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  • A repressão em seis eventos dessa semana

    (3/5/2017)

    Em apenas uma semana seis eventos gravíssimos aconteceram.

    Os eventos expressam a gravidade do momento em que vivemos no Brasil, talvez uma virada definitiva na conjuntura política. Combater essa avalanche autoritária, as arbitrariedades cometidas, o modo de atuação desse Estado violento e racista que se alimenta da legitimidade social punitivista precisa ser a prioridade de toda a esquerda e aqueles que estão na luta hoje.
    – Três companheiros trabalhadores sem-teto foram presos e continuam presos sem nenhuma prova por estarem se manifestando no dia da greve geral. Amanhã tem vigília denunciando essa arbitrariedade e também o caso do Rafael Braga que continua preso: https://www.facebook.com/events/156199361580725/

    – Ontem (2/5), companheiros refugiados palestinos e antifascistas foram presos porque estavam se defendendo de ataques fascistas e xenófobos produzidos por uma marcha contra imigrantes de um grupo chamado \”Direita São Paulo\” e que contou com todo o apoio da polícia, inclusive, para bater nos palestinos. Para entender mais o que é esse grupo: goo.gl/IYp0TL

    – Mateus Ferreira da Silva, o estudante de ciências sociais de Goiânia, continua internado por ter sido gravemente ferido por um policial militar durante uma manifestação. goo.gl/fOirDS

    – Uma adolescente na região metropolitana de MG foi baleada, na boca, atingida por uma bala de borracha em uma reintegração de posse ILEGAL de uma ocupação. goo.gl/BddH1T

    – O massacre contra indígenas e camponeses também está aumentando de forma preocupante. Uma emboscada armada por fazendeiros e com cumplicidade policial provocou um massacre contra indígenas no maranhão. De acordo com a Pastoral da Terra, 2016 bateu recorde de violência no campo, com 1.079 conflitos por terra, um aumento de 40% em relação ao ano anterior (que teve 771 casos): goo.gl/oTUnso

    – Uma CPI da Funai absurda, armada pela bancada ruralista, agora quer criminalizar lideranças indígenas e amigos antropólogos (Que JÁ estão sendo indiciados!) . O documento é dedicado a um bandeirante. goo.gl/AKyVJe

    Precisamos de redes mais integradas de resistência, muito apoio jurídico, coordenação nas redes, articulações internacionais, proteção para todos e todas que estão sendo criminalizadxs. Exceção é a regra.

    Precisamos estar fortes, atentas e organizadas.

  • Movimentos tradicionais, autonomistas e um novo ciclo de lutas no Brasil. Entrevista especial com Alana Moraes

    Publicado por: http://www.ihu.unisinos.br/567067-movimentos-tradicionais-autonomistas-e-um-novo-ciclo-de-lutas-no-brasil-entrevista-especial-com-alana-moraes

    Por: Patricia Fachin | 28 Abril 2017

    A crise petista transformou a esquerda em um “lugar de muita melancolia”, que produz uma “fixação” por “Bolsonaros”, ao invés de criar “afetos mais potentes para continuar caminhando, pensando novas possibilidades, criando brechas”, avalia a socióloga Alana Moraes na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ela, as tentativas de resposta à crise vêm “clamando por fórmulas que simplificam a questão”, seja no discurso que defende a “unidade das esquerdas”, no grito “Fora Temer” ou no discurso do “pacto pela estabilidade democrática”.

    Ao invés de procurar respostas simples e simplistas, defende, a esquerda precisa se perguntar “o que é ser de esquerda no Brasil hoje”. Ser esquerda, questiona, “é nos mobilizarmos para ter um candidato ‘viável’ para 2018? É nos afetarmos com a prisão dos muitos ‘Rafaéis Bragas’, com os massacres contra camponeses, indígenas, contra os pobres na periferia, contra as mulheres, que acontecem cotidianamente neste país? Construir redes mais eficazes contra a violência estatal? Esse é o momento de perseguirmos essas questões mais de fundo, de nos definirmos mesmo, em comum”. Antes de aderir a uma “unidade das esquerdas”, sugere, é preciso “pensarmos que esquerda somos e o que realmente queremos ser depois dessa experiência do ciclo petista”. E dispara: “2018 será uma consequência feliz ou infeliz do que conseguimos juntos produzir de respostas”.

    Na entrevista a seguir, a socióloga comenta a atuação dos movimentos sociais autonomistas no país e frisa que “a dificuldade de mobilização” que existe hoje “é fruto de uma escolha política do PT e de muitos outros setores ligados ao partido que foram completamente enfeitiçados pela disputa eleitoral, pelos jogos que estavam colocados para que o PT pudesse permanecer no poder, pelos pequenos poderes dos gabinetes”. Apesar disso, Alana aposta que a greve de hoje, organizada pela Central Única dos Trabalhadores – CUT e as Centrais Sindicais, será “uma mobilização histórica”.

    Além da mobilização organizada pelas Centrais, a socióloga menciona que “alguns processos interessantes estão também produzindo essa greve geral: coletivos que estão se reunindo na cidade para colar lambes de convocação como fez o Arrua em São Paulo; o próprio Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST fazendo assembleias em bairros na periferia de São Paulo para chamar as pessoas; os professores das escolas particulares enfrentando, muitas vezes, direções e pais conservadores e aderindo massivamente à greve; o movimento negro mobilizando e convocando para uma ala negra na marcha; os movimentos feministas também convocando bastante”.

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    Alana Moraes | Foto: Arquivo pessoal

    Alana Moraes é graduada em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestra em Sociologia e Antropologia pela mesma universidade, e atualmente cursa doutorado no Programa em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – Como você está avaliando o atual cenário político do ponto de vista das mobilizações sociais? O que tem sido significativo desse ponto de vista?

    Alana Moraes – É interessante porque o Brasil hoje vê desmoronar todo o arranjo institucional democrático representado pela Constituição de 1988, ao mesmo tempo em que a esquerda partidária e organizada também entra em uma crise profunda. Parece que agora vivemos em uma cidade de escombros, nada é muito reconhecível do ponto de vista das estruturas, mas alguns ainda acham que é possível reformar os edifícios, emendar os encanamentos, fiações. Eu sou daquelas que acham que temos que resgatar as coisas mais importantes, claro, mas é preciso não se ocupar muito com os escombros. Temos que construir uma nova cidade, viva, cheia de praças, para que a gente possa se encontrar e decidir juntos o que vai ser nosso projeto de emancipação.

    Tenho pensado muito numa frase do Marx em que ele diz que \”A situação desesperada da sociedade em que vivemos me enche de esperança\”. Penso que podemos e temos o dever de resgatar essa esperança. A esquerda hoje se tornou um lugar de muita melancolia: produzimos essa fixação com “Bolsonaros”, com nossas derrotas, mas precisamos de afetos mais potentes para continuar caminhando, pensando novas possibilidades, criando brechas. Por isso é importante estar conectado com as lutas que surgem hoje. A melancolia também é um efeito do neoliberalismo que nos paralisa, nos deixa doentes.

    Respostas à crise

    Muitos respondem a essa crise das esquerdas clamando por fórmulas que simplificam a questão: \”unidade das esquerdas\”, ou \”primeiramente fora Temer\”, \”pacto pela estabilidade democrática\”. É óbvio que a luta agora tem que ser no sentido de continuar denunciando o golpe e exigir o afastamento do governo ilegítimo, mas no fundo sabemos que o buraco é bem mais profundo. Temos um Estado racista que mata, encarcera, distribui desejo de punição. O Rafael Braga está preso porque carregava um Pinho Sol. Temos que nos perguntar o que é ser de esquerda no Brasil hoje. É nos mobilizarmos para ter um candidato \”viável\” para 2018? É nos afetarmos com a prisão dos muitos “Rafaéis Bragas”, com os massacres contra camponeses, indígenas, contra os pobres na periferia, contra as mulheres, que acontecem cotidianamente neste país? Construir redes mais eficazes contra a violência estatal? Esse é o momento de perseguirmos essas questões mais de fundo, de nos definirmos mesmo, em comum.

