Seguindo nosso percurso nessa trama entre investigações e conversações, abrimos mais um espaço de troca para habitarmos em companhia os limites destes tempos.
A segunda Conversação Febril se dará no dia 7 de maio, 19h. Pelos links:
Nessa conversa, queremos olhar para a ambiguidade presente no acontecimento Covid-19 entre a suspensão do tempo, um respiro (a paragem brusca da qual falou Latour aqui: https://bit.ly/2SltcU4) e, por outro lado, uma experiência de tempo acelerado, asfixia, produzida pelos novos dispositivos de produtividade, desempenho, mobilização permanente na reacomodação do capitalismo.
As fronteiras entre vida, prazer, trabalho encontram-se esfumaçadas. O tempo da domesticidade, aliás, é caracterizado pelo embaralhamento dessas fronteiras; os novos dispositivos do teletrabalho atuam também diante da nossa culpa civilizacional de experimentar o tempo livre; precisamos nos mostrar produtivos, disponíveis, enquanto as tecnologias digitais ampliam a mensurabilidade, o controle e a mobilização total de nossas vidas. A oferta ampla de entretenimento virtual parece querer nos salvar do desconforto do tempo suspenso e da catástrofe que estamos vivendo: “Tenemos que escoger si queremos seguir siendo un terminal del algoritmo de la vida que organiza el mundo o bien un interruptor de la pesadilla que nos envuelve”. O que significa “parar”? O que significa não poder parar, nunca? ” los lentos son perdedores!”.
Como pensar a rivalidade entre desempenho e experiência, conexão e relação, sacrifícios individuais e o prazer do encontro como imagem da luta de classes no capitalismo contemporâneo?
Sugerimos também a companhia dos dois textos para essa Conversação Febril (a seguir).
Identificamos basicamente dois tipos de estratégias preventivas no enfrentamento dessa epidemia: a que chamamos de “testagem agressiva e sustentada” e aquela baseada na adoção de diferentes graus de “distanciamento social”. A primeira, uma estratégia focada nos indivíduos de “alto risco” – aqui entendido como “alto risco de transmissão”, já que o que está em foco é a prevenção da propagação epidêmica. Nessa estratégia, são esses indivíduos que precisam ser detectados, isolados, monitorados, sendo uma estratégia de menor impacto na mobilidade geral da população. A segunda é uma estratégia propriamente populacional, que busca reduzir a mobilidade geral da população, podendo ser aplicada em diferentes intensidades.
A
primeira foi implementada em sua versão mais plena na Coréia do
Sul, com os resultados que conhecemos. Lembrando que o resultado
centralmente esperado dessas estratégias preventivas é o chamado
“achatamento da curva de contágio”, a desaceleração da
propagação epidêmica, com o intuito de preservar a capacidade de
resposta dos sistemas de cuidado, reduzindo a letalidade do agravo e
ganhando tempo para o desenvolvimento de vacina ou terapia. A Coréia
do Sul é o país mais bem sucedido no uso dessa estratégia até
aqui e, talvez, não seja superado. Além de possuir um sistema de
saúde público e gratuito, o mais bem avaliado entre os países
membros da OCDE, já dispunha de toda a infraestrutura logística
necessária para a implementação dessa estratégia quando a
epidemia eclodiu. Uma infraestrutura que integra os dispositivos
tradicionais da vigilância epidemiológica a dispositivos de
vigilância digital capazes de monitorar os movimentos e
comportamentos individuais de cada cidadão. Essa infraestrutura
representa uma articulação sem precedentes entre biotecnologias
(como RT-PCR, sensores de temperatura corporal em pontos de fluxo
etc.) e ferramentas de vigilância algorítmica. Possivelmente, a
mais acabada infraestrutura de um biopoder jamais construída.
A
segunda estratégia (distanciamento social) foi fortemente adotada
pela China. Importante destacar que, segundo o relatório conjunto
OMS-China
(https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/who-china-joint-mission-on-covid-19-final-report.pdf),
a resposta chinesa se deu em 3 etapas: inicialmente, isolando a
província de Hubei (onde se encontra Wuhan) para impedir a
exportação de casos; numa segunda etapa, promovendo o
distanciamento social intensivo para desacelerar a propagação
epidêmica; e, por fim, com uma estratégia para reduzir os
“clusters” de casos, em tudo semelhante à estratégia coreana,
com ampla utilização de “big data” e inteligência artificial.
Contudo, ainda que na etapa atual a estratégia principal também
seja a testagem agressiva e sustentada com controle cerrado dos
positivos e contactantes, a China chegou a zerar os casos novos por
alguns dias, com medidas radicais de distanciamento social em níveis
de “supressão”, recuperando sua capacidade de controle da
epidemia por outros métodos. Um resultado que também parece difícil
de ser igualado por outro país. Como no caso da Coréia do Sul, há
condições “facilitadoras” da efetividade da resposta chinesa:
um Estado autoritário que encontra poucos limites ao exercício do
poder soberano; uma sociedade civil que, do ponto de vista ocidental,
inexiste ou é muito fraca e subordinada ao Estado; um povo para quem
a disciplina e obediência é um traço cultural milenar, em que
impera o coletivismo e não está presente a noção ocidental de
vida privada.
No
Brasil, como em quase todo mundo, o que temos visto no enfrentamento
da epidemia são diferentes combinações dessas duas estratégias,
com variações na intensidade de cada uma delas. Mesmo olhando para
um único continente, como a Europa, há uma grande variedade de
respostas sendo produzidas por cada nação. O que nos leva a fazer
uma primeira grande observação sobre a resposta mundial: a despeito
de estarmos diante de uma pandemia, de uma ameaça colocada em escala
global, assistimos a um recrudescimento das soberanias nacionais, que
se fecham dentro de suas fronteiras e passam a produzir respostas
exclusivas para suas populações, com baixíssima solidariedade
internacional, a ponto de haver uma corrida mundial para aquisição
de insumos em relativa escassez no mercado global, como ventiladores,
máscaras e testes (valendo atos de pirataria!), num cenário em que,
obviamente, as nações mais ricas levarão larga vantagem. Não há
um plano global de enfrentamento da pandemia. Desde que a emergência
foi decretada, o G7 reuniu-se uma única vez, por videoconferência,
e nada deliberou. As desigualdades se acentuam, em todos os níveis,
na resposta à pandemia de coronavírus…
Assim,
o que percebemos, olhando para o mundo, é um mosaico de respostas,
em que sempre se identifica algum grau de distanciamento social (do
mais leve ao “lockdown”) combinado às estratégias de testagem
(das mais restritas, fazendo apenas algumas confirmações
diagnósticas, sem busca ativa e outras medidas de vigilância
epidemiológica, às mais agressivas e sustentadas).
Avaliando
os relatórios de mobilidade para várias regiões do mundo que vêm
sendo disponibilizados pela Google
(https://www.google.com/covid19/mobility/),
observamos países, como a Coréia do Sul, em que a redução da
mobilidade é mínima e que, nos últimos dias, vem mesmo aumentando
em determinados espaços, como parques, praias e jardins públicos.
Embora a Google não tenha dados de mobilidade da China, sabemos que
as medidas de distanciamento social também estão sendo relaxadas
neste país
(https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/07/acaba-o-confinamento-em-wuhan-primeiro-epicentro-da-covid-19.ghtml).
Tanto na Coréia do Sul, quanto na China, a mobilidade social vem
sendo reconquistada, na medida em que os dispositivos de vigilância
digital, que permitem um monitoramento e controle individualizado de
cada cidadão, vão sendo implantados. Observamos também que alguns
países que vêm apostando na realização de testagem agressiva e
sustentada, como a Alemanha e a Suíça, têm feito um distanciamento
social mais leve. Outros países, como a Argentina e Portugal, mesmo
também investindo na testagem, estão adotando um distanciamento
social bastante intenso, em níveis de “supressão”. Cabe ainda
mencionar, neste panorama mundial, os países que têm feito o
distanciamento social máximo, como a Itália e a Espanha. Nesses
países, os indicadores de queda da mobilidade em espaços públicos,
comércios e locais de trabalho são impressionantes! E a impressão
é de que quedas tão drásticas na mobilidade só são atingidas em
países que não conseguiram achatar a curva de contágio e tiveram
seus sistemas de saúde gravemente colapsados. Ainda que o
distanciamento social adotado em qualquer etapa anterior à
constituição da chamada “imunidade de rebanho” possa ter
efeitos de desaceleração do contágio e evitar ainda mais
sobrecargas ao sistema, a adesão massiva da população desses
países a esse comportamento parece menos representar uma estratégia
preventiva e mais o resultado do terror diante do caos sanitário
instalado, secundado, evidentemente, por medidas de repressão da
circulação de pessoas, características de um “estado de
exceção”. É menos uma
medida para tentar minimizar os efeitos da epidemia e mais um efeito
da derrota para a epidemia. Como
diria Camus, representa o triunfo da Peste sobre a Cidade.
Avaliando
os dados de testagem (que se alteram rapidamente:
https://www.worldometers.info/coronavirus/),
descobrimos que a Coréia do Sul, referência nessa estratégia,
realizou até aqui (16/04) cerca de 10 mil testes/milhão de
habitantes. Ou seja, já realizou uns 500 mil testes, conseguindo
testar aproximadamente 1% da sua população. A Alemanha e a Suíça
estão em patamares de testagem mais elevados, em torno de 20 mil
testes/milhão de habitantes. Portugal, além do distanciamento
social intenso, apresenta um índice de testagem na mesma faixa (18
mil). Entre os 15 países com o maior número de casos no mundo, os
índices de testagem variam de 3,5 a 22 mil/milhão de habitantes,
excetuando o Brasil (que se encontra na 11ª posição no número
total de casos) e realizou apenas 296 testes/milhão de habitantes.
Excessivamente atrás, não apenas das nações mais ricas do
planeta, mas também do Irã (3.562 testes/milhão de habitantes) e
da Turquia (5.664 testes/milhão de habitantes). Não nos parece, de
modo algum, que o baixíssimo número de testes realizados no Brasil
possa se dever a qualquer limitação de ordem econômica. A ausência
de uma estratégia consistente de testagem, combinada a um
distanciamento social pouco intenso, vacilante, errático e que,
ainda por cima, vem sendo relaxado nas últimas semanas, não tem
como não colocar nosso país entre aqueles de pior prognóstico. A
despeito de estarmos adentrando uma violenta tempestade em “voo
cego”, sem dados mínimos sobre as reais taxas de incidência neste
momento, temos todos os elementos para saber que a curva de casos
novos está em franca ascensão. Relaxar as medidas de distanciamento
social, nesse momento, e continuar negligenciando a testagem,
certamente acelerará a curva de contágio e a sua velocidade de
disseminação entre as comunidades mais pobres, ainda imensamente
despreparadas para o impacto. Além do colapso do sistema de saúde,
é de se temer muitos outros colapsos no Brasil: dos serviços
funerários ao colapso de qualquer coisa que se assemelhe a um
“contrato social”…
No
artigo, procuramos
fundar nossas análises nas melhores informações técnicas e
científicas disponíveis, mas deixando claro que as grandes decisões
que temos que tomar são políticas.
De forma bem simples, identificamos uma grande bifurcação política
nas possíveis respostas do Estado diante da crise: as respostas se
darão garantindo e expandindo direitos ou se darão reduzindo e
suprimindo direitos? Se darão no sentido do reconhecimento do
direito universal à vida, acionando mecanismos de proteção social
para garanti-lo com equidade, fomentando o espírito de solidariedade
e uma forte cooperação social (o que cria e expande novos direitos,
como, por exemplo, quando se suspendem patentes e propriedades
intelectuais, quando se retiram pay-walls
e “catracas”, evidenciando a existência de toda uma série de
bens comuns – commons
– que escaparam do controle público e foram submetidos ao controle
e à exploração por grupos privados), ou as respostas se darão
pela repetição da histórica omissão em relação aos mais
vulneráveis, adotando linhas de ação que levam muito pouco em
consideração a real desigualdade do “direito à vida”, o que
pode, diante de uma situação extrema de ameaça à vida, levar a
reações desesperadas e à convulsão social, abrindo terreno para a
supressão de mais direitos e a imposição de mais medidas “de
exceção”? Mesmo dispondo de todo aparato necessário para
produzir o primeiro tipo de resposta (o que inclui esse gigantesco
trunfo, que poucos países possuem, que é o SUS), é muito forte a
impressão de que estamos cumprindo o enredo do segundo tipo de
resposta.
Faço
uma rápida reflexão partindo da questão do distanciamento social.
É uma questão muito delicada, não apenas de um ponto de vista
econômico ou psicológico, mas, antes de tudo, de um ponto de vista
antropológico. O que pode significar para um coletivo humano
auto-impor-se um distanciamento social? Não é uma questão simples:
envolve um enorme paradoxo! O distanciamento social ameaça
objetivamente nossa existência social e não há outra existência
para nós, humanos. Desse ponto de vista, a pergunta que se coloca é:
em que condições nós poderíamos concordar que o melhor, para
todos, seria mantermos um distanciamento social temporário? Entendo
que seja necessário preencher alguns requisitos cognitivos e
políticos para que um coletivo humano possa deliberar,
coletivamente, que seus indivíduos se mantenham distanciados um dos
outros por um certo tempo. É preciso que haja nesse coletivo, no
mínimo, o domínio compartilhado de uma noção relativamente
abstrata que é a de “população”, de que fazemos parte de uma
população de humanos em convívio com incontáveis outras
populações de seres vivos. De que fazemos parte de uma dimensão
comum da vida que nos ultrapassa, que possui dinâmicas próprias,
sobre as quais é possível intervir. E nesse último caso, quando
deliberamos coletivamente intervir no nível da população, tal como
se dá quando decidimos adotar medidas de distanciamento social, não
estamos mais diante apenas de uma questão antropológica, mas
política.
