Category: urucum

  • a cidade que brota cosmopolítica

    Alana Moraes, Dan Scan e Salvador Schavelzon

    parques rios ruas territórios áreas verdes rebeldes

     

    isso foi ontem, mas poderia ser a imagem de hoje, do amanhã, nosso \’intenso agora\’.

    Teatro oficina, os sem-teto, parque augusta, urucum, vizinhos, territórios cosmopolíticos, gente de bairro e do mundo, do céu e da terra. Amores.

    Os fazedores da cidade real na batalha contra os donos das cercas, sempre.

    É a guariroba, refazendo tudo.

    Falta o arco-íris no filme do João Moreira Sales, falta o maio de 68 que não foi \”derrotado\”, os que respiram, falta compreender que a revolução não cabe em uma poética melancólica, não é o medo da contaminação. É sempre risco, ainda que sempre forte e infalível quando vibra o desejo coletivo de liberdade.

    o intempestivo, ainda

    Galileu percebeu que o telescópio podia ser orientado para o céu. Um novo universo apareceu para os homens.

    No último século e meio de lutas a classe, os movimentos, as mulheres os marginais se tornaram sujeitos políticos com voz e corpos mudando a história. Fazem-se.

    Vivemos agora um momento novo, onde novas sensibilidades tornam irreversível a emergência da natureza, dos rios, de Gaia, dos não-humanos, dos parques e o cosmos, sem os quais não é mais possível pensar a política.

    Como os índios, as bruxas, as mulheres em suas cozinhas, os alquimistas, algumas pessoas comuns de qualquer lugar sempre souberam. Agora a política velha e cansada cai, com seu asfalto, desenvolvimento, especulação e autoritarismo, para que vivamos uma cosmopolitica do corpo, do afeto e de luta política contra a ordem e a civilização. 

    A luta de clases se torna cosmopolítica. O movimento das mulheres, dos que resistem e lutam, se expande para uma revolução dos sentidos, contra o homem moderno e branco fechado para si. O carnaval é a nossa vingança.

    Não se trata apenas de uma nova pauta de direitos, embora possa haver toda um novo ordenamento jurídico a partir disso.

    Se trata de que começamos a perceber que rios, florestas e outros mundos também, estavam aqui sempre conosco e começam a emergir.

    levantar o asfalto

    abrir as cercas e des-mercantilizar o que é comum.

    Debaixo de todo asfalto resiste a terra, um rio, uma cidade cosmopolítica.

    \”Sob o asfalto, a praia!\” gritava o Maio de 68 Francês logo depois de perceberem que, debaixo dos paralelepípedos arrancados para erguer barricadas, havia areia. Havia a praia.

     

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    Foto do encontro de 26/11/07 do lado do futuro parque Bixiga, por todos os parques e rios da cidade. Nesse dia aconteceu uma aliança cosmopolítica com cortejos que partiram do Rio Anhangabaú, do Parque Augusta, se encontrando na frente do Teatro Oficina, legado, na luta contra Silvio Santos e a favor de um parque para a cidade.

    Nessa jornada houve encontros de rios, lavagens coletivas, leitura de manifestos, plantio, regadio com água de rios emergentes, canto dos guaranis e corpos felizes, dançantes, marchando contra a especulação, lutando. 

    Nesse dia também foi distribuido o primeiro Zine do URUCUM no pé de uma planta remanescente de Urucum, enquanto nos pintamos com a tinta da planta, no cortejo que levou água do Rio Augusta para a confluência dos rios na aliança cosmopolítica.

  • fogo e feitiço

     

    Fogo e Feitiço

     

    Por Clarissa Reche

    No começo do ano eu virei uma bruxa. A cerimônia ritual foi bem complexa e envolveu uma sorte de objetos como corante, pena, rato de plástico, glitter e até cera derretida de vela, tudo devidamente misturado em um caldeirãozinho de plástico.

    Quem conduziu o ritual foi a Isa Bella, minha auto-intitulada sobrinha de 5 anos. Ela ficou realmente desconcertada ao saber que eu, afinal, nunca tinha feito um feitiço. Resolveu dar um basta nesta situação, expulsou todos do seu quarto e ficamos lá por uma meia hora. Para fazer o feitiço, a Isa interpretava com cuidado belíssimas aquarelas do seu livro de poções, feito com muito amor pelo seu pai e minha irmã. Se no desenho predominava a cor vermelha, ela colocava corante na mistura. Para as estrelas, glitter. Para o abutre feioso, uma pena saída sei lá da onde. Até que ela, sem nenhuma vergonha, mergulhou um copinho no caldeirão, estendeu a mãozinha até a altura do meus olhos e disse: \”bebe\”.

    Eu bebi, óbvio.

    Saindo do quarto mágico, a Isa foi correndo pra sala contar seu mais novo feito para sua avó. A Clari agora era bruxa. A senhora, uns 60 anos, motoqueira, cabelão preto, “A” de anarquia tatuado na mão, gargalhou alto e me disse \”bem vinda\”, saudação que foi coroada com um olhar daqueles olhares que dizem \”eu te reconheço como igual\”.

    Minha vó também era uma bruxa. Antes achava que era um tipo de anjo ou santa, mas a uns dois meses atrás juntei todos os pontos e agora estou convencida: ela era uma bruxona. Todas as memórias que tenho da vó Maria tem a ver com cura e cuidado. Ela era super católica e dedicou literalmente a vida para por em prática o que, para ela, significava isso. Ela dedicou a vida ao amor ao próximo. O vô David e a vó Maria trabalharam muitos anos junto com o padre Júlio Lancelote na pastoral \”do menor\” e contavam história que eu, criança (e não \”de menor\”), ouvia como verdadeiras histórias de horror.

    Ao mesmo tempo, numa aparente contradição, a vó Maria era também uma verdadeira ocultista. Lembro dela super magrinha depois de um tempo de dieta macrobiótica, das amigas espíritas que ela tinha, das caminhadas nos parques para colher folhas de eucalipto que ela usava para tratar a asma da minha prima, dos emplastos e álcool com mentruz que confortavam meus joelhos quando me ralava toda brincando, da babosa que plantava e colhia, com delicadeza, e forçava meu avô, com rispidez, a tomar desde que ele foi diagnosticado com câncer, dos cházinhos de dente de leão, que eram bons para quase tudo.  E da cura prânica, prática à qual minha vó se dedicou e estudou a fundo, se trancando todos os dias no quarto para cuidar de gente que ela nem conhecia.

    E ela não precisava conhecer para cuidar. Era sabido no bairro que a \”dona Maria\”  nunca negava um prato de comida pra ninguém. E que comida! Cozinhava tão bem, e quando dava preparava um bolo delicioso, simples e delicioso, que apelidou de \”bolo do véio\”, já que o vô adorava. A vó Maria amava tanto. Amava as plantinhas, os bichos, os netos, as pessoas, a vida. Ela vivia o amor.

    A vó Maria está agora na fase terminal do alzheimer, uma doença que a acompanha já faz mais de uma década. Quando a doença começou a aparecer e nós ainda não havíamos visto, ela já sabia, e durante muito tempo insistiu para que alguma das netas aprendesse seus conhecimentos, que aprendêssemos a curar e cuidar. Mas não aprendemos, e me arrependo de, adolescente, não ter ouvido a súplica de minha avó. Fico imaginando a dor do mundo que a vó Maria viu e viveu em sua caminhada e às vezes penso que seu corpo e sua mente de bruxa guerreira não suportaram tamanhas injustiças. Ela vivia o amor, mas o mundo é um moinho de ódio.

    Outro dia aqui na vizinhança queimaram uma mulher viva. Era uma filósofa estrangeira chamada Judith Buttler que, de passagem, teve que ver o seu rosto colado num corpo de bruxa em chamas. As pessoas que protagonizaram essa cena de violência e ódio diziam que fizeram tal ato em nome da Vida. Que essa mulher, com suas ideias, atentava contra a tal coisa que eles chamam de Vida. Que por isso mesmo ela era uma bruxa. Que por isso deveria ser morta, queimada viva. A maioria ali justificou isso supostamente em nome da mesma fé que a minha vó tinha, só que minha vó dava comida pra vagabundo e curava usando a energia da mão.

    Eles queimariam a vó Maria!

    No meio do ritual a porta se abriu. Fomos interrompidas pelo pai da Isa que, desavisado, perguntou qual era a finalidade do feitiço. A Isa, sem pensar duas vezes, respondeu que não podia falar e pediu para ele sair. Perguntei, logo que ele saiu, porque ela não quis contar para o pai que estava fazendo um feitiço para que eu virasse bruxa e, novamente sem pensar duas vezes, ela deu uma resposta contundente: o pai não podia saber pois ele era homem, e se soubesse que ela sabia fazer virar bruxa, ele iria querer ser bruxa, e homem não pode ser bruxa.

    Eles queimariam a Isa!

    Por que eles se incomodam tanto com mulheres falando? Por que eles se incomodam tanto com mulheres pensando, agindo, curando, cuidando, amando, lutando?

    Eles me queimariam.

    Eu tenho medo! Tenho medo por mim e por todas, um medo constante que existe desde que existo. Um medo presente e corporificado que me faz lembrar sempre que sou mulher. A violência e o ódio nos espreitam. A fogueira está sempre acesa.

    Tenho medo mas estou acordada. A força para me manter desperta vem, imagino eu, da própria vida. Mas a vida que a vó Maria me ensinou a amar, a vida que é com, por e pelo próximo, que brilha, arde, ilumina e transforma como o fogo, não aquela Vida que os queimadores de bruxas, que em vão usam o fogo, defendem, uma Vida que castra corpos e mata. A vida pulsa e resiste alegremente, não há espaço para melancolia quando se está bem próxima do chão, o suficiente para ver a beleza da florzinha que brota na rachadura da calçada.

    Minha irmã encontrou recentemente o livro que a vó Maria usou para estudar Prânica, cheio de anotações que ela fez. Ainda há tempo. Nós podemos retomar o que é nosso, apesar do trauma.

    Jah não pertenço à babilônia. Sou uma artista, sou uma filósofa.

     

    *  a imagem que ilustra o texto foi escolhida pela Isa. É de um livrinho dela. Foi também a imagem que ela usou para o feitiço.

     

  • Teat(r)o oficina: corpos livres em perigo

    Por Jean Tible*

    também publicado em: https://fpabramo.org.br/2017/11/17/teatro-oficina-corpos-livres-em-perigo/

    No país da história golpeada (1), estamos vivendo os nefastos desdobramentos da sua mais recente reedição, ocorrida em 2016, que reverbera em variadas esferas. Todas as conquistas e aspirações dos de baixo estão sendo questionadas: proteção social, educação pública de qualidade, saúde para todos, combate às desigualdades sociais e raciais, políticas culturais, o limitado voto… Nessa encruzilhada, estamos: sabe(re)mos resistir (o que significa, para a esquerda, re-existir)?

    É este o contexto da nova ofensiva contra o Teatro Oficina Uzyna Uzona (2), ativo há quase seis décadas na cidade de São Paulo, no bairro do Bixiga. No dia 23 de outubro, o Condephaat, após o golpinho da mudança de sua composição, reviu a decisão do ano passado que vetava a construção das três torres de dezenas de andares do Grupo SS. Se o Secretário Estadual de Cultura do Estado não vetar esse ataque ao teatro, que é estadual, restarão duas proteções: a municipal (Conpresp) e federal (Iphan) (3).

    Se Silvio Santos chegou, poucos anos atrás, a ceder em comodato a área em volta do mítico teatro (4) e mostrar-se favorável à permuta do terreno de sua propriedade por outro, nesse novo clima pós-2016, o chefe do Grupo SS não quer mais saber de conversa. Chegaram até a desmarcar a reunião que ocorreria na Prefeitura no dia 13 de novembro e ordenaram a destruição do sambaqui, “ícone vivo, histórico, do sítio arqueológico do Bixiga” (5) , situado no entorno do teatro. Antes, já faz muitos anos, até mesmo uma sinagoga situada nesse mesmo terreno havia sido demolida (6).

    Minha (mais uma!) propriedade privada antes de tudo, nos sugere Silvio Santos em vídeo revelador (7), fazendo-nos recordar a célebre fórmula do trabalhador anarquista francês Pierre-Joseph Proudhon – a propriedade é um roubo. Ao garantir seu sagrado direito à propriedade, privará a cidade de um laboratório de vida e de corpos livres atuando em conjunto e com poder/phoder de multiplicação. Esse vídeo (da reunião de Zé Celso com Silvio Santos e outros mais em outubro) nos mostra um tirano decadente, de constantes piadas sem graça (8). Um triste retrato do golpismo atávico das classes dominantes e da sua renúncia de um Brasil autônomo e democrático. O Rei da vela (peça escrita na década de 1930 por Oswald de Andrade, montada pela primeira vez 50 anos atrás e re-encenada no último mês) escancara toda a nossa atualidade colonial: o vídeo parece a peça, como bem disse Fernanda Torres (9).

    Por que esse ataque ao Oficina? Trata-se de um assalto ao bairro do Bixiga, como o indica o uso muito mais do que equivocado por parte do Grupo SS da palavra revitalização (?) ao se referir, justamente, a um dos bairros mais vivos da cidade. É uma investida contra o bairro preto, nordestino, boêmio, pobre. Bixiga das multiplicidades, das trabalhadoras, dos teatros, dos terreiros, do samba e da Vai-Vai, das associações e outros pontos de produção do comum, onde são experimentadas formas de vida inabituais. Da metrópole viva. Um teatro-rua, teatro-pista, do janelão de vidro em sua conexão com a cidade, atravessado pela cesalpina, árvore totem – que nasce dentro do teatro de Lina e vai pra fora. O transbordar de uma cosmopolítica; terra e democracia sendo semeadas (10).

    A importância do Oficina se dá também pela sua existência como território livre e pela sua força de conexão com outros lugares de experimentação. O Oficina participa ativamente de uma cartografia do contrapoder. No Bixiga, como vimos, no Brasil (territórios indígenas, quilombos, ocupações, assentamentos e muitos outros) e no planeta. Mundos. Subversão em ato de corpos elétricos no terreyro eletrônico. Nesses dias que comemoramos o centenário da revolução de 1917, refaz e recria os elos, indissolúveis, entre ética e estética (“sem forma revolucionária, não há arte revolucionária”, Maiakovski), dos poetas e criadores que anunciaram a esplêndida revolução e cujo fim indicou, já precocemente, seu triste declínio. Corpos não domesticados e descolonizados. Quando alguns querem (de forma infértil e impotente) opor “classe” e “diferença”, o Oficina, e seu emblema, a bigorna (remetendo ao ofício teatral e proletário) ativa um devir-indígena (11), um devir-negro; uma transesquerda (Zé Celso).

