Category: urucum

  • Do protesto aos arranjos tecnopolíticos: recursividade e reticulação

    por Henrique Parra

    Tomar as ruas, protestar e expressar nossa indignação é fundamental. Porém, pressionar os governos e as instituições já não parece ser suficiente para traduzir as reivindicações das ruas em novas políticas ou práticas institucionais. Essa crise não é exclusiva do Brasil, mas aqui a situação adquire formas e conteúdos específicos. E como em toda guerra, essa é também uma guerra de velocidades entre ecossistemas concorrentes. O assassinato da vereadora Marielle Franco não é apenas uma mensagem de ameaça a tod@s ativistas, é também uma tentativa de bloquear um caminho de ação política institucional (construção de mandatos populares, partidos e disputa eleitoral). É um crime racista, de gênero (feminicídio), de classe e contra todas as forças e pessoas que ela representava. Tudo parece indicar que o momento histórico exigirá uma multiplicidade de novas formas organizacionais, ferramentas, tecnologias e estratégias de luta. Não é esta ou aquela, mas a combinação de várias estratégias. Não se pode enfrentar o novo com velhas armas.

    Como transformar a energia política das ruas em ganho organizacional e novas institucionalidades? Os limites de junho de 2013 e a forma de captura pelos poderes instituídos do potencial político da multidão deveria servir de lição. Diante das configurações políticas do pós-Golpe e dos protestos multitudinários contra a execução de Marielle essas questões retornam.

    Entendo que seja muito importante disputar as eleições, as instituições etc. O assassinato de Marielle e de tantos outrx ativistas políticos no Brasil é uma clara resposta à ameaça que esta nova geração de lutadoras representa aos poderes instituídos. Ao mesmo tempo (e de forma complementar) é urgente imaginarmos e praticarmos outras formas de ação para além dessas que conhecemos e seguimos fazendo nos últimos 30 anos.

    Acredita-se demasiadamente no poder discursivo e na capacidade da mobilização ideológica. Mas, o poder é sobretudo logístico, é maquínico, funcional, pragmático. Em nossas vidas o poder se inscreve e se realiza mediante dispositivos materiais-simbólicos, humanos e não-humanos. Nossas ações realizaram-se com técnicas e artefatos sociotécnicos. Militantes e ativistas poderiam conversar mais com xs arquitetxs, xs engenheirxs, xs físicxs, biólogxs, cientistas da computação, médicxs etc. É necessário investigar uma outra camada, transbordando do protesto em direção a experimentação prática (prototipagem). Isso não é novidade, muitos coletivos e comunidades já estão fazendo isso.

    A criação da pílula anticoncepcional, o protocolo TCP/IP da internet e o telefone celular são exemplos de artefatos técnicos-científicos que produzem arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares. Sua forma de adoção e propagação vai gradativamente modificando as relações sociais através do seu uso, e os efeitos de sua adoção nas pontas (sujeito individual ou máquinas) cria mecanismos de reforço sistêmico. Também podemos citar algumas comunidades territoriais que desenvolvem formas de autogoverno sobre seus recursos e infraestruturas comuns (água, eletricidade ou da sua pequena horta). Certas ordens religiosas também são exemplos de tecnologias organizacionais capazes de criar economias de suporte e com infraestruturas (materiais e simbólicas) interdependentes. Não a toa, o controle de infraestruturas e serviços básicos pelo crime organizado em espaços da vida social coloca em funcionamento toda uma máquina social, com normas, modos de subjetivação e legitimação próprios. Em todos esses casos o problema de escala é atacado de outra forma, por reticulação.

    Há duas noções que podem contribuir para a construção de novos arranjos sociotécnicos: recursividade e reticulação.

    Recursividade: faço uma livre combinação desta propriedade da ciência da computação com a caracterização de Chris Kelty sobre as comunidades de software livre. Uma prática, uma tecnologia, uma organização que atue recursivamente está desenhada para a resolução prática de um problema, cujo modo de ação dá-se mediante a criação de sub-rotinas que atacam frações de um problema maior, e a cada movimento ela volta à sua função (missão) original, porém agregando um \”aprendizado\” que a torna mais eficiente. Este aumento de eficiência (ou ganho de poder) acontece também porque além de resolver partes do problema (diminuindo a força do seu oponente) ela modifica gradualmente o seu meio de ação (meio-associado), criando um ecossistema mais favorável à sua execução. Ou seja, um artefato recursivo é um dispositivo prático (material-simbólico) que executa um programa (uma ação normativamente orientada) cuja eficiência está na transformação do seu meio-associado e não apenas na realização de um objetivo final abstrato). Como efeito, a recursividade apoia-se na produção de uma \”comunidade\” ou de \”públicos recursivos\” que dão sustentação ao processo.

    Reticulação: da cristalografia e do pensamento de G.Simondon, mas também dos estudos de inovação em ciência e tecnologia. A reticulação é um processo de propagação não-linear e rizomático de uma estruturação emergente criando níveis subsequentes de estruturação de uma realidade. Quando uma prática, uma tecnologia, uma organização se reticulariza, significa que ela é capaz de tornar durável, de diferentes formas, o seu programa de ação, criando níveis crescentes de estruturação. Como efeito, ela amplia sua capacidade de determinação sobre um campo de possíveis. Ou seja, a reticulação dá maior consistência e força para seu programa de ação.

    Passar do protesto à criação de arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares significa encontrar formas de organização, práticas e tecnologias adequadas ao novo contexto, capazes de traduzir, mediar e atualizar certos valores através desses dispositivos, para que sua adesão e utilização se propague através de crescente estruturação. Diante das novas formas de exercício do poder quais são as nossas tecnologias de contra-poder? Como nos organizamos, como criamos novas relações de suporte entre nossas práticas, qual é nosso economia, como cuidamos de nossa saúde coletiva, quais são as infraestruturas necessárias e como assumimos controle sobre elas? Investigar a fundo os problemas que enfrentamos, construir estratégias para a criação desses dispositivos e dos pontos-obrigatórios-de-passagem é um ótimo programa de pesquisa-ação.

    #Marielle&AndersonPresente!

  • Sou mulher negra e estou de luto

     

     

    Que território se pretende digno de se declarar “país”, “nação”, “democracia” ao espancar professores pela manhã e assassinar uma mulher negra e de luta à noite?

     

    por Edson Teles

    O luto poderia ser o processo de substituição de uma perda pelo investimento em outros amores, desejos e atenções. Seria um conjunto de estratégias que desenvolvemos para driblarmos as consequências da morte. Um evento comum a todos nós, um elemento constituinte de nossas existências.

    No Brasil não é assim. A perda, neste país, é substituída por outra perda. E o processo de luto não chega a termo, ele é atropelado por outra morte cujo sofrimento produzido se torna maior do que a dor do luto. Não se consegue esquecer.

    Ao contrário, há um processo estatal de aplicação de recursos na produção da morte. Quando se aponta fuzis, tanques e discursos em defesa do uso da força indiscriminada contra as favelas, como se faz com a “Intervenção Militar” no Rio de Janeiro, o que de fato se autoriza?

    Autoriza-se o crime contra o “inimigo” interno da ordem. Qualquer estatística diz quem são: as mulheres, os negros, os índios, os pobres. Como dizia Abdias Nascimento, não é só a morte física, como ocorreu com Marielle, mas a morte cultural, econômica, social, afetiva. A morte dos desejos de se viver uma vida digna.

    Com o golpe de 2016, o “inimigo” não se modificou. Os militantes já eram vítimas, é só ver as denúncias do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Os negros são assassinados desde que se iniciou o processo de colonização, mas que ganhou sofisticação extrema com a produção de territórios anômicos em que a estatização da morte é sintetizada, por exemplo, pelo desejo militar de agir “sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”, como sugeriu o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas.

    O país “cordial e democrático”, em seu cotidiano, tem três mulheres assassinadas por dia. E a maioria das vítimas é composta de mulheres negras (segundo pesquisa da Flacso, de 2015, entre 2003 e 2013 a morte violenta de mulheres negras aumentou 54%, enquanto a de mulheres brancas diminuiu 9,8% [“Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil”]).

    Que território se pretende digno de se declarar “país”, “nação”, “democracia” ao espancar professores pela manhã e assassinar uma mulher negra e de luta à noite?

    Marielle voltava de um debate sobre as “jovens negras movendo as estruturas”. Imagino ela, no carro, conversando com sua assessora e com o motorista sobre o quanto ela estava feliz por ter conversado com aquelas jovens, vendo elas mais articuladas e de posse de maior clareza sobre sua situação do que já se teve em tempos anteriores. Mas, também, preocupada em como a “estrutura” da violência, racista e machista, contra as pessoas que lutam pela democracia, permanece, ou melhor, ganha requintes de tecnologia de governo.

    E a conversa parou. Acabou de modo abrupto. Interrompida pela estupidez da desigualdade, da injustiça, do autoritarismo.

    O desabafo é o primeiro passo do novo luto. Vou para as ruas pois não quero que este processo de “substituição” da perda se interrompa com outra demanda de luto.

    Hoje sou mulher, negra, bicha, jovem, pobre, militante, lésbica, semialfabetizada, indígena, sobrevivente.

  • O que diz a intervenção militar sobre nossas incapacidades?

    De verdade qual é discurso que temos para contrapor? Estamos trabalhando nisso por dentro dos nossos partidos, nos nossos movimentos? Temos propostas concretas, exequíveis, consensuais entre nós (ao menos) para reformas as polícias, combater a violência de Estado, combater o racismo institucional, reorientar as políticas de segurança para a defesa da vida e da integridade física? Nós sabemos como fazer isso? De verdade?

     

    por Jacqueline sinhoretto

    A participação de Bolsonaro no debate eleitoral está produzindo efeitos concretos, como este da intervenção federal na segurança pública do Rio. Ele está arrebanhando um eleitorado que tradicionalmente votou nos partidos de direita. Estes estão tentando reagir a isto, no desespero. O PMDB que governa o Rio (ou ao menos ocupa o governo), deu uma cartada pesada. O problema é que existe este eleitorado conservador, muito raso na discussão política, que há décadas vem repetindo chavões totalmente vazios como \”a solução é jogar uma bomba\”, \”a solução é chamar o exército\”, \”direitos humanos são direitos de bandidos\”.

