógica individualizadora da vida sob regime da mercadoria, diluindo o vínculo comum que hoje aparece, circunstancialmente, na proteção da vida biológica ameaçada por um vírus. Logo depois de enterrar os mortos o mundo irá se incorporar novamente às fileiras organizadas pelo capital, na posição que toque a cada um.

    A efetividade do fenômeno Coronavírus para mobilizar uma sociedade, mesmo que essa mobilização se mostre incompleta e, no Brasil, até contestada pela cúpula do governo, é a efetividade do medo. Medo instintivo diante de ameaça invisível, que não discrimina ninguém, embora os meios de tratar sejam sim determinados pela condição social e econômica, de forma diferenciada. O medo mostra que a sociedade, a existência biológica e social dos seus integrantes, pode existir como ação comum que se sobrepõe ao interesse do capital, pelo menos de forma momentânea. Isso não era tão fácil de imaginar possível, longe das revoluções do passado, sem revoluções futuras prefiguradas, num momento onde o conceito de “programa” se mostra obsoleto, tanto quanto qualquer imaginação teleológica sobre caminho de mudança social.

    Como exercício epistemológico e político, a reação ao coronavírus permite imaginar que outros desafios coletivos serão possíveis. Sem ter sido motivada pelo curso de um processo revolucionário, a máquina social que é fonte de produção de muita injustiça, parou. E mesmo que isso não possa ser comemorado, porque imediatamente resulta em desamparo e dificuldades materiais mais pesadas para os mais pobres, a reflexão sobre a possibilidade concreta dessa máquina sem comando centralizado parar, tem que ser anotada. Sua fortaleza, necessidade, inexorabilidade pode ser questionada de outra maneira, e seus limites, visíveis também num momento de crise social, podem nos levar a pensar sobre a possibilidade de alternativas à ordem que ela impõe.

    A ordem social continua se impondo inclusive quando seu funcionamento normal está suspenso. Não estamos diante do fim da máquina que organiza o mundo social, econômico e cultural, mas há transformações em curso, e é necessário pensar uma posição autônoma e anticapitalista que possa pelo menos fazer a sua própria leitura do processo de re-organização que viveremos enquanto a pandemia é enfrentada. Esse problema, que se perde quando o enfrentamento da pandemia nos impõe fazê-lo com as estruturas atuais de poder político e organização econômica e social que, na realidade, não são alheias ao cenário antropocênico, ou do capitaloceno1, que nos levou até ela.

    Certamente o capitalismo saberá como sempre até aqui se metamorfosear e mutar para continuar sua expansão e valorização contínua. De fato, a pandemia também mostra capacidade de acelerar tendências num cenário de renda básica para os pobres, capitalismo de plataforma, monitoramento e controle expandido, crescimento do mercado online, incluindo serviços básicos como educação e saúde, e com descentralização de funções a todo nivel, inclusive dispensando estruturas edilícias para o funcionamento empresarial. Estão se concretando, aceleradamente, as formas de consumo que alguns setores do capital projetavam fazia tempo.

    Na mobilização social, ouvimos vozes necessárias que, com certa inocência, confirmam que não há preparo estatal para lidar com uma pandemia. A destruição do sistema público estatal de saúde, a mercantilização dos serviços, mostram que o desenvolvimento de um capitalismo sem responsabilidade pela reprodução das pessoas que produzem e consomem, não permite enfrentar um problema de saúde pública como o atual. A consequência dessas vozes é o chamado para que seja criado algo que, preocupantemente, o modelo atual de sociedade não tem condições de proporcionar.

    É de fato já caducada a ideia de que uma sociedade organizada pelo trabalho criará um sistema de previdência, educação, saúde, bem estar. O mesmo não é viável nem desejável, se pensamos os problemas associados a esse modelo nas sociedades que estiveram próximas de alcançá-lo. Foi contra essa sociedade que as rebeliões estudantis e operárias das décadas de 1960 e 1970 na europa, ou o desmoronamento interno da União Soviética aconteceram. O capitalismo que vemos hoje é a reação às lutas e transformações que vieram depois da desestruturação de um modelo mais rígido, localizado, relacionado com uma cultura, hierarquizada e burocratizada de funcionamento, e uma estética árida e autoritária de disciplinamento enquadramento.

    Qual será o capitalismo que teremos então depois da pandemia? Ele nascerá do apocalipse de corpos empilhados e já estava aqui, porque não é do nada que uma pandemia nasce e se reproduz. Ela aproveita os canais de circulação da sociedade mundial, e estas foram construídos pelo desenvolvimento capitalista. A pergunta que cabe, ao mesmo tempo, é sobre o lugar para a revolta, nesse capitalismo transformado, e sobre os contornos para compor junto com ela, buscando potenciar sua força e capacidade de enfrentar a máquina não apenas mobilizados pelo medo à morte, mas também pela busca de outras formas de vida para além do capital e a destruição autoritária e domesticadora que este traz junto.

    Na leitura do pós coronavírus se entrevê facilmente a expansão da China, o retrocesso da Europa, atores num mundo interligado. Mas esses poderes se organizam também em função de lógicas externas a eles, que atravessam todo, nas determinações de um mundo social onde a sociedade e o Estado desaparecem ou são funcionalizados pelo peso de formas precárias de sustento, formas concretas de usurpação do tempo de trabalho, formas cada vez mais onipresentes de criação de valor e subordinação da vida. A pandemia não interrompe mas acelera, de fato, as novas formas de lucro com vidas a merce do trabalho precário para subsistir, num deserto de indivíduos endividados, dopados, violentados pelas autoridades e, ao mesmo tempo, sem que a auto organização ou a organização social tenha condições de existir.

    Pandemia na América do Sul

    No nosso mundo político latinoamericano, a pandemia do coronavirus terá efeitos na política que administrará o novo capitalismo nascente. O arranjo neoliberal, produto das transformações da segunda metade do século XX, e que progressistas, conservadores e neoliberais administraram na região configurando um regime estável entre 1990 e 2010, com sinais de questionamento e crise anteriores à pandemia, será transformado.

    Os trabalhadores, os precários, os invisíveis não tem hoje representação política nesse jogo de elites governantes. Mas sua força continua sendo fundamental para o andamento de tudo, como confirmamos nesses dias, na incapacidade do capitalismo de dispensar o trabalho, não apenas em termos produtivos mas também subjetivos. Cabe entender, por tanto, qual será o lugar dos setores mais vulneráveis a morrer, por depender de sistemas de saúde precários e por serem obrigados pelas condições a continuar se expondo ao vírus em transporte e habitações sobre lotadas. A direita política tem interagido e inclusive movilizado esses setores melhor que ninguém, mas estimulando um convívio violento, o descarte dos considerados fracos e, no contexto da pandemia, com uma desimplicância sacrificial.