    No tal vídeo, Silvio Santos pergunta para Zé Celso o que ele quer fazer com o terreno. Frente ao interesse estreito e individual (suposto pelo empresário), um espaço para a coletividade-cidade (a-anhangá-anhangabaú-da-feliz-cidade) responde o homem de teatro. Em oposição à avidez, um laboratório da felicidade guerreira, alimentada pela potente linhagem da antropofagia. Num planeta onde tudo parece e é complexo, a reunião citada escancara o dilema de Rosa Luxemburgo um século atrás: socialismo ou barbárie. Ou a fartura do comum de Artaud contra o mundo miserável do capitalismo. A política como invenção, criação, provocação, devoração. Teatro-vida da presentação e não da representação, afirmação de uma vida outra. Luta e alegria.

    –Notas–

    1. Douglas Belchior, http://negrobelchior.cartacapital.com.br/historia-golpeada-do-brasil/

    2. O Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico de São Paulo (Condephaat) aprovou, na última quinzena de outubro, o projeto do Grupo SS, de Silvio Santos, de construção de três torres de 28 andares no terreno do entorno do Teatro Oficina. O teatro, bem como o entorno, são reconhecidos como patrimônio cultural nos níveis federal, estadual e municipal. Para a execução do projeto serão necessárias ainda as aprovações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp).

    3. dois textos recentes do Oficina sobre o assunto (http://teatroficina.com.br/urgente-nota-publica-de-esclarecimento-ficaoficina/ e http://teatroficina.com.br/movimento-vetaastorres-ficaoficina/) e uma matéria com Camila Mota (https://revistacult.uol.com.br/home/somos-cascudos-e-aguentamos-a-luta-diz-vice-presidente-do-oficina/).

    4. Vídeo de 2011: https://www.youtube.com/watch?v=XMPi3mQ3b9I

    5. https://www.facebook.com/uzynauzona/videos/vb.1152781641431789/1592918854084730/?type=2&theater)

    6. http://www.gazetadigital.com.br/conteudo/show/secao/4/materia/81645

    7. Na íntegra (https://www.youtube.com/watch?v=yRlPmIgc6UY) e na versão editada pela TV Folha (https://www.youtube.com/watch?v=S-k4CcFgmJo)

    8. http://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2017/10/1930968-vou-transferir-a-cracolandia-pra-la-diz-silvio-santos-a-ze-celso-em-reuniao-com-doria-sobre-o-oficina.shtml

    9. https://revistatrip.uol.com.br/tpm/fernanda-torres-novo-livro-a-gloria-e-seu-cortejo-de-horrores-a-solidao-de-escrever-e-arte-no-brasil

    10. Vejam o forte diálogo entre Sonia Guajajara, Guilherme Boulos e Zé Celso ocorrido ano passado no Oficina: https://www.youtube.com/watch?v=_rf89zFaNT8

    11. Segundo Eduardo Viveiros de Castro, “se você olhar a composição étnica, cultural, da pobreza brasileira, você vai ver quem é o pobre. Basicamente índios, negros. O que eu chamo de índios inclui africanos. Inclui os imigrantes que não deram certo. Esse pessoal é essa mistura: é índio, é negro, é imigrante pobre, é brasileiro livre, é o caboclo, é o mestiço, é o filho da empregada com o patrão, filho da escrava com o patrão. O inconsciente cultural destes pobres brasileiros é índio, em larga medida” https://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/29/opinion/1412000283_365191.html

    *Jean Tible é professor de Ciência Política da USP e Conselheiro do CSBH

  • amor, matéria de fim de mundo

     

    Lina, amor

    te escrevo rápido entre milhares de coisas.
    A boa notícia é que deixei meu emprego, entreguei o velho apartamento, dei minha bicicleta.
    Já nada me conecta a esse lugar. Me sinto flutuando, exílica. Volto para te encontrar e estarmos juntas.
    Estou cheia de ideias, me derretendo de amor e com muito tesão de que façamos tudo que estamos planejando faz tempo em segredo.
    Eu quero tudo que você quer, esse desejo me livra dos abismos. Os cartazes; lambes, como você quiser, amor.
    O grupo de estudo, leiamos Nietzsche. Dançar; vou voltar a dançar, amor. Nosso filme e as canções que tocam sempre naquela oficina mecânica perto da sua casa.
    Te beijar muito, fechar os olhos como fazíamos naquele dia, domingo cedinho enquanto descobríamos uma ruazinha sem saída  cheia de palavras pelos muros.
    Suas formas mágicas em que quero voltar a me desfazer enquanto você me chupa e nos entregamos em abraços que descem se transformando em carnaval. E o zine, claro. Ainda é tempo para zines, não?
    Mudando de nome em cada número e com fotos de nossos corpos nus, muita revolução molecular, máquinas de guerra, perfumes de flor, minha flor.
    E queria que o zine tivesse seu cheiro. Do gozo e da revolução que é nosso encontro. Pego o ônibus amanhã 6 da manhã, acredito que chego aí já de noite. Queria entrar voando pela sua janela. Deixa ela aberta pra eu conseguir entrar. Te amo. Te mando com essa carta alguns desenhos. Te sinto até me dissolver.
    Zine anônimo, tá? Eu gosto do nosso anonimato, nos protege do fim do mundo. Gostei desse primeiro que você fez com ele. Já chego amor, deixa as cortinas abertas, sempre. Não continua se escondendo do sol, nem das noticias do dia. Vamos precisar atravessar tudo.
    As bruxas se apaixonam?
    Preciso aprender a ser mulher, mesmo que já esteja cansada demais. Agora gostei de ser menina, raio, gozo, planta, rio, bruxa, lingua, lágrimas negras e cachoeira de água fria pra entrar. Como revolucionária você tem que aprender a viver num tempo de catástrofes, amor.Desastres incontornáveis existem, mas sobretudo, existe o amor. E por isso estamos vivas.
    Beijos da sua amada, R.
  • 100 anos da Revolução Russa: um olhar.

    Por Salvador Schavelzon.

     

    Hoje, 7/11/2017, há cem anos da Revolução russa, alguns nos perguntamos por uma leitura desse acontecimento mais do que comemorativa, interessada na atualidade que essa revolução possa ter num momento em que custa encontrar caminhos eficazes de contestação do poder constituído e de construção de um mundo novo. Para os que se mobilizaram e organizaram em 1917 essas duas coisas pareciam possíveis. Eles estavam melhor que nós e não contavam com os fracassos das experiencias socialistas do século XX nem com o esgotamento da própria proposta política da esquerda. Era só questão de avançar pelo caminho que estava dado.

    O projeto de esquerda construído nos cem anos anteriores a 1917, enquanto o mundo liberal burguês se consolidava na Europa, entusiasmava espíritos sensíveis e críticos da sociedade. Hoje esses espíritos preferem fazer outra coisa, ou não fazer nada. Se esse projeto fracassou, no entanto, junto com a ideia de ciência e de sociedade que carregava, estamos também melhor que os bolcheviques. Imaginem se fôssemos capazes de voltar ao momento da revolução russa, mas dessa vez com um século de experiencia política nas costas. Possivelmente pensaríamos antes em ação do que em comemoração, em mudar a vida antes do que em mudar o mundo. Tentaríamos ficar abertos e sensíveis ao que acontece ao nosso redor, mais do que em tentar transformar os outros, leva-los como base ou objeto da nossa revolução.

    Mesmo que tomemos distancia de tudo o que foi feito pelos revolucionários russos naquela ocasião, e especialmente pela esquerda que trouxe até hoje essa referência do \”quê\” e do \”como\” fazer luta política, há algo desse acontecimento que sobrevive a todo revisionismo e tentativa de explicação redutora. Algo muito forte acontecia pela força da organização autônoma que se opôs à ordem conservadora-burguesa então dominante, deixando o comando na classe trabalhadora que havia feito possível a revolução. Os que não tinham nada conseguiram virar o jogo e desarmar o sistema de dominação do modo como estava estabelecido pelo império e sua continuidade liberal progressista.

    Comecemos com assumir que Kronstadt e o gulag fazem sempre parte da discussão aberta pela revolução. Até porque tem revolucionários que foram massacrados e que merecem ser lembrados. Não se acomodaram ao regime, que sempre oferece a possibilidade de se deixar assimilar. Podemos fazer uma evocação romântica que silencie todo desvio para ficar com a imagem gloriosa de 1917, sem manchas. O Lenin cristificado, o Trotsky fundamental injustiçado ou ainda os sovietes anarquistas que foram reprimidos ou aniquilados. A esquerda ocidental já tentou atribuir os erros da revolução à tradição despótica asiática, ou às características da psicologia pessoal do Stalin. Não é suficiente. Apreender a densidade da revolução exige assumir a experiencia política completa, com tragédia, farsa e toda uma problemática, como dificuldades que não se resolvem num racha que proponha começar de um novo lugar, separando o bem do mal e se colocando a salvo do conflito. Assim nos conectamos com o acontecimento e não com ela como ideia. E assim fazemos dela um problema político que se conecta com os de qualquer época: o problema de quando a ruptura com a ordem se torna uma ordem nova, a revolução se burocratiza, seus precursores são excluídos enquanto autoridades se impõem de forma parecida ao que motivou a revolução. O problema pode levar ao fatalismo. Mas o desafio é entender como a luta política deve sempre encontrar novas formas e caminhos.

    Se os bolcheviques expressavam rasgos asiáticos, sejam eles bem-vindos, porque precisamos de diferença quando é o excesso de aridez ocidental hoje aqui nosso problema. Tragam xamãs da estepe russa, nômades afegãos ou os métodos comunitários dos camponeses eslavos que sem dúvida enriqueceram as estruturas de poder dual dos sovietes em Outubro. Os problemas da esquerda e da direita do poder, são hoje bem ocidentais. Como foram também para a União Soviética. O stalinismo é a exacerbação da repressão política da dissidência, opositores políticos purgados e enviados a fazer trabalho forçado como no tempo do Czar. E isso aconteceu na revolução francesa, com o macarthismo nos Estados Unidos, e nas ditaduras latino-americanas. Hoje nos Estados Unidos, na Rússia ou no Brasil, um regime prisional perverso se constitui como forma de governo dos pobres e marginais. Mas o stalinismo é mais do que isso. Sem socialismo soviético, a Rússia se encontra com Europa e Estados Unidos em mais coisas do que se separa. Não é por acaso. Foi construído lá, em nome da revolução, um sistema de trabalho e produção que caminhou em paralelo aos de ocidente. Um sistema social, com populações enquadradas e socializadas no consumo e sonhos de bem-estar familiar, que passaria também pela flexibilização do burocratismo fordista para hoje se integrar no neoliberalismo global sem nação nem Estado, como devia ter sido o poder proletário. Controle policial interno e geopolítica da guerra de nações militarizadas no âmbito externo, já no caminho empreendido pelos bolcheviques depois da revolução, como novo poder estatal dos sovietes incorporados como órgãos de gestão desse mesmo sistema de trabalho.

    Liberais gostam de apresentar a União Soviética de Stalin como regime oposto à democracia liberal do livre mercado. Não é incorreto dizer que a Rússia soviética era um regime anti-marxista ou anti-comunista, e que incorporou muito dos dois regimes com os quais rivalizava: o ocidental liberal capitalista e o do Império autocrático que o antecedera. Já com Lênin, e nas propostas econômicas dos trotskistas, é adoptado o caminho modernizador da industrialização e crescimento econômico com produção rural de grande escala, modo escolhido de gerar riqueza e gerenciar a vida social, implantado sem evitar a violência e destruição de mundos que esses processos tiveram no ocidente e em todo lugar. Difícil pensar como poderia ter sido distinto, e as consequências de outra escolha em relação ao papel crucial da União Soviética na derrota do nazismo na segunda guerra mundial e o atendimento da nova população urbana  proletarizada. A URSS foi um grande Estado de Bem-Estar. Mas hoje é importante sim uma crítica que vem ganhando corpo a partir da década de ‘60, embora tivesse expressões minoritárias já na época da Revolução (com Bukharim, e outros), sobre a necessidade de pensar alternativas a um modelo que é ao mesmo tempo horizonte do desenvolvimento capitalista e, aqui entre nós, o programa da esquerda estatal e partidária latino-americana. O crescimento e a aliança com os industriais, e os empresários do agronegócio de expansão etnocida foi para vários economistas do PT no governo da Dilma, a alternativa para sair do modelo neoliberal mais ortodoxo. A retórica da industrialização, não realizada, foi também o que se constituiu como projeto político do Evo Morales depois de romper com os movimentos indígenas. Uma evocação da Revolução Russa hoje deve abordar o problema do modelo econômico, e também da democracia, aspecto inseparável e que também dirigentes como Trotsky e Luxemburgo alertaram (por exemplo a respeito da Assembléia Constituinte e necessidade de aprovação da tomada do poder pelos proletários).

     

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    A revolução russa, de fato, continua entre nós com suas tragédias, linguagens e possibilidades de ruptura. E se faz necessária de ser pensada para encontrar lugares políticos onde tudo parece fechado, nos debates da esquerda, ou quando mesmo fora do governo, vemos os projetos deste campo apoiados no soberanismo welfarista, no lugar em que depois da revolução internacionalista o processo revolucionário se encontra falando da pátria mãe, com aquela imagem do Stalin pilotando o barco que seria a URSS, e isso quando não é apresentada como inexorável a agenda liberal dos bancos, como em Brasil de 2015, a capitulização do Syriza e as tentativas de Podemos, na Espanha, para encontrar um atalho para o poder fazendo um acordo de governo com o PSOE, aceitando preservar os consensos de ‘78 contra os que nasceram em 2014. 1917 e a posição bolchevique no contexto da Europa é ruptura com respeito aos nacionalismos e as socialdemocracias acordistas, numa esteira internacionalista e proletária, que desconfia dos acordos com a burguesia nacional.