Para
compreender melhor esse ponto, contribuem muito as análises de
Foucault sobre os mecanismos de poder. Em especial, quando trata do
biopoder, do nascimento de uma biopolítica, de uma nova
racionalidade e tecnologia de governo que investe a vida não apenas
enquanto corpo individual (como já faziam os mecanismos
disciplinares), mas enquanto “corpo coletivo”, enquanto
população, enquanto espécie. O biopoder é essa técnica de poder
que destaca um plano dos fenômenos populacionais, sobre o qual se
irá deliberadamente intervir, uma vez que são estes os fenômenos
que se pretende regular, controlar, conduzir, governar, com o
objetivo de mantê-los dentro de um “intervalo de confiança”,
dentro de uma faixa de variação considerada segura. Foucault nos
mostra que é o Estado que se constituiu historicamente como grande
aparato capaz de governar fenômenos de população, seja pelo
exercício do poder soberano incrementado por mecanismos de poder
disciplinar (representados pelos aparatos jurídicos e policiais),
seja através dos mecanismos biopolíticos de indução da conduta
humana e do comportamento social (representados pelos múltiplos
dispositivos pelos quais se faz política
econômica e social). É o monopólio dessas “técnicas de poder”,
o que faz com que apenas o Estado detenha os meios para produzir as
respostas exigidas para se enfrentar uma trombada do tamanho dessa
que estamos vivendo. E o que essa perspectiva foucaultiana, de modo
oportuno, evidencia, é o fato de que o que chamamos de resposta
técnica à pandemia é sempre uma resposta política, que se faz
através de técnicas políticas, técnicas governamentais.
Nesse
ponto, cabe um comentário sobre a compreensível exaltação, em
tempos de “anti-ciência”, da “soberania da ciência” nas
tomadas de decisão política diante dos desafios maiores postos hoje
para a sobrevivência da humanidade e de outras formas de vida no
planeta, especialmente quando se busca a comunicação com uma
“opinião pública desinformada”. Mas, entre os próprios
cientistas, essa discussão sobre o papel da ciência poderia
melhorar. A hegemonia de um dado paradigma de ciência é tamanha que
é como se não existisse, de fato, uma “guerra das ciências”,
conforme a expressão de Bruno Latour. No entanto, ela está aí,
claramente colocada, como sempre esteve, jamais inteiramente
sufocada, porque é a expressão de um embate real entre forças
políticas presentes no campo social e não veleidades
epistemológicas. O campo da Saúde Coletiva deveria ser
especialmente sensível a essas questões, já que ele se funda num
ato de disputa de paradigma científico no campo da saúde…
Nesse
sentido, a discussão atual em torno do que seria uma resposta
técnica e cientificamente embasada à pandemia abre um amplo espaço
para uma retomada das premissas político-epistemológicas da
Medicina Social – que também estavam presentes nas origens da
medicina científica no século XIX, disputando qual seria o
verdadeiro “problema” posto para a medicina e as práticas de
saúde de uma forma geral. É notável como essa antiga fórmula de
Rudolph Virchow ganha especial eloquência no cenário atual: “os
avanços na medicina podem eventualmente prolongar a vida humana, mas
as melhorias das condições sociais podem alcançar esse mesmo
resultado de maneira mais rápida e bem-sucedida”. Sabemos como são
urgentes e fundamentais todo os esforços que vêm sendo feitos para
ampliar a capacidade de resposta do sistema de saúde aos casos
graves da doença, com ampliação emergencial dos leitos
hospitalares e de terapia intensiva. Mas também são fartas as
evidências de que sem medidas preventivas visando o achatamento da
curva, mesmo com essa ampliação, não há cenário em que o sistema
seja capaz de dar conta do número de casos. Do mesmo modo, é
desejável e indispensável todo esforço que vem sendo feito na
busca de um medicamento eficaz para a COVID-19, mas é importante
lembrar que o acesso a qualquer tratamento ficará dificultado se o
sistema de saúde colapsar. Assim, permanece sendo urgente a decisão
técnica e cientificamente embasada de acelerar a combinação da
testagem agressiva e sustentada e o distanciamento social intenso,
medidas que precisam ser implementadas de modo orientado pelas
singularidades da nossa estrutura econômica e social e pelos valores
que estão na base de uma sociedade democrática e solidária.
Para
aumentar nossa capacidade de testagem, é indispensável que, para
além dos hospitais, também haja um investimento emergencial
significativo na atenção básica e na vigilância epidemiológica e
sanitária do SUS, possibilidade aberta pela decretação do estado
de calamidade pública que flexibilizou o cumprimento das regras
fiscais. É preciso determinação técnica combinada a vontade
política para se fazer esse urgente e necessário investimento
massivo de recursos no SUS. Mas, em relação a isso, o que temos
observado, até aqui, é um Estado passivo, com os representantes do
Ministério da Saúde se restringindo a comemorar, nos últimos dias,
o aporte de recursos, sobre os quais sequer terão controle, advindos
da filantropia do alto empresariado e dos bancos.
Para
tornar efetivo o distanciamento social, precisamos ampliar a
mobilização social para o autoconfinamento voluntário. E que ele
seja voluntário, é um princípio ético-político fundamental!
Princípio que assume que o papel principal do Estado não deve ser o
de obrigar e coagir, mas o de educar e procurar convencer sobre a
razoabilidade das medidas que se orientam para o bem comum,
sobretudo, para o bem comum maior, que é a defesa da vida de todos e
de cada um, provendo solidariamente os meios para que todos possam
efetivar essas medidas. É preciso deixar bem claro, entretanto, que
se trata de um princípio ético-político de atuação do Estado, um
princípio de respeito à autonomia de agência dos indivíduos, não
se confundindo com qualquer tipo de concepção ingênua a respeito
do livre-arbítrio ou de um suposto “império da vontade” a reger
nossas condutas. Não basta, para o autoconfinamento acontecer, uma
deliberação da vontade. Não basta querer, é preciso poder
praticar o distanciamento social. Por isso, é preciso acionar
medidas de mitigação das consequências indesejáveis desse
confinamento, em especial, para as populações mais vulneráveis.
Medidas que são, de fato, pré-requisitos para que essas populações
possam aderir voluntariamente ao distanciamento social. Em outras
palavras, é preciso, primeiramente, uma orientação firme e
inequívoca das autoridades sanitárias para que o distanciamento
social massivo seja praticado. Mas, como sabemos, é na implementação
dessa medida que se expressam as mais brutais desigualdades perante
essa epidemia. Como afirmamos no artigo, “somos todos suscetíveis,
mas a vulnerabilidade é profundamente desigual”. São milhões e
milhões de brasileiros que vivem do ganho diário para sobreviver,
seja como empresários de pequenos negócios, seja como trabalhadores
precarizados, sem proteção social, vivendo sem condições
adequadas de moradia e de saneamento urbano, quando não vivendo nas
ruas. Fundamentalmente, são estes brasileiros que não poderão
aderir às medidas de distanciamento social, não porque não
queiram, mas porque não podem. Só o Estado dispõe dos instrumentos
políticos capazes de fazer com que o distanciamento social
voluntário se efetive e poucas vezes ficou tão agudamente evidente
o quanto a política econômica e social pode ser a mais poderosa
ferramenta de intervenção médico-sanitária.
O
Estado brasileiro, graças à atuação decisiva do poder
legislativo, tomou algumas medidas importantes nessa direção, como
a provação do “auxílio emergencial” e algumas outras medidas
de mitigação das consequências econômicas e sociais nefastas do
confinamento. Importantes, porque na direção correta, mas
insuficientes. Insuficientes no tamanho do auxílio, considerando as
reais necessidades vitais das famílias, e não apenas sua dimensão
de “remédio econômico” para mitigar o tamanho da recessão.
Essa questão do “auxílio econômico” é um ponto crucial no
enfrentamento da pandemia, porque nele, a dicotomia entre as medidas
de proteção da vida e de proteção da economia se desfaz. Uma
economia cuja proteção se oponha à proteção da vida é uma
economia de morte. Não merece ser salva. O debate sério sobre o
assunto indica que a “estatização da renda das pessoas” (como
dizem os economistas liberais) parece ser um componente inescapável
da resposta econômica para se evitar uma depressão. Dessa vez,
parece que não será suficiente salvar apenas os bancos, sem
garantir um mínimo do poder de compra das famílias. Os recursos
para financiar essa grande operação biopolítica de defesa da vida
e da economia existem e sabemos onde estão. Levantá-los, contudo,
exige a quebra de resistências políticas históricas na sociedade
brasileira. Resistências tão duras de serem quebradas, que têm
garantido, por exemplo, que nossa estrutura tributária absurdamente
regressiva se mantenha inalterada, a despeito de ser uma flagrante
máquina de aprofundamento da desigualdade social num país
profundamente desigual. Além disso, as medidas tomadas também são
insuficientes porque não conseguem vencer os entraves burocráticos
e a ausência de mecanismos eficientes para que o auxílio chegue
efetivamente até as pessoas. Daí que o objetivo visado por essa
política (viabilizar um distanciamento social mais intenso) não
venha sendo alcançado. E, sem a efetivação dessa política,
atribuir a não adesão ao distanciamento social de amplos setores da
população a uma suposta “falta de consciência” dos indivíduos,
é uma análise bastante pobre da determinação do comportamento e
uma “moralização” do problema.
Na
medida em que esse caminho político permanece, na prática,
interditado, o campo das respostas técnicas à pandemia se vê
restrito a um conjunto de medidas, igualmente científicas, mas de
impacto muito mais limitado. Limitação que se medirá no número de
mortes que ocorrerão e poderiam ter sido evitadas. E na medida em
que determinadas políticas não se efetivam com a força exigida, o
que se impõe, na prática, aos mais vulneráveis, é aquilo que a
filósofa Isabelle Stengers chamou de “alternativas infernais”: a
fome ou a peste. E para coroar o espetáculo dantesco, ainda
descobrimos, estarrecidos, que essa opção de “deixar morrer” é
uma opção consciente e deliberada de alguns atores de peso nas
tomadas de decisão política no país, como o presidente do Banco
Central, que numa fala a investidores, no início de abril, declarou
que o colapso do sistema de saúde, obrigando os médicos a terem que
decidir entre quem atender e quem deixar morrer, é um preço
razoável para evitar uma recessão econômica maior
(https://theintercept.com/2020/04/16/banco-central-presidente-coronavirus-economia/).
A projeção futura do quadro que pode derivar desse tipo de escolha
política, no momento em que o caos sanitário estiver instalado –
uma projeção que não pode ser ignorada por esses atores políticos
–, nos faz supor que eles contam com uma “fase 2” da
estratégia, baseada na força do Estado judiciário-policial, que
poderá atuar para impor um distanciamento social forçado, com
suspensão de direitos e imposição de todos os danos colaterais
dessa medida aos mais vulneráveis. Deveria ser desnecessário dizer
– mas não é! – que se trata de uma abominação moral que a
admissão de mortes evitáveis possa entrar nos cálculos que embasam
decisões políticas. Em tempos de embrutecimento dos espíritos,
também precisamos estar muito vigilantes em relação ao que
enunciam coletivamente as decisões que estão sendo tomadas, sob
pena de fazermos escolhas que podem trazer maior ameaça à nossa
sobrevivência como “espécie” do que o próprio vírus.
Perguntemo-nos, por exemplo, o que
enuncia politicamente que 15 bilhões de reais tenham sido liberados
para empresas de saúde privada que atendem, com grandes limitações
de cobertura, apenas 25% da população, supostamente a menos
vulnerável, enquanto para o restante 75% da população que depende
apenas do SUS, foi repassado muito menos que isso
(https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/04/a-insensatez-dos-planos-de-saude.shtml).
Mas
também nos perguntemos o que enuncia coletivamente o fato de dois
bilhões de seres humanos estarem confinados em suas casas, num
momento de grande crise da democracia em todo mundo. O que enuncia
coletivamente o fato de que, nesse momento, várias das principais
nações europeias se encontrem sob “estado de exceção”, com o
exército nas ruas? A linguagem é um vírus (conforme a fórmula
poética de William Burroughs). E não é muito animadora a
“linguagem” que circula nesse momento! Esse discurso de
mobilização de guerra, do vírus como inimigo, de exaltação da
“cidadania sacrificial” dos trabalhadores de saúde, é muito
preocupante! É o tipo de discurso político que se presta a
justificar suspensão de direitos e adoção de medidas “de
exceção”. Do mesmo modo que serve para justificar e banalizar as
consequências da instauração de mecanismos permanentes de
vigilância digital securitária e totalitária, como se fosse um
preço razoável a se pagar pela “liberdade”. Há tantos ou mais
perigos em algumas das respostas a esta pandemia, quanto na própria.