    No Chile onde existia um processo de mobilização antineoliberal em curso, a mobilização produzida pelo efeito coronavírus mostra um caráter ambíguo, ao mesmo tempo revelando uma luta compartilhada para frear uma ameaça viral, num alinhamento entre estado e sociedade momentâneo que estava pouco tempo atrás interrompido, mas também como empoderamento do Estado antes questionado, executando com seus braços autoritários o controle das cidades, garantindo, agora no mesmo sentido que os bons corações cuidadosos, o encerramento da circulação, punindo desobediência com as recomendações sanitárias transformadas em normativas estatais.

    Vemos no Chile um poder estatal clássico, garante da ordem pública, aproveitando o coronavírus contra a recente mobilização, e recuperando poder de iniciativa, tanto para adiar o referendo constituinte, como para se apresentar como Estado-pai que cura, defende a saúde da população, fecha fronteiras e higieniza praças e ruas. As advertências do Agamben2, sobre a substituição do terrorismo pela pandêmia, funciona bem para entender como um estado questionado recupera credibilidade. As brigadas autônomas de saúde que cuidavam dos feridos no confronto com a polícia, na Praça da Dignidade, hoje lutam junto com as instituições estatais contra o Coronavirus, ou se desmovilizam.

    Na Argentina encontramos um poder estatal dando as cartas e com a maior legitimidade possível, de mãos dadas com a oposição e fechando “la grieta” de antagonismo político que o kirchnerismo de Néstor e Cristina tinham como eixo central na sua comunicação cotidiana. O novo peronismo de Alberto Fernández, definido por ele mesmo como “progressismo liberal”, tem força política para governar, controlar, e até para errar, numa sociedade coesa pela luta contra a pandemia que está alinhada politicamente com o governo.

    No Brasil a situação é completamente diferente. As atitudes do Bolsonaro o colocam no lugar do caos e o enfrentamento com o consenso coletivo anti Coronavirus. Seu papel tem sido ampliar a desordem, com irresponsabilidade e omissão que causarão mortes e que tem recebido o repúdio de situação, oposição, atores externos. No dia 26 de março, um mês depois do primeiro caso detectado oficialmente, quando se espera uma subida vertiginosa entre os casos contabilizados, a comunicação oficial lançou a campanha “Brasil não pode parar”, chamando a voltar ao trabalho, enquanto o presidente reforça a ideia de que a gripe não deve ser levada a sério, e estimula a realização de carreatas pelo país inteiro, a favor da reabertura dos comércios.

    Debochado pela sociedade ilustrada, que se encontra em quarentena, Bolsonaro consegue vários objetivos, sem que os panelaços dessa sociedade urbana, ex votante do PT e outros partidos, “civilizada”, e ciente dos perigos do coronavírus o afete. Bolsonaro ocupa o centro da atenção, por um lado, e por outro consegue chegar a milhares de trabalhadores precários, desempregados, os que vivem de bicos e trabalho sem nenhum tipo de vínculo, sem capacidade de realizar quarentena e, por tanto, preocupados pela necessidade de continuar trabalhando.

    Bolsonaro consegue ao mesmo tempo, se alinhando com o vírus, e não com a luta contra ele, representar a força de um capitalismo de baixo clero que fica incomodado com fechar as portas, e com uma multidão ingovernável de trabalhadores que, dado o regime de vida ao que estão submetidos, não tem o coronavírus como principal preocupação. Lopez Obrador, no México, e Ortega, na Nicarágua, exploram um papel parecido, menosprezando o risco e apostando ao misticismo.

    A esquerda revolucionária se sente a vontade, nesse cenário, onde a mudança social se respira por todo lugar, mas está perdida e sem linguagem para entender e agir num mundo novo. Está em casa, também, isoladamente, com repertórios de respostas que não dialogam com o momento atual. Bolsonaro, ao contrário, interpela o trabalhador que não pode parar, de fato, e que não parou. Uma greve geral por tempo indeterminado, que em outro contexto seria um objetivo para abrir caminhos de empoderamento dos de baixo, hoje praticamente existe de fato, paralisando a escravidão do trabalho, mas mediada pela prevenção de contágio, sem orientação ou perspectivas favorável aos trabalhadores. Não é um dado menor que essa paralisação seja imposta pelos aparelhos de segurança e legislação estatal, buscando em cada lugar do território nacional que a lei seja observada. Uma paralisação total que afete setores estratégicos, encontraria hoje uma oposição inclusive de setores empresários que apóiam a luta contra o contágio. A paralisação atual tem um caráter de pausa, e não de organização distributiva ou reorganização da produção e organização econômica da vida.

    No contexto da contenção da pandemia, a esquerda não tem força política para exigir medidas importantes, de cuidado frente ao vírus, de acompanhamento de pessoas infectadas, de prevenção generalizada, como seria a desmercantilização dos insumos de consumo e remédios necessários, sem privilégios e diferenciações no atendimento, sentando as bases de um sistema mais justo que seja implementado com controle de baixo e total abertura.

    Se no Chile o coronavírus com sua força trouxe o fim de mobilizações, assembleias territoriais, enquanto o Estado continua perseguindo manifestantes da primeira linha com processos judiciais; na Argentina também o Estado, que se encontrava em crise pela dificuldade de controlar as variáveis econômicas, recupera sua áurea de responsabilidade, liderando com a lei na mão, aquela que todos os argentinos vão se ocupar de cumprir e fazer cumprir a seus familiares, vizinhos, e qualquer um que passe pela sua frente, em alguns casos com vigia nas janelas, ou internamente de cada um para si mesmo, sendo chamado a obedecer, talvez por um período muito longo por vir, e que será sempre prorrogado.

    Colocado no lugar do desgoverno, no Brasil, a cúpula do Estado se propôs participar de uma jogada perversa, onde o colapso do sistema e o disparo das mortes os destruiria, mas uma situação mais controlada permitirá aumentar a popularidade, num comando irresponsável que dá lugar a uma crise permanente de governo e desgoverno. Este movimento joga Bolsonaro numa existência instável e lembra o daqueles milhões que, por necessidade da barriga e não como opção política, se arriscam em motos, jazidas de mineração ou trabalhos mal remunerados. Aqueles que não podem parar pelo coronavírus e inclusive enfrentam situações de assédio redobrado, não apenas para continuar trabalhando, mas também sendo obrigados a conviver em situações de risco de morte e doença na atual situação pandêmica.