    Não é suficiente nos conformar com o mantra de “outro tempo, outra realidade”. Se resgatamos a Revolução Russa, é preciso nos conectar com sua potência que era derivada de situações políticas bem concretas. O poder dos sovietes e, ai sim, a abertura para o indeterminado e selvagem que dificilmente possamos traduzir. O poder para os sovietes, em 1917, não significava necessariamente coletivização forçada, industrialismo acelerado com metas alienantes, e carreira militarista com ocidente. Significava não apoiar o governo provisional formado por liberais e progressistas, a pesar de este ser um avanço a respeito das posições “fascistas” do czarismo mas como bloqueio do que Lênin e Trotsky, como jacobinos sensíveis, viram como tradução política do comunismo possível: o poder para os trabalhadores, para os de baixo, reorganizando o sistema e direcionamento social . A revolução mostrou assim um caminho que possivelmente hoje possa ser imaginado sem jacobinos, e sem proletários, como corpos e sociedades que se constituem como único poder político sem mediações e com autonomia. Mas era também a concreção do que antes apenas havia sido ensaiado sem sucesso ou imaginado.

    Se tivéssemos que ficar apenas com um gesto, um movimento para entender a essência da revolução de outubro, talvez possamos ir para uma situação política clara, onde o governo provisório se recusava a interromper a participação de Rússia na guerra, e atrasava as reformas e medidas sociais às que se havia comprometido. Os bolcheviques sabiam que os moderados nunca fariam as reformas prometidas, porque isso implicaria para eles perder o poder. A sacada, que era minoritária e contrária inclusive à posição adoptada pelo partido bolchevique, era não colaborar com esse governo e defender a posição que apostava nos soldados, operários e camponeses mobilizados. Num telegrama de março de 1917, Lênin era claro: “Nossa tática: absoluta desconfiança, nenhum apoio ao novo governo, suspeitemos sobretudo de Kerenski, armamento proletariado única garantia, eleição imediata Duma de Petrogrado, nenhuma aproximação de outros partidos…”. E a estratégia? Não importa, porque são as táticas certas as que conseguem as coisas.

    Trazendo para nossa realidade essa ruptura que abre para o imponderável, ainda com o risco de que todos os que defendem essa posição sejam fuzilados, lembramos dos debates brasileiros de 2016 em que tendências marxistas do PT raciocinavam como se Dilma Rousseff tivesse que se defendida porque fazia as vezes de Kerenski, sem quem uma posterior revolução não seria possível. Lembrando os raciocínios mecanicistas da ortodoxia marxista, a ideia é que a revolução se estuda passo a passo e sem Kerenski (Dilma) não poderia haver o avanço posterior necessário. No entanto a revolução é justamente se jogar num vácuo de insurreição que possa abrir o que está fechado, como golpe ao governo provisional, para os bolcheviques, mas também como junho de 2013 para a juventude do Brasil que sabia que o PT era um limite que não poderia deixar de agir de forma coordenada com a classe dominante, e os partidos conservadores com os que tinha aceito governar. A interrupção do governo com mecanismos ilegais, assim, entendidos como parte normal do funcionamento de um sistema de governança ao qual esquerda e direita se entregaram.

    Para além da idea PT, que ainda alguns seguram, mesmo fora do partido, o momento de ir além do governo provisional no Brasil foi não apenas desouvido, mas também reprimido pela esquerda no poder. A partir daí o consignismo apelativo “golpe”, “fora temer”, “diretas já”, “Lula 2018” aparece como um letargo discursivo, sem corpo, nem povo mobilizado que se proponha fazé-lo efetivo. Independentemente de poder ser assumido ou não como uma posição correta, em determinado momento, as consignas levadas pela esquerda e aparelhos da órbita lulista, se mostram como avesso do “Pão, Paz e Terra”, como lema que nomeava o que pouco antes era impossível (sair da guerra, resolver a fome), mas no entanto se realizava enquanto o mundo em que era impossível desababa, a partir de conectar, ao contrário dos slogans no Brasil, com as energias entorno da feitura de um “nós” coletivo que ao mesmo tempo nasceu de, e fez possível a revolução. Essas energias vitais faltam à esquerda que se projeta contra junho de 2013, na eleição de 2014, na Copa e hoje novamente em pactos eleitorais com a direita, reivindicando como lugar de poder o apelo a um direito adquirido de ser o Estado e a legalidade, no controle das narrativas da esquerda, mesmo que desse lugar não seja possível mudar os condicionantes do real.

    Essa leitura, que busca pontos de apoio nas lutas e comuns possíveis, era de consenso em 2013 e hoje divide a esquerda, com boa parte dela dependente das agendas eleitorais,  com poucos homens falando de cima e longe, no teatro das instituições que transformam eles mais do que permitem ser transformadas. O ciclo progressista sul-americano gerou uma mística que ainda cativa, com a imagem positiva, especialmente na distância, de Mujica, Chávez, Evo Morales, ou do governo Lula, no Brasil, que reunifica a esquerda do governo inclusive com seus críticos e dissidentes anteriores, na frente do avanço e vitória eleitoral de oposições de direita. Não analisaremos aqui essas experiencias de governo. Mas cabe notar que a ideia de revolução é apropriada pela experiencia progressista para descrever um ciclo de bonança económica que favoreceu bancos, grupos empresários e liberou um processo de intensificação da exploração de recursos minerais, da agricultura e do petróleo, com amplo impacto sobre populações e territórios, mas como base necessária para garantir estabilidade econômica para os negócios, que se traduzia em estabilidade política, e mesmo sem lugar para transformações estruturais, ou de profundidade, que por exemplo reorganizasse a educação, promovendo um sistema diferente, em lugar de ampliar a matrícula pelo caminho do suporte de universidades particulares de má qualidade; ou sem questionar a organização capitalista e segregadora da cidade; a segurança e violência policial como ferramenta de contenção social; ou um consenso de civismo que impeça a repressão e perseguição de ativistas e protestas sociais. Embora houve programas sociais amplamente expandidos, e diferentes níveis do governo puderam tender a promover um governo social, antes que neoliberal, o desafio político que uma experiencia política revolucionária de esquerda nos evoca, nos deve levar a decretar que o caminho progressista mostrou seu limite e, por tanto, dificilmente possa ser pensado hoje como solução eleitoral que deveria organizar em seu favor a toda a esquerda.

     

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    A defesa dos progressismos poderia dizer: isso é o que era possível, ser revolucionários nos anos 2000 foi fazer o que estes governos fizeram. Mas não, a revolução russa não foi apenas o aproveitamento pontual de uma conjuntura, que se alcancaria mais ou menos de acordo com a situação política ou alinhamento dos astros. O poder proletário, a revolução onde tudo se abre e passa a ser discutido foi um acontecimento único que mostrou que a história e o poder pode ser desafiado. Era possível, então, pedir mais para os governos progressistas latino-americanos. E exatamente isso foi junho de 2013 no Brasil; as marchas camponesas e de trabalhadores no Equador; as assembleias de 2002 na Argentina, depois do fracasso do governo que iria a tirar o país do neoliberalismo; ou a Bolívia da guerra da água e do desafio indígena ao poder estatal, inclusive, por alguns momentos, dentro do Estado.

    O final do progressismo, no Brasil e em outros lugares, é constatado na nostalgia e fraqueza política, que uma e outra vez é exposta no movimento pessado de uma esquerda de aparelhos e grupos que gritam no microfone e se colocam de forma autoflageladora, vitimizante e ao mesmo tempo arrogante, sem ter podido dar lugar a um ciclo de mobilização que se oponha ao frágil governo Temer, nem à uma mística de resistência para além de algumas expressões estéticas, mas bem longe de imaginar uma nova sociedade, como as artes e técnicas mostraram na Rússia da revolução, a pesar da repressão e represálias que viriam para os que ousaram pensar ou criar por fora dos canais autorizados da esquerda oficial, devenida Estado. Difícil não voltar então à tradição da esquerda que se referência na revolução russa, quando o que está em pauta, no Brasil e no mundo, é uma disputa que se continua dando na linguagem do século XX, e encontra de um lado uma direita furiosa que imagina uma esquerda socialista conspiradora, prestes a implementar um programa de comunismo de guerra (posição atribuída até para keynesianos ou nacionalistas estatistas); frente a uma reação da esquerda que responde atrincheirada nas bandeiras vermelhas, como se estivesse dentro de um filme de Eisenstein, ou então o avesso, na sua variante populista, se aproximando ao adversário da pátria e a ordem implementada de cima pra baixo, como se a forma de combater o xenófobo intolerante que na Grécia, Rússia e outros lugares mostra expressões abertamente nazistas, seja disputar os baixos instintos de um povo formatado pelo Estado; em lugar de desafiar o tempo, superar as formas dadas; multiplicar as lutas e desejos ali onde as esquerdas e direitas do Estado se ocupam em domesticá-las.

    No campo político ocupado pela direita social, dita liberal, e a esquerda velha e nova, em perfis identitaristas ou do Estado como resposta para tudo, vemos duas parcelas minoritárias de expressão política polarizada se reproduzindo de forma desconectada do dia a dia da população, como debate espetacular sem ancora na vida das pessoas e, no entanto, em uma ilusão de totalidade, como se estivéssemos de fato disputando a sociedade nessas discussões, numa batalha de Leningrado ou na resistência contra o nazismo, onde o tudo ou nada estaria em jogo, enquanto no campo das materialidades a esquerda que pretende salvar o Brasil do fascismo acabou de co-governar com seus inimigos. A pretensão de representar na pele o destino da nação, a esquerda não faz mais do que continuar assimilando formas de funcionar e de pensar das elites, como ficou claro na imposição de um projeto político que não foi votado e que não evitava a austeridade, o ajuste e o corte de direitos sociais, as alianças com pastores homofóbicos e a relação de proteção com a política que assassina. Em definitiva, com o que agora chamam de fascismo, que é também o que nos leva a recuperar a Revolução de Outubro.

    Favorecidos pela plataforma de disputa eleitoral e a difusão dessa oposição em compartilhamentos de redes sociais e plataformas de comunicação via celular, os herdeiros da revolução e do fascismo ou catolicismo conservador não se aproximam hoje da ruptura, mas do aperfeiçoamento da ordem, nas suas variantes progressista ou conservadora, numa bolha inflacionada de retórica e desonestidade política de parte da esquerda que pede o voto novamente. Existe fascismo na mesma medida em que a esquerda encarna revolução. Isto é, como gestos, desejos íntimos, propostas e visões de mundo, mas isso não significa que esse seja o quadro que descreva a ordem social possivel. O oposto de 1917, onde a nova ordem evitava o surgimento de um fascismo, a restauração autocrática ou uma república burguesa padrão.

    Quando uma formação política de esquerda se entrega à administração dos assuntos da burguesia, sem buscar alternativas políticas anti capitalistas ou anti neoliberais, apenas cabe o  rompimento, caminhar no deserto ou apostar em lutas vivas, mesmo que decretadas como menores, “apenas sociais” e não políticas, ou que não seriam estratégicas porque se opõem à máquina de desenvolvimento ou ao anseio de retomar o crescimento e avanço das empresas nacionais. A chantagem do \”possível\”, a esquerda com possibilidades de freiar o fascismo, é o obstáculo para outra política que supere o fascismo políticamente, na construção de um mundo onde ele não faça sentido.

    Em conseguencia, e honrando a vigência do corte no tempo aberto pela revolução de outubro, a esquerda demostra poder entrar novamente num modo de funcionamento stalinista, neutralizador das energias revolucionárias, burocratizante e autoritário.  Na frente do fascismo, às vezes explícito, às vezes projetado como ameaça e auto-legitimação para pedir apoio eleitoral ou chamar para uma praça que permanece vazia, a esquerda latino-americana vem mostrando reações desse tipo com vozes críticas. Assim são excluídas da imprensa progressista ou diretamente difamadas posições de ambientalistas ou organizações indígenas históricas na Bolívia e Equador, ou se reclassifica junho de 2013 no Brasil, impulso vital, transformado em responsável do ódio contra o PT, assim como já naquela época, grupos anarquistas e autônomos ou Black Blocs, foram criminalizados por referentes intelectuais de esquerda e membros do governo, como reação ao que viam corretamente como expressão política que os impugnava.

    A pergunta que fica no ar é até que ponto fascismo e stalinismo se precisam e constroem mutuamente. Pensando na União Soviética e aqui, quais caminhos políticos garantem combater o fascismo de forma mais eficiente? Quando dentro da esquerda encontramos tendências que por trás da oposição retórica mostram uma afinidade (industrialismo, nacionalismo, verticalismo, repressão da dissidência) vemos não só que se tivéssemos tido um governo de esquerda revolucionário, muitas ações poderiam ter sido feitas contra um fascismo micropolítico que evidentemente reflete o pensamento conservador de boa parte da população, e a subjetividade neoliberal que não é desarmada com as políticas públicas do progressismo. Se a nossa sensibilidade de esquerda nos mobiliza contra o fascismo, não era para ter buscado caminhos diferentes do que alianças com o grande capital financeiro? Com modelos de produção que destrói florestas e vida no campo? Com a ocupação do Haiti e uma relação de potência imperial com países irmãos?

    Em vista da situação, não é possível saber se é possível outra esquerda. Nem faz sentido se perguntar sobre quais posições são mais revolucionárias. Muitas revoluções foram feitas por acaso, por quem não devia ou estava preparado para assumir um papel revolucionário. A revolução muda as pessoas e o mundo, e por isso faz sentido hoje pensar a política como relacionada com outros mundos, esses que não separam natureza e sociedade e no pensamento indígena, mas também em projetos urbanos e na experimentação de laboratório mostram que a sociedade que os séculos XIX e XX imaginaram está sendo superada em vários lugares.