Precisamos saber escapar das “alternativas infernais”, o que
implica vencer o medo que nos paralisa e abrirmo-nos à emergência
de novos modos de vida e de relação com os conhecimentos e as
tecnologias…
3 – O editorial da última edição da revista Saúde em Debate(http://revista.saudeemdebate.org.br/sed/issue/view/37/v.%2044%2C%20n.%20124%2C%20jan-mar%2C%202020),do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), ressalta o impacto de medidas neoliberais na saúde como origem do cenário da pandemia na Itália e chama a atenção para as medidas de austeridade brasileiras,como a Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos). De que forma as consequências da falta de prioridade da saúde pelos governos e do subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde (SUS) são sentidas no cenário atual?
As
relações entre as medidas de austeridade neoliberais e o impacto
humano que terá essa pandemia são demais evidentes, já que essas
políticas foram diretamente responsáveis pelo sucateamento do
principal escudo de proteção que os países podem ter nessa crise,
que é um sistema de saúde público, robusto e de qualidade. Nesse
momento de crise aguda, fica palpável o quanto o sucateamento do
nosso SUS representa diretamente o sucateamento da vida dos
brasileiros. O quanto o desmanche desse e de outros sistemas de
proteção social precariza a vida e amplia a vulnerabilidade social.
Mas não é apenas por esses aspectos que os efeitos das políticas
neoliberais são sentidos no cenário atual. Elas representam mais do
que um receituário econômico e fiscal, elas definem todo um modo de
vida cujo esgotamento, pela insustentabilidade ambiental, social e
subjetiva, está cada vez mais patente. A pandemia feriu de morte
esse modo de vida e precipitou um colapso econômico que já estava
anunciado. Ela marca nossa entrada na era dos fenômenos naturais
extremos previstos na “emergência climática” e coloca uma
enorme pedra sobre o mito do crescimento ilimitado. O que não quer
dizer, nem de longe, que o capitalismo acabou, foi derrotado e
despertaremos agora para um mundo frugal e igualitário. Especula-se
muito sobre um suposto mundo pós-viral, sobre um mundo transformado
que emergirá dessa pandemia. O meu argumento é de que esse mundo
pós-viral já começou ou, de qualquer forma, o mundo transformado
por essa pandemia já se encontra em disputa nesse momento, já está
sendo construído nas respostas concretas que estão sendo
produzidas. O vírus não é capaz por si só de provocar uma mutação
social; nenhuma nova ordem mundial emergirá “naturalmente” desse
acontecimento. O mundo pós-viral já começou e está sendo
disputado, antes de mais nada, nas respostas que estamos produzindo
no próprio enfrentamento da pandemia. Por isso me estendi
consideravelmente nas primeiras questões desta entrevista, por isso
me pareceu importante procurar fazer uma análise (bio)política das
respostas que estamos produzindo. São dimensões importantes da
produção desse mundo pós-viral e não se pode dizer que, desse
ponto de vista, estejamos indo bem em toda parte. Estamos
especialmente mal posicionados nessa crise, uma vez que, do Brasil,
temos dificuldades de ver pela frente um cenário menos que sombrio.
Mas há questionamentos e movimentos importantes se dando em muitas
partes, que vão na direção de uma transformação profunda na
organização política e econômica de nossas vidas…
4 – Como pensar comunicação e saúde nesse contexto de pandemia e disseminação de fake news? Quais elementos são importantes paradifusão de informações relacionadas (epidemiológicas, políticas,econômicas) ao Covid-19 de forma segura?
O
tema do meu mestrado, há quase 30 anos, foi justamente o das
epidemias, trabalhado numa perspectiva semiótica e comunicacional.
Procurei desenvolver um único
esquema
interpretativo para a análise, tanto de fenômenos epidêmicos (de
doenças), quanto comunicacionais (de comunicação social), com o
intuito de analisar a epidemia de HIV/AIDS em seus primeiros anos,
considerando a relação entre a dinâmica de propagação viral e a
dinâmica de propagação da informação. Identifiquei a existência
de dois “esquemas epidêmicos”, que correspondem a duas dinâmicas
comunicacionais distintas, observáveis tanto na propagação de
agentes infecciosos, quanto de informação: o “contágio” e a
“irradiação”. As epidemias de contágio, que se propagam ao
sabor dos contatos sociais, são mais lentas (os casos se distribuem
ao longo do tempo) do que as epidemias irradiadas, tipo fonte comum
(em que muitos casos se apresentam simultaneamente). A ideia geral é
que uma epidemia de contágio (de doença) pode ser combatida com uma
contraepidemia irradiada (de informação). É uma questão
“dromológica” (como diria Paul Virilio), uma questão de
velocidade, de corrida entre “informações”: o objetivo é que
determinadas “informações” consigam chegar nas pessoas antes do
vírus (seja na forma de uma vacina, enquanto uma “informação
imunobiológica”, ou na forma da informação necessária para se
praticar a proteção individual e coletiva).
Do
ponto de vista da comunicação social, o grande modelo de
comunicação irradiada que dispúnhamos, no início dos anos 1990,
era o chamado “broadcasting”, o modelo fornecido pelas grandes
mídias de massa que dominaram o século XX, como o rádio e a
televisão. Ainda que se reconheça (e se preconize como estratégia)
que os modelos de comunicação irradiada e por contágio estejam (e
devam ser) quase sempre hibridizados, a lógica do “broadcasting”
possui duas características fundamentais para as estratégias de
comunicação em contexto de epidemia: a rapidez de difusão e o
controle centralizado da informação pelo polo emissor. Ora, o
cenário das tecnologias de comunicação e informação passaram por
uma verdadeira revolução nos últimos 30 anos, capitaneada pelo
crescimento e pela popularização da internet e o advento das mídias
sociais. Produziram-se profundas alterações na “ecologia
comunicacional” humana, que acabaram abalando alicerces importantes
das estratégias comunicacionais em contexto de epidemia. O advento
das mídias sociais produziu duas mudanças importantes na dinâmica
comunicacional por “contágio”: primeiramente, imprimiram uma
velocidade sem precedentes à “epidemia de contágio”, produzindo
uma dinâmica apropriadamente chamada de “viral” na propagação
da informação; além disso (e em função dessa lógica viral, que
transforma cada um numa central de “broadcasting”, produzindo um
dilúvio informacional), a dinâmica de propagação da informação
por contágio passa a obedecer não apenas à lógica que governa,
por exemplo, os encontros/contatos que se dão entre os corpos num
território, mas a uma outra lógica que passa a governar os
contatos/conexões que se dão na rede eletrônica. Essa outra lógica
é introduzida pelos algoritmos que, nesse sentido, estruturam as
“redes de contágio” (segundo interesses comerciais e estratégias
de marketing) de um modo que acaba contribuindo para a constituição
de uma socialidade em “bolhas”, com enormes repercussões
subjetivas e políticas. Em síntese, as mídias sociais aumentaram
desenfreadamente a difusão da informação, mas de qualquer
informação, reduzindo as possibilidades de serem controladas
centralmente por um polo emissor autorizado. Ao mesmo tempo, as
“redes de contágio” não são aleatórias e, sim, estruturadas
para promoverem a constituição de “clusters” que expressam,
segundo uma lógica “mercadológica” que organiza o espaço
social em “nichos”, a distribuição dos múltiplos novos centros
irradiadores de autoridade. Essa nova “ecologia comunicacional”
instaurada pelas mídias digitais é bastante crítica para as
estratégias comunicacionais tradicionais de enfrentamento de
epidemias…
Em
outubro do ano passado, o Johns
Hopkins Center for Health Security (em parceria com o Fórum
Econômico Mundial e a Fundação Bill & Melinda Gates) realizou
um exercício de simulação de uma severa pandemia de coronavírus,
com o objetivo de identificar os grandes problemas que teríamos hoje
para produzir as respostas necessárias para minimizar seus graves
efeitos sociais e econômicos, avaliando o quanto estaríamos ou não
preparados para produzi-las (o tamanho do “preparedness gap”): o
Event 201 (https://www.centerforhealthsecurity.org/event201/).
Nesse exercício, um dos segmentos de discussão foi inteiramente
dedicado às questões de comunicação
(https://youtu.be/LBuP40H4Tko)
e o principal ponto crítico levantado foi o problema da “epidemia
de desinformação” ou o problema da “preservação da
integridade da informação”. A nossa incapacidade de lidar com o
fenômeno contemporâneo das chamadas “fake news”, na visão dos
experts que participaram do exercício, foi, de longe, o maior
“despreparo” identificado para o enfrentamento de uma pandemia,
no que tange as questões de comunicação.
Para
os especialistas que participaram do Event 201, as respostas para uma
situação de desinformação epidêmica desenfreada, num cenário de
pandemia severa (a epidemia de coronavírus imaginada no exercício
teria matado 65 milhões de pessoas), poderiam chegar ao “internet
shutdown”. Nesse caso, teríamos a imposição de uma situação,
de fato, de “isolamento social” e não apenas distanciamento. Uma
situação em que a interrupção dos contatos físicos não seria
suficiente, em que seria também preciso deter o espalhamento da
“peste” através das mídias virtuais. Os especialistas ponderam
o pânico e outros prejuízos colaterais que um “shutdown”
causaria, mas o concebem como um cenário limite com mídia
social desenfreada, governos em colapso e cidadãos se revoltando.
Diante de um cenário menos severo (que, talvez, corresponda ao
nosso), o que propõem? Fundamentalmente, propõem que, de algum
modo, se reconstitua uma fonte confiável de informação. O
diagnóstico que fazem da “crise comunicacional” (com o qual, em
linhas gerais, concordo) é de que se trata, em última instância,
de uma “crise de confiança”. Há uma desconfiança generalizada
em relação às instituições (ao chamado “sistema”) como fonte
confiável de informação. Principalmente, em relação à mídia
tradicional e à ciência, mas também em relação aos governos. Os
governos sempre suscitaram alguma desconfiança, mas a situação se
agrava quando alguns governos passam a atuar abertamente no ramo das
“fake news”, ampliando ainda mais a crise de credibilidade da
instituição que representaria o poder público. Numa dimensão
afetiva, instaura-se um problemático mundo social fundado em
relações de desconfiança; numa dimensão cognitiva, abre-se o
caminho para o chamado mundo da “pós-verdade”. Ainda não
entendemos bem o que significa esse fenômeno, suas causas, seus
sentidos, mas há pistas interessantes trazidas por alguns estudiosos
de que não se trata tanto de uma oposição à “verdade”, quanto
de uma oposição aos “sistemas de produção da verdade”, em
geral, opacos nas suas “regras de produção da verdade” e, via
de regra, arrogantes e autoritários na sua comunicação social.
Esse entendimento é importante, porque nos sinaliza que há
tentativas de se reconstituir o valor das “verdades”, há
estratégias que buscam se opor ao mundo da “pós-verdade”, que
podem, de fato, exacerbá-lo. Não seriam muito promissoras, por
exemplo, as estratégias assentadas na ridicularização da
ignorância ou na afirmação do poder absoluto e infalível de
qualquer discurso de verdade. Se aceitamos a tese de que o problema
não seria tanto uma “crise da verdade”, quanto uma “crise de
confiança” nos “donos da verdade”, então, a questão
primordial permanece sendo como restaurar um regime de socialidade
fundado em relações de confiança. Nesse sentido, o que seria
logicamente mais favorável a este restabelecimento: estratégias
comunicacionais que buscam afirmar a superioridade indiscutível de
determinadas fontes sobre outras ou estratégias comunicacionais mais
dialógicas? De todo modo, a questão da crise de confiança nas
instituições de saber-poder ainda precisa ser muito mais
aprofundada, indo às origens fundamentalmente políticas dessa
crise, para podermos realmente avançar nessa questão das
“estratégias comunicacionais”…
Elidindo
completamente o problema da raiz política dessa crise, os experts
recuperam velhas fórmulas das teorias da comunicação de massa,
como o “two steps flow of information”, adaptadas ao mundo da
comunicação em rede. Essa estratégia busca hibridizar os dois
modelos comunicacionais/epidêmicos: a irradiação e o contágio.
Por um lado, garantindo a centralidade de uma fonte de informação
confiável, por outro, reconhecendo que as fontes efetivamente
confiáveis para as pessoas são os sujeitos identificados como
“líderes de opinião” para suas comunidades. Com esse intuito,
fazem um exaustivo mapeamento de possíveis “lideranças”, que
poderiam se constituir em fontes de informação confiáveis, mas não
fica claro como elas poderiam efetivamente desempenhar esse papel em
meio ao regime geral de desconfiança em relação a todas elas:
organismos internacionais (OMS), governos, mídia tradicional,
corporações, empresários, cientistas, médicos, trabalhadores da
saúde etc. E diante da dificuldade em se resolver uma “crise de
confiança” com estratégias meramente comunicacionais, voltam-se
para as tentativas de controle dos meios, das plataformas
tecnológicas de comunicação, e passam a depositar esperança nos
algoritmos que permitiriam a identificação de campanhas ou
“clusters” de desinformação, acionando mecanismos de “bloqueio
epidêmico”, que poderiam variar de uma “advertência” de que a
informação foi checada “falsa” (já em funcionamento em algumas
plataformas sociais) à remoção automática do conteúdo da rede
e/ou punição para os responsáveis.