    Enfrentamos hoje uma emergência sanitária onde a prioridade é salvar vidas. Mas cabe perguntar, para onde vamos? Como é o novo capitalismo que nasce da destruição do anterior, ou na reorganização dos seus setores mais dinâmicos, e como se desenvolve a revolta, a luta dos de baixo e a disputa contra a mercantilização contínua de todos os espaços da vida e da morte. Na América Latina, presidentes fazem seus cálculos e jogos polarizando contra o coronavírus ou se encontrando com o corpo social contra ela. Nos dois casos cabe perguntar, qual é o lugar que ainda temos para desobedecer, inventar e construir espaços de liberdade e auto-controle da vida?

    1 cf. Jason W. Moore Anthropocene or Capitalocene? Nature, History and the Crisis of Capitalism, 2016, PM Press.

    2 Agamben, G.. O estado de exceção provocado por uma emergência imotivada. Disponívem em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596584-o-estado-de-excecao-provocado-por-uma-emergencia-imotivada

  • É nóis, corona*!

    por: Juliana Meira Socióloga-jardineira. Interessada na comunicação pelo sensível, por aquilo que não está em evidência. E na conexão de desejos através de paisagens

    Covid-19 no país da desigualdade

    São 17:48 de uma sexta-feira. Estamos no final do verão paulistano, e mais parece o começo. Os últimos dias foram quentes. Alguma umidade se sente no ar. Os termômetros marcaram máxima de 32ºC. Tento continuar um trabalho pessoal relacionado a agroecologia e não consigo.

    A palavra que atravessa meus pensamentos, de diversos modos, é aquela que, tenho certeza, é a mesma que a maioria de nós passou os últimos dias ouvindo e lendo, na tv ou na internet. É o tema das conversas com nossos amigos, com a família. E ainda que às vezes exista espaço para outros assuntos, em pouco tempo voltamos ao assunto do coronavírus da vez, covid-19.

    Alteração dos protocolos do cotidiano

    Seu caráter extremamente transmissível fez com que penetrasse nos âmbitos mais privados das nossas vidas, do nosso cotidiano, alterasse o funcionamento das rotinas, das receitas, do ritual do almoço, da ida ao mercado e à casa dos pais e amigos, do trabalho, dos cuidados físicos e da atenção com a saúde,… daquela para além de evitar o vírus. Assim também seu longo período de incubação colocou o toque, o contato, as relações sociais em suspeita. Tão mais suspeitas quanto próximas. Sim, nos sentimos, em menos de uma semana, extremamente cansados da overdose de instruções, procedimentos e preocupações. “Estar num grupo de risco”, “me poupar”, lembrar de quem possa também estar e oferecer ajuda. Pensar na vida e no cuidado com ela hoje, pra muita gente exigiu imaginar a própria doença como parte do efeito dominó de um vírus que veio da China, da Europa… pra cá, passando por outros lugares do mundo. Que loucura!? Logo, o ‘cuidar de si’ é atravessado pelo ‘cuidar dos outros’, ou o ‘cuidar dos outros’ passa pelo ‘cuidado comigo mesmo’. Ou seja, cuidar-se passa a ter um efeito direto na própria rede e além dela, tanto diretamente por conta da possibilidade de contágio, quanto indiretamente ao pensamos que queremos atravessar esse momento da melhor maneira possível, juntos.

    Linguagem bélica: vírus como inimigo global

    É curioso que muitos de nós lidamos com o vírus como se ele fosse dotado de uma intencionalidade própria e até meio maligna, avessa à vida e ao bem estar. O vírus que antes era tomado como apenas uma gripe, passa a ser um vírus da morte, ou da ‘não vida’, na medida em que caracterizamos a vida por seu movimento. A tomada de decisão do isolamento, a quarentena, paralisa o movimento intenso, o trânsito de diversidades com os quais significamos, por sua vez, o que é cidade. Todos os problemas ficam aparentemente suspensos, frente ao ‘inimigo global’.

    Esse modo de, conscientemente ou não, pensar o vírus, leva a maioria de nós, incitados pela abordagem midiática e militarização das medidas de controle, a agir como se estivessemos realmente em guerra. Uma com várias batalhas. Podemos destacar algumas delas pelo modo como estão sendo narradas:

    I. A assepsia

    Limpeza, higiene, desinfecção é a arma. Higiene e combate em alguns momentos da história humana se aproximam de diferentes modos. No caso atual, aprendemos a lavar as mãos corretamente (ao que parece nós, pessoas comuns, nunca fizemos isso direito), a limpar a casa, as embalagens das compras e os objetos de alto contato, a manter distância enquanto falamos com os outros (antes de um, agora de dois metros), a não cumprimentar com beijos, abraços e apertos de mão, e vimos na TV a ascensão nunca antes imaginada do álcool gel, que se tornou uma espécie de super-herói contra o vírus, um tanto quanto supervalorizado em múltiplos sentidos, em relação a outros produtos e cuidados. Provavelmente as orações passaram a citá-lo: “Deus nos proteja e nos garanta álcool gel. Amém!”. Ou algo assim…, com as devidas adaptações a cada crença. Mas ele também poderia ser visto como um agente de manutenção das relações, reduzidas as necessárias. Álcool gel, o mediador. O toque tem muito a ver com esse outro âmbito do “combate”: isolamento social.

    II. O distanciamento social

    É tudo muito curioso, porque antes era mais simples: o capital destruindo as relações que nos impedem de ceder completamente a seu modo de organizar e movimentar o mundo, fazê-lo girar em torno a seus interesses, sua continuidade e expansão. Mas nesse caso, o próprio capital foi colocado numa zona de incerteza em relação a pandemia. Ignorar a situação seria tão terrível quanto não o fazer. Percebemos aos poucos os arranjos que elaboramos entre nossos interesses e os interesses propriamente econômicos. A reação em cadeia entre os fatos demonstra a complexidade do sistema. Muito provavelmente nesse caso, a lógica de funcionamento capitalista passaria por uma adaptação à situação de calamidade pública. Provavelmente também, as relações passariam a ser organizadas de outro modo, em outro âmbito e seriam deslocadas para ambientes de maior visibilidade, talvez até monitoradas com o aval da população para conter essa e outras epidemias. E de certo modo, permitir as mobilidades que estão relacionadas a continuidade movimentações econômicas, enquanto as relações sociais mais especificamente comunitárias, seriam miradas como perigosas. No entanto, por hora, com o que temos em mãos, podemos dizer que uma outra batalha é essa contra os encontros, contra os encontros contaminantes, contagiantes, físicos, corporais e agora febris entre nós humanos, e nosso com o microrganismo que tem na sua invisibilidade e inexpressividade imediata, as características mais preocupantes para o controle de sua disseminação.