    A democracia de baixo impacto produz esse sujeito político e ele está especialmente alojado nas camadas sociais que têm acessos precários a seus próprios direitos. É difícil explicar o que significa a liberdade individual a quem está preso em coerções sociais que negam o tempo todo sua liberdade: mulheres presas na maternidade compulsória e no fardo da dupla jornada; homens presos nos conceitos tradicionais de família e masculinidade, mulheres presas nos cuidados com crianças e pessoas idosas ou doentes sem nenhuma ajuda do poder público. Daquela sua tia que vomita repressão sobre a sexualidade dos outros, o que você sabe sobre o que ela abriu mão em sua própria vida para ser uma \”cidadã de bem\”? É difícil explicar para a pessoa que não frequentou a universidade pública que é preciso garantir isso aos outros. É muito difícil reconhecer ao outro o que não se tem para si. Questão difícil que uma democracia de massas que convive com alto nível de hierarquização e de repressão moral, alto nível de desigualdade de renda e desigualdade de direitos não foi até agora capaz de responder. A direita tradicional está com dificuldades de responder aos anseios desse público. A esquerda então…

    De verdade qual é discurso que temos para contrapor? Estamos trabalhando nisso por dentro dos nossos partidos, nos nossos movimentos? Temos propostas concretas, exequíveis, consensuais entre nós (ao menos) para reformas as polícias, combater a violência de Estado, combater o racismo institucional, reorientar as políticas de segurança para a defesa da vida e da integridade física? Nós sabemos como fazer isso? De verdade? Eu tenho umas quantas ideias, temos algumas políticas nas quais nos inspirar. Mas acredito que quem não tem um plano não vai conseguir conquistar votos. Se os candidatos mais à esquerda vão chamar a PM para fazer a repressão e policiamento ostensivo, pode ser que o eleitor pense que é melhor chamar o exército, que tem mais poder de fogo. Se as candidatas feministas vão pedir cadeia e nada mais, talvez a eleitora pense que é melhor votar em quem acredita na cadeia e a tem defendido ao longo dos anos. Bolsonaro é a ponta visível de uma conservadorismo social muito mais espraiado. Muitos dos eleitores dele não são monstros sociopatas, talvez sejam pessoas com quem você irá almoçar amanhã. Se a gente apenas discursar sobre complexidades e conceitos sofisticados, sem concluir com propostas, alguém na mesa dirá: \”pois é, só jogando uma bomba\”.

  • A caixa 623 e os estados de exceção

    por Edson Teles

    Se há um acontecimento síntese dos processos de produção de subjetivação política acerca dos anos de repressão ditatorial no Brasil poderíamos dizer que ele é a experiência da Vala Clandestina de Perus. Polifônico e multifuncional, ao se fazer carne, ao se tornar discurso e ao assumir as funções do medo e da explicação histórica universal, acionou e aciona até hoje mecanismos de dominação e resistência.

    Foi no dia 04 de setembro de 1990 que, após trabalho de pesquisa do jornalista Caco Barcelos e da luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura, a prefeitura de São Paulo decidiu escavar o local onde estariam dezenas de ossadas de indigentes, mortos e desaparecidos políticos e vítimas fatais da polícia durante os anos 70. O resultado foi impactante: sacos contendo ossadas de 1.049 indivíduos e mais outras centenas de corpos misturados por terem tido seus sacos abertos e danificados. A partir desta data se instituía a Vala de Perus, originariamente alocada no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo. Tal fato ocorreu durante o governo da prefeita Luiza Erundina. Acontecimento que poderia deslocar placas tectônicas da memória política, pois as vidas da militância clandestina de resistência se tornariam públicas.

    Passados quase 28 anos, e após um degradante périplo por instituições do Estado, finalmente foi feito o reconhecimento de que a ossada da caixa 623 contém os restos mortais de Dimas Antônio Casemiro (1946-1971*2018). Nascido em Votuporanga, interior de São Paulo, no dia 06 de março de 1946, foi assassinado em abril de 1971, após ser preso pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo), fato ocorrido, segundo a Comissão Nacional da Verdade, sob a responsabilidade do delegado Alcides Cintra Bueno Filho.

    Na biopolítica latino americana, além das características apontadas pelo filósofo Michel Foucault se apresentarem misturadas, as do “fazer e deixar viver e morrer”, somaríamos a prática do “fazer desaparecer”. Por isto, as instituições das democracias herdeiras de regimes autoritários no continente deveriam adotar a marcação acima, com os anos de nascimento e morte e o de identificação do corpo desaparecido.

    Os vários lugares por onde passaram as ossadas indicaram a relação entre as memórias da ditadura e a ausência topológica ou o uso espacial do caráter político das lembranças e dos esquecimentos no Estado de Direito.

    De Perus para a Unicamp. De lá para o Cemitério do Araçá, algumas ossadas para o IML de São Paulo, outras para o Ministério Público. Algumas voltaram para o Cemitério. Mais tarde, boa parte foi para a Unifesp.

    Foram tantas as instâncias, institucionalizações, relatórios apresentados e outros nunca feitos, ofícios, burocracias. Foram várias as reuniões com representantes de direitos, dos militares, da governabilidade. Lugares sem fim, múltiplos espaços, tantas operações de controle quanto as possibilidades de abertura.

    E eis que em fevereiro de 2018, o Grupo de Trabalho de Perus (GTP), localizado no Centro de Antropologia e Arquelogia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp), confirmou a identificação de Dimas. Lá se encontram as caixas contendo as ossadas de Perus. Estas ossadas ressurgirem identificadas aparece como uma prova contundente do modo de operação e da ideologia de descarte das vidas que o Estado considera desmerecedoras de viver. Coloca em evidência um modelo militarizado de segurança pública ainda vigente.

    Da morte à abertura da Vala, passando pelo DOPS, talvez no Doi-Codi do Exército e nas várias salas de tortura para as quais as “forças da segurança e da ordem” levavam os oposicionistas, foram 19 anos. Mais os 28 para finalmente se fazer a identificação temos 47 anos. Ao ser assassinado, Dimas tinha 25 anos. Quase o dobro de tempo da sua vida para a finalização da morte. Se é que podemos dizer que esteja finalizado. Afinal, não sabemos ao certo como, onde, quais os responsáveis pelo crime cometido.

    A Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) não foi até as profundezas do mecanismo de triturar corpos da ditadura para desvendar os detalhes do que ocorreu com Dimas. Não identificou qualquer desaparecido. Em termos de história praticamente compilou o que já se sabia.

    Então, por que o general chefe do Exército brasileiro, Eduardo Villas Bôas, neste mesmo mês de fevereiro de 2018, dispara uma reclamação-ameaça à sociedade avisando que esta instituição não deseja uma outra comissão da verdade? O que significa esta tática em meio à intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro?

    Trata-se, ao que parece, da posse de poderes de vida e morte sobre a população. Como disse o mesmo general, o “risco sempre existe” de se atingir pessoas que não tenham relação com crimes. E para que serve a comissão da verdade? Apurar as violações da dignidade humana, em especial, na experiência brasileira, a tortura, o assassinato e o desaparecimento por parte de agentes do Estado.

    Então, exigir que não se tenha outra comissão é mais ou menos como dizer que se quer uma anistia antes de cometer a violação de direitos. O modelo do Exército atual é parecido com o da ditadura. Em dezembro de 1968, 50 anos atrás, a ditadura decretou por meio do artigo 11 do Ato Institucional número 5 (AI-5), uma auto-anistia: “excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos”.

    Como nos anos da ditadura, o Exército quer a anistia antes mesmo de começar a violar direitos. Ao expor o desejo de se salvaguardarem de outra comissão da verdade (ninguém pode hoje garantir que uma próxima comissão seria somente 40 ou 50 anos após os fatos), o general expõe as formas de uma segurança pública militarizada: a guerra contra o inimigo interno, o povo pobre, negro, ativista, jovens que usam vinagre contra os efeitos de bombas de gás, coletivos espontâneos que tomam avenidas em revolta devido a mais um assassinato cometido por policiais etc.

    A intervenção militar expõe algumas características que diferenciam os estados de exceção vividos no Brasil desde sua redemocratização nos anos 80 em relação à ditadura. E situações que modelam no Brasil uma vida e uma política militarizadas.

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    A primeira característica se refere ao território. Na ditadura a intervenção era em todo o espaço nacional, centralizado, imposto unicamente por armas e sem a necessidade de justificativas. Hoje, os estados de exceção ocorrem em territórios menores, espécies de campos de refugiados que exigiriam uma medida de força e justificado pela necessidade de restabelecer a ordem evitando o pior.

    A segunda característica própria dos estados de exceção no atual estado de direito é a existência de fendas na ordem jurídica. Aciona-se medidas de exceção a partir de mecanismos jurídicos, como a intervenção em curso, mas que não são (porque não é possível ser) regulamentados sobre seu uso. Não há como prever, na letra da lei, o que fazer se não se tem de antemão as circunstâncias que demandam a exceção. A Constituição criou os instrumentos de acionamento da medida de emergência, mas não sabe como será executada. Desta forma, são várias as pressões de militares pela liberação da violação de direitos civis básicos sob a justificativa de que se faz necessário para enfrentar “traficantes armados”. Afinal, como disse o general-interventor Braga Netto, o “Rio é um laboratório para o Brasil”.

    A terceira grande característica dos estados de exceção é seu regime de produção. São décadas de má gestão da segurança pública e de opção pela estratégia do inimigo a ser combatido por táticas militarizadas e em situação de guerra. O resultado, do ponto de vista do cotidiano das populações, é desastroso. Só produziu mais violência e criou territórios nos quais o ser humano passou a ser tratado indignamente. Por exemplo, a cracolândia, os presídios, as favelas nos morros cariocas, as ocupações de movimentos de luta por moradia. Nestes espaços, o Estado (ou forças parceiras dele) é solicitado a agir com desmesura, o tanto quanto estes territórios “anômicos” se encontram “fora da ordem”. A grande questão é: quem produziu estes “campos” apropriados para sofrer a intervenção são os que estão à frente da gestão da vida. Os que governam produzem os territórios que serão alvo da exceção.