É
interessante notar como o enfrentamento das duas epidemias (de
coronavírus e de “fake news”) acaba recebendo abordagens
inteiramente homólogas: nas situações extremas, pode-se apelar
para o “shutdown” da rede; mas a tendência mais promissora,
porque preserva o funcionamento da rede, é a instalação de
mecanismos de vigilância algorítmica de todas as informações
circulantes. As mesmas preocupações já levantadas em relação às
estratégias de enfrentamento da pandemia se recolocam, com redobrada
preocupação, nesse terreno, sobre o risco que há em se banalizar
a instauração de mecanismos permanentes de vigilância algorítmica
como se fosse um preço razoável a se pagar pela suposta garantia da
“veracidade” do que circula na rede. Aqui também as grandes
escolhas não são técnicas, mas políticas.
5 – Qual a sua opinião sobre o desenvolvimento da área de Comunicação Social e Saúde no campo da Saúde Coletiva no Brasil nas últimas três décadas?
Sem
dúvida, nessas últimas décadas, houve um desenvolvimento
importante dessa área no campo da Saúde Coletiva, expresso na maior
presença da pesquisa específica em Comunicação e Saúde nos
periódicos do campo (além da criação de uma revista
especializada, com mais de 20 anos de existência), mas também na
multiplicação de temas e focos de investigação envolvendo
problemáticas “comunicacionais” ou passíveis de uma abordagem
“comunicacional”, em outras áreas da Saúde Coletiva. A
micropolítica do trabalho vivo em saúde e as “tecnologias leves”,
o acolhimento como trabalho afetivo e técnica de conversa, as
dimensões intersubjetivas do cuidado em saúde, a humanização do
cuidado e da gestão, o desafio da cogestão, o desafio da
interprofissionalidade, do trabalho em equipe, da articulação do
trabalho em rede, a coordenação do cuidado, o apoio matricial, a
educação permanente, a educação popular em saúde, são apenas
alguns exemplos que dão testemunho desse crescimento das abordagens
e temas envolvendo uma problemática “comunicacional” no campo da
Saúde Coletiva. Todas pautas de pesquisa em estreita relação com
desafios concretos postos no cotidiano dos serviços e nos processos
de construção do SUS.
Mas
há outro modo de se compreender o desenvolvimento da área nas
últimas décadas, que leva em consideração os deslocamentos de
paradigmas que se deram nesse período. Uma análise mais fina e
detida poderia identificar ainda outros deslocamentos, mas vou
destacar, neste momento, dois principais, sintetizados em dois
acontecimentos epocais marcantes e decisivos: a epidemia de HIV/AIDS
e a internet.
De
novo, uma epidemia. Uma epidemia que, em meio à profusão de efeitos
produzidos no mundo contemporâneo, veio colocar em xeque concepções
arraigadas e estratégias tradicionais de comunicação em saúde. O
enfrentamento de uma epidemia que, em seus primeiros anos, contava
apenas com formas de prevenção baseadas em mudanças de
comportamento (sobretudo, na esfera sexual), forçou uma revisão
profunda das concepções a respeito da determinação do
comportamento que, até então, orientavam as estratégias
convencionais de comunicação em saúde. Pode-se dizer que a
epidemia de HIV/AIDS colocou em crise os modelos de comunicação
transmissionistas, fundados em esquemas “behavioristas” de
compreensão da determinação do comportamento, convocando modelos
mais dialógicos e esquemas de compreensão da determinação do
comportamento que concebem uma forte influência de determinantes
estruturais, coletivos e institucionais. Esse importante deslocamento
de paradigma está bem representado em todos os desenvolvimentos
teórico-práticos produzidos no campo pelo conceito-operante de
vulnerabilidade, cuja operacionalidade tem sido exercitada nas
análises e proposta de enfrentamento da epidemia atual…
A
importância do segundo acontecimento – o crescimento e a
popularização da internet e das mídias sociais – também já
foi, não casualmente, ressaltada nos comentários que fiz sobre as
dimensões comunicacionais envolvidas na epidemia atual, sobre as
profundas mudanças produzidas pelas tecnologias digitais de
comunicação em rede em nossa “ecologia comunicacional” e seus
impactos para a comunicação em saúde. No meu entendimento, o
deslocamento de paradigma, nesse caso, também golpeia o
“transmissionismo” tradicional, pois, cada vez menos, a
experiência de comunicação coletiva se comporta como no modelo do
“broadcasting” e, cada vez mais, como um fenômeno de “produção
de comum”; cada vez menos, comunicação como transmissão
“telefônica” ou “televisiva” de mensagem e, cada vez mais,
como produção em “redes” de diferentes formas de “inteligência
coletiva”.
São
deslocamentos importantes, com consequências profundas para os modos
de se colocar problemas teórico-práticos no campo da Saúde
Coletiva, cujos impactos na produção científico-tecnológica da
área ainda estão se fazendo sentir, mas devem dar um grande salto
no chamado mundo pós-coronavírus. De fato, as novas tecnologias de
comunicação e informação fundem, no mais alto grau, suas
potencialidades de emancipação e de controle dos coletivos humanos.
Por um lado, a potência de produzir inteligência coletiva, enquanto
expressão das dinâmicas multitudinárias imanentes a todo corpo
coletivo, capazes de produzir potência de ação coletiva. Por outro
lado, o sequestro dessa “inteligência” e de nossa potência de
ação coletiva, não mais apenas pelo Estado (talvez, por isso,
possamos perceber com maior nitidez a expressão de uma inteligência
coletiva em resposta ao que se impõe como um desafio coletivo de
proteção da vida, lá onde o Estado está mais ausente:
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/04/11/favela-de-sao-paulo-vira-exemplo-em-acoes-contra-o-coronavirus.ghtml),
mas também, cada vez mais, por determinadas aplicações de
inteligência algorítmica que vêm construindo a infraestrutura do
chamado “capitalismo de vigilância”. São questões que me
parecem capitais na encruzilhada biopolítica em que nos encontramos
e que devem assumir um lugar bem maior e bem mais central nas
discussões da Saúde Coletiva nos próximos anos.
Por
fim, cabe ainda um comentário sobre a comunicação em saúde, para
além das dimensões tecnológicas, lembrando que essa problemática
é a que mais aproxima as questões de saúde das fronteiras da arte
e da cultura. Trata-se de lembrar e reconhecer o quanto os principais
fenômenos vitais de importância para a saúde humana no mundo
contemporâneo dizem respeito a processos de comunicação e cultura.
É nesse terreno, por exemplo, que poderíamos situar todas as
investigações e experimentações práticas que têm buscado
explorar as tensões e eventuais sinergias existentes entre a saúde
e a grande mídia, em particular, entre o sistema público de saúde
e a sua presença, a sua representação, na produção cultural
brasileira. Há muitas formas possíveis de se argumentar sobre a
relevância para o campo da Saúde Coletiva das intervenções e
pesquisas que se realizam nessa fronteira com a arte e a cultura, mas
podemos, mais uma vez, apoiarmo-nos na experiência presente da
pandemia para ressaltar essa relevância. Em tempos em que se coloca
uma ameaça à saúde individual e coletiva, em escala global,
fortemente tendente a reforçar concepções mais reducionistas de
saúde, mais focadas nos elementos biológicos e organicistas e nas
ameaças portadas por um agente infeccioso; em tempos que nos induzem
a uma visão de saúde mais reduzida, mais circunscrita à
problemática da preservação da vida e da garantia de uma certa
segurança de que nós sobreviveremos às ameaças biológicas que
nos cercam; em tempos, enfim, em que se abre uma certa oposição
entre a saúde e a qualidade de vida e o bem-estar, já que a
preservação da primeira, neste momento, parece depender de
abdicarmos destas últimas, já que a preservação da vida e da
saúde, neste momento, parece mesmo nos obrigar a atravessar um
processo de profundo mal-estar e de afastamento de tudo que
configurava nossos ideais de qualidade de vida, incluindo a
possibilidade do convívio social; é justamente neste momento que as
riquezas maiores que encontramos nas fronteiras entre a saúde, a
arte e a cultura, ganham ainda mais relevância. Vivemos tempos não
apenas para serem padecidos, mas enfrentados. Tempos não apenas para
enfrentamento do vírus e da epidemia, mas também de todas as
tendências regressivas que esses tempos podem imprimir em nosso modo
de vida e nossas concepções sobre a saúde. Enfrentar esses tempos
exigirá, e muito, o exercício irrequieto da arte e da cultura, em
sua função de abrir o campo de possibilidades, de excitar a
imaginação de outros mundos possíveis e de nos permitir esperançar
a sobrevivência de formas de vida que digam sim à vida! Trata-se do
reconhecimento da arte e da cultura como produtoras de saúde
enquanto potência de vida, mas também como produtoras de uma
“cultura da saúde” em que a saúde não se reduza à mera
sobrevivência de “vidas nuas”. É desse modo também que vejo as
potencialidades da área da Comunicação e Saúde para o
desenvolvimento do nosso campo e o tipo de contribuição que pode
vir a dar para alguns de nossos maiores desafios atuais…
Após lançarmos uma convocatória para pessoas interessadas em integrar um percurso coletivo de investigação sobre o acontecimento Covid_19, realizamos uma primeiro movimento de aproximação entre nós. Criamos uma lista de email; fizemos um encontro virtual entre os que haviam se inscrito na lista para conversar a partir de um texto, trocar experiências e algumas expectativas e convidamos as pessoas a reagirem às algumas proposições na forma de um produção livre que foi compartilhada no site da Zona de Contágio.
>> Para quem quiser ainda embarcar na investigação coletiva como praticante, mande um email para: conspire [@rrob@] tramadora.net
Quando pensamos numa prática de laboratório partimos de algumas referências que informam o desenho e as práticas desse laborátório. Ele não é uma noção abstrata ou indeterminada. Referimo-nos a uma certa arquitetura, uma ética-política, uma prática experimental, uma perspectiva ontoepistêmica: uma ciência implicada de uma pesquisa-luta. Elementos esses que esperamos explorar nesse percurso investigativo.
Diante do que experienciamos nessa última semana, a partir da momento em que a Zona de Contágio foi ativada pela presença e participação de muitos de vocês, consideramos importante olhar para o que emergiu e tramar os próximos passos dessa investigação. O momento nos convoca a indicar algumas delimitações para a investigação e também a sugerir alguns protocolos para nossa cooperação. Essa mensagem está dividida em 3 tópicos:
1. Bordas e confluências de um percurso de pesquisa – onde indicamos as questões gerais da pesquisa e indicamos um próximo passo de perguntas e atividades para a pesquisa.
2. Conversões febris – sugestão de bibliografia para o próximo encontro no dia 7 de maio, as 19:00hs.
3. Protocolo Investigativista: ensaio de um conjunto de princípios e acordos pra organizar as formas de participação e as condições de colaboração.
1. Bordas e confluências de um percurso de pesquisa
Todas nós estamos aqui por algo que nos toca; quase todas estamos também já inseridas em percursos de investigação. Carregamos experiências, corpos e desejos singulares, heterogêneos. O desafio do laboratório é constituir uma composição entre singularidades apontando, entretanto, para algumas zonas de confluência comum para que assim possamos, de fato, experimentar um encontro – uma ciência-dança de contato e improvisação. Para dar consistência a essas zonas de confluência sugerimos algumas ações temáticas nas quais podemos pensar juntas, investigar, nos fazer melhores perguntas.
De forma simples: propomos rodadas investigativas em torno de problemas comuns. A produção do material a cada rodada será um cruzamento entre experiências, percepções localizadas, intuições sobre o mundo no qual estamos implicadas em uma conversa com reflexões trazidas por textos e outros pensamentos. Ao fim de cada rodada, poderemos então visualizar a constelação de novos problemas que surgem, novas pistas, outras encruzilhadas.
A Zona de Contágio se constitui a partir de duas tramas de investigação: Ciência dos dispositivos; Ciência de Retomada.
Por um lado, gostaríamos de praticar uma \”ciência dos dispositivos\” atenta aos rastros das formas de poder e como ele organiza nossas vidas; dispositivos de desempenho, controle, biovigilância; os arranjos e mediações sociotécnicas que conduzem nossas condutas. Os dispositivos de governo que prometem nos \”salvar\” de nós mesmos e de nos livrar da possibilidade de pensarmos juntos o que fazer com as nossas vidas e corpos. Uma ciência dos dispositivos parte da constatação de que o poder não está dando ordens desde os lugares mais espetaculares e evidentes, mas ele, sobretudo, está \”fazendo funcionar\”: os corpos, desejos, as formas de nos relacionar. Aqui podemos pensar sobre a expansão do \”capitalismo de plataforma\” no acontecimento-Covid; das tecnologias educacionais aos inúmeros dispositivos que organizam nossas cidades, a circulação de mercadorias e alimentos; pensar quem são os teletrabalhadores, os circuitos do \”cognitariado\”, os intercâmbios entre ideias de \”livre iniciativa\” e \”empreendedorismo\” com os discursos da economia de \”startup\” e de \”inovação\”; a maneira reticular como as tecnologias digitais compõem e organizam a vida ordinária, contrabandeando e alimentando um racionalidade econômica e uma ordem política.