    Antes de “unidade das esquerdas”, sinto falta de pensarmos que esquerda somos e o que realmente queremos ser depois dessa experiência do ciclo petista. 2018 será uma consequência feliz ou infeliz do que conseguimos juntos produzir de respostas. Acho que precisamos abandonar a ilusão de que um novo programa de esquerda nascerá de uma ou duas reuniões com intelectuais ou dirigentes partidários. Penso que um programa, um plano de ação em comum, podem dar mais certo na medida em que conseguem produzir encontros, implicar pessoas vindas de lugares diferentes em práticas concretas.

    IHU On-Line – Alguns têm defendido – e até criticado – que o PT vem reconquistando sua hegemonia, inclusive de mobilização entre os setores de esquerda. Na sua avaliação, isso está acontecendo? Por quê?

    Alana Moraes – Acho que nem o PT acredita mais nessa hegemonia. Mas toda a dificuldade de mobilização que temos hoje, e o PT sabe bem disso, é fruto de uma escolha política do PT e de muitos outros setores ligados ao partido que foram completamente enfeitiçados pela disputa eleitoral, pelos jogos que estavam colocados para que o PT pudesse permanecer no poder, pelos pequenos poderes dos gabinetes.

    Esse não é só um problema do PT, é um problema da esquerda internacional. As apostas da social-democracia europeia hoje foram completamente absorvidas pelo sistema. A vida no neoliberalismo é insuportável. Nunca antes as pessoas estiveram tão medicalizadas e deprimidas, se sentem impotentes, não decidem nada das escolhas políticas que realmente afetam suas vidas. Óbvio que querem agora soluções mais radicais, que possam, de alguma forma, chacoalhar o sistema político. Não tem mágica aí: hoje os movimentos que mais mobilizam no Brasil, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST, conseguem fazer isso porque têm conexão com a prática, com o cotidiano das pessoas. O PT escolheu o caminho do Estado, da gestão e, é claro, muitas conquistas importantes surgem daí: a expansão das universidades, valorização do salário mínimo. Mas a experiência do PT no governo nos serve também para pensar sobre os limites de ocupar um Estado sem fazer da luta contra ele, contra essa forma atual de governamentalidade neoliberal que é uma camisa de força, uma máquina de moer tudo a serviço da financeirização e do processo contínuo de espoliação dos mais pobres.

    A esquerda que era oposição ao PT não parece pensar por outros caminhos também: ganhar eleições, construir mandatos, fazer políticas públicas. A receita é bem parecida. Precisamos de outras experiências de politização. Pensar e praticar o que seria modos de vida diferentes: redes de cooperação de trabalho que usem mais a tecnologia e a internet a favor dos mais pobres; novas redes de compartilhamento de cuidados; pensar com mais consistência a autoconstrução de moradias de qualidade contra a propriedade privada e os terrenos vazios para especulação; fortalecer as redes de midiativismo periférico que estão denunciando a violência policial, pensar sobre as disputas territoriais que nos façam ter mais controle de decisão sobre aspectos fundamentais da vida: as escolas, políticas de transporte, postos de saúde. Eu acredito que seja a partir dessas experimentações e da politização do cotidiano que vamos conseguir pensar um outro jeito de ser esquerda e de viver juntos. Isso não quer dizer que devemos abrir mão de disputar o que deveria ser público. As lutas hoje contra os desmontes dos direitos trabalhistas, a reforma da previdência são lutas incontornáveis. Mas uma esquerda que define seu sentido apenas pela disputa do Estado, desse Estado, é uma esquerda que está condenada ao definhamento.

    IHU On-Line – Qual é o impacto ou o legado de Junho de 2013 nos dias de hoje? Como os anseios expressos naquelas manifestações se manifestam ou repercutem ainda hoje?

    Alana Moraes – Os ecos de Junho estão aí quando nos deparamos com todo esse cenário de listas da Odebrecht, delações, acordos. Junho foi o grito ensurdecedor contra esse sistema. Ele começa com uma faísca simples, a indignação contra o aumento do transporte, mas foi a faísca suficiente para questionar toda a engrenagem. Junho sugeriu a possibilidade de radicalizar a luta contra o sistema que engoliu o próprio PT, mas naquele momento o PT quis se posicionar pela manutenção da ordem. Só que a \”ordem\”, demorando mais ou menos, estará sempre contra os de baixo. O PT e a esquerda de modo geral perderam a possibilidade de, com uma mobilização social histórica de 2013, fraturar e desmontar esse grande esquema de funcionamento da política no país. Outras forças se organizaram a partir desse vácuo e o \”Fora PT\” conseguiu responder aos anseios mais conservadores, mas, ao mesmo tempo, as mobilizações da direita tinham um perfil social e uma aparição política completamente diferente do que foi Junho. Junho pedia o fim da polícia militar, enquanto as manifestações da direita pediam mais polícia. A linha de corte é evidente.

    Agora estamos nos equilibrando num fio muito delicado: não podemos achar que a Lava Jato é, de fato, a solução para uma nova ordem democrática, isso é um erro gravíssimo. A Lava Jato expressa, justamente, o poder de outra casta, a do judiciário racista, a mesma que prende o Rafael, o único preso de 2013 hoje. Ao mesmo tempo, não podemos concordar com nenhum pacto de anistia de caixa 2 ou qualquer outro acordo que pretenda salvar esse sistema. Precisamos pensar outros caminhos, mas, enquanto isso, continuar nas ruas denunciando Temer, exigindo novas eleições. O golpe foi cruel porque ele desmonta, por dentro, tudo o que grande parte da esquerda brasileira construiu como estratégia: o pacto lulista, o nacional-desenvolvimentismo que se alimentava de propinas, o agronegócio, que além de destruir nossas florestas, de exterminar populações indígenas, terminaria votando pela família e por Deus contra o governo que mais o favoreceu. No fundo, a luta de classes prevalece, é o Martírio, filme impactante de Vincent Carelli, esse Brasil que permanece insubmisso, existindo pelas bordas.

    IHU On-Line – Muitos pesquisadores têm chamado a atenção para a mudança no modo de atuação dos movimentos sociais nos últimos anos, os quais já não seguem uma hierarquia e são mais difusos se comparados aos movimentos tradicionais. Nesse sentido, pode nos dar um panorama sobre o modo de atuação dos movimentos autonomistas nos dias de hoje? Que mudanças identifica entre antigos e novos movimentos, quem participa de movimentos sociais hoje, quais são as práticas desses movimentos e como eles se relacionam com a esfera pública?

    Alana Moraes – Gostando ou não dos governos petistas, ninguém diria que o Brasil de hoje é o mesmo de dezesseis anos atrás. As formas de pensar e fazer luta, de se organizar, também estão mudando, ainda que coexistindo com as tradicionais formas de representação, cada vez mais em crise, como os partidos e sindicatos. O próprio Movimento Passe Livre – MPL, aliás, passou por uma crise importante desde 2013, e os debates produzidos nessa crise por eles são bons debates para pensar os problemas desses caminhos mais autônomos também. É difícil definir o que são os movimentos autonomistas hoje, é uma constelação bastante diversa de pequenos grupos que vêm misturando debates sobre formas de organização mais horizontais com outros debates sobre concepção de luta revolucionária, sobre o papel da classe trabalhadora, formas de conscientização, trabalho de base, tática etc. Podem misturar, por exemplo, como influências de forma de organização o zapatismo, mas, do ponto de vista da relação com a classe trabalhadora, apostar em estratégias de \”proletarização\” de seus militantes, como os trotskistas faziam aqui na década de 1970 nas fábricas.

    Acho que vivemos em uma fase de experimentações políticas e isso é muito interessante, mas não gosto muito de saídas nostálgicas que fetichizam a classe trabalhadora ou que se colocam essa tarefa de \”conscientizar\” o outro, a \”classe\”. Acho que é a prática de uma vida coletiva em comum que pode criar pertencimentos e nisso acredito pouco nas receitas da ortodoxia marxista e muito nas práticas feministas.