    Como pensar hoje o sujeito da revolução. Neste século houve mudanças no capitalismo, no trabalho, na subjetividade e na visão que temos sobre o mundo, existente e desejado, ao ponto de ser necessário abrir um debate não apenas sobre as condições para a revolução, mas também sobre quem, de fato, deveria fazer uma revolução hoje, caso isso seja politicamente necessário e possível. Não se trata apenas de adequar a ideia de classe às condições de trabalho fora da fábrica, como os teóricos do trabalho imaterial e o capitalismo cognitivo já fizeram. Se trata também de entender uma realidade onde a própria ideia de homem, se encontra transfigurada, afetada por tendências post-humanistas; de incorporação dos não humanos ao entendimento do jogo político; e da percepção de muitos de que o mundo; não é mais um ambiente físico inerte onde se desenvolveria a ação do homem como sujeito histórico e predestinado a algo, numa “sociedade” ou “civilização” que o conteria. Não há teleologia que possa ser sustentada hoje sem conflito, não há sujeito nem história que possa ser entendida de forma iluminista e estável. Isso nos leva, de um lado, para as margens, as comunidades, os sujeitos excluídos da narrativa moderna, por ser híbridos, desasujeitados, misturados, invisíveis para os códigos e formas de percepção anterior, inclusive ou especialmente da esquerda. Movimentos territoriais, étnicos, etc., não organizados a partir do local de trabalho, já têm sido incorporados pela teoria e prática da esquerda. Também a esquerda os tem capturado, manipulado ou utilizado como base para os mesmos fins que antes partidos de massa ou sindicatos foram burocratizados. A ideia de sujeito histórico, no entanto, inseparável da vanguarda que se torna esse sujeito, o conduz ou orienta, continua presente nas formas de ação política. Não buscamos aqui dar conta desse debate, mas é válido registrar que depois de cem anos da revolução russa, não apenas o conceito de revolução não descreve o tipo de transformação que muitos revolucionários estão buscando, mas também que o quem, como, para quê e aonde da revolução, estão hoje abertos e tensionados. Devires antes que movimentos e sentidos dos processos, conexões antes que organizações e agenciamentos vividos em lugar de marchas históricas. Em lugar de golpes e rupturas de violência militar a revolução se coloca como impossível se não é pensada como afetos, relações, contestação da ordem, não apenas político-econômica (como se fosse pouco!) mas também dos princípios autoritários de uma sociedade capitalista que separa muito do que pode permanecer junto, privatiza, mercantiliza e bloqueia fluxos vitais de um mundo que pode ser outro, ainda hoje.

    Sem clareza sobre o sujeito, o futuro, o espaço territorial da revolução, vejamos se, pelo menos, conseguimos pensar hoje esse poder social popular que foi a base da revolução de 1917. Os Sovietes, que não deixaram de encontrar internamente um esgotamento e refuncionalização, quando o poder do estado soviético os colocou para trabalhar. A falta de clareza, aqui, pode ser virtude e não diletantismo ou falta de compreensão dos devires sociais. A falta de clareza é adequada na falta de forma e caráter fluido que substitui as formas do trabalho, participação política, organização coletiva e afetiva. Esse poder de baixo, que nada consegue representar, menos ainda as formas republicanas e liberais voltadas para o indivíduo proprietário até agora. Sem uma forma de luta por caminhos previsíveis (aquele chamado eterno para uma greve geral revolucionária que quando acontece encontra fora dela à esquerda que sempre a procurou); sem chance nem vontade para um movimento que se oponha ao Estado no campo dos armamentos e dispositivos de repressão e segurança militar, o que temos é o que está acontecendo. As lutas. Comunidades quilombolas que se organizam contra agronegócio e mineradoras que invadem suas terras. Ocupações de escolas, de terrenos, de prédios, de espaços institucionais, de ruas, de propriedades ociosas, de lugares do Estado. A sexualidade vivida de uma nova maneira, ou a arte significativa fora dos circuitos comerciais. Territórios ancestrais, que são re-ocupados, ou ainda ocupados, com outras lógicas diferentes as que mandam os poderosos. Territórios que não se vendem, como a família de pastores que se recusa a entregar o último pedaço de terra no setor controlado pela empresa mineira Yanacocha, em Cajamarca, Peru. Criar poder territorial, e novas instituições, horizontais e livres, nos bairros, nas comunidades, na rede de computadores. Os sem teto ou estudantes que ocupando começam a construir a educação ou a cidade que querem. As fábricas, ainda, porque a revolução proletária ainda existe onde tem trabalho para ser reapropriado, ou interrompido por greves que certamente hoje estão muito mais abertas a virar lutas que se conectam com uma recusa do mundo da exploração do trabalho, com hortas comunitárias, lutas de periferias ou centros. Se partidos e nações fazem hoje algum sentido é para serem ocupados. Um problema dos progressismos latino-americanos é que perderam essa conotação. Não eram índios, trabalhadores, camponeses, mulheres, militantes de direitos humanos ocupando instituições. Se tornaram uma nova elite, geralmente branca, deixando a índios e sem terra bem longe das decisões, virando o Estado que muitos deles sempre foram, no pequeno poder de sindicatos, universidades, carreiras políticas. Outros deixaram de lutar aceitando a força de processos que, sem contrapoder e resistência, transforma até os melhores intencionados em peças de uma máquina de administração.

     

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    Os sovietes são trabalhadores organizados contra o patrão, ocupações libertárias e também uma plataforma online que consiga fazer confluir energias de ruptura. O desafio é sintonizar, todos com todos contra o poder, e ativando um poder multitudinário que mostrou, em vários lugares, que quando acorda pode tudo e depois permanecerá como marca. O poder dual dos bolcheviques, que se tornou um novo Estado, pode hoje estar num outro nível, porque o capitalismo está ao mesmo tempo mais distante, articulado globalmente com uma rapidez difícil de neutralizar pelos meios tradicionais, de forma imaterial e também mais perto, dentro de nós, com dispositivos de dívida, isolamento, e neoliberalismo nas relações, direitos e formas de vida. Em lugar de criar um Estado, um banco, um partido, conseguir estar além, e, no entanto, envolver nesse além nossas vidas, que possam começar a funcionar com outra lógica, do comum, das táticas que neutralizem o poder, mesmo na cidade e no centro da produção capitalista. A revolução russa teve sucesso em se impor como nova realidade para todos os que antes se acreditavam súbditos do czar. No mundo de hoje pensar para além da mercantilização da vida e o neoliberalismo dentro de nós é possível também.

    Como contra poder, com instituições novas do comum e armas para disputar uma subjetividade formatada pelo capital que constrói outro mundo, enquanto decreta a obsolescência do que o precedeu. O importante dos sovietes é como se constituem como nova realidade, antes invisível ou reprimida pelo poder anterior, mas se tornando fato quando passou a ter as respostas que os trabalhadores mobilizados queriam ouvir. Os sovietes seriam também reprimidos, invisibilizados, refuncionalizados depois de que se criara um poder soviético. E esse talvez seja o problema que se coloca para os espíritos libertários de hoje. É possível sovietes sem Estado soviético? Existe possibilidade de “todo o poder para os sovietes” sem que uma instância separada, autônoma do movimento, uma nova burocracia que diga os representar, mas tome seu lugar, seja possível?

    A revolução russa é criação de condições para que aconteça o impossível. Ela desafiou a história, e não era o produto de um processo que a tinha por fim. Aconteceu contra o mais esperável: o estabelecimento de uma república burguesa na Rússia, como as da Europa ocidental, ou a repressão do movimento radicalizado nas ruas, como ocorreu meses antes de Outubro, e em 1905. A revolução Russa é também a revolução que não aconteceu antes na Alemanha, e que também não foi estopim de uma revolução mundial. Ela aconteceu contra a repetição e o poder, e é isso que nenhum poder conseguirá fazer que não aconteça mais. Onde há poder há resistência, e todo poder em algum momento cai. O fascismo existe, mas nosso objetivo principal não é derrotá-lo. Nosso objetivo anterior é fazer a nossa revolução, e é isso que vai impossibilitá-lo.

     

    São Paulo,

    Terça-feira 7 de Novembro de 2017

     

  • Não existe ‘outro mundo para se construir’

    Entrevista com Alana Moraes

    Por: Patricia Fachin | 24 Outubro 2017

     

    O pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin e da geração do entre guerras é oportuno para refletir sobre o atual momento político do Brasil e sobre a crise da esquerda, porque essa geração, embora tenha sido “atormentada pela emergência do fascismo”, “se deu conta de que a ideia de um tempo histórico acumulativo que nos guiaria sempre ao ‘progresso’ não passava de uma ficção”, diz a antropóloga Alana Moraes à IHU On-Line. Segundo ela, Benjamin pensa “em um modelo de história atravessado por tempos aleatórios e que, por isso mesmo, está aberta a todo tempo a uma erupção imprevisível do novo. Essa é a aposta otimista de Benjamin que precisamos resgatar: fomos derrotados, mas está tudo outra vez em aberto”, sugere.

    Ao analisar a situação da esquerda brasileira, Alana é enfática: “Não acredito nesse clamor atual por uma ‘unidade da esquerda’” e nem que “um unidade ‘programática’ seja possível nem desejável”. Ao contrário, expõe, “penso muito mais em alianças e essas alianças têm mais chance de acontecer em torno de uma causa situada, de um problema comum. Falo desde a experiências das ocupações urbanas. Elas nos colocam problemas muito concretos: como vamos cozinhar para tantas pessoas, como vamos fazer um banheiro, ter energia elétrica, cuidar das relações, dos sofrimentos uns dos outros? Acho que essa conjuntura de precariedades generalizadas vai nos impor, querendo ou não, esse desafio. Como vamos manter um posto de saúde funcionando? Como vamos garantir o funcionamento das escolas no bairro que estão ficando sem merenda, sem materiais básicos? O ‘diálogo’ vai ter que se dar no terreno da prática, da nossa sobrevivência”.

    Alana Moraes também aposta num “trabalho intenso de pesquisa para entender as ‘novidades’ de organização e resistência do ponto de vista das lutas”, porque “só as lutas, o movimento, a experimentação é que vão nos restituir a potência e nos fazer escapar desse lugar de espectadores ou de comentadores da conjuntura”, afirma. Entretanto, adverte, “uma pesquisa-luta só pode ser feita com o corpo na rua. Não podemos desperdiçar nossas experiências de auto-organização e resistência, por menores que forem elas, não podemos deixar de pensar sobre elas e tentar intensificar suas possibilidades. Precisamos voltar a estar alguns passos à frente. O comitê invisível fala de uma ‘inteligência partilhada da situação’. Eu acho esse um bom caminho para voltarmos a nos organizar de outras formas. O lugar da ‘pesquisa-luta’ é um lugar interessante, ele dessacraliza, por um lado, a ideia de um ‘saber autorizado’ e especializado e, por outro lado, afirma a importância de pensar com a luta e não para ela”.

    Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, a antropóloga também enfatiza que “a proliferação recente de coletivos, movimentos, e novas lutas no Brasil precisavam se encontrar mais. Estamos tendo um problema muito básico que tem a ver com a ausência de espaços de encontro. (…) O movimento Parque Augusta está impedindo há 4 anos a construção de grandes empreendimentos imobiliários em uma área verde da cidade. Temos centenas de coletivos periféricos que também estão discutindo o território a partir de outras chaves: militarização, racismo de Estado, produzindo novas linguagens”. Diante desse cenário, frisa, “difícil convencer alguém que vivemos em uma ‘crise das lutas’. Talvez a gente viva numa crise do encontro”.

    \"\"\"\"Alana | Foto: Paolo Colosso

    Alana Moraes é graduada em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestra em Sociologia e Antropologia pela mesma universidade, e atualmente cursa doutorado no Programa em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ. É feminista e integrante do coletivo Urucum pesquisa-luta.

    Alana Moraes estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU na próxima quarta-feira, 25-10-2017, participando do 2º Ciclo de Estudos A reinvenção política no Brasil contemporâneo. Limites e perspectivas, onde ministrará a palestra Movimentos tradicionais e movimentos autonomistas. Possibilidades à reinvenção da política e da esquerda no Brasil, das 16h às 17h15min.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – Há alguma novidade na cena política desde a nossa última entrevista, em abril?

    Alana Moraes – Estamos todos compartilhando uma sensação de viver em um tempo acelerado, cheio de labirintos. Eu tenho gostado de pensar com Walter Benjamin e com toda essa geração do entre guerras que levou muito a sério o problema do tempo histórico, as possibilidades de transformação, a importância de uma certa virada estética e de sensibilidades para sobreviver em um mundo de catástrofes. Foi uma geração também muito atormentada pela emergência do fascismo e que se deu conta de que a ideia de um tempo histórico acumulativo que nos guiaria sempre ao \”progresso\” não passava de uma ficção. Benjamin começa a pensar, falando de forma simplificada, em um modelo de história atravessado por tempos aleatórios e que, por isso mesmo, está aberta a todo tempo a uma erupção imprevisível do novo. Essa é a aposta otimista de Benjamin que precisamos resgatar: fomos derrotados, mas está tudo outra vez em aberto. Mas é preciso que tenhamos faro histórico também, voltar a exercer nossa sensibilidade. Nesse fluxo contínuo de informações, nossas intuições ficam anestesiadas.

    Não nos faltam \”novidades\”. Do ponto de vista do poder, o governo e o congresso nunca estiveram tão autonomizados da vontade popular. Isso é uma diferença com o fascismo, aliás, que ainda se esforçava para fabricar seu populismo. É o que o Trump tenta resgatar nos EUA. Mas aqui no Brasil, as reformas trabalhistas, da previdência, as movimentações para blindar algumas figuras acusadas de corrupção, as imagens de malas, as escutas divulgadas que envolvem diretamente Michel Temer, nada é suficientemente forte para desestabilizar o governo. Esse é o grande golpe da governamentalidade neoliberal: nos tornar meros espectadores dos jogos de poder, suprimir nossa potência de auto-organização. É a gestão da crise permanente como técnica de governo. Por isso precisamos de um trabalho intenso de pesquisa agora para entender as \”novidades\” de organização e resistência do ponto de vista das lutas. Só as lutas, o movimento, a experimentação é que vão nos restituir a potência e nos fazer escapar desse lugar de espectadores ou de comentadores da conjuntura. Uma pesquisa-luta só pode ser feita com o corpo na rua. Não podemos desperdiçar nossas experiências de auto-organização e resistência, por menores que forem elas, não podemos deixar de pensar sobre elas e tentar intensificar suas possibilidades. Precisamos voltar a estar alguns passos à frente. O comitê invisível fala de uma \”inteligência partilhada da situação\”. Eu acho esse um bom caminho para voltarmos a nos organizar de outras formas. O lugar da \”pesquisa-luta\” é um lugar interessante, ele dessacraliza, por um lado, a ideia de um \”saber autorizado\” e especializado e, por outro lado, afirma a importância de pensar com a luta e não para ela.

    IHU On-Line – A esquerda já dá sinais de recuperar a melancolia?