Na mesma trama, também queremos praticar uma \”ciência da retomada\”: \” É precisamente porque nossos corpos são os novos enclaves do biopoder e nossos apartamentos as novas células da biovigilância é que se torna mais urgente do que nunca inventar novas estratégias de emancipação cognitiva e resistência e lançar novos processos antagônicos. Ao contrário do que se possa imaginar, nossa saúde não virá da imposição de fronteiras ou separação, mas de um novo entendimento da comunidade com todos os seres vivos, de um novo equilíbrio com outros seres vivos do planeta.\”
Uma ciência de retomada pensa pelos saberes que nos foram expropriados. Como emerge nesse interstício e suspensão do mundo a percepção do Comum sequestrado – o que é (e pode ser) \”saúde coletiva\” e como essa \”volta ao corpo\” nos faz pensar sobre um mundo que já estava antes saturado por muitos lugares de asfixia? Como respirar juntos novamente? Um ciência que pense sobre o que pode ser retomado, tecnologias menores que potencialize nossa capacidade de agir e sentir o mundo vivo; formas não proprietárias, reapropriação das formas de reprodução da vida – da casa à infraestrutura urbana. Uma ciência que sustente formas de vida não-fascista e que investigue novos problemas porque não se contenta em apenas responder os problemas que nos colocam.
\”Si lo vemos bien, la biopolítica nunca ha tenido otro propósito: garantizar que nunca se constituyan mundos, técnicas, dramatizaciones compartidas, magias, en el seno de las cuales la crisis de la presencia pueda ser vencida, asumida, pueda devenir un centro de energía, una máquina de guerra\”.
Proposição: Nessa rodada, a zona de confluência investigativa se dará em torno da experiência temporal e dos sentidos da presença.
Queremos olhar para a ambiguidade presente no acontecimento Covid19 entre a suspensão do tempo, um respiro (a paragem brusca da qual falou Latour aqui: https://bit.ly/2SltcU4) e, por outro lado, uma experiência de tempo acelerado, asfixia, produzida pelos novos dispositivos de produtividade, desempenho, mobilização permanente. As fronteiras entre vida, prazer, trabalho encontram-se esfumaçadas. O tempo da domesticidade, aliás, é caracterizado pelo embaralhamento dessas fronteiras; os novos dispositivos do teletrabalho atuam também diante da nossa culpa civilizacional de experimentar o tempo livre; precisamos nos mostrar produtivos, disponíveis, enquanto as tecnologias digitais ampliam a mensurabilidade, o controle e a mobilização total de nossas vidas. A oferta ampla de entretenimento virtual parece querer nos salvar do desconforto do tempo suspenso e da catástrofe que estamos vivendo: \”Tenemos que escoger si queremos seguir siendo un terminal del algoritmo de la vida que organiza el mundo o bien un interruptor de la pesadilla que nos envuelve\”. O que significa \”parar\”? O que significa não poder parar, nunca? \” los lentos son perdedores!\”.
Como pensar a rivalidade entre desempenho e experiência, conexão e relação, sacrifícios individuais e o prazer do encontro como imagem da luta de classes no capitalismo contemporâneo?
Para essa primeira rodada, sugerimos também a companhia dos dois textos da próxima Conversação Febril (a seguir).
Novamente, sugerimos que o material seja publicado como \”comentário\” no post do site: https://www.tramadora.net/?p=1823 até o dia 7 de maio. Sugerimos o movimento de ler com atenção aos comentários de outras praticantes, talvez algo te convoque para novos lugares, talvez haja o desejo de comentar, iniciar uma conversa.
Nessa experimentação, o próprio desenho do laboratório (infraestruturas, protocolos, métodos, documentos, artefatos etc) é parte da investigação. Encontrar a melhor forma de caminhar junto, de habitar problemas comuns e constituir um coletivo que sustente uma prática no tempo, exige muita mediação, cuidados, práticas e conhecimentos, uma verdadeira arte do pharmakon. Como evitar as práticas de pesquisa que convertem a participação em mecanismos de captura e extração? Como lidar com as armadilhas dos dispositivos autorais, sua economia e as divisões do trabalho que ela engendra? Como lidar com os regimes de propriedade, acesso e posse do conhecimento produzido? Muitos aqui estão habituados às iniciativas de colaboração, no campo científico ou artístico e sabem que essas perguntas não são triviais. A experiência indica que um boa estratégia para enfrentá-las é evitar os princípios abstratos e verificar na prática, caso a caso e de forma situada, qual é o desenho dos protocolos que desejamos estabelecer. Este protocolo de pesquisa coletiva também almeja atacar o problema de identidade e de fronteira que delimitam a Zona de Contágio: como evitar o fechamento identitário e bloquear a chegada do novo? Como manter a continuidade, o acúmulo das experiências, o reconhecimento e as mutualidades? Novamente, estamos diante de um problema das composições e pertencimentos, ligas e alianças. O Laboratório, nesse sentido, é também um experimento de uma tecnologia social de pertencimento. Desejamos conversar sobre este tema e vamos abrir uma página wiki pra edição colaborativa desse protocolo. Vamos publicar uma versão 1.0 e enviaremos outra mensagem com o link.
“O ressentimento está definido muito bem por Scheler como uma auto-intoxicação, a substância nefasta, em copo fechado, de uma impotência prolongada. A rebelião, ao contrário, fratura o ser e o permite transbordar. Libera ondas que, de estancadas, se fazem furiosas (…) O ressentimento é sempre o ressentimento contra si mesmo. O rebelde, ao contrário, se nega a ser o que é. Luta pela integridade de uma parte do seu ser. (Camus)
Máscaras Coloridas
A verdade é que estamos todxs aqui diante de uma ou duas telas, atravessadxs pelos prazos que ainda não foram suspensos, acompanhando o fluxo interminável dos noticiários que nos dizem o que fazer, nos estimulando de assombros como arqueólogos miseráveis de neurotransmissores, qualquer um que sirva. A catástrofe rapidamente é convertida em rotina – vamos nos adaptando à qualquer pequena fresta de luz e de repente o comando neurótico de não nos deixar contaminar de mundo adquire inigualável exuberância. Personagens infames de uma cena beckettiana, uma voz acontece diante de nós: “Para onde eu iria, se pudesse ir, o que seria, se pudesse ser, o que diria, se tivesse uma voz, quem é que fala assim, dizendo que sou eu?”
Lavamos bem as mãos, todas vezes. Costuramos máscaras coloridas com nossas crianças, damos os bons exemplos. Somos corretos, cooperamos, batemos as panelas na hora certa. Merecedores de uma vida qualquer estamos dispostos ao sacrifício para sobreviver com nossas máscaras coloridas. Os dispositivos empenham-se agora em nos oferecer a maior sensação de conforto possível: lives, festivais, peças de teatro, filmes, descontos, hashtags, centenas de tutoriais de como fazer. Toda uma arquitetura para que não tenhamos que experimentar a sensação brusca de perder o mundo – estamos atravessando a maior crise do capitalismo talvez desde o fim da segunda guerra mundial, mas tudo se passa para que nada aconteça. Alguém cita a frase de Gramsci pela milésima vez – \”o velho está morrendo, o novo não pode nascer\” – como um bote salva-vidas desesperado, uma prótese que nos impede de sentir um pouco mais o sufoco desse afogamento. Os rapazes marxistas agora ao menos vão precisar lavar a louça enquanto preocupam-se com o calendário eleitoral.
Somos retidos como mercadorias alfandegárias em um mundo de fronteiras alteradas. Tudo se passa como se fôssemos bem conduzidos como espectadores epidêmicos, bons organismos hospedeiros esperando o momento certo de reagir, de apresentar algum sintoma. Queremos explicações: um especialista, uma autoridade, ou um intelectual complacente e crítico talvez possa nos salvar. Consideramos a vigilância, o controle, a denúncia. \”Todas as razões estão reunidas, mas não são as razões que fazem revoluções, são os corpos\”. Espoliadas do prazer do encontro, habitamos confortavelmente o deserto erógeno hetero-pacificador da domesticidade; habitamos comodamente o deserto da experiência administrando nossos avatares, potenciais de \”engajamento\”, nossas performances algorítmicas. Youtubers desesperados por um bom slogan, uma ortodoxia repaginada: os \”rebeldes\” agora atuam impecavelmente como empresários de si, como marcas docilizadas, capturados narcisicamente por polêmicas desubicadas, mas que podem, quem sabe, render views, um melhor desempenho nas redes. Contornamos com destreza esse momento de interrupção. Dedicados como somos em querer explicar o mundo deixamos escapar a carne viva, o desejo aberrante. Contamos os corpos, transformamos em estatística, desejamos previsões, até lamentamos, ressuscitamos velhos esquemas conceituais, mas o que estamos fazendo com as nossas vidas?
2. Renunciemos à renúncia
Ailton Krenak tem dito que a democracia liberal nos exige formas renovadas de renúncia. A grande renúncia de retomar a inteligência estratégica do presente, uma renúncia das práticas investigativas que sejam também experimentações, ainda que precárias, de modos de vida não fascistas. Renúncia porque não sabemos mais pensar e fabricar os nossos contra-dispositivos, não sabemos mais produzir experiências políticas nas quais verdadeiramente algo nos aconteça, algo nos toque. Depois de Seattle, de Chiapas, de Junho de 2013 parece que fomos finalmente neutralizados pela política progressista que toma o ponto de vista do Estado e as suas encenações em retroescavadeiras como fundamento do que seria uma imagem de \”transformação\”. Fora isso, tudo seria \”inconsequência\”, \”irresponsabilidade\”, \”falta de visão estratégica\”. A \”política\” no progressismo foi reconfigurada arduamente, nos termos modernos humanistas de uma esquerda iluminista, como a habilidade de enxergar um mundo estando fora dele. A língua do progresso já estava aqui, desde antes, atualizando o refrão do \”desenvolvimento\” e envenenando as formas relacionais que exigem tempo, hesitação, misturas e que resistem às idéias de desempenho, rendimento e que convocam para as cenas de decisão uma multiplicidade de criaturas e viventes.
A exceção viral, entretanto, nos deixa agora uma constatação epidêmica: \”Nós não obtemos conhecimento permanecendo fora do mundo; conhecemos porque “nós” somos do mundo. Somos parte do mundo em seu devir diferencial. A separação entre epistemologia e ontologia é a reverberação de uma metafísica que supõe uma diferença inerente entre humano e não humano, sujeito e objeto, mente e corpo, matéria e discurso\” (Barad, 2017:32). O \”pensamento crítico\” deslocalizou-se, a \”política de esquerda\” conforma-se hoje em um lugar desimplicado, enunciativo, \”esclarecedor\” – também embranquecedor porque neutraliza as outras muitas formas de ser e pensar em companhia, as muitas outras formas de habitar encruzilhadas – se pensam assim guardiãs de um certo privilégio epistemológico e soberano sobre a realidade. Olhos fora da carne. O que o \”esclarecimento\” perde, no entanto, é a possibilidade de dar à essa situação o poder de nos fazer pensar.
A partir dessa constatação epidêmica é possível agora perceber o quanto de autoritarismo (e de fantasia de autogênese) contém a hashtag #ficaemcasa, nossa única aposta até agora. Imperativa, compulsória, ordenadora. Quando a urgência do isolamento social se impôs pensei no meu pai, motorista de aplicativos, como tantos outros. Não podia ligar para ele e exigir \”Fica em casa\” porque sei o que isso significa para quem não tem nenhuma garantia ou proteção social. No ano de 2019, o Brasil já possuía 38 milhões de trabalhadores na informalidade, segundo o IBGE, um número recorde. Pensei então em como poderíamos tomar essa decisão em companhia, como poderíamos sustentar uma decisão acionado uma rede de relações, de acordos e novos arranjos. Pensar em um mundo no qual estamos implicados no que desejamos viver e sustentar.
Diante da pandemia podemos escolher
os enunciados imperativos de governar condutas como tem feito muitos governos
nacionais e a \”ética militante\”, mas também podemos arriscar
investigando as novas composições que somos obrigadas a fazer, experimentações
tateantes; alianças emergentes entre trabalhadoras da saúde, gente que cuida e
se importa, vizinhança, amigos, amores, criaturas. Retomar o problema da
precariedade, não como uma falta a ser gerida, mas como uma matriz relacional,
tudo isso nos parece indispensável em um momento no qual a frustração, a
impotência e o ressentimento diante das promessas não cumpridas do
neoliberalismo convertem-se facilmente em um ódio direcionado ao outro como
ameaça. \”A precariedade é um estado de reconhecimento de nossa
vulnerabilidade à outras pessoas\” (Tsing, 2015:29).
Enquanto proposição ontológica, a hipótese epidêmica nos abre a possibilidade de pensar um mundo não como ele \”deveria ser\”, mas a partir de suas próprias proposições imanentes, febris. Podemos agora imaginar e experimentar como a vida e a política na vida poderiam ser de outra maneira. Reativar essa \”inteligência coletiva\” como trabalho primordial na dobra de cumplicidade entre ciência e luta: \”cada um aprendendo a pensar pelos outros, graças aos outros e com os outros\”, como vem falando Stengers, como prática de retomar \”o tempo e a liberdade para se colocar problemas que valham a pena\”[1]. Nossa ciência sempre foi uma ciência de risco.