    Coletivos

    Outra coisa que explode no Brasil hoje são os coletivos de negros e negras e os coletivos feministas. Isso representa uma mudança subjetiva avassaladora. Hoje não se faz mais um debate na esquerda ou na universidade só com homens ou um debate sobre periferia sem negros e negras, sem gente da periferia, não se pode mais fazer isso sem consequências. E aqui a esquerda tem caído em uma armadilha. Vejo muita gente, de autonomistas a leninistas, dizendo que as novas lutas negras e feministas estão \”dispersando\” a \”verdadeira luta de classes\”, que elas são \”cooptadas pelo sistema\”, são \”pós-modernas\”. Mas o que é a \”classe\” no Brasil? A classe é uma mulher negra que trabalha fora e dentro de casa cuidando de outros, mal paga. Não é possível falar do neoliberalismo hoje sem falar do encarceramento em massa de negros que ele produziu, sem falar do feminicídio que explode, sem falar de um modelo de exploração permanente do corpo e da vida das mulheres, que servem de colchão para toda crise econômica e social que o próprio sistema produz. Então, eu diria que nada é mais ameaçador para a ordem capitalista do que mulheres feministas e negros e negras que se organizam. Toda a concepção de trabalho, de valor, e até mesmo de quais as vidas merecem ser vividas no capitalismo é produzida com os pilares do patriarcado e do racismo.

    Existe uma desconfiança em relação à \”esfera pública\” generalizada. Entre aspas mesmo, porque sabemos hoje que ela não é democrática, pública, ou igualmente acessível a todos e todas. Talvez o que toda essa constelação de novos movimentos esteja produzindo, como ecologia política, seja novas possibilidades de radicalização democrática. Quando os secundaristas ocupam suas escolas, entre outras coisas, é para dizer que eles próprios devem poder decidir sobre suas vidas, sobre suas escolas, contra uma gestão autoritária e burocrática. A divisão existente em muitos partidos de esquerda, que separa dirigentes-formuladores de política daqueles que executam tarefas, essa divisão não faz o menor sentido para essa nova geração. Não podemos pensar uma nova institucionalidade que seja mais aberta, mais democrática, sem pensar as formas tradicionais de organização das esquerdas.

    IHU On-Line – Como a esquerda, em geral, reage diante desses movimentos difusos? Eles podem ser considerados como movimentos ligados à esquerda?

    Alana Moraes – Quando o chamado novo sindicalismo surgia nos anos 1970, 1980, fazendo grandes greves e depois durante toda a discussão de formar um novo partido da classe trabalhadora, o PCB, que era a \”esquerda tradicional\” da época, dizia que criar o PT seria um gesto inconsequente, que atrapalharia no processo da abertura democrática e que o verdadeiro partido da classe era o PCB. É muito curioso que agora muitos dirigentes do PT estejam falando a mesma coisa desses novos movimentos, coletivos, do próprio processo de mobilização de Junho de 2013. Eu acho que o binômio novo X velho talvez não nos ajude hoje, ainda mais nessa conjuntura de reação conservadora. Precisamos pensar juntos novas formas organizativas, e hoje eu não vejo nenhum partido de esquerda realmente aberto a isso.

    A esquerda cria um universo próprio, com um vocabulário próprio, é autorreferente; o marxismo, muitas vezes, é tristemente transformado em cartilhas. A derrota sofrida pelo PT no Brasil é uma derrota de toda a esquerda, e penso que se não estivermos suficientemente abertos para formas de organização mais porosas e democráticas, mais conectadas com os novos \”chãos de fábrica\”, escolas, universidades, agroecologia, ocupações urbanas, coletivos de arte, se o programa político não estiver fortemente vinculado com as lutas da vida real, com as possibilidades de construir espaços de resistência ao neoliberalismo, acho que vamos demorar ainda mais tempo para levantar da lona. Não tem atalhos.

    IHU On-Line – Que futuro vislumbra para os novos movimentos sociais? Que impacto eles podem ter no âmbito público, por exemplo?

    Alana Moraes – Acho que vivemos um novo ciclo de lutas. O MTST, os secundaristas das ocupações, os coletivos que discutem direito à cidade, os coletivos feministas, o novo movimento negro, os coletivos antiproibicionistas, a proliferação de coletivos periféricos, o midiativismo, os advogados ativistas, os movimentos de mães de vítimas de violência policial, os coletivos de arte que estão explorando outras linguagens e formas políticas, os hackers e aqueles que discutem hoje o problema da segurança na internet, de uma comunicação livre, de uma alimentação livre de veneno, enfim, acho todos esses compõem o que seria essa nova geração política.

    É claro que o sindicalismo mais tradicional combativo ainda é muito importante, mas hoje temos novos atores em cena e que colocam novas questões – nada nos autoriza a jogar fora as experiências passadas, assim como combater as novas experiências de luta. É uma ecologia política bem interessante e que fala muito sobre o novo Brasil. Com a crise da forma-partido enquanto forma de organização, o que precisamos pensar hoje é o que seriam os novos espaços de confluência para que essas experiências de resistência possam se encontrar mais; como podemos pensar mais ações conjuntas, nos fortalecer mutuamente, nos reconhecer e ir produzindo nossos vínculos porque eles não são imediatos, ao contrário, eles são fruto dos encontros, do trabalho de construção de novas comunidades políticas.

    No final dos anos 1990, começo dos 2000, tínhamos o Fórum Social Mundial que, com todos os limites, nos permitia pensar juntos e nos formar também coletivamente. É preciso retomar esse fio e pensar o que seria hoje esse espaço, quais seriam as novas questões e possibilidades de atuar juntos. Não podemos perder também a possibilidade de criar redes internacionais de resistência, nos conectar com aqueles e aquelas que estão pensando o esgotamento do modelo progressista na América Latina, por exemplo. A recente convocação para a greve de mulheres, a campanha feminista do “ni una menos”, nos interpelam também para pensar desse lugar das alianças internacionais.

    IHU On-Line – Outro ponto da sua pesquisa é o estudo das novas configurações da classe trabalhadora no Brasil. Em que consistem essas novas configurações, como e desde quando elas estão ocorrendo?

    Alana Moraes – A classe trabalhadora no Brasil sempre foi muito heterogênea. Essa classe que imaginamos, masculina e industrial, ainda que muito relevante, só existiu de forma significativa em São Paulo. Nos últimos 30 anos, a forma de acumulação de capital mudou muito, assim como o trabalho. Com o domínio crescente do capital financeiro, as formas especulativas tornam-se cada vez mais importantes. A classe de assalariados transforma-se agora em uma classe de endividados. A tradicional relação capital-trabalho que se dava em um espaço delimitado (empresas, fábricas etc.) perde importância na produção de riqueza, o setor de \”conhecimento\” torna-se o setor mais dinamizado do capital e a classe trabalhadora desloca-se majoritariamente para o chamado setor dos \”serviços\” e dos cuidados. Esse deslocamento é o que faz também com que muitas pessoas procurem outras formas de sobrevivência, como os pequenos negócios, as pequenas produções familiares, o trabalho dos \”bicos\”.

    Com essa nova espacialidade do trabalho, com o fim das grandes fábricas e espaços de produção, fica mais difícil a organização dos trabalhadores nos locais de trabalho. Como diz o geógrafo David Harvey, toda a cidade se transforma agora em uma grande fábrica. Ainda temos um grande setor da classe trabalhadora que se relaciona com o desemprego constantemente. Junta toda essa fragilidade com uma vida impossível nas nossas cidades, com o déficit habitacional, o aumento dos aluguéis pela dinâmica da especulação imobiliária.