    Alana Moraes – Estamos em plena reconfiguração do que entendemos por \”esquerda\”. Eu acho que as respostas interessantes cada vez menos virão da esquerda partidária, por exemplo. A esquerda partidária, mesmo em crise, continua pensando em termos de monopólio, quer reivindicar uma certa autenticidade: \”nós sabemos o que é ser organizado, eles não\”, \”militância de internet não é militância\”, \”esse feminismo não é suficientemente anti-capitalista\”, \”o movimento negro não é suficientemente anti-capitalista\”. Não entendo bem esse movimento de um time que está perdendo e se esforça para liquidar qualquer perspectiva de reforço, renovação.

    Por outro lado, tem a energia daqueles e daquelas que já estão experimentando. Penso que precisamos recuperar a ideia de \”formas de vida\” para a superação da melancolia. Isso quer dizer que não existe um \”outro mundo para se construir\”, existem outras relações que vamos produzir nesse mesmo mundo, outros modos de vida. Essa constatação nos exige estar presentes, nos exige pensar em como vamos escapar das armadilhas neoliberais para conseguirmos criar tempos de experimentação e nos implicar em uma nova coreografia que tem menos a ver com \”sujeitos políticos\” prontos, mas com a feitura de nós mesmos em interdependência. Henrique Parra vem falando sobre \”Política do Protótipo\”. Cito ele: \”A realização de um protótipo envolve, primeiramente, a decisão de substituir a adesão a um projeto idealizado e acabado de um modo de vida ou sociedade futura, pela decisão de experimentar construir no aqui-agora, sempre parcialmente, aquela mudança que se deseja\”. Isso tudo nos exige pensar e agir de maneira situada.

    Os homens brancos de esquerda, se quiserem sair desse lugar melancólico do poder perdido, precisam se situar, \”construir o aqui e agora\”, fazer um corpo que não seja um corpo que se pensa \”neutro\”, vão precisar fazer uma política do cotidiano, do cuidado, da reprodução da vida

    Toda confusão e escândalo feito pelos homens brancos da esquerda em relação ao “lugar de fala”, um pouco, tem a ver com a dificuldade que eles possuem de pensar a partir do corpo. O lugar de fala pode ser uma postura ético-política de assumirmos um determinado lugar pelo qual somos afetados, atravessados e interpelados pelo mundo que habitamos. Não é um lugar de \”substância\” ou \”identidade\”, mas é um lugar pelo qual nosso corpo sente e reage ao mundo. A denúncia do racismo, nesse sentido, não se constitui como um espaço de \”autoridade de fala\” – como costumam acusá-lo, mas é um lugar onde corpos são afetados, mortos, expulsos. Os homens brancos de esquerda, se quiserem sair desse lugar melancólico do poder perdido, precisam se situar, \”construir o aqui e agora\”, fazer um corpo que não seja um corpo que se pensa \”neutro\”, vão precisar fazer uma política do cotidiano, do cuidado, da reprodução da vida. E para isso precisam abandonar essa ficção de vanguarda iluminada.

    IHU On-Line – Depois de uma onda de manifestações no início do ano, não se viu mais grandes manifestações no país. Como você explica a falta de manifestações na atual conjuntura? Por que elas diminuíram nos últimos meses?

    Alana Moraes – Esse é justamente o poder atuando em sua forma drástica de despotencialização dos corpos. De certa forma, o Brasil talvez nunca tenha vivido um período tão intenso de grandes mobilizações. As pessoas estão indo para a rua desde 2013. O golpismo foi sagaz de produzir uma leitura pacificada dos conflitos sociais: de um lado as manifestações dos verde-amarelos, de outro as manifestações dos vermelhos. \”Nós vamos fazer um Brasil de todos\”, eles dizem. Esse discurso tem sido usado muito bem pelo Dória: \”Vamos entregar São Paulo para os paulistanos\”. Precisamos saber recuperar o conflito a nosso favor, não negá-lo. O lulismo foi também uma boa pedagogia de domesticação dos conflitos. Como elaborar uma nova radicalidade que não seja aquela óbvia de uma vanguarda que se pensa sempre à frente e dirigente dos processos de luta? Esse é o desafio.

    Os rapazes do Movimento Brasil Livre – MBL estão restituindo a potência de alguns corpos atingidos pela crise da masculinidade, pela perda de alguns privilégios. Eles restituem a potência pela aniquilação do outro, pela misoginia que promete o poder da virilidade perdida. São machinhos histéricos em busca de satisfação por uma dominação que eles nunca tiveram. Citando outra vez o comitê invisível, eles terminam o livro \”Aos nossos amigos\” afirmando que \”tornar-se revolucionário é se entregar a uma felicidade difícil, mas imediata\”. A nossa nova radicalidade está aí, eu penso. Precisamos entender outras formas de restituir nossa potência que não seja via grandes manifestações. Eu encontro essa felicidade quando vou em uma batalha de Slam na rua, por exemplo, ou numa performance dos secundaristas que ocuparam suas escolas e hoje retomam a frase da Emma Goldman \”não me convide para uma revolução em que eu não possa dançar\”, quando estou compartilhando uma refeição numa ocupação de sem-tetos.

    Parte da esquerda mais tradicional agora inventou uma cruzada contra o que eles chamam de \”cirandeiros\”. O que são os cirandeiros? Seriam corpos felizes, em festa, celebrando a importância de estarmos juntos, criando novas poéticas de resistência? Eu fico com a felicidade. Quem aposta na mobilização do ressentimento é o fascismo, nossa aposta tem que ser justamente oposta. Os povos indígenas e muitos povos da África sempre souberam da potência da festa como forma de permanecermos em guerra. \”O corpo que dança e luta é campo de batalha\” escreveu a Julia Ruiz em um texto do Urucum.

    IHU On-Line – Tem havido um diálogo entre velhos e novos movimentos sociais? Sim ou não e por quê? Quais diria que são as vias possíveis de diálogos entre eles e quais são as dificuldades de estabelecer esse diálogo?

    Alana Moraes – Acredito que tenham algumas brechas abertas e interessantes e elas estão sendo feitas no nível do território. Compartilhar um território em comum e pensar a sobrevivência dele, pensar em como vamos nos implicar com um funcionamento de um mesmo espaço, como vamos produzir juntos um modo de vida, acho que esse é o terreno possível de diálogo. Não acredito nesse clamor atual por uma \”unidade da esquerda\”. Não acredito que uma unidade \”programática\” seja possível nem desejável. Eu penso muito mais em alianças e essas alianças têm mais chance de acontecer em torno de uma causa situada, de um problema comum. Falo desde a experiências das ocupações urbanas. Elas nos colocam problemas muito concretos: como vamos cozinhar para tantas pessoas, como vamos fazer um banheiro, ter energia elétrica, cuidar das relações, dos sofrimentos uns dos outros? Acho que essa conjuntura de precariedades generalizadas vai nos impor, querendo ou não, esse desafio. Como vamos manter um posto de saúde funcionando? Como vamos garantir o funcionamento das escolas no bairro que estão ficando sem merenda, sem materiais básicos? O \”diálogo\” vai ter que se dar no terreno da prática, da nossa sobrevivência. Temos que retomar a capacidade de produzir nossas infraestruturas e não sermos mais dominados pelos \”modos de fazer\” do capital. Isso vale pra internet ou para a gestão dos nossos bairros.

    IHU On-Line – Nos últimos anos, foi feita uma crítica ao PT e aos próprios movimentos sociais que ficaram subordinados ao partido e foram aparelhados. Diante disso, como é possível reinventar a política e os movimentos sociais a partir de agora? De que modo os movimentos autonomistas poderiam contribuir para reconstruir a esquerda, por exemplo, e que tipo de relação deveria existir entre os movimentos e um novo possível governo de esquerda?

    Alana Moraes – Não gosto do termo \”aparelhados\”. Os movimentos sociais fizeram uma aposta em um projeto político e coletivo, isso é legítimo. Esse projeto se esgotou e foi derrotado. Mas também teve sucesso em algumas apostas, como a ampliação drástica do ensino superior, para ficar num exemplo emblemático. Abalou de algum modo a estrutura de classes no Brasil – sem isso, o golpe não teria sentido algum. Mas precisamos saber extrair conhecimento desse esgotamento. Não dá para o PT continuar achando que estava fazendo uma revolução. Os movimentos e forças políticas que estiveram dentro desse projeto, dentro dos governos, poderiam fazer um esforço teórico e político agora de abrir as engrenagens internas do sistema, de apontar as contradições. Ninguém entende melhor como as classes dominantes funcionam como o PT. Precisamos entender como o sistema político se manteve todo esse tempo com Joesley e Odebrecht dando as cartas. No fundo, o que Junho de 2013, entre outras coisas, exigia do PT era isto: se o PT era refém das regras do jogo porque não estar do lado de quem quer destruí-las?

    Por outro lado, a proliferação recente de coletivos, movimentos, e novas lutas no Brasil precisavam se encontrar mais. Estamos tendo um problema muito básico que tem a ver com a ausência de espaços de encontro. Essa é a principal vitória do neoliberalismo, na minha opinião. Só para ficar com o exemplo de São Paulo. Aqui hoje temos coletivos que estão atuando contra as apropriações privadas dos espaços da cidade. O movimento Parque Augusta está impedindo há 4 anos a construção de grandes empreendimentos imobiliários em uma área verde da cidade. Temos centenas de coletivos periféricos que também estão discutindo o território a partir de outras chaves: militarização, racismo de Estado, produzindo novas linguagens.

    Coletivos que estão na cracolândia denunciando o novo higienismo urbano e tendo que dar conta do desmonte de toda uma rede de assistência. Temos o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST sustentando ocupações nas periferias, coletivos de arte, midialivrismo, segurança e ativismo nas redes, grupos lutando contra monopólios de todo o tipo, rede de advogados ativistas, redes de agroecologia, temos a experiência do MPL no debate sobre mobilidade urbana, clínicas públicas de psicanálise, uma aldeia indígena lutando pela sua sobrevivência, um quilombo urbano.

    Difícil convencer alguém que vivemos em uma \”crise das lutas\”. Talvez a gente viva numa crise do encontro. Nos organizar não tem a ver com estarmos em um partido, mas com a possibilidade de enxergarmos linhas de conexão entre nossas experiências de luta, de sabermos costurar nossos lugares, estarmos abertos a compreender outras situações. \”Pensar outramente\” – recuperar o projeto antropofágico de pensar com o outro, de se interessar profundamente por aquilo que não é seu e estar aberto a esses atravessamentos.

    IHU On-Line – Quais são as pautas que devem motivar os novos coletivos e movimentos à esquerda no país?

    Alana Moraes – São muitas, não dá para eleger em uma hierarquia de importância. Algumas questões me tocam mais, acho que elas trazem caminhos interessantes. Por exemplo: como vamos viver juntos? Como vamos retomar a possibilidade de, em alguma escala, organizar nossas próprias vidas? Nós, mulheres, nunca deixamos de pensar essa questão. Sempre estivemos vinculadas, querendo ou não, a esse espaço de reprodução básica da vida. Vamos precisar deslocar o tema do \”cuidado\” para o centro do debate político. Cuidado com as relações, cuidado com os nossos corpos, cuidado com as experiências das nossas lutas. Junto a isso, acho que temos que levar mais a sério a noção de tecnologia.

    A Isabelle Stengers propõe a noção de “tecnologia” em contraposição à ideia de “verdade”. É uma distinção ética baseada no postulado de que a “tecnologia” possui um “senso de responsabilidade” do qual a “verdade” sempre escapa. A verdade dos programas, a verdade de uma esquerda que se pensa pura. Ou seja, precisamos elaborar e organizar nossas tecnologias de fazer mundos, de possibilitar modos de vida dissidentes e é isso que vai nos implicar, criar pertencimentos. É o problema da infraestrutura, não podemos deixá-lo escapar. Os governantes querem nos convencer que eles têm o monopólio técnico e especializado de resolver nossos problemas. Por fim, tem o tema urgente da militarização, da repressão, da polícia. Os 18 jovens que estão sendo agora criminalizados por terem feito uma reunião. Intervenções militares em Vitória, no Rio de Janeiro. Isso tudo é muito grave e precisamos nos proteger. Isso nos exige uma contra cartografia de como age o poder hoje, os monopólios, as forças policiais. Não podemos ser ingênuos.

    IHU On-Line – Qual tem sido o impacto político dos últimos acontecimentos ao PT, como o depoimento do Palocci, a reação do PT em relação ao depoimento e a carta dele enviada ao partido?

    Alana Moraes – Eu acho que o PT está muito anestesiado. É quase um choque pós-traumático, não consegue produzir muitas reações. Não vejo muita discussão interna no partido, o Lula hoje é a única coisa que mantém o PT. Se o Lula não consegue manter a candidatura, não sei como o PT conseguirá se manter como partido.

    IHU On-Line – Recentemente uma pesquisa realizada pelo Datafolha indicou que mais de 60% dos possíveis eleitores de Bolsonaro numa futura campanha presidencial, seriam jovens. Como você lê esse tipo de resultado?

    Alana Moraes – Acho que essa não é a melhor leitura da pesquisa. O Hugo Albuquerque chamou a atenção para essa sutileza. Quem lidera a eleição presidencial entre os jovens na pesquisa do Datafolha é o Lula. Ainda que o Bolsonaro tenha um eleitorado mais jovem do que a média, ele não é o líder nesse segmento. Penso, como o Hugo, que a melhor chave de leitura dessa pesquisa continua sendo a de classe. O possível eleitorado do Bolsonaro é formado por pessoas ricas e com ensino superior. Sobre pesquisas geracionais, eu fico com aquelas que analisaram as manifestações de Junho de 2013 em comparação com as manifestações pelo impeachment de 2015: aí o corte etário é brutal. Junho foi predominantemente jovem enquanto as manifestações pelo impeachment foram muito velhas e brancas. Acho essa cisão etária mais interessante para pensarmos novos caminhos.

    IHU On-Line – Que alternativas à esquerda vislumbra para as próximas eleições de 2018? Hoje especula-se em torno dos nomes de Lula, Ciro Gomes, Guilherme Boulos. Qual seria o significado dessas possíveis eleições para a esquerda?

    Alana Moraes – Está tudo ainda em aberto. A candidatura do Lula está ainda muito ameaçada pelas forças do golpe de impugnação. O Lula é o nome mais forte, sem dúvida, para enfrentar a direita ainda que o problema de uma recomposição de lulismo seja de difícil resolução. Lula vai ser a figura de reconciliação do sistema ou vai assumir um lugar de ruptura? É possível refazer a aliança de classes do lulismo? Lula vai ser capaz de ser afetado por uma nova geração politica que se expressou em junho e que deseja uma outra radicalidade nos modos de fazer política para além do jogo da \”participação\” definido pelo PT? Eu tenho dúvidas.