3. Uma política em carne viva
o caminho da luta me faz encontrar a carne. Mesmo humilhada, a carne é minha única certeza. Só posso viver nela. A criatura é minha pátria. (Camus)
Minhas amigas sem-teto que sustentam o mundo da cidade-acampamento nas ocupações de terrenos baldios nas bordas da cidade de São Paulo me ensinaram muito sobre práticas de habitar a exceção. Desde a primeira hora na madrugada de uma nova entrada em um terreno baldio, somos interpeladas a pensar e experimentar como podemos habitar um mundo em ruínas assumindo o inesperado com os pés na terra. Se por um lado, as ocupações podem ser lidas como eficientes tecnologias políticas de barganha de acesso às políticas habitacionais – ocupação como \”tática de mobilização\” – por outro lado, as ocupações são vividas como uma prática de travessia, como um arranjo tecnopolítico de desaceleração \”aqui eu descanso minha cabeça\”, como ouvia tantas vezes. Um mundo sustentado em práticas existenciais no qual se vive a vida através da vida dos outros, como na definição ampla de parentesco feita por Sahlins (2011). Uma definição expandida das práticas relacionais que assume a \”coexistência e o devir-com como o habitat das práticas” (MASSUMI apud STENGERS, 2005:183), uma política que emerge da cozinha coletiva.
A condição de precariedade
generalizada imposta aos mais pobres nos últimos anos converte-se um poderoso
instrumento de disciplinamento da vida já que, a todo tempo, as pessoas precisam
se desdobrar entre trabalhos mal pagos, os corres,
as virações, uma disciplina que \”exige, não que os
trabalhadores trabalhem o tempo todo, mas que estejam constantemente
disponíveis para o trabalho\” (Negri, Hardt, 2016:169). As mulheres chegam
às ocupações conduzidas por relatos sobre
corpos que não aguentam mais, medicalizados, mas que no entanto apontam
para questões ontológicas sobre as saturações do tecido biopolítico neoliberal.
As ocupações são experimentadas muitas vezes como um terreno compartilhado de
cumplicidade da dor e de experimentação de curas. \”As pessoas chegam aqui
em carne viva\”, sintetizou certa vez Luciana enquanto comíamos juntas. Ela
mesma diz ter passado por uma \”depressão braba\”, mas depois de
experimentar essa vida baldia, se curou.
O mundo baldio dos acampamentos nos exige desde o princípio, como fala Donna Haraway desde sua Mixotricha paradoxa[2], uma simbiose obrigatória: vulnerabilizarmo-nos em companhia. Entre barracas, córregos, cozinhas e fogueiras nos interstícios baldios das bordas da metrópole e, sobretudo, na confusão de fronteiras (o risco-exu) produzida nessas experiências (\”cidade\” ou \”mato\”, \”casa\” ou \”rua\”, \”política\” ou \”vida\”) entrevemos uma incontornável insuficiência da categoria de \”política\” compreendida como exterioridade, ordenamento, separação, depuração. Os acampamentos sem-teto nos fazem observar um conjunto de práticas que se revela também como uma forma de conhecer encarnada na vida, uma ciência do engajamento no mundo relacional; ciência menor na qual conhecer depende então do \”movimento do praticante habilidoso de responder contínua e fluentemente a perturbações do ambiente percebido\” (Ingold, 1993: 462). \”Aqui eu me sinto mais viva\”, foi o que eu ouvi de muitas mulheres em ocupações da Zona Norte, Zona Sul, Zona Leste de São Paulo: \”Quando estou longe da ocupação fico até nervosa\”.
Daniel Souza (2019) nos lembra do trabalho de Jeanne Marie Gagnebin que ao
escrever sobre o \”rastro e a cicatriz\”, recupera uma cena emblemática
de \”Odisséia\”. Na volta para casa, o \”herói\” encontra sua
ama Euricleia e é ela quem lava suas feridas, tocando uma cicatriz, a marca
deixada por um Javali. Para Gagnebin, “na história da ferida que vira cicatriz
encontramos, então, as noções de filiação, de aliança, de poder da
palavra e de necessidade de narração” (2009:109 apud Souza, 2019). A ferida é
o rastro, a testemunha viva da história que encontra no corpo sua superfície
atualizada, nas fogueiras noturnas que abrem nas ocupações momentos de
narração, mas também de cumplicidade e aliança. Assumir a ferida, tocá-la com
outros, como presenciei tantas vezes, me parece também a imagem da política do
avesso do ressentimento.
Pensar com a ferida aberta é abrir-se para \”agenciamentos que geram transformações metamórficas em nossa capacidade de afetar e sermos afetados – e também de sentir, pensar e imaginar\” (Stengers, 2017:3) ou como sugere Denise Ferreira da Silva: \”precisamos encarar a escravidão “como crimes sórdidos contra a carne, porque a pessoa das Mulheres Africanas e Homens Africanos registrou o ferimento” é “pensar sobre a ‘carne’ como a narrativa primordial”. (Ferreira da Silva, 2019:110). Se em Hegel o homem (sic) vive assumindo a ferida, o dilaceramento como obstáculo que precisa atravessar para se restituir, em Nietzsche, vivemos porque a ferida nos constrange a viver. (López Petit, 2014), assim como nas ocupações. Na cidade-acampamento desmetropolizada não há política que não seja a dos corpos, sobre os corpos, através dos corpos (Esposito, 2004:125), \”porque o corpo na sua contínua instabilidade, não é senão o resultado, sempre provisório, do conflito de forças de que é constituído\” (Esposito, 2004:125).
4. Atravessar a pandemia como Medusas e contra os Heróis
No já clássico estudo de Chalhoub
(1996) sobre a \”revolta da vacina\”, o historiador descreve a \”guerra contra os cortiços\” na virada do
século XIX para o XX no Rio de Janeiro como paradigma da
\”purificação\” que os novos tempos de crise sanitária e epidemiológica
exigiam. O então prefeito médico modernizador
Barata Ribeiro ordenou destruir com todo o espetáculo de violência um dos
últimos e mais simbólicos cortiços da cidade nesse período. Em sua tese de
doutorado, defendida em 1877, Barata Ribeiro afirmava que os cortiços
\”faziam da ociosidade um trono\” e lá se encontrava \”de
tudo\”, como a \”meretriz impudica que se compraz em degradar corpo e
alma\” e por isso, sua tese \”aconselha\” a demolição de todos eles
(Chalhoub, 1996:51).
Chalhoub conta como a ação de destruição do grande cortiço conhecido como Cabeça de Porco foi narrada com entusiasmo pela imprensa da época, quase sempre associando a imagem de Barata Ribeiro à Perseu e o cortiço destruído à Medusa, uma imagem que evoca uma encenação da masculinidade heróica que destrói uma vida feminilizada, promíscua, contaminada e perigosa. Se até o século XVII, as mulheres eram representadas como queria Aristóteles como uma \”forma imperfeita\” do homem, a partir do século XVIII as mulheres e todas as criaturas feminilizadas passam a expressar a imagem do \”Instável, impregnada de fluidos sexuais, criatura do mundo de penumbras que é a vida privada, onde os homens recuperam a energia para retomar os embates da esfera pública e as guerras\” (Correa, 2016:2017).
A produção da feminilidade fabricada também pela
biomedicina no período de transição para a modernidade se inscrevia mais tarde
de forma fundacional na produção do espaço urbano e se reproduz ainda hoje nos
investimentos de criminalização das ocupações urbanas e nos espaços de
compartilhamento da vida nos quais as fronteiras entre o \”público\” e
o \”privado\” tornam-se esfumaçadas e \”perigosas\”. Não à toa,
Bolsonaro reencena a história convocando ao \”enfrentamento\” da
pandemia \”como um homem\” e \”sem histeria\”. A pandemia faz e é feita também por
tecnologias de gênero.
Punida por ter uma relação sexual
com Poseidon (algumas versões do mito dizem, no entanto, que foi um estupro)
Medusa assume um corpo monstruoso e tentacular para ser depois finalmente
decapitada pela crueldade do herói Perseu (a crueldade é, na verdade, a fonte
do heroísmo masculino diante da mulher bestializada); Em suas representações
como mulher castrada, ela apresenta serpentes fálicas devoradoras,
tentaculares. Medusa, enquanto figura contrassexual, pode ter como tarefa
\”identificar os espaços errôneos, as falhas da estrutura do texto (…) e
reforçar o poder dos desvios e derivações com relação ao sistema
heterocentrado\” (Preciado, 2014:27).
Haraway intui que Medusa talvez
possa nos ajudar a arremessar os navios dos Heróis Conquistadores (incluindo os
que trabalham para uma ciência conquistadora) do século XXI. Ela lembra que tentacle vem do latim tentaculum,
que significa “apalpador” e tentare, que
significa “sentir” e “tentar” – o que nos leva novamente à afirmação do
erótico, da experiência estética, da cozinha aberta e coletiva e da forma
experimentação como forma de conhecer e nos relacionar com o mundo.
Medusa nos faz olhar para as
existências tentaculares que escapam ao mesmo tempo em que são ávidas para
fazer novas alianças e arranjos (inclusive os químicos) assustando os muitos
altares dos Olimpos que ainda nos restam e suas histórias de família, casa e
punição; sua língua de ordenamento, de governo da vida, seu medo do abismo. \”O Chthuluceno é feito de processos
narrativos de multiespécies e de práticas de se-tornar-com que permanecem em
jogo, em tempos precários, onde o mundo não tenha terminado e o céu não tenha
caído – ainda\” (Haraway, 2016).
\”Parece que de repente eu
acordei\”, é a imagem acionada frequentemente por muitas mulheres para
relatarem a experiência de entrar em uma ocupação, \”isso aqui entrou no sangue\”,
elas repetem. Medusa em grego se refere a \”guardiã\”, embora nunca
ninguém tenha falado sobre o que Medusa guarda – um segredo, uma conspiração? A
criatura terrana, única górgona mortal, nos
aponta para uma bifurcação fundamental entre as ciências da purificação
e as do contato; os modos de erguer fronteiras e as muitas coreografias que
praticam a confusão ontológica de se pensar porque somos do mundo. Como
criatura anômala, hesitante, Medusa nos faz convocar outros personagens
conceituais de encruzilhada: o jogo de
cintura insistente desviando das formas de governo da vida do qual falava Lélia
Gonzalez (1988), o Xondaro Guarani, dança-luta da esquiva (Keese, 2017), os
corpo baldios que assumem sua vulnerabilidade e que por isso se abrem para
composições e variações inusitadas. Os olhos de Medusa que nos pedem
\”Renunciar, por um tempo talvez, a essa velha assombração da representação
e linearidade da narrativa e surpreender-se com o profundo das incertezas\”
(Mombaça; Mattiuzzi,
2019) e criar, de uma vez por todas, uma vida que realmente desejamos viver.
conspirar quer dizer respirar junto e é disso que somos acusadas
Referências Bibliográficas:
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como a matéria chega à matéria. Vazantes. N.1 V.1, 2017
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril – Cortiços e epidemias na
Corte Imperial. São Paulo, Companhia das
Letras, 1996.
CORREA, Sonia. A CATEGORIA MULHER NÃO SERVE MAIS PARA A LUTA
FEMINISTA. Entrevista feita por Por Laura Daudén e Maria A.C. Brant. SUR 24 – v.13 n.24 • 215 – 224 | 2016
ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Giulio
Einaudi editora. 2004
FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo.
Edição: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019
GONZALEZ, Lélia. \”A categoria político-cultural de
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jan./jun. 1988
INGOLD, Tim.
Technology, language, intelligence: a reconsideration of basic concepts.
In: Gibson, K. R.; Ingold, T. (Eds.). Tools, Language and cognition in human
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KEESE, Lucas. A esquiva do xondaro: movimento e ação política
entre os Guarani Mbya. Dissertação de Mestrado.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
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López-Petit. Hijos de la noche. Bartzelona, Bellaterra, 2014.
MOMBAÇA, Jota;
Mattiuzzi, Musa. CARTA À LEITORA PRETA DO FIM DOS TEMPOS. In: FERREIRA
DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo. Edição: Oficina de Imaginação
Política e Living Commons, 2019
PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrassexual. São Paulo. N-1
edições. 2017
SAHLINS, Marshall. What Kinship is
(parts one and two). JRAY, 17 (N.S.), 2011
SOUZA, Daniel. A “REVOLTA DA INEFICIÊNCIA”: OS ACONTECIMENTOS
DE JUNHO DE 2013 NO BRASIL E SUAS DESTITUIÇÕES POLÍTICO-TEOLÓGICAS. Tese de
Doutorado. Universidade Metodista de São Paulo
STENGERS, Isabelle. Introductory Notes on an Ecology of
Practices.” Cultural Studies Review, vol. 11, no. 1, 2005.
Tsing, A. L. The Mushroom at the end of the world: on the possibility of life. Princeton: Princeton University Press. 2015
[2] A Mixotricha paradoxa é um organismo
unicelular microscópico que vive no intestino posterior do cupim da Austrália
setentrional.\” Aquilo que conta como “ele” é complicado, pois ele vive em
simbiose obrigatória com outros cinco tipos de entidades\”. Mixotricha quer dizer \”Fios misturados\”.