    Se as hipóteses acima sobre os estados de exceção estiverem corretas poderíamos dizer que acontecimentos como a intervenção, o golpe de 2016, as chacinas nos presídios, a destruição dos direitos, entre outros, já vêm sendo gestados faz anos. A finalização destes eventos nas tragédias já conhecidas começou com a ampla produção de territórios próprios para a demanda de medidas “duras”. Mas isto não quer dizer que há um projeto político conservador em ação, ou que a ditadura não foi derrotada e permanece nas instituições do Estado. Não. Parece-me que são estratégias de governo, que funcionam em amplas redes, as quais se utilizam dos equipamentos estatais, mas também de formas de organização social e do cotidiano. Lá no bairro em que vivemos, no comércio, no transporte público. Nas várias localidades onde as relações sociais reproduzem os bloqueios de desejos outros que não os das ordens vigentes, onde se dilatam as técnicas racistas, machistas e genocidas.

    A caixa 623 tem nome, história, desejos. Dentro dela habitam os negros, as mulheres, os índios, os homoafetivos, o militante político, as subjetividades atípicas.

    Dimas Antônio Casemiro, presente. Hoje e sempre!

  • A revolta dos Tuiutis

     

    A revolta dos Tuiutis

    \”No “lamaçal” da política brasileira nos chamou a atenção a tamanha confluência de brasilidades. Também um acontecimento complexo. No momento em que parte da “revolta dos Tuiutis” surge por meio da alegria carnavalesca de oposição ao governo Temer e seus apoiadores marionetados, ocorre a intervenção da instituição da República cujo símbolo originário é justamente a batalha homônima que fez uso da vida matável dos negros. Está extinta a escravidão?\”

    Por Edson Teles

    originalmente publicado em: //www.peixe-eletrico.com/single-post/2018/02/23/A-revolta-dos-Tuiutis

    Antigo senso comum nacional, a ideia de que não se discutia futebol, briga de marido e mulher, política e, inclusive, carnaval caiu por terra completamente. Afinal, futebol é um dos assuntos mais debatidos. Discutir os temas políticos parece nunca ter estado em tamanha evidência. “Briga de marido e mulher” virou, por esforço da luta feminista, “violência contra a mulher”. E agora o carnaval. É claro que nas ruas os bloquinhos e os carnavalescos sempre “pularam” em cima das mazelas politizando a brincadeira mais nacional do brasileiro. Mesmo nas passarelas sempre houve a tentativa de desfiles críticos. Mas, neste ano, a escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti expôs o quanto as estratégias de governo levam para a consolidação das práticas dos Estados de exceção.

    Após o carnaval, quando as críticas do samba enredo perguntavam se “Está extinta a escravidão?”, o vampiro da Sapucaí decretou intervenção militar na segurança pública do estado do Rio de Janeiro. Acontecimento complexo. Aparece como outro golpe, desviando o foco em relação às dificuldades de aprovar a reforma da previdência, bem como pautando as próximas eleições presidenciais com o tema da segurança pública.

    Enxadrista político das artimanhas do jogo sujo de Brasília, Temer conseguiu agradar uma ampla variedade de segmentos conservadores e fortalecer as estratégias autoritárias. Foi como bolsomizar as eleições retirando do próprio candidato fascista o protagonismo da proposta de militarização da vida.

    A inserção militar no cotidiano das experimentações sociais e políticas vinha num crescente desde que a promulgação da Constituição, em 1988, pareceu ter consolidado um Estado de Direito. De fato, pouco nela se alterou nas temáticas da segurança pública e da segurança nacional. E nos governos posteriores, a cada grande evento ou problemas de como lidar com estruturas de segurança pública montadas para executar a repressão, e não a prevenção, foi aumentando o intervencionismo.

    Exemplo com características semelhantes à atual intervenção foi a “Operação Rio”, na qual governo do estado e Forças Armadas acertaram uma ação de “faxina na polícia do Rio”, como anunciava a manchete do jornal “O Globo”, de 2 de novembro de 1994. De forma semelhante, a operação foi denunciada como tramoia política para garantir a eleição, em segundo turno, de Marcelo Allencar, do PSDB, cuja vitória era importante para o futuro governo FHC, recém eleito em primeiro turno.

    Nos últimos anos tivemos a efetivação da GLO – instrumento jurídico de Garantia da Lei e da Ordem (regulamentado em 2001), da lei contra o terrorismo (março de 2016) e, recentemente, a lei que leva os crimes de militares contra civis para a a justiça militar (outubro de 2017). Isto se soma a uma série de estruturas autoritárias cujo monstrengo maior é a Lei de Segurança Nacional (LSN), criada pela ditadura e com última versão montada em 1983.

    Só a GLO já foi acionada 29 vezes entre 2010 e 2017. Destaque para intervenções como as das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora), mas com uso também contra manifestações políticas (agosto de 2016, em São Paulo; e, maio de 2017, em Brasília).

    A intervenção do governo ilegítimo, de quebra, ainda paralisou os trabalhos do Congresso Nacional, que aprovou sua própria capitulação com a ampla votação a favor do decreto. Não se pode votar emendas à Constituição enquanto durar o procedimento no Rio de Janeiro. Com isso, o governo se exime da incapacidade de aprovar a reforma da previdência e ainda coloca a espada no pescoço da sociedade ao avisar que suspenderá oficialmente (não na prática) a intervenção no caso de haver maioria para a votação.

    Assistindo e lendo as entrevistas de especialistas em segurança pública fica evidente o quanto inócuo será esta intervenção no sentido de obter resultados positivos para a questão da violência urbana. Por alguns meses, se utilizando de verbas federais e do maciço apoio da grande mídia, o governo e os vários setores “intervencionistas” se beneficiarão do evento. Ao menos até as eleições de 2018 o esquema será mantido, esfumaçando o golpe eleitoral construído com a provável cassação da candidatura Lula.

    Diante de uma sociedade racista, machista e genocida de sua juventude (quando negra e pobre), em meio a uma crise política, social e econômica, não se pode desconsiderar, a título de exemplo, o caráter de revolta dos inúmeros saques a supermercados e vendas em várias localidades do país, e nos últimos dias na cidade do Rio de Janeiro. É também para controlar a revolta social, a “revolta dos Tuiutis”, que se mobilizam as Forças Armadas.

    Mas quem são os “Tuiutis”? Façamos uma viagem em torno da palavra, seus significados e origens.

    Tuiuti é um pássaro sul-americano, um periquito verde com detalhes em azul. Em tupi-guarani significa “lamaçal” ou “barreira”. É também o nome de um morro em São Cristovão, Rio de Janeiro, habitado desde o começo do século XX por ex-escravos. Durante décadas foi uma região industrial da cidade e sobreviveu às várias remoções e despejos de favelas promovidos pelo poder público. Sedia a escola de samba Paraíso do Tuiuti.

    No século XIX, durante a Guerra do Paraguai, na qual a tríplice aliança Brasil-Argentina-Uruguai invadiu e derrotou o país que deu nome ao conflito, houve um momento crucial, cujo resultado determinou a vitória dos aliados. Foi a “Batalha de Tuiuti”, em 1866, assim conhecida por ter ocorrido nos pântanos ao redor do lago de mesmo nome, no interior do Paraguai. Teria sido a batalha com maior número de vítimas na história da América do Sul (alguns documentos falam em 10 mil ou mais mortos). Comandado pelo general Osório, cujo nome se encontra espalhado por nossas cidades em largos e praças, as forças imperiais consideraram este como o acontecimento fundador do Exército. Por décadas, especialmente a partir do golpe militar que proclamou a República em 1889, a batalha foi comemorada em praça pública e o dia em que ocorreu o conflito ficou marcado até a década de 1920 como o “dia do soldado”. Nunca é demais lembrar que boa parte dos “mortos em combate” eram escravos ou ex-escravos, que compunham a linha de frente das infantarias de ambos os lados.

    No “lamaçal” da política brasileira nos chamou a atenção a tamanha confluência de brasilidades. Também um acontecimento complexo. No momento em que parte da “revolta dos Tuiutis” surge por meio da alegria carnavalesca de oposição ao governo Temer e seus apoiadores marionetados, ocorre a intervenção da instituição da República cujo símbolo originário é justamente a batalha homônima que fez uso da vida matável dos negros.

    “Está extinta a escravidão?”

    A situação do indivíduo afro-brasileiro segue sofrendo com os projetos dos proprietários e das instituições garantidoras da atual ordem. Segundo o “Atlas da Violência” (Fórum Brasileiro de Segurança Pública e IPEA, 2016), um jovem negro ou pardo tem 147% mais chances de ser assassinado do que um branco ou amarelo. Em seu cotidiano, o país cordial e democrático tem três mulheres assassinadas por dia. E a maioria das vítimas é composta de mulheres negras (segundo pesquisa da Flacso, de 2015, entre 2003 e 2013 a morte violenta de mulheres negras aumentou 54%, enquanto a de mulheres brancas diminuiu 9,8% [“Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil”]).

    Os “Tuiutis”, me parece, são as subjetividades invisibilizadas, não anunciadas, as que sobrevivem aos racismos, machismos, etnocídios e outros preconceitos. E que diante destas formas de dominação continuamente resistem e produzem saberes da revolta. Presentes no cotidiano da experimentação social e política nacional, força de trabalho precarizada, habitante dos morros, das periferias. Sua “ausência” na elaboração da esfera pública autorizada não impede as movimentações, abaixo do lamaçal, de densas e profundas placas tectônicas de desejos bloqueados, os quais fervilham e se encontram sempre na iminência de uma ebulição.

  • Revolta dos exilados: Paris 8 ocupada!

     

    Desde o dia 30 de Janeiro, um prédio da Universidade Paris 8 está ocupado.

    Estudantes, imigrantes, refugiados permanecem no prédio denunciando a política migratória racista da França. O prédio agora também aloja migrantes que estavam dormindo nas ruas sem qualquer proteção ou auxílio.