    III. Os especialistas

    É interessante notar como os especialistas começaram a ganhar relevância em relação a um terceiro inimigo dos “bons cuidados” em tempos de coronavírus: as fake-news. Chamamos médicos e enfermeiros para nos ensinar a lavar as mãos, biólogos e epidemiologistas para falarem das especificidades do vírus e nos mostrar como higienizar cada coisa em cada situação, e a nos relacionar seguramente com pessoas infectadas com as quais não podemos evitar ter algum tipo de contato, gerontologistas para falar das especificidades da mortalidade entre os idosos — categoria onde estão circunscritos a grande maioria dos casos letais. Vimos matemáticos e físicos que trabalham em epidemiologia explicarem as retas e curvas nos gráficos e identificarem a fase exponencial da epidemia em cada país, e as projeções para cada cenário de tomada de decisão em diferentes momentos. E também os economistas, claro, explicarem os impactos na economia. Aos poucos nós próprios nos especializamos, junto a eles, em lidar com o inesperado e com a incerteza. Já que a cada dia há uma informação nova sobre o vírus. Coisas que só o compartilhamento de informações entre países, ou a chegada dele em um novo clima, um novo país, uma nova cultura, novos corpos e hábitos e diferentes sistemas de saúde poderiam nos mostrar. Tudo isso ganha valor e se destaca em meio a mensagens e boatos sem um emissor especificado, irresponsabilizáveis. Luta-se contra os ruídos nos protocolos que emergem no momento em que as coisas vão acontecendo. Apropriados e adaptados de outras epidemias, de outros locais.

    Quero deixar claro aqui que cada um desses tópicos é de extrema necessidade e atenção: precisamos sim, tomar todos os cuidados indicados com higiene, nos isolar (fisicamente) das outras pessoas, e precisamos dos especialistas e técnicos e suas orientações. Estes nos mostrando como o vírus “funciona” ou se “comporta”, e as medidas que serão tomadas, nos dão alguma noção do que podemos fazer para nos pouparmos, para poupar outros, e no geral, alguma perspectiva de ‘como lidar’. Mas começo a duvidar se pensar nisso como uma guerra contra um vírus é a questão disso tudo. E se essa linguagem bélica que faz emergir um inimigo comum não estaria deslocando nossa atenção daqueles outros inimigos que continuarão atuando, inclusive em meio a epidemia, no modo como se posicionam ou determinam prioridades.

    Desigualdade e vulnerabilidades sociais em meio a pandemia

    Há algo diferente aqui, como em outros países de grande desigualdade social, antes que ‘subdesenvolvidos’. Aqui percebemos rapidamente, com a propagação do vírus, quem são esses mais vulneráveis, numa vulnerabilidade não ‘para além’ da física, mas sobreposta a ela: as famílias mais pobres, trabalhadores informais, imigrantes, aqueles sem assistência financeira, moradores de rua, aqueles que já viviam em áreas de ‘risco’ e lá continuarão, os que vivem em áreas que falta abastecimento de água por dias a fio (impossibilitando os cuidados preventivos de assepsia), e os que vivem em casas de arquitetura ‘perigosa’, agora já não apenas porque podem desabar ou serem soterradas durante a próxima chuva, mas porque não oferecem o número de cômodos, a quantidade de banheiros ou a ventilação necessária para se evitar um contágio intrafamiliar caso alguém seja/esteja infectado. Famílias que acabam tendo uma espécie de pacto de sobrevivência, que querendo ou não faz dos corpos individuais um único corpo, e se expõem juntos, pela necessidade compartilhada de manter a renda financeira do grupo. A vulnerabilidade aparece mesmo no não preparo: aqueles que não podem se prevenir de contatos futuros, através da garantia de abastecimento mínimo de mantimentos para os próximos dias, ou na falta de medicamentos, até mesmo aqueles de uso contínuo. Assim, começam a aparecer as vulnerabilidades não imaginadas, diferentes umas das outras, internas ou não aos grupos apontados como “de risco” em relação aos efeitos ou consequências desse desequilíbrio em um sistema que sabíamos, de equilíbrio instável.

    Reconfiguração dos fatos: o ‘cuidado’ antes que o ‘combate’ e as decisões políticas em meio a ‘calamidade’

    Por isso, acho importante não desviarmos do fato de que dentre uma série de variáveis, as tomadas de decisão dos que estão em posições de liderança (já não sei se seria certo dizer “poder”) nos governos e o modo como se articulam para desenhar uma estratégia para lidar com o que já está acontecendo, o que está por vir, e como isso afetará os mais pobres é muito mais central. Ou seja, o uso que essas pessoas e grupos fazem de um tipo de poder para tomar decisões que preconizam a saúde coletiva que neste momento atravessa a garantia de recursos financeiros para que as pessoas garantam o básico ou, do contrário, titubear a partir do papel de porta-vozes dos interesse do capital, garantindo apenas que a perda das empresas seja minimizada, são exemplos de como podemos corporificar alguns dos reais ‘inimigos’, ainda que não exponha a todos. Vide falas e ações do atual presidente nos últimos dias em relação a seriedade da situação e a medida provisória (MP 927 — rapidamente revogada) que permitia suspensão de contratos e salários dos trabalhadores nos próximos quatro meses: não pagamento e pagamento parcial, assim como demissões facilitadas, etc. Pessoalmente já vejo pessoas em minha rede familiar e de amigos sendo demitidas no momento em que entrariam em isolamento.

    Um outro exemplo poderia ser o modo como autoridades lidam com a coleta de dados e divulgação de informações que são de interesse social direto. Se no início, onde tudo parece exagerado, – efeito do grau de novidade dessa situação- a resposta ao “querer saber” sobre o avanço do vírus já não é suficiente diante da realidade da subnotificação. Subnotificação que desde o começo é ao mesmo tempo problema e protocolo. Mal informar, nesse caso, é mal localizar os casos, mal planejar e adequar estratégias e mal tratar as pessoas. Resumidamente: responder mal ao que acontece. Justificados por uma insuficiência de recursos, que poderiam ter sido mobilizados muito antes da chegada (esperada) do vírus aqui. Ou priorizar a transparência apenas de informações que tem a ver com o vírus, como se nada mais fosse importante. Situação muito parecida e associada com aquela das pessoas que preferem negar o que acontece e assim acabam por não elaborar repertórios e estratégias, individuais e coletivas, para se viver de modo um pouco melhor esse momento e o futuro que estamos produzindo a partir daqui. Já que parte do que elaboramos para lidar com a situação, pode se manter no pós epidemia.