Contexto: na última semana após projetar a possibilidade de 250 mortes por dia em um cenário epidemiológico para a cidade de Fortaleza, o Secretário de Saúde do Estado, Carlos Roberto Sobrinho, anunciou providências com relação à compra de 15 mil túmulos, face às preocupações do Governo do Estado (Governador Camilo Santana) com possíveis mortes em consequência da pandemia. A semana já havia sido tensa em função das pressões políticas especialmente exercidas pelo setor empresarial da construção civil. O Secretário havia participado de uma reunião remota com o grupo de empresários e a disparidade das posições ficaram evidentes e acirradas. Todo o setor dito produtivo vêm se posicionando a favor de uma flexibilização das medidas de isolamento social. O governo do Estado do Ceará é acusado de ter sido leniente na compra de equipamentos de proteção individual (EPIs) e de não ter se preparado para tragédia. Há também uma forte oposição da atual diretoria do sindicato do médicos à posição do secretário e do governo do estado. O argumento é que isolamento social é coisa de elite. Tal conjuntura é agravada pelas dificuldades enormes criadas por um Governo Federal que vem trabalhando para o desmonte de todas as políticas sociais, inclusive àquelas relativas ao SUS e à SUAS. Todavia, esses fatores são deixados de fora na composição dessas críticas.
Por que atacamos a dignidade daqueles que colocam em jogo a dimensão do cuidado ao próximo em nosso Estado?
No começo do século XIX, o baiano Rodolfo Teófilo afirmava “Sou cearense, porque quero\”. Ao inventar a cajuína, que muitos pensam ter origem piauiense, o farmacêutico que adotou o Ceará para sua luta e vida, conseguiria suavizar o travo do caju, adocicando-o, mas, os dias de hoje confirmam, não conseguira adoçar as elites cearenses que agora atacam as políticas de saúde do Estado, nominando-as de mentirosas, aproveitadoras e corruptas. Há uma peste no poder. Mas a linha do ódio não me interessa aqui repetir. O rosário [me perdoem o sacrilégio] de palavras produzida nos canteiros de obras do ódio é ilimitada, mas é certo: uma pá de cal é definitivamente colocada sobre a importância da vida do pobre.
Silenciosos, alguns seguem.
Temos vergonha da nossa miséria e da nossa pobreza. Envergonhados nos cobrimos com os véus da indiferença e da culpa e planejamos o extermínio daqueles que ousam enfrentar a hegemonia do poder econômico. Ao longo da última semana, o médico Carlos Roberto Sobrinho violou um tabu, o nosso tabu, ao confessar que havia comprado 15 mil túmulos para dar cova digna àqueles que possam morrer em nosso Estado, em consequência da pandemia. Destaco particularmente esse recorte da fala do secretário estadual de saúde posto considerar que ele incide sobre um ponto de opacidade da nossa história, uma espécie de segredo que mora na cripta do nosso inconsciente histórico e cultural e que diz respeito as narrativas sobre as políticas públicas de extermínio adotadas nos idos da Belle Epóque fortalezense.
A prática dos currais humanos, como também eram conhecidos os campos de concentração cearenses, já havia servido ao isolamento dos retirantes de 1877-1878, quando a seca trouxe para capital, então com 30.000 habitantes, cerca de 100.000 homens. Esta seca ficou para a história do Estado como uma emblemática catástrofe humana. Naqueles dias, a fome e as pestes, em especial a varíola, chegaram a matar na capital, em um só dia, nada menos que 1004 pessoas. Dez de dezembro de 1878 ficou conhecido como o “Dia dos Mil Mortos”. Os doentes, quando sobreviviam, eram removidos pela força policial para os abarracamentos afastados do centro da cidade e urrando de dor com suas feridas, eram conduzidos pelas ruas em redes de panos grossos por homens pagos à base de ração de carne seca, farinha e pinga. Sertanejos trôpegos caminhavam por mais de três quilômetros carregando os corpos de velhos, crianças, homens e mulheres seminus. Corpos se amontoavam pela cidade e ao longo de todo o trajeto da estrada de ferro, a indiferença do poder público de então ofendia a dignidade não apenas da vida, mas, também, da morte. Na biografia de Rodolfo Teófilo e de reconto desses dias, o sociólogo e escritor Lira Neto, em livro homônimo a esse texto, descrevera a vergonha sentida pelo farmacêutico com o transporte público dos moribundos.
A verdade histórica sobre os campos de concentração cearenses pode ser considerada um símbolo perdido da experiência da fome, da doença e do horror à morte que foram apagados desde a nossa cultura. Todavia, o que não pode ser esquecido, e menos ainda lembrado, cedo ou tarde faz a sua aparição.
Dar dignidade à morte é uma preocupação reveladora do valor dado à vida. A formação humanista de muitos de nossos médicos, de nossas equipes de saúde e políticas de Estado têm o dever e a oportunidade de escreverem hoje um capítulo outro de nossa História.
Lembrete deixado pela cearense Raquel de Queiroz:
No ceú entra quem merece
No mundo vale quem tem…
………………………………….
Como tenho vergonha
Não peço nada a ninguém…
Que me parece quem pede
Ser cativo de quem tem…
(O Quinze)
Fortaleza, 18 de abril de 2020
Karla P. Holanda Martins. Psicanalista. Membro do GBPSF. Professora Associada da Universidade Federal do Ceará Autora do livro Sertão e Melancolia: espaços e fronteiras (Appris, 2014)
Neste dia teremos como convidadxs tramadorxs pra disparar a nossa conversa a Bru Pereira (antropóloga e educadora, mestre em Ciências Sociais pela UNIFESP) e o Jean Tible (ativista e professor de Ciência Política da FFLCH/USP). No mesmo dia divulgaremos o link pra sala de videoconf, aqui neste post e também nos canais abaixo [1].
Remar juntos é partilhar, partilhar alguma coisa, fora de qualquer lei, de qualquer contrato, de qualquer instituição.
Carxs praticantes,
Partimos de algumas inquietações iniciais e problemas com os quais nos sentimos implicadxs nesse momento. Escrevemos alguns parágrafos na forma de uma proposição-convocatória para abrir a hipótese de uma Zona de Contágio. Como algumas pessoas não leram ainda o material recolocamos abaixo os links:
A proposta é simples: iniciar uma conversação entre todxs, uma prática investigativa coletiva, a partir da situação limite que estamos habitando.
Para entrar nesse barco basta mandar um email para: conspire@tramadora.net
Contornando a saturação filosófica e os grandes esquemas conceituais que interpelam o acontecimento-Covid-19, queremos habitá-lo em sua dimensão experiencial, tecnomediada e que finalmente conecta velhas e novas tecnologias de domesticação e desempenho (da casa aos dispositivos que oferecem distração, praticidade e eficiência em um ambiente cada vez mais vigiado e controlado no qual se busca a todo custo bloquear a experiência como também todo o acontecimento).
Queremos praticar uma ciência de contato – ainda que seja desde o isolamento – e que atue na produção, sempre parcial e precária, de práticas e conhecimentos sobre questões que implicam a todos. Outras perguntas irão surgir no percurso. Desviar das rotas planejadas é sempre um sintoma de boa saúde para uma ciência de risco. Inventar novas e melhores perguntas que produzam uma comunidade de praticantes interessadxs em experimentá-las. O próprio desenho do laboratório e seu modo de pesquisar são problemas que fazem parte da nossa investigação.
Como seguir juntxs em tempos de pandemia? Como fazer de nossa vulnerabilidade o risco comum de uma dupla condição: uma política da experimentação e uma prática (onto)epistêmica corporificada, situada e que possa retomar nossa inteligência coletiva relacional de viver graças aos outros, de pensar graças aos outros. Nos importa pensar quem somos o \”nós\” contingencial desse percurso investigativo. Convidamos a uma prática para iniciar a conversa e experimentar sustentá-la por algum tempo (dois ou três meses?), atentos ao percurso, suas aberturas e possíveis desdobramentos.
Movimento 1: apresentação, interação assincrônica, criação e compartilhamento
Como cada um de nós é forçado a pensar pelo acontecimento covid-19? Como esse acontecimento dispara novos problemas, entendimentos e experiências e criações intuições?
“Essa experimentação é política, pois não se trata de fazer com que as coisas “melhorem”, e sim de experimentar em um meio que sabemos estar saturado de armadilhas, de alternativas infernais, de impossibilidades elaboradas tanto pelo Estado como pelo capitalismo. A luta política aqui, porém, não passa por operações de representação, e sim, antes, por produção de repercussões, pela constituição de “caixas de ressonância” tais que o que ocorre com alguns leve os outros a pensar e agir, mas também que o que alguns realizam, aprendem, fazem existir, se torne outros tantos recursos e possibilidades experimentais para os outros. Cada êxito, por mais precário que seja, tem sua importância” (I. Stengers).
Para nos apresentarmos, sugerimos agora que cada um compartilhe, de alguma forma, o modo pelo qual está habitando essa encruzilhada: um breve texto, fotografias, áudios, vídeos, performances. Um formato simples o suficiente para não produzir a sensação de \”mais uma tarefa\”; o prazer nos parece um bom indicador para essa breve produção.
Aqui podemos falar, a partir das nossas vidas e pesquisas, ou das duas coisas entrelaçadas, sobre os fios do provável ( de como sentimos, intuimos ou entrevemos a reorganização dos poderes tecnototalitários e dos dispositivos reordenadores da vida); e também sobre os fios do possível ( de como sentimos, intuimos ou entrevemos as formas de cooperação, novos acordos coletivos, a luta contra as normalizações dos excessos e pelas muitas formas de recusa). O material poderá ser enviado até o dia 22 de abril.
*Neste post (logo abaixo) você pode escrever usando a área de comentários e adicionar um arquivo de mídia: https://www.tramadora.net/?p=1772
Sua postagem se tornará pública para outrxs pessoas que por lá passarem também.
Um dia antes enviaremos o link para o ambiente virtual. Teremos alguns convidadxs pra disparar a conversa entre nós. Podemos combinar referências ao texto com o momento atual em diálogo com nossas produções/investigações (movimento 1).
Respiração diafragmática. Sem angústias ou ansiedade produtiva. A ideia é produzirmos um encontro entre praticantes de mundo em suspensão.
por: Camila Jourdan, professora de filosofia na UERJ e autora de \”2013 – memórias e resistências\”, ed. circuito, rio de janeiro, 2018.
Não há dúvida de que vivemos uma situação-limite. Ela é limite, primeiro, porque aponta para uma fronteira entre a sobrevivência e a morte, ela é limite porque, depois dela, tudo está em questão e o que valia antes, deixa de valer. Não sabemos o que ocorrerá depois dela, sabemos que nada mais será como antes. Vasta é a literatura filosófica que aponta para a oportunidade ética de situações-limites: elas nos permitem criar valores porque não é possível julgá-las sobre o esteio do que já estava estabelecido; elas não se fundam no que estava dado e, portanto, encarnam uma singularidade diante da qual é possível dizer o que realmente importa. O fundamental da situação-limite é justamente seu caráter sem precedência, não há um padrão, um modelo dado de valores simplesmente a serem aplicados, algo totalmente novo e, ao mesmo tempo, com valor de necessidade, então, pode surgir.
“Chamo situações-limite àquelas em que me encontro sempre que não posso viver sem luta nem dor, em que inevitavelmente assumo a culpa e em que tenho de morrer. Não se transformam, ou transformam-se apenas na sua aparência, sendo, em relação ao Dasein, definitivas. Não são previsíveis; enquanto Dasein nada mais vemos por detrás delas. São como uma parede que enfrentamos e na qual fracassamos. Não podem ser por nós alteradas, chegando-se apenas à clareza sem a qual não explicamos nem deduzimos outra coisa. Elas são com o próprio Dasein.” (Karl Jaspers, Philosophie)
1. Os limites da família tradicional: o que experienciamos nos últimos dias é como a família nuclear tradicional é incapaz de fornecer o suporte de que precisamos em uma situação de emergência. Fechados em lares nada seguros assistimos a violência contra os mais vulneráveis e a exploração das mulheres aumentarem. Fato é que a família patriarcal não nos fornece uma experiência de solidariedade e ajuda mútua primária nuclear, como se propaga. Ao contrário, ela é fonte de injustiças; violências e silenciamentos.
2. Os limites
do individualismo: nunca a televisão brasileira falou tanto em
coletividade! De repente, atomizados por imposição nos lembramos que nunca
fomos átomos. Subitamente, a presença de um vírus ameaçador nos leva a lembrar
que temos uma vivência comum, que partilhamos um mundo, que nossa imunidade
também depende da imunidade do outro, que habitamos um mesmo ambiente que agora
nos é evidente ao mesmo tempo que retirado. O que o outro faz pode afetar a
nossa vida ou morte. A liberdade liberal é uma evidente mentira quando uma
situação realmente séria é estabelecida, ela é uma liberdade negativa. Aliás,
ninguém permanece liberal quando o navio começa a afundar.
3. Os limites
do mercado e do capital: a fábula liberal de que o capital cuida de si como
uma força mágica autorreferente é suspensa em toda crise na qual os mais árduos
defensores do livre mercado clamam pela intervenção do Estado e convocam cada
indivíduo ao sacrifício. Diante de uma situação de emergência, o Estado de
bem-estar social, esta outra fábula, parece ressurgir da tumba que o neoliberalismo
havia lhe colocado. Fato é que, quando realmente precisamos uns dos outros, os
cânones do capitalismo não se sustentam porque o capital não é e nunca foi
capaz de cuidar de si mesmo. O capital é individualista e autoritário. É então
necessário fazer valer a vida em detrimento do Mercado e do trabalho. Não!,
grita o momento presente, sua vida não é equivalente à economia. Essa mentira
suja se faz cada vez mais clara: de um lado está o Mercado, de outro está nossa
sobrevivência.