    A pergunta que ainda não sabemos responder é: se o sindicalismo correspondia, enquanto forma organizativa, a uma classe trabalhadora do começo do século XX, quais as formas possíveis de auto-organização da classe do começo do século XXI? A esquerda precisa pensar se a figura clássica do \”trabalhador\” pode ainda mobilizar essas novas subjetividades que emergem desde as dinâmicas neoliberais (e suas resistências cotidianas!) ou se a produção de identidades coletivas migrou também para outros lugares.

    É uma pergunta. Não sabemos bem, mas não podemos deixar de pensar nela e não podemos mais alimentar a nostalgia fordista querendo que as fábricas voltem para que nos situemos. A classe trabalhadora mudou radicalmente e pode não construir tanta identidade assim com o trabalho (já que os trabalhos \”que restam\” são trabalhos extremamente precários, extenuantes, pesados), mas com outras dimensões da vida, e por isso a igreja evangélica tem um papel fundamental. O combate ao neoliberalismo também passa por recriarmos formas de convivência, por exemplo, que produzam outras formas de solidariedade e cooperação, novos modos de existência.

    IHU On-Line – Sua pesquisa de doutorado trata sobre a produção da vida em comum e os caminhos da politização do cotidiano entre os sem-teto na periferia de São Paulo. Como a pesquisa está sendo desenvolvida?

    Alana Moraes – A minha pesquisa parte de uma pergunta simples, mas que hoje transformou-se quase em um não-problema para a esquerda e para a própria universidade: como se vive junto? Como é possível produzir uma vida em comum, um espaço compartilhado, pertencimentos coletivos em um mundo neoliberal marcado pelos processos constantes de esgarçamento dos tecidos sociais, pela transformação do mundo do trabalho, pela crise urbana?

    Na minha opinião, o MTST é um movimento incontornável para entender o Brasil de hoje. Ainda que seja um movimento de quase 20 anos, o MTST explode e emerge na cena política com mais protagonismo em Junho de 2013. Portanto, é também fruto de 2013, de algum modo. As ocupações de sem-teto nas periferias de São Paulo são um grande laboratório de produção da vida coletiva. Pensar a alimentação, cozinhas coletivas, como fazer as mediações de conflitos de todo o tipo, a limpeza, as inseguranças de falar em assembleia, o desemprego, separações conjugais, a relação com as crianças, com a fé.

    Na ocupação do Capão Redondo, fizemos uma rádio comunitária e temos também um cursinho popular para jovens, um salão de beleza autogerido, um bazar de roupas usadas. Construímos parede por parede, fiação por fiação. É um mundo extremamente feminino também. São as mulheres que cuidam das relações, as \”tias\” que, de alguma forma, também fazem novos parentescos, \”o movimento tem que entrar no sangue\”, como elas dizem. Na semana passada, fizemos uma roda de conversa só com mulheres sobre trabalho produtivo e reprodutivo na ocupação. Eram mais de 100 mulheres no barracão, e na hora da apresentação quase 90% das mulheres ali ou se apresentou como \”desempregada, do lar\”, ou \”faxineira\”, \”diarista\”, \”cuidadora\”, \”babá\”. Duas mulheres trans, em condição de prostituição, que trabalham à noite, também participaram da atividade. Fiquei pensando que se fosse uma reunião feminista na USP, teria um monte de tensão, mas ali no Capão, evangélicas, prostitutas, mulheres que cuidam, produziram um espaço incrível de formação coletiva e de convívio possível, pensando, por exemplo, o que fazemos com nosso escasso tempo livre. É muito importante pensar o tempo livre. As mulheres praticamente não têm esse tempo: estão sempre trabalhando, cuidando de tudo.

    Minha pesquisa segue os problemas colocados nessa feitura cotidiana das possibilidades coletivas, das práticas compartilhadas de trabalho e cuidados – elas são bem anteriores às cenas que costumamos ver como propriamente \”políticas\”: as manifestações, os embates públicos. Muitas pessoas chegam nas ocupações extremamente fragilizadas, quadros graves de depressão, ansiedades, insônias crônicas, alcoolismo. No entanto, a vida coletiva cura e estou muito interessada nisso também, em como podemos nos curar coletivamente. Eu me esforço muito para não elaborar um conhecimento sobre os sem-teto, mas um conhecimento com eles e elas, com a relação que estabelecemos nas tarefas e afetos de todos os dias. Nossas práticas de ciência precisam também estar situadas e posicionadas politicamente. Não é mais possível, nem desejável, produzir uma política ou um conhecimento de vanguarda, afastado dessas questões que só acontecem quando estamos implicados com algo, com relações, com uma causa coletiva. É um aprendizado de pensar a partir da demanda que a luta nos coloca.

    IHU On-Line – Qual é a expectativa para a greve geral anunciada para esta sexta-feira? Sendo a greve promovida pela CUT e pelas Centrais Sindicais, qual é a expectativa de adesão da população?

    Alana Moraes – Eu acho que vai ser uma mobilização histórica. Para mim, é um exemplo de como o processo prático de construção coletiva pode nos levar para lugares mais interessantes, podemos falar com mais gente. Alguns processos interessantes estão também produzindo essa greve geral: coletivos que estão se reunindo na cidade para colar lambes de convocação como fez o Arrua em São Paulo; o próprio MTST fazendo assembleias em bairros na periferia de São Paulo para chamar as pessoas; os professores das escolas particulares enfrentando, muitas vezes, direções e pais conservadores e aderindo massivamente à greve; o movimento negro mobilizando e convocando para uma ala negra na marcha; os movimentos feministas também convocando bastante.

    Por isso é importante que as estruturas sindicais repensem também o uso dos grandes carros de som que quase sempre impõem uma hierarquia muito grande nos atos e abafam qualquer possibilidade de outras expressões, impedem até que as pessoas conversem. Penso que nossas possibilidades de resistência estão muito vinculadas com a produção de outras espacialidades políticas também, espaços que permitam mais o encontro, que falem para mais gente e que permitam (e distribuam!) mais a própria condição da fala.

  • Da revolução feminista e o problema do comum Bruxas de todos os mundos: distribuí-vos!

    Alana Moraes*

    Como narrar um mundo no qual nós, mulheres, fomos continuamente exiladas, expulsas, condenadas? A história é, sobretudo, o terreno dos vencedores – e a metáfora uma arma de neutralizar o acontecimento. Buscamos por isso a matéria prima da fala, pausas, gestos, silêncios, o grito. Somos o fim da possibilidade interpretativa e sua autoridade significadora. É assim que contamos nossas histórias. É do mangue, da espessura anônima que recebe tudo que morre e tudo que nasce. É da rua sem saída, das encruzilhadas, das cozinhas abafadas e dos segredos que fabricamos nossa poética e nossas alianças. \”Gostariam de acreditar que eu fui derretida no caldeirão. Mas não fui, nós não fomos\”, diz Gloria Anzaldúa. 

    Talvez seja necessária uma ruptura com a própria linguagem – a língua do opressor. Porque é urgente destruir o sentido metafórico em nome do qual, durante séculos, a história das bruxas foi congelada. Nossas falas são herdeiras daqueles e daquelas que fizeram da língua um lugar corporificado – em feitiçaria as palavras funcionam como matéria. Elas vibram como flechas: circulam, atingem, transformam, fazem pegar. A palavra desautorizada que age no mundo provocando temor aos altares do discurso oficial: da medicina aos governos, dos velhos aos novos hospícios, do casamento à solidão das mulheres (em situação de) prostitutas.

    Evocar todas as bruxas para contar uma história sobre o fim do mundo – quantas vezes já assistimos essa história? Escovar a história à contrapelo. Uma poética benjaminiana da redenção dos vencidos – das vencidas! – como única possibilidade de futuro. Não é inteiramente verdade que as bruxas foram mortas e caçadas em nome de um “obscurantismo religioso”. Não! Elas foram queimadas também em nome de um futuro. Um futuro fabril, assalariado, masculino e moderno. Um futuro cromado, veloz e imponente. Um futuro desenhado entre grossas e protegidas paredes anunciado por vozes militares e pálidas, futuro neurótico cheio de medo do mundo.