    Sugiro então nos ‘cuidarmos’, aprofundar o sentido de ‘fazer diferença’. O discurso do cuidado, da atenção, da escuta e do diálogo, potentes, contra aquele outro inócuo da ‘histeria’. Não é sobre o policiamento do cumprimento de medidas pelos outros, mas pelo diálogo. Nem sobre uma solidariedade mixuruca, que se coloca do lado do julgamento moral. É mais sobre buscarmos desenvolver também um cuidado que poderíamos chamar de cognitivo, na medida em que não aceita imediatamente o modo como as informações são apresentadas, como os ambientes simbólicos e práticos estão sendo construídos e nossa percepção orientada… Ou sobre como enquadramos o relevante. Se a realidade (o que é o ‘problema’ e o que decorre como ‘soluções’) parece emergir a partir de como estabelecemos relações entre as informações, talvez também seja sobre readequá-las de modo a conferir mais peso às atitudes dos governos — boas ou não, atentas ou não às fragilidades — e de grupos locais, que já se organizam autonomamente nas áreas mais vulneráveis. E menos sobre a ‘intencionalidade destruidora’ de um vírus.

    *Grito de um vizinho, na Freguesia do Ó, São Paulo.

  • pensar com o corpo em risco

    por: Bru Pereira

    Num texto de 1985, em meio a epidemia de HIV/AIDS, Isabelle Stengers e Didier Gille fazem uma descrição interessante sobre a noção de \”grupos de risco\” como \”batedores avançados\” (uma posição no beisebol), \”os primeiros a serem atingidos pelo perigo que ameaça a todos, mas também quem pode relatá-lo e alertar aos outros sobre ele\”. A recolocação dos grupos de riscos como heróis \”que nos contam e nos lembram o que nós somos […] seres vivos, correndo riscos de viver\”, veio como uma resposta a atitude de certas pessoas que enquadravam grupos de risco como grupos que nos põe em risco.

    No contexto atual, na pandemia COVID-19, a atitude em relação aos grupos de riscos é um tanto quanto diferente daquela dispensada aos grupos de risco de contaminação com HIV em meados da década de 1980. A composição desses dois grupos certamente tem grande influência nessa diferença, enquanto a AIDS acometeu primeiramente homossexuais, mulheres trans/travestis e usuários de drogas injetáveis, a COVID-19 apresenta um risco maior para pessoas idosas.

    Mas acredito que a descrição de Stengers e Gille dos grupos de risco como heróis, como aqueles que nos lembram do perigo que nos ameaça a todos, ainda nos ajuda a superar o sentimento de imunidade que parece acometer alguns corpos que, diante da noção de grupo de risco, se sentem protegidos por não pertencerem a ela.

    Há poucos dias o presidente irresponsavelmente afirmou que apenas os grupos de risco deveriam se isolar, e que ele próprio, por “ter histórico de atleta”, conseguiria resistir ao novo coronavírus. E nesses dias que seguiram a sua fala, eu tenho acompanhado em notícias e grupos pessoas fazendo eco à ideia de que o perigo só existe para aqueles que fazem parte dos grupos de risco. Eles recusam a lição transmitida por esses grupos: temos um corpo que corre riscos ao viver.

    E mais, os grupos de risco ainda nos ensinam que o corpo que temos participa, através de uma rede de fluídos, dos corpos dos outros. (As medidas de distanciamento social parecem se basear nisso.) A constante produção de fluidos corporais nos conecta e uma pandemia nos revela como vivemos nossas vidas através das vidas dos outros. “Viver a vida através da vida dos outros” é uma das definições de Marshall Sahlins sobre o parentesco.

    Poderíamos, então, pensar que o que as pessoas com histórico de atleta recusam, para além do ensinamento de um corpo que corre risco, é um modo de estar relacionado em redes de parentesco. Eles recusam a “mutualidade do ser”, como diz Sahlins. Portanto, essa é uma gente perigosa, pois como nos lembram muitos coletivos ameríndios, pessoas sem parentes podem não ser mesmo pessoas. Estejamos atentas.

  • Pandemia: \”santa ceciliers\” fiscalizam e vaiam pedestres do Minhocão

    matéria originalmente publicada aqui

    \"Ciclista
    Ciclista passeia no Elevado Costa e Silva, conhecido popularmente como Minhocão, em São PauloImagem: Taba Benedicto/Agência O Dia/Estadão Conteúdo

    por: Marie Declercq

    \”Vai para casa\”, gritaram dezenas de pessoas em suas janelas para L.V.*, pesquisadora e urbanista, que saiu de casa para comprar mantimentos no último domingo (22). Os gritos deram lugar às vaias, cada vez mais agressivas, até que o amigo que a acompanhava levou uma ovada vinda de um dos prédios que dão para o Elevado Costa e Silva, viaduto que conecta a região central de São Paulo com a zona oeste, conhecido popularmente como Minhocão.

    distanciamento social é uma das medidas recomendadas pelo Ministério da Saúde e a OMS para evitar o contágio da covid-19 e \”achatar\” a curva pandêmica para impedir o colapso dos sistemas de saúde, que têm da falta de leitos e equipamentos. A recomendação, portanto, é ficar em casa o máximo possível e, quando sair, evitar a aglomeração de pessoas — mantendo pelo menos 1 metro de distância dos passantes. Seguindo todas as recomendações de segurança, L.V. aproveitou o Minhocão, fechado para o trânsito de carros durante o fim de semana, para ir de bicicleta até um supermercado mais distante de sua casa, com mais opções de produtos.

    \”Pegamos o Minhocão pela Rua Ana Cintra [no bairro central Santa Cecília], e não tinha nenhum tapume. Deu para perceber que tinha algo errado porque estava tudo vazio, mas continuamos\”, relata a pesquisadora. \”Teve um momento em que as pessoas começaram a gritar dos prédios, alguns gritos meio engraçados e outros muito agressivos. Seguimos, até chegar na saída da Barra Funda, e ver os tapumes altos bloqueando a saída. Tivemos que voltar\”.