    A página do movimento de ocupação dos exilados já foi bloqueada pelo Facebook. Os ocupantes se organizam para recolher alimentos e já preparam refeições todos os dias no prédio. No dia de hoje, 5 de fevereiro, a programação da ocupação anuncia uma discussão sobre universidade, racismo e solidariedade no contexto pós-colonial.

    50 anos depois do Maio de 68 francês, momento no qual a aliança entre universidade e fábrica potencializava o grito por liberdade e melhores condições de vida, a \”ocupação dos exilados\” reanima a possibilidade de resistência contra os avanços neoliberais e também tece novas alianças.

    São eles e elas que carregam no corpo as marcas de um renovado modo de dominação do capital em seu mais novo ciclo colonial e racista.  Todxs xs exiladxs, aqueles que circulam e não possuem o direito de permanecer, aqueles que são apagados dos pactos nacionais de cidadania, todos os precários, gente das cozinhas, os continuamente explorados nas sombras de um capitalismo que promete eficiência e liberdade mas entrega uma polícia cada vez mais poderosa, aqueles que denunciam a violência das fronteiras e de um padrão de acumulação que se alimenta do desespero e fragilidade. Os exilados escancaram um regime potencializado nos seus dispositivos de disciplina, um regime que  produz, continuamente, seu projeto de comunidade nacional sob os pilares do medo, do ódio ao outro, ódio à diferença.

    Reproduzimos aqui o manifesto da ocupação dos exilados:

     

     

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    Pessoas exiliadas ocupam Paris 8

     

    Ao povo francês, aos estudantes, às pessoas que dormem na rua, às pessoas solidarias, às pessoas torturadas pelo regulamento de Dublin*,

     

    Somos pessoas migrantes do mundo inteiro, dublinados/as, migrantes com o estatuto na rua.

    Nos recusaram o asilo, atravessamos o mar, somos menores e sem papeis. Ocupamos a Universidade Paris 8 no dia 30 de janeiro 2018. Porque fizemos esta ação ? Nos últimos meses a França deportou muitas pessoas. Muitos entre nós, se suicidaram.

    Há três meses um amigo dublinado, em depressão, se deitou nos cais do trem e foi atingido. Faz dez dias em Calais, a policia bateu e lançou gás contra alguns migrantes que dormiam na rua. Um jovem foi desfigurado por um tiro da policia. Um amigo que tinha um encontro na prefeitura, foi preso e colocado num centro administrativo de detenção, antes de ser deportado na Itália. A policia francesa com suas suas sirenes e gases, mas sem fé nem lei.

    O que o sistema da imigração francês espera de nós são impressões digitais, não a gente. O arbitrário e o aleatório fazem parte do nosso cotidiano, da l’OFPRA (gestão institucional dos/as migrantes), da corte nacional do direito de asilo e da prefeitura. Ao término das práticas administrativas e jurídicas, alguns/mas são recusados/as, dublinados/as, em prisão domiciliar, deportados mas sem nenhuma lógica.

     

    Reivindicamos :

     

    Documentos para todos/as

    Moradias decentes e sustentáveis 

    Poder aprender o francês e continuar os nossos estudos

    Fim  do dispositivo de avaliação dos estrangeiros 

    Fim imediato das deportações para os outros países, na Europa e em outros lugares

     

    Nós esperamos que as pessoas migrantes continuem lutando em toda parte na França contra a opressão e a injustiça e contra as práticas violentas da poliícia na rua.

    Ao povo francês : Vocês que fizeram a revolução que estudamos nos livros de historia, retomem-na !

    Agradecemos a população por todo o seu apoio. Ao contrario do que pretende o governo, ainda há solidariedade. A administração da universidade tem sido ambigua nas negociações: ora flexível, ora violenta. Algumas pessoas falam que vão oferecer outro lugar na universidade, outros ameaçam de maneira escondida e dizem que vão mandar a policia. Pedimos aos estudantes e aos professores de Paris 8 apoio às nossas reivindicações.

    Agradecemos e pedimos para permanecer conosco até o fim. Somos hoje a  luta dos estudantes sem documentos da Universidade Paris 8.

    Aos e às nossas/os amigas/os quem atravessam o mar

    Que se suicidaram Mortas/os pelas fronteiras

    No deserto

    Violentadas na Lybia

    Nós não vamos esquecer vocês!

    Os e as migrantes de Paris 8.

    * O regulamento de Dublin é responsável pela expulsão de migrantes nos arredores da Europa e os/as obriga a dormir nas ruas, sofrerem com o frio e com a violência policial.
    Nos próximos meses, o governo francês promulgará a lei \”Asilo e imigração\”. Com o pretexto de melhorar a recepção de uma pequena porcentagem de requerentes de asilo, esta lei ainda condena a maioria dos exilados à deportação, confinamento ou clandestinidade

     

     

     

  • Carta de um homem trans ao Antigo Regime sexual

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    Paul Preciado

    tradução: Tatiana Bustamante

    fonte foto: http://www.ellenjames.net/blog/interview-with-beto-preciado

     

    \”Senhoras e Senhores e outros,

    No meio do fogo cruzado acerca das políticas sobre assédio sexual, eu gostaria de me manifestar enquanto contrabandista entre dois mundos: o \’dos homens\’ e o \’das mulheres\’ (dois mundos que poderiam muito bem não existir, mas que alguns se empenham em manter separados por um tipo de muro de Berlim), para dar-lhe notícias a partir da posição de \’objeto encontrado\’, ou melhor, de \’sujeito perdido\’ durante a travessia.

    Não falo aqui como um homem que pertenceria à classe dominante, daqueles aos quais se atribui o gênero masculino no nascimento e que foram educados como membros da classe governante, àqueles a quem se concede o direito ou de quem se exige (e é uma chave interessante de análise) que exerça a soberania masculina. Tampouco falo como mulher, visto que eu, voluntariamente e intencionalmente, abandonei essa forma de encarnação política e social. Expresso-me aqui como um homem trans. Portanto não reivindico, de forma alguma, a representação em qualquer coletivo. Não falo nem posso falar como heterossexual, nem como homossexual, embora conheça e viva ambas as situações, uma vez que, quando alguém é trans, tais categorias tornam-se obsoletas. Falo como desertor de gênero, um fugitivo da sexualidade, um dissidente (às vezes desajeitado, já que desprovido de códigos pré-estabelecidos) do regime da diferença sexual.

    Como uma auto-cobaia da política sexual que experimenta, ainda não tematizada, viver de cada lado do muro e que, ao atravessá-lo diariamente, começa a cansar-se, senhoras e senhores, da rigidez recalcitrante de códigos e desejos que impõe o regime hetero-patriarcal.

    Deixe-me dizer-lhes, do outro lado do muro, que o quadro é muito pior do que a minha experiência como lésbica me permitiu imaginar. Desde que vivo como-se-eu-fosse-homem no mundo dos homens (consciente de encarnar uma ficção política) consegui verificar que a classe dominante (masculina e heterossexual) não abandonará seus privilégios por que enviamos muitos tweets ou demos alguns gritos. Desde os tumultos da revolução sexual e anti-colonial do século passado, os patriarcas heterodoxos embarcaram em um projeto de contra-reforma – ao qual agora se juntaram vozes \’femininas\’ que desejam continuar a ser \’importunadas /perturbadas\’. Esta será a Guerra dos Mil Anos – a mais longa, sabendo-se que afeta políticas e processos reprodutivos através dos quais um corpo humano constitui-se como sujeito soberano. De fato, será a mais importante das guerras, porque o que está em jogo não é nem o território nem a cidade, mas o corpo, o prazer e a vida.

     

    ROBOCOP E ALIEN
    O que caracteriza a posição dos homens em nossas sociedades tecnopatriarcais e heterocêntricas é que a soberania masculina se define pelo uso legítimo de técnicas de violência (contra mulheres, contra crianças, contra homens não-brancos, contra animais, contra o planeta como um todo). Poderíamos dizer, ao ler Weber com Butler, que a masculinidade é para a sociedade o que o estado é para a nação: o titular e o legítimo usuário da violência. Essa violência se expressa socialmente sob a forma de dominação, economicamente sob a forma de privilégio, sexualmente sob a forma de agressão e estupro. A soberania das mulheres, ao contrário, está ligada à sua capacidade de gerar. As mulheres são subjugadas sexual e socialmente. Somente as mães são soberanas. No âmbito desse regime, a masculinidade se define necropoliticamente (pelo direito dos homens de dar a morte), ao passo que a feminilidade se define biopoliticamente (pela obrigação das mulheres de dar a vida). Pode-se dizer que a heterossexualidade necropolítica é algo como a utopia da erotização do acoplamento entre Robocop e Alien, pensando que, com um pouco de sorte, um dos dois se satisfaça.

    A heterossexualidade não é apenas, como demonstra Wittig, um regime de governo: é também uma política do desejo. A especificidade do regime é encarnar um processo de sedução e dependência romântica entre agentes sexuais \”livres\”. As posições de Robocop e Alien não são escolhidas individualmente, nem são conscientes. A heterossexualidade necropolítica é uma prática de governo que não é imposta por aqueles que governam (os homens) às governadas (as mulheres), mas uma epistemologia que determina as respectivas definições e posições de homens e mulheres por meio de regulação interna. Esta prática de governo não toma a forma de lei, mas de uma norma não escrita, uma transação de gestos e códigos cujo efeito é o de estabelecer na prática da sexualidade uma divisão entre o que se pode e o que não se pode fazer. Esta forma de servidão sexual baseia-se em uma estética da sedução, uma estilização do desejo e uma dominação historicamente construída e codificada, erotizando a diferença de poder e perpetuando-a. Esta política de desejo é o que mantém vivo o antigo regime de sexo-gênero, apesar de todos os processos legais de democratização e empoderamento das mulheres. Este regime necropolítico heterossexual é tão degradante e destrutivo quanto foram a vassalagem e a escravidão na época do Iluminismo.