    Stengers, bruxa belga, diz que “os verdadeiros herdeiros dos caçadores que queimaram as bruxas , são as ciências humanas que transformaram esse mundo em não-acontecimento:  um mundo de pobres velhas – dizem eles – era apenas uma questão de superstição.”

    Em Caliban e a Bruxa, Silvia Federici, bruxa italiana, nos oferece um tratado de rendenção. Contar a história do surgimento do capitalismo como a história de uma guerra contra as mulheres.

    Nossa pergunta ecoa e persegue os labirintos dos séculos: Por que um dos maiores massacres da história – aquele cometido pela igreja, pela intelectualidade da época, pela nascente burocracia estatal, pelas elites econômicas – um massacre que exterminou, perseguiu, torturou milhares de mulheres – por que essa história de uma violência originária foi apagada século após século? Por que a história desse massacre foi pacificada em fábulas, transformou-se em folclore, fez com que gritos de liberdade se transformassem em canções de ninar? Nós sabemos.

    Conectar o pré-capitalismo com o pós-capitalismo em um sobrevoo trans-histórico – nem tão baixo que nos possa enganar a visão, nem tão alto que possa nos embriagar na vertigem de uma história transcendente, essa que se proclama a ciência histórica que tudo vê com os olhos de deus. O vôo das bruxas, ao contrário, é sempre um vôo entre camadas, polinizador. Voar pelos interstícios. Fertilizar. Somos herdeiras dos deslocamentos, da lua cheia, das tecnologias fúngicas, pensando com Tsing (2015), contra o ideal tão arraigado de domesticação da monocultura, “pelo menos o da domesticação de mulheres e de plantas” (Tsing, 2015:180).

    Recuperar o início da história do capitalismo para não esquecer que a “caça às bruxas” atingiu seu ápice na Europa entre os séculos XVI e XVII, ou seja, em uma época na qual as relações feudais já estavam dando lugar às instituições econômicas e políticas típicas do capitalismo mercantil.

    Para não esquecer que a caça às bruxas, antes de se disseminar como uma guerra acusatória contra as mulheres, foi organizada por um aparato administrativo oficial. Política de Estado – com todas as letras maiúsculas. O Estado foi feito a partir desses escombros de destruição de uma vida em comum e incorporou em sua burocracia as imagens dos nossos pesadelos: um grande pai, o protetor, o juíz, o caçador, encarcerador, o dirigente.

    A “caça às bruxas” foi o modo pelo qual as mulheres foram expropriadas de seus próprios corpos, controle reprodutivo e da vida comunitária. Nas propriedades coletivas, típicas do modo de produção feudal, ainda que a divisão sexual do trabalho existisse, não havia, entretanto uma hierarquização radical entre os trabalhos. Foi preciso o trabalho assalariado – aquele que se dava fora do espaço coletivo – para que a hierarquia se instaurasse. Expropriadas da possibilidade da produção comunal, excluídas do trabalho assalariado, as mulheres foram aos poucos sendo empurradas ao espaço doméstico e ao trabalho inesgotável e não pago da reprodução da vida e da nova \”força de trabalho\”. Uma verdadeira fábrica social capaz de produzir a mão de obra e reproduzi-la cotidianamente. Diria Silvia que a ameaça da fogueira ergueu barreiras mais formidáveis ao redor dos corpos das mulheres do que aquelas levantadas quando as terras comunais foram cercadas.

    “Marx nunca poderia ter suposto que o capitalismo preparava o caminho para a libertação humana se tivesse olhado sua história do ponto de vista das mulheres”.

    A acumulação primitiva não é um momento originário, como pensava Marx, mas a forma pela qual o capitalismo administra suas próprias crises de tempos em tempos: expropriação massiva de trabalhadores agrícolas e camponeses, encarceramento em massa, a escalda da violência e perseguição contra as mulheres, novas diásporas de trabalhadores migrantes e em consequência movimentos de perseguição a esses trabalhadores. A escalada do feminicídio como expressão do esgarçamento contínuos do tecido social – o ódio dos caçadores nunca nos abandonou. A violência doméstica quase sempre começa com uma punição pelo não cumprimento de um trabalho doméstico – e o feminicidio é uma comunicação da soberania masculina pela morte de um corpo não domesticado, uma língua envenenada. O estado que destrói nossas possibilidades associativas e práticas hermanadas é o mesmo que nos promete justiça. Não acreditamos. O capitalismo é uma guerra perpétua às mulheres.

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    O pacto fundador do capitalismo moderno é a guerra contra as mulheres na Europa, a guerra contra os povos indígenas e depois a escravidão negra nas colônias. Guerra também epistemológica – porque foram modos de pensar o mundo, modos de pensar pela interdependência, pelo prazer que foram sistematicamente apagados e lançados nesse abismo inelegível da “superstição”. Guerra ontológica porque precisou destruir modos de existência.

    Nos julgamentos por bruxaria, a “má reputação” era prova da culpa. A bruxa era também a mulher desobediente que “respondia”, discutia, insultava e não chorava sob tortura. No entanto, ainda pixamos em algum muro de Hanói ou Cochabamba: “Somos mais do que hereges, somos pagãs!”.

    É preciso não esquecer também do papel da nova moldura familiar: complemento do mercado, instrumento da privatização das relações sociais e, sobretudo, da propagação
    da disciplina capitalista e da dominação patriarcal, a família surgiu no período de acumulação primitiva também como a instituição mais importante para a apropriação e ocultamento do trabalho das mulheres. Apagamento dos nossos corpos, criações e autonomia. Um novo regime de regulação doméstica e patriarcal do trabalho.

    Hereges do novo mundo moderno. Hereges do regime assalariado. O capitalismo não seria possível sem esses dois cercamentos fundamentais: o das terras e da possibilidade comunal por um lado, e por outro, o cercamento dos nossos corpos e a transformação deles em um terreno inesgotável de apropriação de trabalho. Hereges do futuro.

    Elaboramos em todo esse tempo um idioma de protesto corporal contra a disciplina do trabalho. Em São Caetano do Sul, no subúrbio da cidade de São Paulo, fez-se o aparecimento do demônio para várias operárias de uma nova seção onde se fazia a escolha, classificação e encaixotamento de ladrilhos na Cerâmica São Caetano S.A. Durante vários e sucessivos dias, no ano de 1956, mulheres desmaiaram no chão de fábrica depois de verem demônios espreitando.

    Final dos anos oitenta nas fábricas de eletrônicos da Malásia, centenas de mulheres são possuídas por demônios e desmaiam constantemente na linha de produção.

    Somos mais do que o chão da fábrica poderia suportar.

    É preciso por isso saber herdar a experiência das bruxas, saber evocá-las para pensar também uma outra política – uma política do meio, como nos sugere Stengers – que não seja apenas obcecada pela micropolítica, mas também que não se perca nos caminhos inférteis da macropolítica – essa que faz, muitas vezes, o trabalho do capitalismo: descuidar dos vínculos, das pequenas alianças, das constituições dos nós. Reapropriação dos meios de reprodução.

    Uma “política do meio” é uma politica extremamente pragmática. As bruxas são extremamente pragmáticas. Verdadeiras técnicas da experimentação. Nossas perguntas devem ser:  “como as relações funcionam?”,  “de que materiais são feitos os vínculos?”. Conhecer o terreno, entender suas propriedades, desestabilizar continuamente as fronteiras que separam o corpo da terra, o trabalho da vida – as bruxas foram representadas voando em suas vassouras porque sempre desprezaram as fronteiras.

    Esse saber de terreno, pragmático, nos faz pensar as feituras cotidianas desse mundo materialmente sempre provisório e que só́ pode ser sustentado por uma prática constante de produção de relações. 