4. Os limites
do Estado: mas se é pelo Estado que se clama, parece ser para que este
estabeleça um princípio do comum, o que ele não é de fato capaz de
expressar. O que fizeram os Estados e seus representantes nos últimos dias?
Aquilo que foram criados para fazer: disputas e espetáculo. Não só falham e
tardam no estabelecimento de medidas necessárias à nossa sobrevivência, como
criam novos problemas totalmente desnecessários. É até repetitivo citar aqui o
governo norte-americano saqueando máscaras de países pobres e entregando para
empresas privadas. Parecem que podem matar um vírus com o exército quando a
primeira medida que lhes ocorre é chamar a força nacional. Rapidamente são
estabelecidas mais e mais medidas para rastrear as pessoas e restringir
liberdades, enquanto os subsídios mínimos são postergados ou negados. Discursos
contraditórios; brigas internas visando eleições; informações escondidas;
agressões mútuas inter e entre estatais. Não pense que este é o fato mas que
não precisaria ser assim, não há Estado que não funcione pela lógica da
manutenção do seu próprio poder sobre outros Estados e sobre o seu povo. Sua
lógica não é a da comunidade, mas da preservação da sua própria identidade. O
Estado, um grande indivíduo, não a expressão dos limites do individualismo liberal.
Estados não pensam sobre como salvar vidas, pensam sobre como salvar a si
mesmos e seus interesses econômicos.
O que fazer quando toda uma forma de vida nos aparece como uma evidente mentira? É porque nossa forma de vida sempre foi uma mentira que nossa vida agora surge como totalmente sem forma. Não é possível perder o necessário a menos que ele jamais estivesse lá. O advento do ser-sem-mundo não é responsabilidade de um vírus, mas de uma maneira de viver que não se sustenta por si mesma. A produção-consumo desenfreada e com aparente vida própria na qual embarcamos mata, destrói, nos tira as condições mais básicas de nossa existência. Se não fosse o vírus, seria outra mazela ou uma alegada catástrofe “natural”. A carência de mundo é própria à dinâmica alienante do capital. Tudo que é produzido e reproduzido, nesta sociedade, comporta-se, afinal, como um vírus: sem vida própria, mas induzindo a vida à reproduzi-lo como se dependesse dele. De fato, não é apenas o vírus, são inúmeras as mazelas. A questão é se ainda há tempo de criar um mundo novo. Se ainda resta um comum a ser construído para além do Estado, do Mercado, da família e do indivíduo. Todas essas entidades, que se pretenderam substanciais, regidas pelo princípio da identidade, se mostraram uma farsa, totalmente incapazes de dar conta da nossa comunidade, de nossa mediação fundamental. Por elas, acabamos por perder o mundo. Há agora apenas uma sombra do que podemos vir a ser. Resta saber se ainda poderemos aproveitar a possibilidade ética de uma situação-limite. Pois, se o momento presente faz surgir com clareza o que é farsa, também pode atestar a concretude das verdades manifestas que nenhuma fake news pode subtrair, os momentos de vida ou morte são reveladores sobre o necessário: a importância da produção de conhecimento coletivo; da saúde universal e gratuita; das condições mínimas de sobrevivência que um dia animaram o estabelecimento de direitos universais. O que resistirá de pé neste limite?
“O sentido do mundo deve estar fora dele. No mundo, tudo é como é e tudo acontece como acontece; não há nele nenhum valor – e se houvesse, não teria nenhum valor. Se há um valor que tenha valor, deve estar fora de todo acontecer e ser-assim. Pois todo acontecer e ser-assim é casual. O que o faz não casual não pode estar no mundo; do contrário, seria algo, por sua vez, casual. Deve estar fora do mundo.” (Wittgenstein, TLP, 6.41)
Na mais árdua mazela as pessoas reencontram formas de vivências solidárias e cuidados coletivos imprevistos, não aquelas cristãs e humanistas, abstratas e caridosas, mas aquelas afetivas, concretas, que nos lembram qual vida queremos viver, o que nos constitui, o que tomamos como necessário. Perdidos, sem mundo, podemos reconfigurar seus limites, podemos operar mudanças fundamentais. Para além das telas, mas tornando, em alguns casos, essas que agora se interpõem em todas as esferas das relações como ferramentas, são inúmeras neste momento as redes de apoio mútuo que surgem ocupando o lugar do comum que a forma-Estado não é capaz de suprir. Pequenos grupos cooperativos, autogeridos e descentralizados que se mostram muito mais eficazes do que as alternativas institucionais para dar conta do momento presente.
Aqueles que sempre estiveram na exceção, que já viviam diante da emergência, que precisavam se arriscar e estiveram diante das prisões, são capazes de organizar focos de resistência no mundo todo. É preciso atentar para essas redes silenciosas e para o que tal experiência ainda pode nos legar no âmbito das possibilidades abertas.
O
LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e
Tecnologias de Monitoramento) compreende a gravidade da atual
situação que estamos devido a pandemia causada pelo novo
coronavírus, que se espalha por diferentes partes do planeta há
mais de 3 meses. Nossa posição é que apenas o apoio mútuo, o
autocuidado, a autogestão e a ação direta são capazes de conter a
morte em massa que já vem ocorrendo em todo planeta e que se anuncia
no Brasil. Mais do que conter as mortes, essa posição nos orienta
sobre a reposta ao que a pandemia colocou para todo planeta: qual
vida queremos viver? Compreendendo “vida”, para além do fato
biológico, e “morte”, para além dos registros estatísticos e
georreferenciados. O que nos preocupa são as clivagens sociais e
políticas que poderão decorrer desse acontecimento
em termos de perda de liberdades, produções diferenciadas de status
de cidadania e aprofundamento da exploração do trabalho e das
desigualdades sociais.
Compreendemos
que governos de Estados, empresas, empresários e grandes corporações
multinacionais estão mostrando, de forma reiterada, que veem na
situação de crise
apenas a urgência de salvar suas instituições e seus lucros,
mostrando pouco interesse nas consequências já em curso na vida das
pessoas e nas que ainda estão por vir. Mais ainda: bancos, empresas
de tecnologias computo-informacionais, bem como políticos e líderes
de organizações internacionais não hesitam em escancarar a crise
como uma “janela de oportunidades” para novos negócios e a
consequente intensificação da exploração do trabalho (em
especial, na ampliação do trabalho remoto) e mutação nas formas
de produção da obediência, nos controles
eletrônicos a céu aberto
e na ampliação do dispositivo
monitoramento.
Somos um grupo de pesquisa dedicado à análise de políticas de segurança e monitoramentos e estamos, há um ano, desenvolvendo uma pesquisa sobre como estas medidas produzem a forma do autoritarismo no século XXI (“Políticas de segurança: a conformação transterritorial das democracias securitárias”, 2019-2020), a qual denominamos democracia securitária.
Reconhecemos
o impacto da declaração da OMS (Organização Mundial da Saúde),
de 11 de março de 2020, que decreta o que vivemos como uma
“pandemia”. No entanto, não nos arvoramos a cobrir tudo o que
diz respeito à pandemia – não contamos com pesquisadores da área
médica e epidemiológica. Mas acreditamos, desde nossa alocação na
universidade pública, que as análises possibilitadas pelas Ciências
Humanas têm muito a dizer sobre o que se passa no planeta hoje,
quais mutações esta situação de emergência pode gerar e quais
saídas as coletividades humanas podem construir, tão inusitadas e
radicais quanto a situação declarada como calamidade que se impõe.
A proposta deste boletim semanal é produzir uma compilação de informações, breves análises de nossos pesquisadores e cenários possíveis, unicamente no que diz respeito às políticas de segurança no planeta e com especial atenção ao Brasil, divididos em cinco tópicos.
Com o acontecimento COVID-19, o Laboratório Zona de Contágio instaura-se como um dispositivo de pesquisa coletiva e experimentação. Se o fortalecimento de governos tecno-autoritários já era uma ameaça à vida comum, a intrusão viral potencializa a disseminação de uma cultura imunitária e securitária de contornos fascistas no tecido da própria vida social. Tudo é risco.
Estamos lançando uma investigação coletiva que se proponha a pensar agora pelos cortes que fazem atravessar corpos, a casa, o risco da respiração compartilhada, os novos arranjos da biovigilância, as tecnopolíticas de gestão do normal e do que excede. O poder é logístico, está por todos os lados. Por isso, uma ciência de risco precisa dar atenção aos \”agenciamentos que geram transformações metamórficas em nossa capacidade de afetar e sermos afetados – e também de sentir, pensar e imaginar\”.
Disparamos perguntas que nos implicam com o acontecimento covid-19.
Pensar porque estamos obrigados, potencialmente infectados e febris. Diante dos intensos fluxos filosóficos, da saturação metafísica, semiótica, informacional, gostaríamos de propor uma desaceleração do pensamento; uma respiração diafragmática. Uma ciência de risco é objetora de tudo que nos envenenou: produtividade, crescimento, competição, originalidade, os grandes esquemas conceituais. Uma ciência de risco é aquela que habita as encruzilhadas e as práticas de permanecer um pouco mais com a confusão.
Como primeiro movimento de um percurso incerto e aberto de investigação coletiva, desejamos criar conversas com praticantes que se sintam afetados por essas questões. Seja a partir de uma criação qualquer (texto, fotografias, áudios, vídeos, performances) compartilhada entre nós, ou de um fio investigativo que possamos juntos rastrear: os fios do provável (a reorganização dos poderes tecnototalitários e dos dispositivos reordenadores da vida); os fios do possível (as formas de cooperação, novos acordos coletivos, a luta contra as normalizações dos excessos e pelas muitas formas de recusa). Uma ciência menor que atua com a experimentação e a invenção de uma linguagem comum, pelos sentidos que dão passagem a uma experiência singular e coletiva.
Atenção às infraestruturas mínimas da vida coletiva que adquirem visibilidade e urgência – a metrópole é um grande dispositivo de renuncia sobre nossas próprias vidas. Como a vida na cidade e na casa é percebida no interior desse acontecimento? O que estamos fazendo das nossas vidas?
Rastrear os pequenos gestos, as formas de recusa nada épicas, os imperativos do desempenho que descem pelo ralo enquanto temos que dar conta da louça acumulada antes da próxima reunião online. Como nossa vida é agora interpelada pela lógica da produção e do fazer, pela culpa do contato ou do isolamento, como imaginam nossas resistências e invenções cotidianos para existir? Precárixs. Lançadas em uma correnteza de indeterminação; atentas para os modos diferenciais de tornar algumas vidas dignas de serem protegidas e outras não. Nossos corpos como infraestrutura invisível que sustenta toda a ficção do \”homem livre empreendedor\”. Para não \”voltar ao normal!\”; Para retomar a insistência da vida não a qualquer custo – mas uma vida que possa criar movimentos de abertura, uma que desliza e escapa de suas estabilidades e antigos compromissos, aquela que aposta nos riscos dos encontros.
Rastrear as decisões logísticas e tecnológicas que prometem \”segurança\”, \”saúde\” e \”bem-estar\”, \”praticidade\” e \”desempenho\” a despeito da nossa incapacidade de cuidarmos de nós mesmos; a despeito da nossa incapacidade de sustentar outras saídas. Assumir nossas vulnerabilidades compartilhadas. Como esse acontecimento nos releva os arranjos em que estamos enredados? Podemos habitar de outra forma a cidade, o mundo, a terra – não como \”cidadãos\”, mas como criaturas?
Somos convocados a oferecer provas de um bom comportamento como soldados de uma guerra que não é nossa. Interpeladas cotidianamente por dispositivo de mobilização de corpos e boas condutas. Alternativamente, quais são as novas alianças que estamos criando e que desejamos ainda criar? Uma ciência de risco é sempre uma ciência que hesita, uma ciência de retomada de uma inteligência coletiva e que funciona apesar e contra os chamamentos da nação, da pátria ou da grande Ciência e seus regimes de autoridade e verdade.
Protótipo 1 – como criar uma conversação em tempos de pandemia?
Explicações de um mundo \”real\”, assim, não dependem da lógica da \”descoberta\”, mas de uma relação social de \”conversa\” carregada de poder.
Neste primeiro movimento a idéia é que possamos nos relacionar através de nossas criações, formas de expressão sobre o experienciado, fragmentos coletados do mundo, situações vividas, sentidas, relatos, hesitações – sejam seus ou não.
Se você deseja entrar nesse barco, envie um email (tecnologia de desaceleração) para: conspire@tramadora.net
Criamos um canal de transmissão no Telegram onde iremos proliferar os caminhos da pesquisa: https://t.me/tramadora
Além do processo investigativo, realizaremos um ciclo de estudos insurgentes. Encontros virtuais para discussão de algum texto ou conversarmos com algumx convidadx. O primeiro encontro será dia 23/04, quinta-feira, a partir das 19:30hs, numa plataforma de videoconf [link com a programação será divulgado em breve]