    É PRECISO MODIFICAR O DESEJO
    O processo de denúncia e visibilidade da violência que vivemos faz parte de uma revolução sexual inevitável e também lenta e sinuosa. O feminismo queer situou a transformação epistemológica como condição para a possibilidade de mudança social. Tratava-se de questionar a epistemologia binária e a naturalização dos gêneros, afirmando que existe uma multiplicidade irredutível de sexos, gêneros e sexualidades. Entendemos hoje que a transformação libidinal é tão importante quanto a transformação epistemológica: o desejo tem que ser modificado. É preciso aprender a desejar liberdade sexual.

    Faz anos que a cultura queer tem sido um laboratório de invenção de nova estética da sexualidades dissidentes, face a técnicas de subjetivação e aos desejos da heterossexualidade necropolitica hegemônica. Muitos de nós já abandonaram a estética da sexualidade Robocop-Alien há muito tempo. Aprendemos com as culturas butch-fem e BDSM, com Joan Nestle, Pat Califia e Gayle Rubin, com Annie Sprinkle e Beth Stephens, com Guillaume Dustan e Virginie Despentes, que a sexualidade é um teatro político em que desejo, não a anatomia, escreve o roteiro. É possível, dentro da ficção teatral da sexualidade, desejar lamber as solas dos sapatos, querer ser penetrado por cada abertura ou caçar o amante em um bosque como se fosse uma presa sexual. No entanto, dois elementos diferenciais separam a estética queer daquela da normalização hetero do antigo regime: o consentimento e a não-naturalização das posições sexuais. A equivalência dos corpos e a redistribuição do poder.

    ESTÉTICA DA HETEROSSEXUALIDADE
    Como um homem-trans, eu me desidentifico com a masculinidade dominante e sua definição necropolítica. O que é mais urgente não é defender o que nós somos (homens ou mulheres), mas rejeitá-lo, desidentificarmo-nos da coerção política que nos obriga a desejar o padrão e a reproduzi-lo. Nossa práxis política é desobedecer normas de gênero e sexualidade. Eu fui uma lésbica a maior parte da minha vida, e depois, trans nos últimos cinco anos, estou tão longe de sua estética da heterossexualidade como um monge budista levitando em Lhasa está do supermercado Carrefour. Sua estética do antigo regime sexual não me faz gozar. \’Importunar\’ alguém não me excita. Não me interessa escapar da minha miséria sexual pondo a mão na bunda de uma mulher no transporte público. Não sinto qualquer tipo de desejo pelo kitch erótico-sexual que vocês propõem: caras que se aproveitam da sua posição de poder para dar uma rapidinha e passar a mão em bundas. A estética grotesca e assassina da heterossexualidade necropolítica me enoja. Uma estética que renaturaliza diferenças sexuais e coloca homens na posição de agressores e mulheres na de vítimas (dolorosamente agradecidas ou felizmente incomodadas).\”

     

  • Ocupar, fazer funcionar e escapar: pensar com as mulheres sem-teto

    por Alana Moraes

    publicado na Revista DR em: http://www.revistadr.com.br/posts/ocupar-fazer-funcionar-e-escapar-pensar-com-as-mulheres-sem-teto

    As ocupações urbanas do MTST (movimento dos trabalhadores sem-teto) espalham-se hoje como rios insistentes nas brechas metropolitanas de São Paulo. Rios de crise, despejos, histórias de migrações, novos encontros. A nova ocupação em São Bernardo do Campo já reúne mais de 6 mil famílias. As barracas de lona traçam um novo desenho na paisagem urbana: vistos do alto, os pontos coloridos fazem linhas que quase sempre escapam de uma reta. O terreno vazio pertence à uma incorporadora e espera pacientemente, especulando, inventando valor. Ao lado, a fábrica da Scania. A mesma fábrica que, em 1978, era palco de uma grande greve de trabalhadores que mudaria a história do país – alguns dizem que foi o começo do fim da ditadura militar. Dois ciclos de luta, lado a lado, produzem a imagem perfeita de dois tempos históricos e suas aflições.

    Em 1978, a luta do chamado “novo sindicalismo” acontecia no coração da fábrica e ameaçava o ciclo de acumulação do capital bem ali na linha de montagem. Produzia um ruído que foi capaz de desestabilizar os consensos do regime militar e seus dispositivos autoritários. Em 2017, as ocupações urbanas nos apresentam essa cidade industrial despedaçada. O sonho da sociedade salarial mal havia começado. Tempos de “desmanche”, “reestruturação produtiva” o “trabalho perde a centralidade”, dizem alguns sociólogos. Mas que trabalho é esse que perde a centralidade?

    Em 1978, era o trabalho da produção que constituía-se como estratégico na luta contra o capital. Em 2017, as ocupações se erguem, no entanto, com o trabalho sempre invisível da reprodução da vida. Em 1978, era o capital produtivo dando as cartas. Em 2017 é o capital financeirizado, aquele que habita o vazio do terreno e que escapa para todas as dimensões da vida nos fazendo sujeitos endividados. Com a reestruturação da produção e os deslocamentos na relação capital-trabalho, a reprodução da vida nos parece hoje nosso campo de batalha, nossa última trincheira. Entre o capital financeirizado e o trabalho reprodutivo um novo campo de conflitualidade que se faz, muitas vezes, nos registros invisíveis do valor.

    A ocupação é o nosso começo de mundo e só é possível existir por conta daqueles trabalhos domésticos que sempre fizemos nas sombras: cozinhar, limpar, cuidar uns dos outros. O trabalho está aí, sempre esteve: não remunerado, exilado das zonas de importância da luta de classes. Mas não só isso.  Nas ocupações, é preciso também um constante esforço de produção de relações, manutenção de vínculos, fabricação de pertencimentos, escutas. “Na ocupação, pela primeira vez  me fizeram um bolo de aniversário”, me disse uma vez um homem quando conversávamos sobre sua vida. Quando não há mais nada: salário, emprego, hospitais públicos, o que fica somos nós, mulheres. O mundo da reprodução da vida é esse que vemos entre barracas e cozinhas coletivas. É o primeiro café feito na cozinha de lona que anuncia o momento de inauguração de uma nova ocupação: vemos a cozinha contra a propriedade privada.

    Ao contrário do que acontece no espaço doméstico, nas ocupações, a cozinha coletiva é um espaço de poder feminino: onde também circulam informações, reputações, onde se fortalecem as relações, onde é possível falar sobre o sofrimento ou sobre sexo ao mesmo tempo em que se faz o refogado do arroz. “Isso aqui me curou, antes era eu sozinha”, dizem muitas vezes as mulheres. A solidão das mulheres negras é ali também ocupada. São elas, quase sempre, as principais lideranças das ocupações. “Maria do ABC” é como é conhecida a Maria das Dores, uma das militantes da ocupação de São Bernardo. Mulher negra, forte, me disse uma vez: “Minha filha, o que tem que ter mesmo é coragem”.  Muitas mulheres se separam quando encontram-se muito envolvidas no cotidiano da ocupação: “ou a ocupação ou ele, foi o que ele me disse. Eu escolhi a ocupação”.

    Toda ocupação urbana cria uma poética da precariedade que longe de romantizar ou domesticar a pobreza afirma a possibilidade política de uma existência intrinsecamente relacional. Cuidar e relacionar. Produzir infraestruturas coletivas que funcionem para a manutenção da vida fora do espaço doméstico e suas obrigações. Espaços de cuidado das crianças, limpar, lavar – nas ocupações esses espaços constituem-se como parte  central da existência política do território, sem eles nada acontece.

    Frequentemente as lideranças das ocupações são também excelentes cozinheiras, as “Tias”. A cozinha é o lugar por excelência de um pensamento prático, experimental e é também o que move todo o trabalho coletivo necessário para a manutenção e construção dos barracões. Nos mutirões de trabalho, as pausas são sempre ao redor da cozinha, nas refeições compartilhadas, no bolo do final da tarde, nos cafés e as conversas que ali acontecem.  “Antes nada que a gente fazia tinha importância. Aqui tem, sabe?”, me conta Tia Angélica.  As cozinhas e também todos os espaços e momentos de cuidado em uma ocupação nos obrigam a pensar em uma dimensão fundamental da política: as tecnologias práticas de pertencimento. Cuidar das relações, estar implicado em obrigações cotidianas do viver junto.  As “Tias” das ocupações organizam assembleias, cozinham, se importam, ligam para aqueles e aquelas que se ausentam – aqui os novos parentescos criados por elas funcionam como idiomas de conexão.  “Eu sempre chegava mais tarde na ocupação, porque estava fazendo faculdade. Chegava na ocupação meia-noite e a cozinha já estava fechada, mas a Tia Cida deixava uma marmitinha pra mim e eu ficava muito emocionada com isso, nunca vou esquecer. É um amor que eu nunca vi”, contava Débora.

    A divisão sexual do trabalho se mantém mais ou menos definida nas ocupações.  “Os homens não podem ficar na cozinha, só atrapalham!”, dizem as mulheres. As tarefas masculinas tem a ver com a construção e manutenção dos espaços coletivos, com o funcionamento da água e da energia elétrica, com a segurança de todos. O capitalismo não inventou a divisão sexual do trabalho, mas o que fez o trabalho assalariado e a expropriação dos modos coletivos de reprodução da vida foi instaurar uma hierarquia definitiva entre trabalho pago (produtivo) e trabalho não pago (reprodutivo). Nas ocupações vemos operar a divisão sexual do trabalho, no entanto, todos os trabalhos não são pagos e funcionam a partir de outras dinâmicas que tem a ver com implicações, responsabilidades e prestígios. Nesse outro regime de organização da vida coletiva, o trabalho feminino aparece em toda sua importância. A cozinha é um espaço privilegiado de feitura de lideranças. A política e a vida encontram-se confundidas. “Aqui está o povo sem medo de lutar!” anuncia o canto coletivo. Sem medo porque experimenta a possibilidade de outra vida.