    Mas o outro lado está também ainda muito confuso, me parece que eles ainda não têm uma estratégia comum. O Bolsonaro virou um monstro que parte da direita não consegue controlar, inclusive os poderes midiáticos. Não estamos levando em conta que parte da direita vai tentar, a todo custo, tirar o Bolsonaro do jogo. O PSDB vai entrar em uma disputa interna explosiva se o Alckmin não conseguir controlar o Dória, e o Aécio já começou a ser rifado também. O MBL está se colocando como um ator que pode operar uma certa reconfiguração com Dória, agronegócio e evangélicos, mas acho que eles não têm cacife para isso. Não se organiza caciques mafiosos, uma casta política completamente integrada ao sistema com gritos histéricos. O MBL vai ter que oferecer algum plano mais seguro, garantias. Enfim, o cenário também não está simples para eles.

    Tem alguns atores e atrizes do nosso lado interessantes, que podem entrar nesse jogo na \”erupção imprevisível do novo\”, como dizia Benjamin: O Guilherme Boulos do MTST e a Áurea Caroline, vereadora de Belo Horizonte. Imagina uma mulher negra e feminista em um debate contra o Bolsonaro! Mas acho que temos que seguir em 2017 e pensar uma temporalidade mais de médio prazo. O estrago foi grande, vamos ter que reconstruir toda uma existência e não podemos ser engolidos pela conjuntura eleitoral – precisamos pensar apesar dela. Eu acredito mais no programa em curso das lutas e das experimentações que já acontecem do que na expectativa eleitoral de 2018.

    É importante voltar a pensar nas eleições como uma expressão do incontornável de um processo em curso, de um acúmulo de lutas e proposições. Por isso é importante buscarmos os interstícios, os lugares de respiro. Vai ser muito importante tentar criar um novo campo de conflitualidade que escape do enquadramento da polarização desejada pela direita e fabricada pelo antagonismo petismo versus antipetismo. Ao mesmo tempo, não acredito em apelos republicanos à uma esfera pública na qual possamos pacificar o conflito. O conflito está instaurado e a luta de classes nos exige uma coreografia mais intensa, apaixonada. Se o fascismo tem conseguido mobilizar as paixões para um projeto autoritário de dominação, nossa matéria prima terá que ser de natureza radicalmente diferente: uma paixão de liberdade. 2018 também é o ano em que vamos comemorar 50 anos de 68.

  • Soberania e interdependência: polarização política e o comum

    por Henrique Parra @ Pimentalab 

    Há dois meses vivendo em Madrid, tenho procurado conversar com muitas pessoas, acompanhando movimentos e lendo o que posso para buscar diferentes perspectivas sobre a atual crise política. Com a crescente polarização, a cada dia fica mais difícil escrever algo que não seja tomado como mais uma opinião a inundir os feeds efêmeros. Com todos que conversei pude sentir muita dor, tristeza e indignação. E todas essas dores são legítimas; solidarizo-me com \”nosotros\”.

    ***

    Com todas as diferenças, há algo partilhado entre a crise política vivida na Espanha, em torno do referendo sobre a independência da Catalunia e o atual processo político brasileiro. Arriscaria dizer que este problema está presente em muitos regimes democráticos.

    Refiro-me ao fato de que estamos enredados em diversos mecanismos que intensificam as dinâmicas de polarização, que sequestram o mundo comum e bloqueiam a própria Política. Diante da concentração de poder nas mãos da classe política, dos meios corporativos de comunicação e de uma elite econômica (finanças e industrial), nossas instituições já não capazes de criar canais de mediação das vontades, demandas e conflitos à altura dos problemas que enfrentamos. O sistema está fazendo água por todos os lados em todos os lugares.

    Também constatamos que os próprios mecanismos de produção de maioria produzem \”minorias\” de igual dimensão. Em seus extremos, cada pólo é fabricado através de diversos artifícios de simplificação e redução de sua diversidade. A todo momento uma imagem ou discurso parcial desloca-se e se transforma numa representação do todo, silenciando a multiplicidade. Ninguém se sente exatamente representado e, ainda assim, todos participam da retro-alimentação dessas imagens homogêneas.

    Neste processo, a possibilidade de construção de novos sentidos comuns são destruídos em nome do cálculo para obtenção de regimes de maioria. É sempre um jogo de tudo ou nada, intensificação dos conflitos, esgarçamento do tecido social, ruptura de relações interpessoais, produção de estereótipos, moralização das condutas e discursos. No final, todos são empurrados a tomar partido diante da ameaça do \”mal\” que o outro representa, ainda que não se sintam plenamente representados por cada um dos polos.

    No Brasil este processo é bem conhecido desde que se iniciou o golpe parlamentar-jurídico-midiático. A destruição de outros devires políticos pela esquerda e pela direita é continuamente operada pela exigência de se partidarizar a favor ou contra qualquer coisa. Qualquer argumento que escape ao jogo amigo-inimigo será atacado. As disputas sobre Junho de 2013 ainda são um bom exemplo deste fenômeno.

    O processo em torno do referendo da Catalunia é desafiador porque é também revelador dos limites das formas atuais de nossas instituições políticas. O mais dramático, a meu ver, foi a maneira como um conflito muito complexo foi gradualmente reduzido a um jogo binário, em parte conduzido pela disputa política-partidária que forçou uma polarização na população e, com apoio dos meios de comunicação, sequestrou o campo político.

    Nos últimos dias vem surgindo tentativas de romper esta dicotomização, como a campanha #Hablemos #Parlem (veja artigo Bernardo Gutierrez) e outras mobilizações de base que se formaram no processo de organização comunitária para viabilizar a realização do referendo na Catalunia, criando uma certa hipótese de transbordamento (veja artigo de Emmanuel Rodriguez).

    O paradoxo democrático que aí se instalou é também exemplar: o referendo, conforme as regras constitucionais é ilegal; ao mesmo tempo, a mobilização popular manifesta no processo é legítima, tornando a realização do referendo uma reivindicação democrática (veja artigo do Boaventura Souza Santos). Mas quando o jogo se transforma num campo de força real, como na repressão policial do estado Espanhol à realização do referendo, aprende-se rapidamente que o Estado (democrático ou não) é isso aí, força bruta e, no limite, estado de exceção (veja Imagens).

    Porém, o problema não se resolve com o referendo. O que fazer com a outra metade da população da Catalunia que é contra a separação? Ou ainda com todo o restante da população fora da Catalunia que não deseja a separação? Velhos problemas sobre a relação território, nação, unidade, identidade entram em cena. E neste tipo de situação as máquinas identitária e securitária (o desejo de unidade e segurança) produzem os piores monstros em todos os lados. Além do esgarçamento do tecido social, é muito mais fácil produzir um intolerante do que alguém que seja tolerante e sensível ao outro.

    Assim, nos damos conta que mais importante e desafiador que o dia em que nos tornamos independentes, é o dia seguinte e todos os outros que virão na sequência. Da maneira como a produção e reprodução da vida está hoje organizada em nosso planeta, o problema desloca-se da independência para os modos de interdependência que construímos.

    Pensemos, por exemplo, no que fora concebido como a vontade do indivíduo soberano num sistema político democrático. Nos dias de hoje, quais são as alternativas disponíveis quando a manutenção da vida cotidiana está delegada a arranjos estatais-corporativos (das finanças às redes elétricas) complexos? 

    Alternativamente, como podemos partir do comum e ordinário, daquilo que diz respeito a todos, daquilo que nos implica mutuamente? A produção e manutenção da vida em comum (compartilhada e implicada) nos obriga a pensar nos vínculos que tecem o cotidiano. Como irei conviver com este outro? Deslocamo-nos, portanto, do campo discursivo mais ideológico para construir práticas de outros modos de vida. Como desmontar as máquinas opressoras de produção de maiorias, os sistemas de vanguarda e de condução das populações? Como partir de um plano imanente à vida e aí mesmo no mais ordinário ir constituindo e ampliando as infraestruturas e instituições de suporte a outros modos de vida, mais solidários e emancipadores?

    Eu arriscaria dizer que a imagem da soberania de territórios-independentes-autosuficientes se esgotou. Mas ela ainda seguirá operando por muito tempo. A construção de uma Política do Comum exige outras instituições para as quais já temos muitas experiências inspiradoras na história, onde se praticaram outros marcos jurídicos, códigos e instituições de regulação da vida em comum. Há muito o que se investigar e experimentar.

    O que está em jogo em nosso planeta são as condições de produção e reprodução da vida em comum, em direção à modos de vida mais emancipatórios e solidários num mundo de relações interdependentes. Falar de uma política do comum me faz pensar numa política do/pelo meio. Meio como ambiente e também como \”entremundos\”. Ir aos poucos modificando o próprio meio em que estamos imersos de maneira a torná-lo mais favorável às relações que estamos constituindo. Evidentemente, isso não significa negligenciar a importância das atuais instituições e as disputas sobre seu governo. Trata-se, talvez, de uma outra noção de estratégia, uma outra forma de reticulação e propagação de novas estruturações em níveis subsequentes, numa relação imanente ao mundo existente (incluso estado, mercado etc).

    A impressão que tenho é que este impasse político está utilizado como um verdadeiro teste para as recentes experimentações municipalistas da Espanha. A depender da maneira como o conflito evoluir, e de qual será o papel dos governos municipalistas no seu interior, é possível que algo de inesperado surja como alternativa à atual polarização e fortalecimento dos nacionalismos identitários. Ou então, o que surgiu como novas experimentações institucionais pós-15M corre o risco de ser   tragado para dentro desta armadilha, perdendo seu atual protagonismo político. Fico pensando o que significa levar a sério a proposta #RefugeeWelcome do ponto de vista de uma política do comum?

     

    PS 1: Atualização: Ontem a noite (10/10) o governador da Catalunia, conforme previsto no referendo, declarou o resultado da votação ratificando a independência da Catalunia, para em seguida propor a suspensão dos seus efeitos visando o estabelecimento de um diálogo com o governo Espanhol. As vezes a política está no detalhe e no simbólico, é puro dissenso: declarou ou não a independência? Hoje o governo Espanhol solicita esclarecimentos e ativa o dispositivo jurídico (art.155) para preparar uma intervenção na Catalunia. Poderíamos dizer que o governo Catalão fez um movimento de recuo e destencionamento, mas alguns interpretaram essa ação como reiteração de polarização com o Governo espanhol, que responde reafirmando sua posição inicial. Em suma, a tensão segue inalterada.

    PS 2: este post é parte da série de relatos que irei realizar durante o período de pós-doc em Madrid. Mais informações sobre o projeto atual: http://wiki.pimentalab.net/index.php?title=Projetos_Pesquisa

  • Autonomia e organização por Toni Negri

    Autonomia e organização

    por Toni Negri

    Assembléia na Casa do Povo em 2016

    publicado originalmente no Jornal Nossa Voz

    O projeto político do neoliberalismo, a partir dos anos 1970, é um projeto fundamentalmente relacionado a uma reorganização do trabalho e da força de trabalho ao redor do mundo. [Esse projeto] consiste em fazer trabalhar a sociedade como um todo, e não apenas as fábricas que, através da automatização e da robotização, são cada vez mais esvaziadas. Como se faz para lutar contra o fato de que o capital hoje retira, [o capital] extrai sua valorização de toda a sociedade, das relações sociais, da vida, da educação, da saúde, de qualquer lugar onde exista trabalho social (inclusive o trabalho das fábricas), enquanto integrante da sociedade? Como se faz para lutar contra isso? Eu já sou velho, e venho de uma experiência que foi aquela da autonomia nas fábricas; foi uma autonomia contra os patrões e contra os sindicatos para determinar uma ruptura frente ao sistema salarial que dominava a nossa vida, a vida dos trabalhadores. Hoje, o problema consiste em como fazer para ganhar essa batalha contra a exploração social. É por isso que movimentos como os de São Paulo sobre o transporte público [Movimento Passe Livre – MPL] são tão importantes. São lutas que sinalizam um lugar estratégico, que promovem uma ferida na acumulação capitalista.

    As experiências de lutas sociais são muitas e muito vivas. Pensem, por exemplo, naquilo que ocorreu a partir da primeira onda a colocar esses problemas, que começou em Seattle em 1999 e terminou em Gênova com um enfrentamento dos novos proletários contra os patrões do mundo – ou seja, o G8. A segunda onda é a que começou em 2011. Diante dessas situações temos uma série de respostas capitalistas cada vez mais fortes, cada vez mais duras. Por quê? Estamos no limite da capacidade capitalista de se reproduzir nas formas neoliberais. É verdade. É verdade que eles perderam… Eles, os patrões, eles, os capitalistas. Perderam a relação com a sociedade. A questão de um mecanismo de acumulação social se revelou muitíssimo mais difícil que aquilo que eles podiam pensar. Eles fecharam as fábricas porque elas foram tomadas por lutas cada vez mais intensas. Lutas marcadas pelas continuidades socialistas – ou melhor, na direção do comunismo. E a partir deste momento eles tentaram reconquistar o controle do sistema por meio da dominação financeira do mundo. Hojeem dia, aqueles que comandam as indústrias não são os industriais, nem os técnicos que sabem como fazer funcionar as fábricas. São os chefes da moeda, os patrões do dinheiro, os patrões financeiros. E aqueles que comandam as cidades são as mesmas pessoas, são simplesmente os especialistas na lógica de acumulação, ou seja, de extração do lucro da cidade imobiliária, fundiária. Eis quem são os que dominam.