    Na volta, L.V. e seu amigo enfrentaram mais uma vez as janelas atentas dos prédios que dão para o Minhocão. Dessa vez, alguém atirou um ovo direto de um dos apartamentos, acertando em cheio seu amigo. \”A via estava completamente vazia. Claramente era uma situação que não oferecia risco a ninguém. As pessoas estão despertando essa força muito forte de querer vigiar e punir os outros\”, critica. Na semana anterior, a pesquisadora não saiu de casa, conforme recomendado. Por causa das vaias e da ovada, acabou voltando para casa sem conseguir fazer as compras que precisava. O jeito foi fazer as compras mais tarde, naquele dia, em um mercado menor.

    ju@jubrocanelli :

    eu tô muito emputecida que eu e Guilherme fomos hostilizados voltando da feira. nós fomos comprar COMIDA, porque essa é a última semana de feira, e as pessoas tavam tacando bexiga d\’água nos mandando voltar pra casa. guess what! estávamos a caminho de casa.19114:55 – 22 de mar de 2020Informações e privacidade no Twitter Ads49 pessoas estão falando sobre isso

    No mesmo dia, a analista de processos e jornalista Juliana Brocanelli passou pela mesma situação. Ao lado do seu namorado, o publicitário Guilherme*, foram de bicicleta até a feira da Santa Cecília — a última permitida na cidade antes da quarentena decretada na terça-feira (24). Ambos foram de máscara e luvas para comprar mantimentos e também usaram o Minhocão fechado para voltar para casa.

    \”Quando subimos pela rampa de entrada (que não estava bloqueada), um casal estava saindo e avisou para a gente se preparar porque seríamos massacrados. Quando chegamos [na via], foi um barulho ensurdecedor\”, narra Guilherme. Na frente do publicitário e da jornalista estava um casal gay correndo pela via. Eles viraram alvos de bexigas cheias de água, atiradas pelos moradores do entorno do Minhocão. \”As pessoas foram gritando, mandando a gente ir para casa e a gente estava voltando para casa, mesmo. Um dos caras que estavam correndo na nossa frente tinha cabelo grisalho e o pessoal ficou falando que ele era velho e ia morrer primeiro\”, lamenta.

    O casal não só ouviu palavras de ordem para fazer o que já estava fazendo como também foi xingado de \”arrombados\”. Chegando na saída da Barra Funda, viram que o acesso estava fechado por grandes tapumes de metal. Tentando sair da via, foram recebidos mais uma vez com gritos e celulares apontados para eles dos moradores do bairro. \”Comecei a ficar assustada de a gente estar descumprindo alguma ordem ou regra\”, conta Brocanelli. \”A gente não saiu para nada além de comprar a comida\”, conta.

    biruleike@cremubipr:

    Tava comendo ouvi uma gritaria quando vi todo mundo na janela xingando umas pessoas andando no minhocão: \”vai pra casa, caralho\” kkkkkkkk

    A jornalista postou um vídeo das vaias no Minhocão, criticando a conduta dos moradores. L. V. também fez um post no grupo de que participa, onde moradores da região postam avisos. Ambas foram atacadas por alguns internautas, que endossaram a atitude dos vigilantes informais do Minhocão. Não muito longe da entrada principal do elevado está a Praça Roosevelt — onde ainda se veem pessoas utilizando o local para caminhar com seus cachorros e fazer exercícios. Após os panelaços contra o presidente Jair Bolsonaro, que já se tornou costume diário na região, não é raro ouvir moradores dos prédios gritarem para pessoas na rua irem para casa.

    Desde o último fim de semana, o Minhocão passou a ser bloqueado por tapumes após certo horário para impedir que pedestres o utilizem para fazer esportes ou caminhar e, assim, evitar a aglomeração. Parques também foram fechados. No entanto, a quarentena decretada em São Paulo não impede que pessoas caminhem nas ruas, mas aconselha que só saiam de casa apenas para fazer coisas essenciais. Muitas pessoas também não pararam de sair de casa para trabalhar, como é o caso de milhões de trabalhadores autônomos e de prestadores de serviços essenciais que ainda precisam enfrentar o transporte público lotado e outras situações do tipo para conseguirem se manter.

    Pedro Ribeiro Nogueira@draomcqueen :

    Tem um cara andando no minhocão e geral gritando vai pra casa mas janelas

    Vigiar e punir

    A presença de pessoas na rua ainda não é (ainda) algo tão anormal de se observar na cidade. Sem um contexto individual, pode parecer absurdo que alguém ouse sair de casa, colocando seus familiares e a si mesmo em risco. Os gritos das janelas em alguns pontos de São Paulo podem até refletir uma preocupação válida com a seriedade da pandemia da covid-19, mas acabam se manifestando como uma vigilância informal — que é pouco efetiva para lidar com a crise do novo coronavírus no país.

    \”Há muito tempo, em torno de outras questões como o consumo de drogas, existe uma concepção de cidadania que costumo chamar de cidadão-polícia, onde todo mundo se sente policial de si e dos outros\”, explica Acácio Augusto, professor no Departamento de Relações Internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador do LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento).

    \”Esse tipo de conduta policialesca obviamente tende a se intensificar quando, por algum motivo de força maior — no caso, o desencadeamento de uma epidemia — se invoca uma espécie de mobilização total em nome de um bem coletivo e que se sobrepõe a tudo. Nesses casos, todos são imediatamente responsabilizados pelo que pode acontecer de pior. Só isso, a imagem de imobilização total, já é complicada, porque ela não é real. Mesmo do pontos de vista econômico e social, é evidente que ela atinge as pessoas de maneira diferente.\”

    Augusto diz não se surpreender com o fato de que a vigilância venha de uma região conhecida pitorescamente por ter moradores progressistas — os próprios \”santa ceciliers\”. \”Isso atinge tanto as pessoas identificadas ideologicamente com a direita quanto a esquerda. É o que o Foucault chamou de microfascismo, que está incrustado em nossa carne, nas dobras do corpo. Acho bastante complicado, porque [essa conduta] não funciona e gera mais animosidade ao que funcionaria de fato, que é a solidariedade entre as pessoas. Isso decorre da própria ideia de achar que a gente está numa guerra, o que é no mínimo ridículo. É uma guerra contra quem? Contra um vírus que não é uma força política ou militar. Quando se assume esse discurso de guerra, todo mundo se sente alistado na tarefa de manter as pessoas dentro de casa\”, diz.

    A reação das janelas paulistanas no último fim de semana fez com que Mário Eduardo Pereira Costa, psiquiatra e psicanalista e professor do Departamento de Psiquiatria da Unicamp, se lembrasse dos \”Fiscais do Sarney\”, um título popular instituído nacionalmente em 1986, pelo então presidente José Sarney, para que cidadãos fizessem o controle de preços nos mercados varejistas por conta do Plano Cruzado, que tabelava o preço de bens e mercadorias. Rapidamente, a medida escalou para situações esdrúxulas como a cena histórica do consumidor que fechou um supermercado em Curitiba (PR) para evitar a remarcação de preços. \”Numa situação como essa, quanto mais ameaçadas as pessoas sentem com a possibilidade de que o outro rompa o pacto social, mais se desencadeiam paixões brutais. Esse tipo de situação coloca todo mundo à flor da pele o tempo todo. Você está sempre desconfiado que aquele equilíbrio está instável\”, comenta.