    O que as bruxas possuíam – e ainda possuem –  é uma poderosa tecnologia de pertencimento. Hay que mezclarse entre diferentes! Como nos diz a bruxa boliviana Maria
    Galindo: entrar juntas e assaltar às mesas desordenando tudo. A comunidade também pode ser um lugar privilegiado da reprodução patriarcal, como ela mesmo nos conta sobre o Bem Viver. Por isso, n
    os resta produzir as alianças insólitas, as alianças proibidas entre putas, lésbicas, indígenas. Uma co-mu-na-li-da-de radical feita de implicações e diferença. Tornar-se capaz de fazer e pensar porque se pertence a algo. Não é possível ser livre sozinhas, sabemos. Por isso precisamos de círculos, rituais de experimentação do viver juntas. Precisamos reativar o corpo e a festa.

    Evocar também as mulheres que foram às guerras. As bruxas soviéticas que estiveram na linha de frente para nos contar que a guerra não tem rosto de mulher – “somos gente da comunhão”, nos lembra Svetlana, bruxa ucraniana,  falando entre os escombros femininos da guerra contra o nazismo. Evocar Rosa Luxemburgo, Bruxa comunista, profanadora da política com o “p” maiúsculo – aquela que também lutou contra as cercas do Partido, da nação, contra a guerra e suas honras masculinas. Por um comunismo-feiticeiro!

    As bruxas curdas e a produção de um novo confederalismo ecológico;

    A bruxa negra Ângela Davis, a mulher mais perigosa do mundo – diria a nação com o maior poder bélico desse mesmo mundo – lutando também contra as cercas das prisões, nossa nova escravidão.

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    As bruxas zapatistas e a produção cotidiana do entramado comunitário; O primeiro levante zapatista, em março de 1993, foi liderado pelas mulheres.

    A bruxa Louise Michel, sobrevivente da Comuna de Paris, deportada para a Nova Caledônia, lá onde conheceu o povo Kanak e se indigenizou.

    As bruxas, milhares, de bruxas-sem-teto e suas cozinhas coletivas, o compartilhar dos cuidados, os modos de produção da vida são «princípios operativos» :  o poder está nas infra-estruturas! “Os homens só sabem dar opinião”, elas dizem. O poder está na cozinha e sua política de experimentação.

    Evocar as novas bruxas-secundaristas, tomando de assalto suas escolas, corpos, cabelos e sexo contra o Estado.

    A socialidade nos excede. O perigo do saber das bruxas vem dessa tecnologia poderosa de produzir relações, fazer funcionar, pensar com o mundo vivo para além do Estado. “tramas que geram mundos” – como diz Raquel Gutierrez, bruxa mexicana.

    “O mais anti-capitalista dos protestos é cuidar de alguém e cuidar de si. Levar a sério a prática feminilizada e historicamente invisibilizada de cuidar, alimentar, receber. Levar a sério a vulnerabilidade, a fragilidade, a precariedade de cada um e dar apoio, honrar, fortalecer. Proteger uns aos outros, fazer e praticar comunidade. Um parentesco radical, uma socialidade da interdependência, uma política do cuidado “, nos diz Hedva, Bruxa norte-coreana.

    O capitalismo precisou destruir a feitiçaria para perpetuar seu projeto de modernidade. “Elas creem, nós sabemos” – é o que eles dizem. Mas o capitalismo é, ele próprio, um sistema de feitiçaria sem feiticeiros, para terminar com essa imagem nos oferecida pela bruxa belga. O mundo enfeitiçado da mercadoria. O que nos permite resistir às capturas é um processo muito radical de fabricação de conexões. Produzir substâncias de desenfeitiçamento pela pratica experimental de estar junto.

    “O que é importante não são nunca as filiações, mas as alianças e as ligas; não são os hereditários, os descendentes, mas os contágios, as epidemias, o vento. As bruxas bem o sabem” – Para terminar com Deleuze, o filósofo que inventou o devir para poder experimentar também a bruxaria.

    O futuro comunista é feito de contágios, das alianças insólitas e malditas – mas sobretudo, é pragmático e imanente. Tem a ver com o saber das bruxas de fazer funcionar os corpos em relação. Criar sentidos e práticas do comum contra as cercas. Saber herdar a bruxaria. “Manter a brasa viva”, nos convida Silvia Cusicanqui, bruxa aimara, para que o fogo possa pegar novamente.

    * Antropóloga e militante feminista

  • Nota de apoio ao MTST. Contra a escalada da repressão aos movimentos e lutas no Brasil!

     

    Companheiros/as,

    Um coletivo de entidades de defesa de Direitos Humanos (Cendhec, Gajop, CPDH e RENAP-PE), gabinetes de parlamentares progressistas (Edilson Silva e Ivan Moraes Filho), assim como as comissões de \”DHs\” e de \”Prerrogativas das/os advogadas/os\” OAB estiveram desde o final da tarde de quarta-feira, dia 22 de fevereiro,  na central de flagrantes de Recife. Nessa tarde uma manifestação do MTST na Companhia Estadual de Habitação foi interrompida por uma ação policial sem ordem judicial e terminou com a prisão do advogado do movimento e manifestantes de forma arbitrária. 
    Participantes idosos, mulheres e crianças foram agredidos/as pela polícia, \”balas de borracha\” e munição letal foram utilizadas, advogadas/os foram agredidos verbalmente e impedidos de acompanhar a ouvida de testemunhas. Houve pelo menos duas e pessoas atingidas por balas comuns e que foram atendidas em hostpitais da área.
    Recebemos também notícias de que um dos detidos teve duas costelas fraturadas durante a detenção no ato e está com hemorragia interna no HGV.
    Sem diálogo nenhum com a delegacia. Imputaram tudo e mais um pouco: tentativa de incêndio; dano qualificado ao patrimônio; Associação criminosa; resistência à prisão.
    Os detidos foram transferidos/as para o fórum do Recife nesta quarta-feira (22/02) para audiência de custódia. Pedimos aos parceiros/as das entidades de defesa de DHs e movimentos que comparecessem  e acompanhassem  a audiência junto aos familiares dos militantes presos. A mobilização foi importante para conquistar a liberação dos militantes detidos. As acusações, no entanto, estão mantidas. 
    A ação é um padrão de ação policial que afronta o próprio Estado de Direito e que potencialmente afetará todos/as nós.
    =========Inglês============
    Comrades,
    In the afternoon ofthe 21rst of February, a demonstration led by the MTST (Homeless Workers Movement) protesting in front of the government agency Housing State Company was interrupted by a police attack, no warrant served. The repression included the arbitrary detention of the movement’s lawyer and of many more demonstrators.
    On the same day, a collective composed of several Human Rights organizations have come together at the police station in the Brazilian city of Recife, where those detained had been taken to. Organizations include Cendhec -Centro Dom Helder Câmara, Gajop – Legal Support for Popular Organizations, CPDH – Environment State Agency, and RENAP/PE –National Popular Lawyers Association, progressive members of the State Assemblies (Edilson Silva and Ivan Moraes Filho), as well as the Human Rights and Lawyers’ Prerogative commissions of OAB (National Bar Association). 
    Elderly protesters, women and children were injured by the police. Both rubber bullets and live ammunition were deployed, lawyers were verbally abused and stopped from accompanying the hearing of witnesses. There were at least two people hit by standard metal bullets and they are receiving medical attention in local hospitals.
    We have also received reports that one of the men detained has suffered injuries to his ribs, which were cracked during detention. He is currently in Getulio Vargas Hospital, bleeding internally.
    There was no dialogue once inside the police station. Many charges were brought against the demonstrators: attempted arson; damage to property; association with criminal intent; resistance to arrest. 
    Those detained were transferred to Recife’s Courts on Wednesday (February 22) for a custody audience. We have called our partners in Human Right defence organizations, other movements and relatives to join us as we followed the audience. The mobilization achieved the release of the arrested militants, who were released on the same day. However, the charges were mantained.
    The aggression is a pattern of police action that affronts the very Rule of Law and potentially will affect all of us.
    ========Espanhol==========
    Compañeras/os
     