    Na fábrica, o trabalhador assalariado que produz mercadoria aparecia aos olhos da sociedade capitalista envolto em uma ilusão de que a “força de trabalho” estava sempre “pronta”. Nas ocupações, ao contrário, vivemos a experiência da feitura cotidiana de nós mesmos. Não só alimentação, limpeza, cuidados básicos mas é também nesse espaço em que se vive coletivamente a busca por problemas comuns que antes eram ilhados no espaço doméstico: sofrimentos, violência sexista, problemas com o álcool, desemprego. As relações vinculadas à reprodução da vida revelam de maneira brutal que a precariedade corpórea, quando expostas em um território político, nos obriga a pensar pela interdependência. Uma outra imagem: em uma ocupação da Zona Leste, a cozinha principal tem como paredes antigos quadros de organização de uma linha de montagem fabril que foram reaproveitados e transformados em matéria prima de construção. Dois registros de mundos, o da fábrica e o da ocupação que encontram na cozinha a referência mais constante dessa feitura coletiva.

    Trata-se de pensar, em nossa opinião, esses saberes e capacidades, os quais, segundo Raquel Gutiérrez, são fundamentais para a produção dos momentos mais visíveis do antagonismo social, as tramas que geram mundos. De um terreno baldio, emerge uma ecologia de práticas que pode fazer funcionar a vida em comum, restituir capacidades. \”Agora não tenho mais medo\” é uma frase que sempre ecoa nos relatos.

    O que as ocupações produzem, além de novas relações é uma zona de tempo livre. Não mais o tempo livre produzido pelo desemprego, pela incessante busca da sobrevivência, o tempo livre entre as virações que, de algum modo, é sempre um tempo livre suspenso pela angústia do fracasso, pela instabilidade. O tempo livre das ocupações é preenchido por atividades, engajamentos, festas, assembleias, conversas, fofocas – é um tempo livre mas que, no entanto, produz uma multiplicidade de sentidos que garantem a própria vida. Estar implicado em uma tarefa do cotidiano é tornar-se alguém que importa. “Na igreja a gente se acalma, conversa com Deus, mas aqui a gente pratica o tempo todo”

    Não é por acaso o fato de muitas lutas hoje no mundo assumirem a “forma-ocupação” como forma privilegiada de enfrentamento e resistência. O que se realiza nessa forma de luta é, entre outras coisas, a coletivização das formas de reprodução antes encerradas nos contornos da domesticidade: alimentação, limpeza, formas diversas de cuidados. É uma “forma” de luta que, do ponto de vista do repertório, desloca para o centro da coletividade a questão primordial da reprodução: como manter a vida possível? Trata-se mesmo, e assim observamos nas ocupações, de uma “domesticação” da política, na qual a mobilização coletiva só é possível a partir de uma linguagem doméstica da reprodução da vida e cuidado com as relações.

    Como gosta de lembrar o antropólogo David Graeber, a “maldição” da classe trabalhadora é “se importar demais” . Para ele, a “classe trabalhadora” nunca foi majoritariamente a classe operária fabril. A experiência de classe mais compartilhada no tempo é o cuidado. A classe trabalhadora é a “classe que cuida”, aquela que sempre se ocupou dos trabalhos de cuidados dos outros: alimentação, limpeza, cuidados com velhos e crianças, cuidados da saúde, segurança etc. No caso das mulheres, o “se importar” demais adquire, obviamente, uma dimensão muito mais constitutiva de experiência. As mulheres das ocupações são empregadas domésticas, faxineiras, diaristas, cuidadoras, cozinheiras. A classe que cuida é também aquela que nos interpela sobre a potência de pensar a política pela cozinha. Nos parece, portanto, incontornável do ponto de vista de qualquer análise sobre a nova configuração de classes na sociedade brasileira contemporânea compreender os modos de produção política, em todos os seus atravessamentos, desse sujeito que emerge em um dos maiores movimentos urbanos do Brasil de maneira definitiva: a mulher  negra, trabalhadora doméstica, periférica e evangélica. “Firme e forte que nem mulher do norte!”, como muitos dizem em forma de saudação nas ocupações.

    As ocupações nos mostram que se de fato há uma crise do emprego e do trabalho assalariado, por outro lado, existem já outros caminhos sendo experimentados. O trabalho da reprodução da vida, o trabalho não pago, os cuidados e toda uma ecologia de práticas que só podem funcionar na interdependência de novas relações, no trabalho constante de produzir implicações e pertencimentos. Essa outra politicidade, uma política no feminino, revela o problema da própria manutenção da vida, dos vínculos e dos cuidados como eixos centrais da mobilização e ação coletiva. Talvez a “forma perdida” da classe esteja, mais do que nunca, no trabalho da reprodução e na tarefa de tecer as relações que possam nos mover de forma mais eficaz.

  • Sobre “Arte em Fuga” de Joana Zatz Mussi

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    por Henrique Parra

    7 de dezembro de 2017.

    Participei por  videoconferência da banca de defesa de doutorado da Joana Zatz Mussi. O título da sua tese – Arte em Fuga. A banca foi composta pela orientadora Vera Pallamin e demais examinadores Celso Favareto, Silvia Viana, Pedro Cesarino. Transcrevi abaixo as notas da minha arguição. Muito em breve a tese estará disponível online, recomendo a leitura do trabalho da Joana!

    Quero agradecer ao convite da Joana Zatz e de sua orientadora Vera Pallamin para participar dessa banca, e pelo esforço organizacional para viabilizar a arguição à distância. Avisei a Joana que isso implicava em alguns riscos para a realização da banca, mas ela estava confiante de que tudo correria bem e seguimos com a proposta. Agora, ouvindo a Joana apresentar a tese e vendo os colegas ai do lado, apesar da distância, sinto-me muito próximo, ouvindo vocês de pertinho.

    Recebi e li a tese da Joana na versão digital. A versão impressa enviada pelo correio ficou retida na anfandega espanhola. O instituto de pesquisa onde estou trabalhando recebeu 4 notificações de urgência alertando sobre um material (não descrito) destinado a mim que fora retido no aeroporto. Como eu não tinha certeza do se tratava, nem tinha recebido qualquer informação de quem era o emissor do pacote (a anfandega nao dizia isso), achei melhor não ir buscar a encomenda e fiquei apenas com a leitura digital. Mas de volta ao Brasil quero sim a versão impressa da tese.

    É muito bom quando podemos acompanhar o desenvolvimento de um trabalho de pesquisa. Parcipei da banca do mestrado da Joana há alguns anos, e agora, vejo um novo trabalho que segue aprofundando e dando mais consistência para suas práticas e criações. Esta tese, neste sentido, delinea muito bem o próprio percurso da Joana.

    Sua forma de produção de conhecimento e seu prática como pesquisadora, artista e ativista estão muito bem sintonizadas. A redação da tese e estrutura escolhida destacam alguns elementos que atravessam todo seu percurso: a tensão entre arte-política, uma certa concepção de espaço e território, a centralidade do corpo e sua dimensão experiencial, a tensão entre instituição e o seu fora; as relações com a cidade.

    Esses elementos são abordados de uma perspectiva teórica bem específica. As escolhas da Joana inscrevem o seu trabalho numa rede de filiações teóricas e políticas, uma família não-sanguínea de autores: Foucault, Deleuze, Agamben, Lefefbre, Harvey, Comite Invisível, Rolnik, Lazaratto, Ranciére e agora Laval e Dardot, entre outros. São todos autores que, apesar de suas diferenças, proporcionam uma certa mirada sobre as dinâmicas de composição do social, sua estética e sua política, e cuja interpretação está implicada numa certa proposta de intervenção no mundo. Mas há tensões importante entre eles tambem.

    O trabalho da Joana (pesquisa, pratica artistica, ação politica) faz esse entrelaçamento de forma imanente, realizando na sua própria prática um pouco daquilo que esses autores também apontam como modo de conhecer e agir. Ela realiza um modo de conhecer através de uma pesquisa-situada, uma pesquisa-implicada (que significa um outro modo de relação entre aquele que investiga e o mundo) que envolve também uma articulação entre o processo de investigação e sua forma de visibilidade. Portanto, movemo-nos dentro de uma certa episteme e de uma certa comunidade de práticas.

    E este modo de conhecer mobiliza um vocabulário que atravessa toda a escrita da tese. São palavras-conceitos importantes: limiar, desvio, corpo, experiência, fabulação, imaginário, prática, minoritário, espaço, vulnerabilidade, local, comum, superfície, vida cotidiana…

    No atual contexto político que vivemos, esse trabalho procura criar um caminho alternativo à configuração hegemônica dos modos de se fazer política. As formas de produção de maioria, os mecanismos de pensamento identitário e de criação de oposições binárias, as formas de disputa macropolítica, são exatamente as dinâmicas que Joana procura evitar. O jogo que ela propõe (e sua rede de autores e de praticas a que ela está vinculada) é totalmente diverso. Este plano (ou superfície) em que a Joana se move tem outras preocupações.

    Ainda assim, estamos todos num mesmo planeta (ainda que dentro dele caibam muitos mundos, e essa possibilidade de existência diversa é inclusive parte da luta). Mas isso significa também que essa forma de ação política não está completamente isolada daqueles outras dimensões.

    Suas perguntas: como criar e sustentar outros modos de existência? como transformar os regimes de sensibilidade e percepção? como se relacionar com o instituído e abrir as brechas para o instituinte? Como provocar acontecimentos? Como criar situações insurrecionais? Como articular a existência cotidiana com a produção do novo?

    São todas grandes pesguntas, e sua tônica aponta sempre para o “como fazer”, ao invés do habitual “o que fazer?”. Criação de ações conjuntas, experimentando e acompanhando formas de produção de novos corpos coletivos, cuidando, provocando outras sensações e imaginações, Joana seleciona um conjunto de práticas “minoritárias”, ações de “desvio” que compõem uma ampla rede de situações micropolíticas. Como fazer proliferar e crescer essa rede? É outra pergunta que ela lança.