    A vigilância feita por nós mesmos parece às vezes ser a única opção — especialmente quando o presidente do país minimiza os danos e mortes da covid-19 e diz que tudo deve voltar ao normal —, mesmo quando grande parte dos países afetados mostra que é muito mais efetivo ficar em casa. Porém, pouco ajuda na situação de quem está saindo de casa pela primeira vez em uma semana para fazer compras ou quem não tem opção, a não ser enfrentar as ruas. \”Uma coisa é ter cuidados, outra coisa é usar a crise para agredir as pessoas e expressar seu ressentimento social\”, aconselha Augusto.

    O Minhocão foi fechado no último fim de semana para evitar a circulação de transeuntes na via, impedindo assim aglomerações. A esperança agora é que as janelas vigilantes se acalmem por ora e o panóptico paulistano descanse um pouco até o final da quarentena.

    * Os nomes e sobrenomes foram ocultados a pedido dos entrevistados. 

  • SUSCETIBILIDADE E VULNERABILIDADE À COVID-19: SOMOS TODOS IGUAIS?

    por: Ricardo Rodrigues Teixeira (Professor da Faculdade de Medicina da USP) e Ivan França Jr. (Professor da Faculdade de Saúde Pública da USP)

    uma versão bem reduzida desse artigo foi publicada na FSP em 26/03/2020

    Até o momento, sabemos que duas abordagens vêm, de algum modo, dando resultados no enfrentamento da epidemia de COVID-19.

    Chamaremos a primeira de testagem agressiva e sustentada. Ela busca ativamente pessoas que possam estar infectadas (testagem dos sintomáticos, busca e testagem dos contatos, visitação domiciliar, controle de temperatura, quarentena dos positivos). Esta tem sido basicamente a resposta na Coréia do Sul, Japão e em cidades-estados como Singapura e Hong Kong. Na Coréia do Sul, após testar 222 mil pessoas, houve um decréscimo dos casos novos, mas chegaram a quase 10 mil casos confirmados e 75 mortes. Os demais têm menos de mil casos.

    Esta resposta exige um sistema de vigilância epidemiológica forte com recursos para buscar, testar, tratar e isolar pessoas, combinado ao uso intensivo de controles por celular, monitoramento do uso de cartão de crédito e, inclusive, por satélites. Para que seja bem-sucedida, além de um sistema de saúde robusto, é preciso que as pessoas isoladas recebam apoio psicossocial, alimentar e de outras necessidades. Na Coréia do Sul, o sistema de saúde é de acesso universal e gratuito, e considerado o melhor entre os países membros da OCDE.

    Esta abordagem é conhecida como estratégia de alto risco, em que o foco está na procura, avaliação e cuidado dos já afetados. Trata-se de uma estratégia fundamentalmente focada nos indivíduos considerados de “alto risco” para a disseminação da doença. Neste caso, os já comprovadamente infectados. Temos razões para acreditar que esse “modelo coreano” tenderá a ser expandido a partir dessa pandemia. Não sem inúmeras implicações ético-políticas que merecem ser discutidas, já que ela envolve graves infrações do direito à privacidade e a implementação de mecanismos de controle individualizado dos cidadãos dignos de um episódio de “Black Mirror”.

    Chamaremos a segunda abordagem de distanciamento social. Trata-se de uma estratégia de saúde pública que busca reduzir drasticamente o contato entre pessoas, de tal modo a diminuírem ao máximo as chances de contato entre infectados e não-infectados. Ela envolve medidas de larga escala, como cancelamento de eventos e fechamentos de espaços públicos, bem como decisões individuais de evitar multidões e manter distância mínima entre pessoas. Em situações mais extremas, isso pode significar interromper a circulação de pessoas em regiões, cidades, estados ou até em um país inteiro, bem como promover grande mobilização social para que os cidadãos adotem oautoconfinamento voluntário e prolongado. Independentemente da situação clínica de cada um, o distanciamento social é adotado por todos os habitantes de um dado local e não apenas pelos afetados. Esta abordagem é conhecida como estratégia populacional.

    Esta foi a estratégia primordialmente adotada pela China, na cidade de Wuhan, província de Hubei. Foram adotadas várias medidas progressivamente mais restritivas à circulação de pessoas: numa primeira etapa, isolando Wuhan e outras áreas da província de Hubei, visando impedir a exportação de casos; numa segunda etapa, restringindo a circulação de pessoas dentro das cidades, construindo um verdadeiro cordão sanitário. Essas medidas foram o tempo todo mescladas à testagem agressiva e sustentada.

    Como na Coréia do Sul, o esforço também tem sido enorme. Segundo a OMS, “em Wuhan mais de 1800 equipes de epidemiologistas, com um mínimo de 5 pessoas/equipe, estão rastreando dezenas de milhares de contatos por dia. O acompanhamento dos contatos próximos dos casos suspeitos é meticuloso, com uma alta porcentagem destes completando a avaliação médica. Entre 1% e 5% dos contatos foram posteriormente casos confirmados em laboratório para COVID-19”. Há alguns dias, não há casos novos e, hoje, a China acumula 81.116 casos e 3231 mortes.

    As estratégias populacionais possuem, via de regra, muito maior potencial para obter resultados coletivos que a estratégia de alto risco, mas também possui suas desvantagens. Há consequências econômicas e psicossociais importantes. Afeta o cotidiano de vida e trabalho, ampliando a ocorrência de sofrimento psicossocial, da fome e da pobreza em vastos setores da população. A implementação também pode ser difícil, dada a necessidade de mobilização coletiva para o autoconfinamento prolongado. Exige do Estado uma alta capacidade de controlar centralmente a informação, de coordenar a gestão das ações para sustentar a vida das pessoas e de exercer poder coercitivo externo. Esse “modelo chinês” também possui inúmeras implicações ético-políticas, com outras violações de direitos civis e políticos, que podem impor limites à sua aplicação em sociedades democráticas e abertas.