    En la tarde del 21 de febrero, una manifestación dirigida por el MTST (Movimientode Trabajadores sin Techo) que protestaba en frente a la Companhia Estadual de Habitação [agencia gubernamental de vivienda] fue interrumpida por un ataque dela policía, sin orden judicial. Larepresión incluyó la detención arbitraria del abogado del movimiento y demuchos más manifestantes.
    Ese mismo día, en la comisaría de la ciudad brasileña de Recife, adonde fueron llevados los detenidos, se reunió un grupo de organizaciones de derechos humanos. Las organizaciones incluyen Cendhec (Centro Don Helder Câmara), Gajop (Apoyo Jurídico a Organizaciones Populares), CPDH (Comité Permanente por la Defensa delos Derechos Humanos) y RENAP / PE (Asociación Nacional de Abogados Populares), parlamentares progresistas de las Asambleas Estatales (Edilson Silva e Ivan Moraes Filho), las Comisiones de Prerrogativa de los Derechos Humanos y de los Abogados de la OAB (Asociación Nacional de Abogados).
    Ancianos/as, mujeres y niñas y niños fueron atacados/as por la policía con balas de goma y munición letal; los/las abogadas/os fueron agredidos/as verbalmente y se les impidió acompañara las/los testigos. Hubo por lo menos dos heridos por balas comunes, que estánsiendo atendidos en hospitales de la zona. También se nos informó que a uno delos detenidos le quebraron dos costillas durante la detención y está internado en el Hospitla Getúlio Vargas con una hemorragia interna.
     
    No hubo diálogo una vez dentro de la comisaría. A los detenidos se los acusa de todo: intento de incendio; daño calificado al patrimonio; asociación con intensión criminal; resistencia a la detención.
     
    Los detenidos fueron trasladados a los Tribunales de Recife el miércoles 22 de febrero para una audiencia de custodia. Llamamos a los/las compañeras/os delas entidades de defensa de DDHH y otros movimientos para que se uniesen anosotros y a los familiares para acompañar la audiencia. La movilización logró la liberación de los militantes detenidos en lo mismo dia. Todavia, se han mantenido los cargos. 
    Fue una acción policial que secontrapone al proprio Estado de Derecho y que potencialmente nos afectará a todos/as.
    créditos: Tradução Tática
    Read more:
    http://www.mtst.org/mtst/nota-do-mtst-brasil-sobre-a-violencia-da-policia-na-cehab-e-a-criminalizacao-do-movimento/
    Diário de uma detenta e nove detentos:  nao.usem.xyz/af1d
  • Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército

     

    Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército

    acácio augusto

     

    O Espirito Santo é um dos estados mais violentos da federação. Há décadas figura nas primeiras posições em taxa de homicídios, taxa de encarceramento e assassinato de mulheres. Basta consultar os últimos Atlas da Violência, Mapa do Encarceramento e Mapa Violência. Essa violência, como não poderia ser diferente, remonta ao estilo de colonização da região. A colonização pela espada e pela cruz esteve orientada aqui para que o estado servisse de barreira de proteção às riquezas das minas gerais. E mesmo recentemente, quando no começo dos anos 2000, os índios Tupinikin e Guarani resolveram enfrentar a multinacional Aracruz Celulose (hoje FIBRIA), foram duramente reprimidos pela Polícia Federal e por tratores, no sangrento janeiro de 2006. Em resumo, a violência é regra e não exceção no estado. Há menos de um ano, o assassinato de um jovem em Jardim da Penha, Vitória, despertou alguns poucos que ainda se incomodam com isso [nota 2].

    Recentemente o estado tem sido lembrado como exemplo de superação em relação à política penitenciária. Após abrir os famosos “micro-ondas”, carceragens de zinco em formato de contêineres, e ser denunciado no CIDH, a política de superencarceramento do Espírito Santo ganhou aporte federal. Hoje, passados quase 10 anos e a propósito das cabeças que rolaram ao norte do país, a imprensa nacional olha para o Espírito Santo como modelo a ser seguido. Seu secretário de Justiça hoje, Walace Tarcísio Pontes, integrante da equipe de Paulo Hartung, mesmo governador da época dos contêineres, se gaba de ter zerado as mortes e controlado o “caos prisional” no estado. Em matéria da BBC Brasil, ele declara que sua palavra-chave é “arquitetura-prisional” e após investir mais de R$ 500 milhões, o estado passou de 13 par 35 unidades prisionais [nota 3]. Descentralizadas e inspirada em prisões estadunidenses que impedem a comunicação entre pavilhões e proíbe a entrada de comida e material de higiene trazidos pela família, essas modernas instalações substituem os chamados cadeiões com eficácia, como se orgulha o ilibado gestor. No entanto, pesquisadores que acompanham de perto essa política de aprisionamento da miséria no estado, mostram que nem tudo são flores e que a “arquitetura-prisional” foi erigida com violentos procedimentos de tortura sistematizada [nota 4].

    No entanto, mesmo com um histórico deste, o estado ficou de fora da farra orçamentária da segurança pública que circundou a realização dos megaeventos. Como se sabe, especialmente estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, tiveram uma volumosa renovação de equipamentos, treinamentos, contratação de pessoal, etc., como resposta às revoltas de junho de 2013 e adaptação às exigências internacionais para realização dos megaeventos. Pois bem, o Espírito Santo ficou fora disso tudo e tem hoje uma PM pré-Copa. Militares são constitucionalmente impedidos de fazer greve. Mas seus familiares decidiram prostrarem-se diante dos quarteis da Polícia Militar reivindicando ajuste salarial (alegam que a categoria não o tem há 7 anos), plano de saúde familiar (alegam que o Hospital Militar está abandonado) e auxílio alimentação, uma promessa não cumprida pelo governo do estado. A mobilização dos familiares começou na noite de sábado, 4/2/17, mas foi na manhã de segunda que o discurso de pânico e desordem produziu seus efeitos. Via aplicativos de mensagens e redes sociais digitais, os relatos e vídeos de lojas saqueadas, carros roubados e violência generalizada foram se avolumando desde o final de semana, até que na tarde de segunda, 6/2/17, a Região Metropolitana da Grande Vitória se tornou uma cidade fantasma.

                         

    Deste momento em diante as coisas se passam como se fosse um resumo em ato das ficções jurídicas que justificam o Estado nos livros jusnaturalistas do século XVII e XVIII. A ausência de autoridade instala a “guerra de todos contra todos” e é preciso uma autoridade centralizada e forte que estabeleça a lei e a ordem. Foi o que o secretário de segurança do estado, André Garcia, fez: convocou o Exército Brasileiro e a Força Nacional de Segurança para (re)estabelecer a ordem. Em pouco tempo, as mensagens com relatos e vídeos de lojas saqueadas foram sendo substituídas por imagens de abordagens dos homens do exército e imagens apavorantes de corpos empilhados no DML (Departamento Médico Legal de Vitória), que teve sua capacidade excedida. No entanto, o que foi anunciado como guerra de todos contra todos, logo se tomou uma caçada de homens armados e fardados contra quem se aventurou a não respeitar o toque de recolher. No DML, as imagens dos corpos mutilados eram de corpos, como diz a canção, todos pretos, ou quase pretos de tão pobres. Para um paulistano vivendo em Vila Velha/ES, a lembrança do maio de 2006 [nota 1] e o massacre de 500 pessoas pela polícia e grupos paramilitares de extermínio foi imediata. Aqui, até o momento, os números oficiais falam em mais de 60 corpos.