    Parece-me todavia, que já não podemos nos concentrar exclusivamente em um dos pólos da situação. Assim como já não é suficiente pensarmos em termos exclusivamente macropolíticos ou micropolíticos. Estamos vivendo um momento crítico que exige muita imaginação e ação prática experimental, e sobretudo uma capacidade de construir pontes, de pensarmos em termos de interdependencia, mais do que em independencia/autonomia, de ultrapassarmos os bloqueios colocados por uma certa concepção geográfica e de escala (microXmacro, localXglobal). Se podemos facilmente reconhecer o fracasso da política instituída e do modos atual de governo (sistemas da democracia representativa do estado-nação), também me parece importante reconhecer os limites das práticas alternativas que são experimentadas há pelo menos 30 anos. Só o chamado ciclo das lutas anticapitalistas ou alter-mundialistas do pós-Seatlle já tem quase 20 anos. E neste período muita coisa aconteceu. Em certo sentido, a sensação que tenho é de que houve uma aceleração e intensificação das crises (ambiental, política, subjetiva…) que há 20 anos já estavam em nosso horizonte.

    Por isso, a proposta de pensarmos e praticarmos uma mesopolítica, uma política do “meio” (par le millieu), uma política do “entre”, exige outras composições, outras imaginações e práticas que provoquem uma outra partilha do sensivel. O trabalho da Joana aponta algumas experiências, práticas, tecnologias de ação e organizaçao que podem ajudar a compor um repertório dessas outras formas de luta. Porém, esta dimensão “mesopolítica” do comum está mais nas entrelinhas do seu trabalho. Talvez, essa articulação que estou propondo seja apenas uma mudança na topografia selecionada pela Joana, pois de certa forma essas coisas já estão lá, mas também poderia ser um possível desdobramento do trabalho atual.

    Vou lançar agora duas questões, provocações para pensarmos juntos, a partir de alguns elementos do seu trabalho que ajudam a evidenciar essa tensão que estou falando. Selecionei 2 tensões onde vejo uma possibilidade de explorarmos outras composições através de uma política do “entre”:

     

    1. Tensão entre a dimensão da vida cotidiana e a dimensão do acontecimento.

    As práticas que vc realiza e investiga destacam os mecanismos de reprodução do “sistema” no interior da própria vida cotidiana. Por isso, a importancia dada à produção de outros modos de existência que promovam outros mundos possíveis.

    Você fala da arte (da arte-política) como esta prática capaz de “traduzir a própria vida cotidiana em forma de ação insurrecional”. A dimensão do “acontecimento”, nesta perspectiva, está ligada a uma certa imagem de “insurreição”. As citações que você utiliza do Comitê Invisível reforçam essa interpreção.

    Porém, quando se pensa numa política do cotidiano, o foco desloca-se do “extra-ordinário” para o “ordinário”, para o comum, para aquilo que ocorre na existência de todos, entre-todos, o aparentemente banal. Neste sentido, uma intervenção no âmbito desta política objetiva criar as condições e os meios de sustenção para uma outra condição de existência.

    O problema da insurreição é outro, o foco da ação está direcionado à produção de uma situação inesperada, insustentável. É ultrapassar um limiar.

    Portanto, não seria mais adequado interrogarmos esse imaginário insurrecional? Uma vez que ele parece dar sobrevida a uma certa “imagem do pensamento”, uma imagem de mudança social ou de revolução que acaba por inscrever essa prática política no tabuleiro que ela pretendia escapar?

    Diz o Comite Invisível: “não vão nos obrigar a governar”. Ou, como dizia o MPL, a revolta popular como tática.

    De uma duas, ou abandonamos essa imagem da insurreição/revolução para dar lugar a outras políticas, ou partimos da possibilidade desses momentos e, portanto, temos que levar isso a sério e assumir as suas consequências. Em suma, se aceitamos pensar na insurreição não podemos nos furtar de pensar nos nas forças que a produzem, e sobretudo, não podemos deixar de pensar no dia seguinte. Como vamos viver juntos? É outra pergunta que atravessa a tese.

    Ou, alternativamente, podemos sim abandonar essa imagem da insurreição e nos dedicamos à construção de uma política cujo foco estaria na produção de comunidades (não-identitárias), de suas instituições, das suas tecnologias, e dos meios de vida que dão suporte a um outro mundo comum, sem nos submeter àquela imagem de insurreição/revolução. Assim, como habitar os limiares?

    Como você pensa essas questões a partir dessas práticas que analisa?

     

    2. Tensão entre produção de subjetividade e a produção material.

    É um problema importante porque você articula produção simbólica, sensível, a fabulação, com a produção da cidade, com os corpos e com toda a materialidade que isso implica. O simbólico e o material não estão separados. A cultura e a técnica não está dissociadas; a natureza e a cultura não são instâncias separadas (essas composições são parte do referencial teórico que você adota).

    Pensemos na situação que você descreve sobre o teatro do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. É uma relato trágico. Ainda que eles tenham sido capazes de ressignificar e politizar o processo, de criar uma mobilização política que impulsionou uma nova forma de patrimonio imaterial no plano diretor da cidade, a força dos poderes instituídos foi/é muito violenta. Não se trata se pensar aquela situação como uma derrota. A luta deles provoca transformações importantes que continuam reverberando.

    Ao mesmo tempo, como não pensar na cidade que produzimos todos os dias? Pegando o exemplo do teatro, como pensar a resistência aos processos de gentrificação que nos ultrapassam, quando nós somos também partícipes das mutações desse território?

    Novamente, como pensar as condições de produção e sustentação do ambiente que abriga essas experiências políticas? Parece-me importante pensar (retomando a questão anterior), quais são as infraestruturas, as práticas, os protocolos que necessitamos para dar sustentação, resiliência aos modos de vida que desejamos propagar.

    Numa citação do Comitê Invisível eles falam sobre a política feita de ferro e cimento. Contra um muro o que pode ser feito? Eles respondem: destruí-lo ou pixá-lo. Convenhamos, são duas ações que provocam efeitos muito distintos no mundo.

    Em uma das falas de um entrevistado (Eugenio) do NBD, ele aponta os limites da forma público-estatal. O teatro tinha uma dimensão pública, mas isso não foi suficiente. Mas de repente, nos damos conta que o público-estatal, lá no fundo, coincidia com o privado-corporativo. E o teatro veio abaixo. E aí, ele fala da importância de pensarmos o teatro enquanto um comum.

    Nessa perspectiva, como voce imagina as técnicas, os procedimentos, as tecnologias de produção do comum? Pergunto isso, por que no caso do projeto de vocês com os secundaristas, sua análise foco mais na reflexão sobre os resultados do percurso, e menos nas práticas que foram desenvolvidos para tornar o projeto possível: quais os modos de escuta, os modos de interação e estar juntos; os modos de pertencimento…Mas como voce argumenta pela importância do processo, seria importante destacar como foi a relação com a instituição, com o MASP, como foi a relação com as escolas? Com os coletivos de estudantes? Quais os conflitos e as formas de resolução encontradas? Como você pensa que essas práticas analisadas relacionam-se com esta dupla articulação material-simbólica na produção de outros “dispositivos” capazes de dar sustentação a essas novas práticas? Acredito que as técnicas, os procedimentos, as soluções encontradas por vocês nesse percurso, são um repertório importante de tecnologias de pertencimento, de tecnologias de produção do comum, por isso, seria interessante descreve-las e torna-las mais visíveis.

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  • Apontamento sobre o encontro #OcupaPolítica

    por Rodrigo Nunes

    Alguns apontamentos sobre o encontro #OcupaPolítica, ocorrido no fim de semana passado em Belo Horizonte.

    Nossa conjuntura atual nos coloca entre um processo destituinte que não foi concluído e um processo constituinte que (ainda) não se abriu. Isso nos impõe uma urgência, um problema, uma dificuldade e um risco. A urgência é óbvia: se o governo Temer fez o que fez em tempo tão curto e tão turbulento, o que mais não se fará em quatro anos, com maiorias parlamentares ainda mais acachapantes, no nível federal e nos estados? É preciso construir uma presença legislativa capaz, no mínimo, de barrar maiores retrocessos e, se possível, de articular alguma coisa nova, distinta tanto da rapinagem atual quanto do neodesenvolvimentismo tacanho da segunda metade do ciclo petista. O problema é: como fazer isso, se não só a esquerda institucional colapsou, como não existe ainda uma energia social mobilizada na direção de constituir algo novo? A dificuldade, por sua vez, é que é impossível transformar a representação política desde dentro da própria representação; a representação é uma relação entre representantes e representados, e o único jeito de realmente mudar seu funcionamento (para além das várias reformas possíveis e necessárias) é se os representados são mais fortes que os representantes e são capazes de impor-se sobre eles. O risco, finalmente, é que essa energia social constituinte venha a ser mobilizada de cima para baixo, seja pela constituição de um novo pacto de centro-direita, seja por uma esquerda ou centro-esquerda preocupada menos com um projeto de transformação efetiva que com a simples ocupação de espaços no tabuleiro político existente.

    O Ocupa Política aponta uma possibilidade, ainda incipiente e talvez inevitavelmente transicional: a aposta em candidaturas que, ao invés de serem tentativas por parte de atores políticos já estabelecidos de capitalizar em cima do quadro descrito acima, são impulsionadas por forças sociais mobilizadas localmente em territórios ou em torno de temas e bases sociais pontuais (feminismos, diversidade sexual e de gênero, universidade pública, direitos indígenas, commons digitais etc.). Como tudo neste lusco-fusco em que estamos vivendo, a fórmula “renovação da política” já parece nascer velha, apropriada que ela é por “novos” (e “podemos”) que são apenas embalagens diferentes para mais do mesmo. Mas, no caso da aposta delineada em BH – experimentada hoje em experiências como as Muitas da capital mineira e a Bancada Ativista em São Paulo –, a “renovação” tem o potencial de ir bem além de uma simples troca de nomes ou rostos, porque incorpora uma lógica diferente de ocupação da política representativa.