    O “modelo chinês”, confirmando o maior impacto coletivo das estratégias populacionais, conseguiu, ao que tudo indica, interromper a transmissão e zerar o número de casos novos. O “modelo coreano” vem sendo bem-sucedido na estratégia de “achatamento da curva de contágio”, sem zerar totalmente a transmissão, mas conseguindo uma desaceleração considerável, que preserva a capacidade de resposta do sistema de saúde e faz com que a Coréia do Sul venha apresentando uma das menores letalidades. Ambas as estratégias não eliminam o problema do estoque de suscetíveis – daqueles que ainda não se infectaram e podem vir a se infectar se o vírus continuar em circulação –, colocando em dúvida a sustentabilidade do panorama atual nos dois “modelos”.

    O caso italiano, que vem sendo tratado como o mais dramático de descontrole no número de casos novos e de óbitos, não adotou efetivamente nenhum dos dois modelos acima. Inicialmente, adotou apenas a testagem dirigida aossintomáticos, sem medidas efetivas de vigilância e busca ativa de novos casos.
    Quando a situação saiu do controle, se viu obrigada a adotar o distanciamento social, mas de forma tardia e através de medidas radicais, baseadas em importantes restrições de direito e forte coerção policial. Importante dizer que, a despeito da generalização, houve diferenças de respostas entre várias regiões da Itália, sendo menos afetadas as regiões ou cidades onde se realizou testagem mais agressiva ou o “lockdown” foi instituído mais precocemente.

    No Brasil, num momento em já nos encontramos em um nível de resposta que é de “emergência de saúde pública”, estamos tendendo a uma combinação dos dois “modelos”, mas com limites. Segundo o Procedimento Operacional Padronizado estabelecido pelo Ministério de Saúde, a testagem permanece restrita à confirmação diagnóstica de casos suspeitos, com indicação de avaliação dos contatos próximos, encaminhando-se para testagem apenas os casos sintomáticos detectados. Também não houve, até aqui, a busca ativa de pacientes internados em hospitais privados, como ficou evidenciado pelos casos do Hospital Sancta Maggiore, que só foram descobertos quando vieram a óbito, caracterizando uma forma de vigilância “passiva”. Portanto, uma estratégia ainda bem distante da testagem agressiva e sustentada praticada pela Coréia do Sul.
    Por outro lado, também vem sendo adotada uma estratégia gradual de distanciamento social, mas com medidas menos drásticas do que a China e numa etapa posterior da epidemia. Sinteticamente, temos, até aqui, uma resposta ínfima na testagem se comparada à coreana e tímida de bloqueio na circulação se comparada à chinesa.

    Não se trata de escolher entre um e outro “modelo”, nem sugerir que poderíamos ou deveríamos aplicar qualquer um deles na íntegra e acriticamente. Trata-se, sim, de cotejar as evidências de sucesso e insucesso que dispomos, num contexto que exige respostas rápidas, para agirmos da maneira mais efetiva possível para preservar vidas, sem violação de direitosfundamentais ou a aceitação resignada do impacto brutal que a epidemia terá sobre os mais vulneráveis. Nesse sentido, considerando o estágio em que já nos encontramos da progressão epidêmica, parece-nos urgente acelerar a combinação da testagem agressiva e sustentada e o distanciamento social, mas orientadas pelas singularidades da nossa estrutura econômica e social e pelos valores que estão na base de uma sociedade democrática e solidária.

    O Brasil, em princípio, se encontraria entre as países que teriam potencialmente uma das melhores capacidades de resposta por contar com um sistema universal e gratuito de saúde. Mas sabemos que a história do SUS é marcada pelo subfinanciamento crônico, agravado, nos últimos anos, pelo desfinanciamento, com o comprometimento de áreas estratégicas. Para aumentarmos nossa capacidade de testagem, precisamos adotar medidas urgentes de reversão desse cenário e fortalecimento do SUS, em especial, da atenção básica e da vigilância epidemiológica e sanitária, além da assistência médica e multiprofissional necessária para o atendimento dos doentes.

    Para tornar efetivo o distanciamento social, precisamos ampliar a mobilização social para o autoconfinamento voluntário prolongado, acionando medidas de mitigação das consequências indesejáveis desse confinamento, em especial,para as populações mais vulneráveis. Medidas que são, de fato, pré-condições para que essas populações possam aderir ao distanciamento social. Em outras palavras, é preciso uma orientação firme e inequívoca das autoridades sanitárias para que o distanciamento social massivo seja praticado. Mas, como sabemos, é na implementação dessa medida que vêm se expressando as mais brutais desigualdades perante essa epidemia. Somos todos suscetíveis, mas a vulnerabilidade é profundamente desigual. São milhões e milhões de brasileiros que vivem do ganho diário para sobreviver, trabalhadores precarizados, sem proteção social, vivendo sem condições adequadas de moradia e de saneamento urbano, quando não vivendo nas ruas. Fundamentalmente, são estes brasileiros que não poderão aderir às medidas de distanciamento social, não porque não queiram, mas porque não podem.

    Diante do imperativo desafio de desacelerar a epidemia e preservar tanto quanto possível nossa capacidade de cuidar dos casos mais graves sem o colapso do sistema de saúde (que, presumivelmente, aumentará o número de mortes e não apenas pelo coronavírus), precisamos acelerar e ampliar tanto a estratégia de alto risco, quanto a populacional. Sabemos, contudo, pela experiência de outros países, que as medidas de distanciamento social radical acabam se impondo de forma draconiana quando a epidemia progride para o descontrole. No ponto da curva ascendente de novos casos em que nos encontramos no Brasil, entendemos que o distanciamento social se apresenta como medida emergencial prioritária e mandatória, mas ainda temos a chance de decidir de que maneira iremos implementá-lo. Essa decisão, tecnicamente embasada, apresenta-se, contudo, como uma clara bifurcação política a respeito do papel esperado de um Estado na gestão de uma crise dessa magnitude e gravidade. De um Estado que, obviamente, não se resigna à passividade e a meramente contabilizar os casos e as mortes e narrar os próximos capítulos da catástrofe. Queremos um Estado judiciário-policial que atuará para impor um distanciamento social forçado, com suspensão de direitos e imposição de todos os danos colaterais dessa medida aos mais vulneráveis ou um Estado social e de defesa dos direitos fundamentais, que proverá os meios necessários para que todos, independentemente das condições de vida, possam efetivamente adotar o distanciamento social voluntário.

    Não podemos conceber em hipótese alguma que a admissão de mortes que poderiam ser evitadas entre nos cálculos que embasam nossas decisões. O princípio deve ser: ninguém será deixado para trás. Em tempos de embrutecimento dos espíritos, também precisamos estar muito vigilantes em relação ao que enuncia coletivamente nossas decisões, sob pena de fazermos escolhas que podem trazer maior ameaça à nossa sobrevivência como “espécie” do que o próprio vírus.