    É evidente que o socialismo em todo o mundo terminou. Terminou suas funções de representação das classes trabalhadoras, das classes subordinadas. Não existe mais para o socialismo a possibilidade de ser a representação do que hoje é a classe trabalhadora: a classe dos trabalhadores materiais, operários, e classe dos trabalhadores intelectuais, cognitivos. O fato de que cada vez mais pessoas vão à escola é uma coisa boa, mas deve-se ter claro que eles estão se tornando cada vez mais a força de trabalho fundamental. É ótimo que existam essas lutas nas escolas, mas é necessário relacionar esta luta à perspectiva de suas vidas futuras, em que estes estudantes serão operários. Se a vida se tornou um trabalho, deve-se compreender como se pode lutar contra o trabalho na vida

    Porque este é um problema enorme. Não podemos partir da autonomia. A autonomia ainda não é uma posição política. Se a social-democracia acabou, deve-se encontrar um método para reinventar a esquerda. Eu sou contra aqueles que dizem que já não existe esquerda nem direita. Sempre haverá uma esquerda e uma direita. Uma direita fascista, no limite, e uma esquerda libertadora. Enquanto houver relações de força, existirá relações de luta. Hoje devemos dizer que a esquerda socialista acabou. Mas devemos reconstruir a esquerda, temos que erguê-la, e temos que fazê-lo juntos, determinar uma força, uma força material. Mas como fazer isso? A coisa é bem simples: trata-se de fazer autonomia. E o que significa fazer autonomia? Significa trabalhar com as pessoas, próximo da população. Não se pode falar disso sem estar próximo da população, sem fazer pesquisa. Quando eu era jovem, dizia-se \’\’que quem não fez pesquisa [trabalho de campo], não tem direito de falar\’\’. Ou seja, ter contato direto com a classe trabalhadora, e a classe trabalhadora não é apenas aquela das fábricas, é a que está na fábrica, mas também nos transportes, nos hospitais, na escola, nos escritórios, etc. Então é necessário fazer pesquisa, ter contato.

    A cada dia podemos nos perguntar \’\’quem são meus vizinhos?\’\’, \’\’o que fazem meus vizinhos?\’\’. Esse discurso sobre os vizinhos é formidável, porque significa organizar, participar. Mas organizar não é algo que vem de cima, e sim algo que vem de baixo. É a capacidade de dizer coisas juntos, de construir momentos em comunidade. E isso é algo absolutamente fundamental, isso é \’\’fazer autonomia\’\’. E depois, devemos estudar quais são os momentos difíceis que encontraremos diante de nós. Construir um com o outro, se informar, ter a capacidade de se comunicar. Disseram [durante a assembléia] que existem escolas em luta, mas se as pessoas não sabem que estas escolas estão em luta, deve-se comunicar e superar a evidente falta de informação que o mundo capitalista determina.

    É necessário também refletir sobre o uso da força. A força foi fundamental em toda organização da autonomia. Não existe a possibilidade de lutar contra os patrões, de lutar contra o capital se não temos a força suficiente para fazê-lo. Organizar a força significa fazer greves, organizar lutas, organizar manifestações. Ser capaz de responder às provocações deles, às provocações dos patrões e do Estado. Devemos ser capazes de juntar a todo momento o nosso conhecimento acerca do inimigo e a reflexão sobre os elementos que constituem a nossa força. Porque nós somos a força: a autonomia é isso, nós somos a força.

    O movimento operário é essa coisa gloriosa que nos precede há anos e anos… há 150 anos. Como ele se formou? Ele se formou através das comunidades, das cooperativas, das associações, através das greves, através da greve geral, através do exercício da força. Depois, através da organização dos partidos. Nós ainda estamos nesta fase da autonomia. Devemos ser realistas: estamos no interregno, em um período de passagem entre a civilização tal qual a conhecemos e uma civilização porvir. Entre o capitalismo e aquilo que vem depois. Estamos em um período de crise, em que devemos inventar nosso futuro, nosso porvir. Mas trata-se de um período longo, e estamos aqui para construir essa coisa nova. Não devemos delegar o nosso poder aos outros, mas intervir de uma maneira direta.

    Em tudo isso existe o porvir, não apenas o presente. Mas para isso devemos fazê-lo do interior. A autonomia não é uma palavra; é fazer, fazer, fazer sempre. Construir sempre, é essa a coisa. Um trabalhador que foi demitido da fábrica, é necessário ajudá-lo a voltar, se possível. Senão, ajudá-lo a ir para outro lugar, organizar com ele outras formas de cooperação. Fazer isso em todos os níveis. Somos inteligentes, somos trabalhadores cognitivos. Podemos criar, por exemplo, plataformas informáticas que nos ajudem a reunir pessoas em colaboração. Porque os patrões criam o Uber e nós não somos capazes de organizar coisas assim? Esta é a passagem à organização. Devemos ser capazes de utilizar todos os instrumentos que existem. A luta, a autonomia, não é somente lutar e destruir, é construir uma nova imaginação, uma nova narrativa. E, sobretudo, novos meios de produção, novas formas de produção.

    Um programa é algo que se desprende das lutas, pois ele não é concebido previamente; é algo que emerge das lutas. Mas o que são, então, essas coisas que começam a surgir das lutas? Eu acredito que existem muitas coisas absolutamente fundamentais e que já emergiram, não apenas aqui, mas por todos os lugares onde existem essa novas construções de organizações revolucionárias. Isso não significa que fazemos a revolução com um fuzil. O fuzil é o momento em que eles usam a força. A revolução consiste em construir a força que não pode ser absorvida no capital. Então a primeira coisa é uma palavra de ordem: o comum. O comum vem antes de tudo, antes do mercado, e antes de todo o resto. Antes de tudo o comum é contra o privado. O comum é a forma na qual nós vivemos. Não existe possibilidade de apropriação capitalista e privada daquilo que nos congrega: as escolas, o sistema sanitário, tudo aquilo em que vivemos e em que nos construímos. Hoje, o capital quer absolutamente explorar e extrair o valor do comum que nós somos. Mas o comum vem antes da capacidade capitalista de se organizar. Uma cidade como São Paulo: quem a fez? Ela é horrível, não? Mas quem a constrói senão os encontros, o fato que as pessoas se juntaram? As pessoas, foram elas que construíram esta cidade, esta fábrica da qual são os [próprios] patrões. Compreender que o comum vem antes da organização capitalista da sociedade é um elemento absolutamente fundamental, irredutível. E isso não é apenas algo que nos consola, que nos sustenta, mas que devemos desenvolver nas proposições das lutas, nos programas, na nossa imaginação do porvir.

    Quando falamos do comum, devemos começar por recuperar os elementos que surgiram das discussões e das experiências dos movimentos. Entre estes está a questão da renda universal para todos. Nesta sociedade totalmente unificada pelo capital e pela exploração do capital – pois quando dizemos capital, dizemos exploração – a vida deve ser defendida e a forma pela qual se pode, de maneira realista, defender a vida é simplesmente monetizando-a com um valor salarial. É brutal o que eu estou dizendo, não é uma bela concepção da vida. A vida é o tempo comprado pelo capital. Na vida, todos temos que ter um salário. Dizem que temos que ter um salário apenas se somos pobres. Não! Todo mundo deve ter um salário como um direito originário, como uma possibilidade de ser livre. Por outro lado, se conquistarmos essa renda universal, teremos muitos menos ricos, pois para criar os meios de pagar o salário universal tem que se retirar dos ricos. Podemos criar uma atividade social imediata: um salário incondicional é algo que corresponde ao sistema de trabalho. Não podemos trabalhar sem ser pagos, isso se chama escravidão. Na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, essa reivindicação é um dos conteúdos fundamentais das lutas autônomas. Algo que aconteceu na Zucotti Square, com as pessoas do Occupy [Wall Street], que aconteceu também na Espanha, com o movimento do 15M etc. Está por todos os lados. Devemos lutar por esta proposta, inclusive com todas as ambiguidades ao redor dela, para estarmos aí, mas com a força e a capacidade de se contrapor.

    Em segundo lugar, a escola. Vejam bem, em todos os países nos quais o neoliberalismo comanda a escola tornou-se um elemento crucial. Em outras épocas eles não estavam nem aí para as escolas, faziam algumas para os operários e não passava disso. Hoje a escola é fundamental: deve-se fazer entrar na cabeça dos bebês que eles são construtores, empresários, pessoas que devem ter mérito para seguir em frente, que devem obedecer, e tudo isso. A escola tornou-se central; reformas estão sendo feitas por todos os lados. Eu não sei se as lutas que tem como lugar a escola no Brasil são lutas que já respondem a esse contexto mais geral. É evidente que existem diferentes posições e situações e que é perigoso unificar e homogeneizar as coisas, mas é claro que esta luta, ao redor da escola é uma das lutas presentes, imediatas e  fundamentais de hoje.

    Outro elemento central consiste em relacionar a luta da escola com a luta daqueles que realizam trabalho cognitivo. Eles são muitos, e hojeem dia trabalham todos em computadores, realizam pesquisas no contexto empresarial, nas universidades, nas cooperativas, em qualquer lugar. Estes trabalhadores devem unir-se e mostrar que, enquanto os patrões pouco se importam com o conhecimento, eles têm a possibilidade de se apropriar dele. Apropriar-se do conhecimento, não da ideologia do mérito do empresariado. É necessário desmistificá-la a fundo, e é possível fazer isso, porque hoje, a grande maioria das pessoas que realizam trabalhos deste tipo (ao menos na Europa e nos Estados Unidos) estão reduzidas à precariedade. E não podemos nos deixar iludir pela ideia de que saber é comandar, que saber é conquistar uma posição social que te dá a possibilidade de ser poderoso contra os outros. Isso é algo que está completa e definitivamente terminado. Saber é poder, mas a coisa fundamental é que o saber pode se tornar um elemento revolucionário. Pois é sobre o saber, sobre a capacidade de imaginação, sobre a capacidade de juntar as pessoas, de formar comunidades, e então de fazer autonomia que tudo isso pode ganhar sentido.

    Depois dos debates que tivemos aqui poderíamos falar durante horas e horas, pois surgiram uma série de assuntos de extrema importância. Mas as duas coisas que me parecem absolutamente centrais agora são, de um lado, a saída das mulheres de sua condição patriarcal, e fundamental, sobretudo, a questão negra. Eu pude observar na França, com o fim do fordismo, depois da grande crise do trabalho industrial, os operários árabes ou negros que foram \’\’guetificados\’\’ nas periferias da cidade, foram enclausurados sem trabalho nestas periferias, as chamados banlieues. E a esquerda faltou em absoluto quanto a esse fenômeno. Ela respondeu às necessidades da acumulação metropolitana em geral e os colocou para fora da cidade. Apartheid. Trata-se de um problema fundamental: na França é impossível reconstruir uma esquerda sem essas pessoas, que representam 10%, 12%, 15% da população.

    Do Brasil eu conheço coisas muito bonitas, mas também coisas cruéis e muito duras… mas é evidente que é intolerável, sobre todos os pontos de vista (para mim é mesmo impossível dizer, é algo indizível) ver outra forma de colonialismo e de racismo escravocrata … para mim é algo impossível. E isso existe ainda no Brasil. E eu não tenho ideia de como se poderia sair desta situação. O significado de ser autônomo aqui deve ter, como ponto de partida a questão negra, o problema dos pobres e dos trabalhadores. Eles não são pobres indecentes, mas cidadãos e trabalhadores. Eu termino por aqui porque… eu juro, a cada vez que eu venho ao Brasil, esse país magnífico, não é mesmo? A cada vez que eu venho falar com camaradas absolutamente formidáveis, percebo neles uma certa reticência quando falamos destas coisas. Sim, muitas vezes. Eu lhes falo de minha experiência, vocês podem dizer que eu sou um imbecil que não compreende em profundidade a história do Brasil, mas é isso.

    Tradução do francês por Fábio Zuker, antropólogo e ensaísta.

  • Cinema de urgência e o festival Brésil en Mouvement

    Cinema de urgência e o festival Brésil en Mouvement

     

    Entrevista com Érika Campelo e Beatriz Rodovalho sobre o festival Brésil en Mouvement (BEM) 

    por Frederico Lyra

     

    Entre os dias 27 de setembro e 01 de outubro ocorrerá em Paris a 12ª edição do festival de cinema Brésil en Mouvement (BEM, Brasil em Movimento). O BEM é essencialmente um festival de filmes documentários políticos que, além da exibição de filmes, conta com toda uma série de debates ligados diretamente à programação. Com uma programação divida em várias sessões diárias, de filmes agrupados em torno de temáticas semelhantes (dentre elas as lutas dos povos indígenas, lutas das mulheres, lutas no campo, política e religião) o BEM busca mostrar construir uma constelação de filmes que possam transmitir uma ideia das diversas e complexas lutas que atravessam o Brasil, e que se agravaram ainda mais na situação atual de pós-golpe. No entanto, não são todas as ideias que são exibidas. O festival tem um posicionamento claro e não busca uma, por assim dizer, hipotética neutralidade na sua programação. O festival assume de que lado da luta está. Decidimos então iniciar as nossas contribuições ao blog Urucum (que irão girar em torno da discussão e análise do contexto politico francês e franco-brasileiro, como é o caso aqui) com uma entrevista com duas camaradas envolvidas diretamente no festival: uma das idealizadoras, Érika Campelo (VoxPublic), e uma das curadoras, Beatriz Rodovalho (doutoranda em cinema na Université Paris-Nouvelle 3) – ambas também compõem parte da diretoria da associação Autres Brésils (Outros Brasis) que por sua vez organiza o festival.

    Não iremos nos estender na apresentação da entrevista, mas cremos que as respostas das camaradas contém ao menos dois prismas fundamentais para pensar o que é a militância, arte e política neste tempo presente: primeiramente, a importância que eventos como este tem para dar a real dimensão internacional, muitas vezes esquecida, que as lutas que ocorrem em território brasileiro possuem, e a dificuldade (impossibilidade?) de se pensar, num mundo quase que completamente subsumido ao poder do capital, a distinção clara entre política e arte. O que Érika e Beatriz nos convidam a pensar é que sob as coordenadas atuais do sistéma esta distinção se torna cada vez mais meramente formal e que dificilmente as escolhas estéticas podam ainda ser evacuadas do posicionamento político daqueles que as tomam. A fronteira é tênue e deve ser pensada.

    1) Vocês poderiam descrever o que é o BEM e contar um pouco da historia de um festival que já chega na sua 13 edição? Como ele surgiu? Como evoluiu o seu formato e programação?