    Esta lógica é diferente em pelo menos cinco sentidos. Primeiro, ela é coletiva: é a construção de mandatos a partir de bases mobilizadas que tentam manter uma máxima capacidade de “dirigir” os representantes desde baixo, impedindo que estes se autonomizem demais; trata-se, como confluências municipais espanholas como o Barcelona en Comú já o disseram, de uma tradução da ideia zapatista de “mandar obedecendo”. Segundo, ela é não-competitiva: ao invés de uma disputa em torno de cadeiras, ou da subordinação de todos os interesses ao imperativo de “construir o partido”, ela pensa em termos de visibilizar e fortalecer um campo político, transversal a diferentes candidaturas e partidos, que opere segundo essa mesma lógica. Isso faz com que, terceiro, sua relação com os partidos seja distinta. O vetor da relação não é de dentro para fora – as estruturas partidárias buscando bases para representar –, mas de fora para dentro: grupos organizados efetivamente “ocupando” o partido como veículo institucional, fazendo o seu próprio jogo sem subordiná-lo àquele das estruturas partidárias. Isso equivale a uma quebra de monopólio (ou, para usar uma metáfora computacional, uma “quebra de código”) da representação política; e acredito que este campo político como um todo deva assumir o compromisso levar esta lógica às últimas consequências, assumindo como pauta uma reforma da lei eleitoral que quebre o monopólio dos partidos de vez, possibilitando a existência de “candidaturas cidadãs”. Quarto, embora lide com pautas que identificamos como sendo “da esquerda”, ela está menos investida em falar uma língua ou corresponder a uma identidade já estabelecida do que seria “a esquerda” e mais preocupada com construir novos consensos sociais em torno destas pautas, o que supõe escuta e acolhimento a outras realidades (evangélicos, empreendedorismo popular, os medos e anseios das classes C e D que muitas vezes são capturadas pela direita etc.) Quinto, ela é (por falta de palavra melhor) “excêntrica”, no sentido literal de “fora do centro”: desde o princípio ela dá por entendido que renovar a representação política não é só mudar os representantes, mas modificar a própria lógica de quais pessoas podem aparecer como líderes ou representantes. Neste sentido, o encontro de Belo Horizonte foi impressionante, com presença e protagonismo massivo de mulheres, negros e negras, indígenas, moradoras e moradores de periferias, LGBTQ etc.

    Cada um destes pontos envolve perigos. A ênfase nos grupos subalternizados pode se transformar num fetiche que faz de um Outro o portador inconteste da verdade (o que se vê quando muitos seguem dando carta branca a um individuo por haver sido um grande líder operário). A abertura pode virar oportunismo e falta de nitidez de propósitos. A não-competitividade está sempre potencialmente ameaçada pelas demandas próprias à lógica eleitoral. A coletividade só se mantém se há uma base que permanece ativa, mobilizada e aberta à escuta da sociedade em geral. A relação com os partidos “hospedeiros”, finalmente, exige destes a capacidade de leitura da realidade, a inteligência e sensibilidade políticas de abrirem-se a esta outra lógica sem tentar fagocitá-la ou instrumentalizá-la: tentar transformar um jogo de ganha/ganha num de ganha/perde só pode acabar por criar uma situação em que todos saem perdendo. Exige também, por óbvio, a capacidade dos “ocupantes” de navegar a relação com os “hospedeiros” sem nem submeter-se à lógica destes, nem reproduzí-la em seus próprios grupos. Esta tensão entre duas lógicas não deixou de estar visível em alguns momentos do OcupaPolítica.

    A urgência da atual conjuntura justifica considerar que estes são perigos que vale a pena correr? Evidentemente, esta era a ideia de quem estava em Belo Horizonte. Mas o cálculo parece carregar, para além dessa consideração conjuntural, um reconhecimento desassombrado da natureza fundamentalmente conflitiva (portanto tensa e arriscada) da política. Como bem disse Gustavo, integrante da “gabinetona” das vereadoras Áurea Carolina e Cida Falabela em Belo Horizonte: “confluências não são dadas, confluências são esforço”.

    Em diferentes momentos do ano passado estive jogando com dois conceitos, “transbordamento” (http://bit.ly/2jTWtEl) e “promiscuidade virtuosa” (http://bit.ly/24vPAfe). “Transbordamento”, inspirado no “desbordamiento” de que se falava no 15M espanhol, nomeava quatro coisas: a tática possível num momento em que o ocaso das grandes organizações de massa coincidia com condições técnicas que possibilitam a núcleos organizativos relativamente pequenos produzir efeitos em grande escala (um “movimento de massa sem organizações de massa”); o fato de que ninguém é capaz de determinar estes efeitos por completo ou controlar os resultados que seguem dele; o fato de que parte desse descontrole está em conectar-se com pessoas e desejos que estão para além do gueto da identidade de esquerda, o que cria a possibilidade de superar identidades coletivas já constituídas e plasmar identidades novas (por exemplo, aquilo que os espanhóis chamaram de “cidadanismo”); e, finalmente, a aceitação disto como uma condição positiva a ser abraçada – a possibilidade de uma “política de código aberto”, que vai se transformando no próprio processo colaborativo que institui. Já “promiscuidade virtuosa”, que acabou virando piada e até grupo do Telegram entre amigos, referia-se a duas ideias distintas. Primeiro, a necessidade de construir consensos pontuais e identidades comuns com gente que não pertence a ou não seria automaticamente percebida como pertencendo ao campo “da esquerda”; de pensar em termos não de converter as pessoas à nossa identidade, mas de criar as condições para fazer avançar as pautas que consideramos fundamentais no interior de uma situação de heterogeneidade social e política. Segundo, a necessidade de construir um outro tipo de relação com os partidos e a representação em geral, partindo ao mesmo tempo da ideia fundamental de que a única maneira de assegurar o bom funcionamento desta relação é fazer com que os representantes dependam mais dos representados que vice-versa (ou, dito de outro, modo, que as lideranças sejam sempre relativamente frágeis frente a suas bases), e da constatação que uma das coisas que fez desandar a relação entre bases e lideranças na experiência petista foi a aposta por construir uma relação exclusiva com um só partido, um só conjunto de lideranças e, no limite, um único líder. A primeira ideia critica, portanto, a endogamia da esquerda, sua tendência a relacionar-se sempre para dentro ao invés de para fora; a segunda critica a monogamia na relação entre representados e representantes, que tende a fortalecer os últimos em detrimento dos primeiros. Em ambos os casos, a promiscuidade é dita “virtuosa” não só por ser uma virtude, mas por ser praticada às claras, de forma não-manipuladora e não-competitiva; por ser questão de virtù (flexibilidade e desenvoltura para aproveitar as oportunidades que se apresentam); e por ser o melhor antídoto contra o vício próprio a cada tipo de relação (o fechamento e a autorreferência identitária, no caso da endogamia; a dependência unilateral e o abuso de poder, no caso da monogamia).

    É evidente que transbordamento e promiscuidade virtuosa são lados da mesma moeda: a prática da promiscuidade tem por fim abrir os partidos e a esquerda em geral à lógica do transbordamento; para poder realizar-se, porém, ela depende que algo desta abertura já exista. A tensão entre duas lógicas diferentes aparece aqui como, mais que uma circunstância temporária a ser resolvida futuramente, uma questão de fundo. Embora ambas partam da ideia de uma composição heterogênea de forças políticas e sociais, a própria noção de partido contém a ideia de que, pelo menos virtualmente, todas as diferenças poderiam se resolver ao serem incluídas numa mesma organização; por definição, cada partido é, para si mesmo, o único, de onde sua exigência instintiva de exclusividade. Substituir a política monogâmica por uma outra, em que as relações são pensadas menos como compromissos eternos e mais como condicionadas pelo benefício mútuo (uma “política Tinder”?), implica abandonar de vez a ideia de uma homogeneidade a ser realizada no futuro e assumir a heterogeneidade como um dado inescapável. Isto significa deixar de pensar o problema da organização como se referindo à construção de uma organização capaz de tudo abarcar para pensá-la como sempre necessariamente envolvendo uma ecologia organizacional diversa na qual é preciso atuar.

    Mas qual vantagem haveria aí, então, para os partidos? Ora, em primeiro lugar, a de ver suas pautas avançarem na sociedade, mesmo que isso não venha necessariamente acompanhado da hegemonia do próprio partido. Mas sobretudo, segundo, a questão é que, nas atuais condições, abrir-se à possibilidade do transbordamento parece ser a única coisa capaz de devolver à esquerda a relevância e eficácia políticas perdidas. Pretender controlar ou hegemonizar o pouco que se tem equivale a condenar-se a continuar tendo muito pouco, certamente bem menos do que se precisa. É preciso assumir por completo o desafio de entrar na era daquilo que Jeremy Gilbert chamou de “política de plataforma” ( http://bit.ly/2uTvpLp) – da criação de estruturas e contextos de colaboração e concentração da atividade coletiva que (para adaptar uma formulação do Victor Marques) “possibilitam efeitos sem determinar resultados”.

    Esta ideia nos serve, concluindo, para uma observação (parcialmente) crítica. O que esta noção de plataforma sugere é que abertura e estrutura não são o oposto uma da outra, antes pelo contrário: a segunda pode funcionar como condição da primeira. No #OcupaPolítica, os debates que melhor funcionaram foram aqueles que tinham formatos mais estruturados. O destaque, neste sentido, ficou com a mesa “Pé na Porta”, na última noite, em que quatro debatedoras (Nilma Gomes, Sonia Guajajara, Antonio Martins e Tatiana Roque) tinham cinco minutos para responder a perguntas propostas pela mediadora (Áurea Carolina), e havia quatro cadeiras à disposição para que pessoas do público viessem fazer comentários ou réplicas por três minutos. Com este formato, era possível sentir que havia uma discussão que avançava e, se não necessariamente formava consensos, pelo menos tornava mais claros quais e onde estavam os dissensos. As rodas com formatos aparentemente mais “abertos” frequentemente acabaram falhando em produzir conversas de verdade; sem pretender responder perguntas ou definir problemas comuns, elas por vezes produziam a sensação de que as diferentes falas não se comunicavam entre si, e abriam espaço à lógica estéril da disputa de espaços e da demarcação de territórios. É preciso urgentemente repensar os formatos de organização de encontros para que eles efetivamente conduzam à elaboração de pontos comuns e problematizações feitas em conjunto. Isso passa necessariamente por conceder a quem organiza estes eventos a confiança e a autonomia para propor formatos que sejam ao mesmo tempo estruturados e abertos, orientados por questões claras e concretas e, assim, realmente abertos à possibilidade de testar hipóteses e formular respostas coletivamente.