    Érika Campelo – O festival BEM (Brasil em Movimento) começou em 2005 no ano do Brasil na França. O ano do Brasil na França foi um ano cultural e o Brasil estava como convidado de honra. Os membros da associação, os membros fundadores que participavam da associação Autres Brésils acharam que as temáticas e a programação do ano do Brasil na França eram temáticas muito culturais mas pouco politicas e que as questões sociais do Brasil, que sempre foram muito forte: a questão do acesso à terra, a luta por moradia, os catadores, todos esses movimentos sociais, nada disso estava representado neste ano do Brasil na França. Então a gente resolveu criar o festival com temáticas politicas. O formato evoluiu. Eu acho que continuamos passando filmes e principalmente os debates com uma conotação politica muito forte. Queremos mostrar o que está acontecendo no Brasil, com a sociedade brasileira, mas também fazendo um eco com a sociedade francesa. A gente vive num mundo globalizado e as questões sociais e ambientais são as mesmas e se impõem para as duas sociedades – francesa e brasileira – então essa questão do paralelo  entre os dois países é muito importante. O formato evoluiu pois a gente agora tem uma preocupação mais estética, que no começo agente não tinha, de cinema. Só queríamos passar filmes militantes. A gente continua passando filmes militantes, mas com uma preocupação estética maior.

    2) Como foi pensada a programação desta edição de 2017?

    Beatriz – A programação do Festival Brésil en Mouvements baseia-se sobre uma chamada para filmes aberta e um trabalho de curadoria. A edição de 2017 estruturou-se a partir de Martírio (Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho, Tita, 2016). Depois de Corumbiara (2009), Martírio dá continuidade ao projeto cinematográfico de Carelli, fundador do projeto Vídeo nas Aldeias – – hoje interrompido por falta de financiamento. Martírio trata da história do massacre dos povos Guarani e Kaiowá por seus perpetradores: os latifundiários e o Estado (que se confundem). Acredito que Martírio seja um filme-monumento, mas um momento para o presente, um monumento urgente. Mesmo que Martírio tenha sido concluído antes, desde o golpe de Estado de 2016, a perseguição aos povos autóctones se intensificou, e eles estão cada vez mais vulneráveis. As ameaças, as expulsões, as torturas, os assassinatos, os massacres aumentam, legitimados pelo Estado.

    Essa urgência orientou a programação deste ano. Diante dos retrocessos e dos desmontes da consolidação do golpe, diante da exposição da farsa que é a nossa democracia, o cinema documentário se torna um cinema de urgência. Perguntamo-nos: o que pode o cinema?

    O filme de Carelli é uma profissão de fé – teimosa, tola talvez – no poder do cinema (de certa forma, Brésil en Mouvements também o é). Tanto que ele o conclui citando Rithy Panh, cineasta cambojano que desenterra os mortos do seu genocídio: \”mais do que criar, filmar é ‘estar com’, de corpo e alma… Tomar deliberadamente partido por acreditar que nada é imutável\”.

    Carelli foi criticado por Eduardo Escorel ao retirar a frase de Panh de contexto (ele não a cita por inteiro). Pouco importa. Panh trabalha com espectros, Carelli, com o genocídio no presente, com os corpos ainda quentes.

    Assim, privilegiamos a temática indígena.

    Como Carelli aceitou nosso convite para ser padrinho do festival, dedicamos uma sessão a uma produção recente do projeto Vídeo nas Aldeias, junto de um debate sobre suas perspectivas.

    Temos também, por exemplo, Ava Yvy Vera, filme feito por um coletivo indígena em parceria com a UFMG, que trabalha os laços mágicos dos Guarani e Kaiowá com o território – e sua destruição pela monocultura da soja. A partir de imagens de arquivo, Grin (2016), de Roney Freitas e Isael Maxakali, por sua vez, faz a anamnese da Guarda Rural Indígena, uma das marcas mais sombrias da ditadura sobre os povos autóctones.

    De resto, escolhemos também filmes que tratam da luta de outras minorias políticas, como Precisamos Falar do Assédio (Paula Saccheta, 2016), que dá voz às mulheres vítimas de violências. No filme, as histórias íntimas de violência tornam-se políticas pelo testemunho.

    Há alguns anos, trabalhamos com filmes que diluem as fronteiras entre o documentário e a ficção (principalmente os do cineasta brasiliense Adirley Queirós). Em A Cidade do Futuro (Cláudio Marques, Marília Hugues, 2016) três jovens reencenam suas próprias vidas. A partir desse filme, debateremos sobre os desafios da juventude LGBT, sobretudo em situação precária.

    De qualquer forma, os temas – e essas constelações – surgem a partir dos filmes que recebemos e que chamamos.

    É o caso dos outros filmes sobre a resistência política – Resistência (Eliza Capai, 2017), Na Missão, com Kadu (Aiano Benfica, Pedro Maia de Brito, 2016), Lute Como uma Menina (Bia Alonso, Flávio Colombini, 2016), em que a forma militante é privilegiada.

     

     

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    3) Qual a importância de um festival de cinema politico brasileiro na França em um momento como o presente?

    Érika – A importância de um festival politico brasileiro na França se da pelo fato do mundo passar por um momento muito difícil onde as forças reacionárias e neoconservadoras estão atacando a sociedade em todos os seus ganhos: liberdade de expressão, nos direitos, direitos das mulheres, direitos das minorias e a democracia mesmo estão todos sendo ameaçados. Assim, um festival como o nosso hoje aqui na França é importante por duas razões. Uma para o Brasil. Para agente falar desse momento conturbado e difícil pelo qual o Brasil está atravessando. Eu acho importante divulgar, é importante a solidariedade internacional. Eu acho que o festival é uma boa vitrine para mostrar que tem muita gente e muitos movimentos que estão no Brasil e que estão resistindo. A segunda é que eu acho que para a França também é importante. Os direitos na França também estão sendo atacados pelo sistema neoliberal com uma força enorme, então também se torna fundamental mostrar que na resistência no Brasil e que na resistência aqui na França o importante é a transversalidade das lutas. De como resistirem juntos: a sociedade civil e os movimentos sociais. A questão é essa.

    4) Pegando o gancho da resposta de Beatriz na segunda pergunta, quando ela se questiona: \”o que pode o cinema?\”, com a afirmação de Érika de que \”o importante é a transversalidade das lutas\”, eu lhes pergunto: o que pode o cinema para ajudar ou articular a transversalidade das lutas?

    Beatriz – A questão do poder de interferência do cinema na realidade política – na “partilha do sensível” (Rancière), na transformação concreta da realidade que ele representa – é complexa. Jacques Rancière, por exemplo, analisa profundamente a questão da política da estética e da estética da política. O cinema, de certa forma, não escapa às aspirações do seu tempo histórico – sejam elas libertárias ou reacionárias (vide o cinema de propaganda). Aliás, veja o estranho objeto cinematográfico contemporâneo que é Polícia Federal: A Lei é para Todos, filme de propaganda tosca – filme tosco de propaganda – \”baseados em fatos reais\” sobre a Lava Jato). Veja, ainda, a importância do cinema documentário profissional e militante/amador nos movimentos políticos dos anos 1970 (a partir de 1968) em todo o mundo. Antes, no Brasil, o próprio Cinema Novo nasce com um propósito de emancipação política e estética. Outros exemplos: o cinema soviético dos anos 1920, que é indissociável da revolução comunista. Ou o trabalho de D. W. Griffith que desenvolveu o cinema narrativo norte-americano exaltando valores conservadores nos anos 1910 – veja O Nascimento de uma Nação (1915), Intolerância (1916)… Ou mesmo John Ford… enfim.

    Para que serve o documentário? O documentário é principalmente um cinema sobre o Outro (ou o Eu enquanto Outro).

    Num plano muito concreto, pergunto-me qual é a responsabilidade ética de um documentarista que penetra (e na minha cabeça esse documentarista é sempre um homem) um determinado grupo (aqui, ao qual ele não pertence) para fazê-lo de objeto de seu filme. O que acontece quando ele sai? Muitas vezes, ele apenas passa e leva consigo muito, sem nada deixar.

    Se ele é estrangeiro ainda, pode levar muito mais, em seu encanto eurocêntrico com o outro do terceiro mundo. Permito-me dar outro exemplo: no fim do documentário, uma homenagem da cineasta francesa ao “Brasil que nunca desiste”.

    Em anos de Brésil en Mouvements pude ver alguns filmes de cineastas europeus que partem à descoberta de um certo Brasil, de comunidades que vivem subumanamente…
    Eles vêm, testemunham a miséria, encantam-se com a resiliência (teimosa vontade de sobreviver) de um povo abandonado pelo poder público, encantam-se com esse je ne sais quoi do subdesenvolvimento.
    No fim, partem com um filme que só afirma seu olhar eurocêntrico sobre essa gente. E o que deixam? Quantos não passam e não arrancam um pedaço (de imagem) desses brasileiros para levar para fora? Esse olhar é ainda míope – não se escavam as causas de tanta falta, não se confronta o Estado.

    Veja o filme de Daniel Cohn-Bendit, por exemplo, que exibimos na abertura da edição de 2015: Sur la Route Avec Sócrates (Niko Apel, Ludi Boeken, 2014). Para mim, trata-se de mais um europeu que penetra as comunidades mais pobres do Brasil sem questionar sua própria posição, seu próprio olhar (por outro lado, o filme coloca outras questões que a comissão de programação julgou relevantes).

    É claro que o cineasta brasileiro também pode fazer o mesmo, transitando entre esses abismos horríveis.
    Porém, como pode um cinema tão precário transformar vidas tão precárias? Como construir o olhar sobre o outro? E para quem?

    Quanto à questão da transversalidade das lutas: o cinema pode colaborar, primeiro, como práxis. Como uma prática democrática, capaz de construir uma comunidade e uma representação dessa comunidade, de suas lutas, de seus sonhos, de seus horizontes. Esse é o cinema que emerge dos coletivos. Tenho a impressão de que as mulheres são as primeiras que se confrontam à necessidade da transversalidade e da convergência das lutas. Um certo cinema feito por mulheres emerge dessa consciência. O cinema também pode apontar para a transversalidades das lutas pelo conteúdo e pela forma, é claro, que serão consequência da posição assumida pelos cineastas. A circulação dos filmes também pode estabelecer um diálogo, uma convergência dessas lutas diversas.

    5) E por fim, uma questão especulativa. Quais as expectativas para o impacto que o Golpe de 2016 pode ter na produção cinematográfica brasileira e, desta forma, influenciar, mesmo que indiretamente, as próximas edições do festival?

    Beatriz – Desde o Golpe de 2016, a classe cinematográfica têm-se mostrado bastante mobilizada (mas talvez não o suficiente). Por exemplo, sua reação contra o desmonte do Ministério da Cultura (que continua a existir como instituição, mas violentada por dentro, eu diria) foi decisiva. Em 2016, os grupos, principalmente os de mulheres do cinema, estavam mais articulados do que agora.

    As leis de incentivo fiscal que possibilitam a produção cinematográfica também se mantêm, e, ao que tudo indica, serão renovadas para 2018.

    Porém, as leis que exigem uma cota de produções brasileiras nos canais da televisão paga, que impulsionaram a criação de inúmeros programas e de séries brasileiras, correm um sério risco, e sua dissolução representaria um verdadeiro impacto no mercado.

    Não há como não se perguntar se o que se começou com o cinema da Retomada (desde 1994) não constituirá novamente mais um dos ciclos de ascensão, de ruína e de recomeço da produção brasileira. Esse fantasma histórico certamente ainda assombra desde os anos Collor.

    Uma questão recente que movimentou a classe foi a troca da presidência da ANCINE (Agência Nacional do Cinema), órgão que ganhou uma importância vital para o cinema brasileiro desde sua criação em 2001.

    Por outro lado, não houve mobilização para evitar os contínuos golpes contra a Cinemateca Brasileira, em São Paulo (houve uma ínfima reação da classe paulistana). A situação da preservação, da difusão, da exibição do patrimônio cinematográfico brasileiro é catastrófica. Não há política pública de preservação do cinema nacional (há, mas eu poderia dizer que é quase como se não houvesse). Essa também não é a prioridade dos cineastas brasileiros, que, no entanto, a tomam como símbolo.

    Outro problema autorizado pelo Golpe de 2016 é a volta da censura, por enquanto imposta principalmente por meio dos discursos promovidos pela sociedade civil e de ações pontuais da polícia militar – acabamos de ver uma performance teatral impedida, peças de teatro interrompidas ou ameaçadas… No entanto, isso começa a tomar uma forma institucional. Um juiz suspendeu a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu no Sesc de Jundiaí (São Paulo), porque um Jesus Cristo transexual seria uma representação “atentatória à dignidade da fé cristã” (aliás, é inacreditável o quanto esse tipo de “cristão” de ontem e de hoje é o avesso do que Jesus era – tanto o Jesus histórico quanto o que dele se narra na Bíblia; enfim, eles estupram tudo o que podem).

    No cinema, durante o processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, o filme Aquarius (Kléber Mendonça Filho) foi vítima de ataques violentos da direita raivosa que acha que Lobão e Roger são artistas – porque a equipe denunciou o golpe em Cannes. Justamente, nesse cenário, Lobão e Roger viram intelectuais.

    Essa censura pode vir também no momento da constituição das comissões dos mecanismos de fomento para o cinema (editais), tanto para produções de filme quanto de mostras, privilegiando-se certo projetos a outros. Em São Paulo, inclusive, isso já foi colocado em questão quanto ao resultado de um edital de fomento municipal. O Golpe, assim, que elegeu figuras como João Dória e Marcelo Crivella, também reforça políticas de desmonte da cultura tanto municipais quanto estaduais.

    O cenário político certamente legitima e promove discursos e ações reacionárias da qual o cinema é e será objeto.

    Como reação, desde o Golpe multiplicam-se produções independentes e feitas sob um certo modelo de cinema ou de vídeo de guerrilha – “na raça” – e que circulam por plataformas gratuitas como o Youtube.

    Nesse sentido, talvez Brésil en Mouvements volte a se aproximar mais do cinema militante. Mas se for o caso, eu preferia que isso acontece com uma reflexão sobre essa forma cinematográfica.

    O festival Brésil en Mouvements nunca fugiu de tomar posição e de afirmar essa posição. Uma possível conseqüência direta disso para as próximas edições pode acontecer no apoio financeiro que vem da Embaixada do Brasil na França, que sempre foi essencial. Contudo, a própria instituição confronta-se com uma redução orçamentária para a cultura, e Brésil en Mouvements não é a única vítima desses cortes. Se o Itamaraty tornar-se “menos democrático”, isso certamente influenciará sua política cultural na França. Mas não sei dizer como. De qualquer modo, BEM não é um festival partidário; os anos Lula e os anos Dilma, que marcam todo o período de existência do festival, foram objeto principal do olhar que constroem os filmes programados e os debates promovidos. Brésil en Mouvements situa-se ao lado, é claro, dos movimentos sociais e da criação cinematográfica.