    No entanto, tudo isso, infelizmente, não é novidade quando se pensa na repressão regular dos dispositivos de segurança do Estado. O que mais me impressionou foi que, no final da tarde de segunda-feira, conforme os carros e caminhões do Exército Brasileiro (a Força Nacional de Segurança diz chegar durante o dia 7/2/17) foram ganhando as ruas desertas, as pessoas saíam nas sacadas dos prédios para saudá-los, batendo palmas e gritando vivas. No exato momento me veio à mente a cena do filme do grego Costa Gravas, Missing, que em português recebeu o nome de Desaparecido, um grande mistério, de 1982, baseado em história real contada no livro de Thomas Hauser, The Execution of Charles Horman: An American Sacrifice, de 1978, que conta o desparecimento de um jovem jornalista estadunidense durante o golpe de Estado do General Augusto Pinochet, no dia 11 de setembro de 1973, no Chile. Neste filme, cada vez que os caminhões do exército passavam nas ruas, logo após o golpe, as pessoas saíam nas sacadas das mansões para aplaudir os militares. É claro que não quero comparar, muito menos mostrar similitude entre momentos dispares no tempo e no espaço. Na forma de relato expresso apenas uma memória imagética e cinematográfica que me acorreu ao ver as pessoas em suas sacadas, nas quais antes se batiam panelas, agora aplaudindo o exército tomando as ruas da cidade. No entanto, em ambos os casos fica claro uma coisa: não se condena a violência em si, mas apenas aquela violência que parece não estar a serviço de sua segurança e felicidade.

     

    Outra relação um pouco aflitiva com o filme retomado em minha memória imagética é que o protagonista do filme, Ed, pai de Charles Horman, vai ao Chile e procura mobilizar as autoridades de seu país natal para saber o que aconteceu com o jovem jornalista desaparecido. Ed, junto à esposa de Charles, Beth, corre delegacias, hospitais, embaixadas até descobrir que seu filho foi “desaparecido” por agentes do exército e se encontra emparedado no Estádio Nacional de Santiago, junto à outros opositores do Golpe. Essa lembrança me leva a pensar nos pais, mães, irmãs, esposas, irmãos que começarão a mesma jornada de reconhecimento de corpos e esclarecimento dos fatos com os possíveis “desaparecidos” desta noite de estado sítio no estado do Espírito Santo. Com a diferença de que seus filhos, irmãos e companheiros não são nem jornalistas nem cidadãos da nação mais rica e poderosa do mundo.

    Por fim, sem a menor intensão de estar produzindo uma análise para além de um relato com impressões [nota 5], há uma última questão a ser levantada. Muito se falou que a partir da greve da PM no estado, a população do Espírito Santo ficou refém de “marginais” e da “criminalidade”, isso pode até ser verdade, durante algumas horas e/ou dias, mas podemos ver as coisas de outro jeito também. Quando aqui chegaram os colonizadores, eles diziam encontrar um povo “sem fé, sem lei e sem rei”. Pois bem, por meio da violência e de um brutal etnocídio instaurou-se aqui a fé, a lei e a autoridade centralizada (seja ela do rei, do povo ou da nação). Mais de 500 anos depois, uma simples greve daqueles que mantém a lei e a ordem pela violência, é capaz de instaurar a desordem, atiçar a ânsia em tomar na marra tudo aquilo que se repete a exaustão que se deve ter, mas não se pode comprar. Numa equação simples, se por horas ou dias a população ficou refém da criminalidade, por toda vida ela é refém da polícia. Assim, a força maior vem para pacificar e instaurar a ordem contra aqueles que ainda subsistem, aqueles que insistem em viver nessa civilização sem fé, sem lei e sem rei. O que mostra, a despeito de todas a explicações filosóficas, sociológicas e históricas, que vivemos sob uma autoridade que é tão brutal, na mesma medida em que é extremamente frágil, pois encontra-se em guerra permanente contra uma parte significativa da sociedade, enquanto a outra parte vive entre o pavor de ser expolida e a prontidão em aplaudir o massacre em nome de sua felicidade. Então, diante disso, eu pergunto: é de polícia que precisamos? Ou melhor: quem precisa de polícia? Para quê? Contra quem? Pra que serve a polícia? As respostas triviais não nos levarão a conclusões satisfatórias.

    De fato, como nos alertou Michel Foucault, “a política é a guerra continuada por outros meios”.

    Nota 1: Ver “Um breve histórico da luta e vitória das comunidades indígenas contra a gigante Aracruz Celulose no ES”, in https://prazeresdeamelie.wordpress.com/2009/02/27/um-breve-historico-da-luta-e-vitoria-das-comunidades-indigenas-contra-a-gigante-aracruz-celulose-no-es/

    Nota 2: Ver http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2016/10/grupo-sai-da-ufes-e-protesto-contra-morte-de-jovem-no-bairro-da-penha.html

    Nota 3: Camilla Costa. “Como o Espírito Santo conseguiu zerar mortes em prisões – e o que ainda não funciona em seu sistema”, in BC Brasil em São Paulo, 17 de janeiro de 2017, em http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38657173

    Nota 4: Ver “Crescimento da população carcerária implica aumento da violação de direitos. Entrevista especial com Humberto Ribeiro Júnior” in http://www.ihu.unisinos.br/publicacoes/159-entrevistas/564467-aumento-da-populacao-carceraria-implica-aumento-da-violacao-de-direitos

    Nota 5: Veja também o relato de Lívia de Cássia Godoi Moraes. “Esta noite dormiremos temerosos: sobre o caos nas cidades capixabas” in http://www.esquerdadiario.com.br/Esta-noite-dormiremos-temerosos-sobre-o-caos-nas-cidades-capixabas

  • As 7 vidas do neoliberalismo

    Tatiana Roque

    Professora da Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ

    Presidente da ADUFRJ (Sindicato dos professores da UFRJ)

     

     

    A estranha não-morte do neoliberalismo. Essa é a tradução do título de um livro de Colin Crouch, mostrando que, ao contrário do que esperávamos após a crise de 2008, o neoliberalismo não morreu, ele renovou suas formas de governo. Um dos mecanismos que tornou possível essa virada está no tratamento preferencial dado a grandes organizações, no lugar das leis anti-truste que caracterizavam o projeto neoliberal em seu início. Isso só é possível pela aliança entre empresas e governos, que instituem os mecanismos necessários para que corporações globais dominem o mercado e o cenário político. O livro foi escrito em 2011, antes de Trump, que atualiza de modo surpreendente o projeto, colocando diretamente os CEOs das grandes corporações em cargos políticos do governo, em uma estratégia que Naomi Klein chamou de “eliminação dos intermediários”.

    Acontece algo parecido por aqui. Ainda que tenhamos um intermediário em posição mais que estratégica, na presidência da república, trata-se do intermediário perfeito, pois funciona como correia de transmissão direta dos interesses das corporações e do mercado financeiro. Não que esses mecanismos estivessem ausentes durante os governos anteriores, só que havia um nível razoável de disputa política intermediando o jogo de interesses. Agora está tudo escancarado.

    O jogo de interesses oligárquicos mantém a crise como instrumento de ampliação do poder político (tornado imediatamente econômico). Assistimos à vitória das grandes empresas multinacionais que exercem pressões contínuas sobre as autoridades políticas para se beneficiarem de subvenções, vantagens fiscais e trabalhistas que garantem a deflação dos salários. Esse fenômeno, que acontece em escala mundial, atuou fortemente para a política desastrosa de desonerações fiscais, que contribuiu para a derrocada da economia no governo Dilma.

    Para entender “esse pesadelo que não acaba”, Pierre Dardot e Christian Laval destacam o papel do Estado como agente ativo na implementação das políticas capazes de atender as demandas das empresas. Ao invés de funcionar como proteção aos direitos sociais, tentando um equilíbrio entre a lógica do capital e alguma justiça social, o Estado passa a ser um ator-chave na implementação de um ambiente fértil para os negócios. Assim, “as velhas receitas do nacional-estatismo são inoperantes, quando não chegam a usar a retórica da direita em um deslize perigoso”. O Estado é um dos atores em uma teia complexa que garante a instalação da racionalidade neoliberal em todo o tecido social, visando instalar a concorrência.

    Para dar um exemplo recente, a aprovação da PEC do teto de gastos busca, precisamente, instaurar a lógica concorrencial dentro das despesas públicas. Para ser possível respeitar o limite, mantendo os padrões atuais de investimento em saúde e educação, deve-se compensar essas despesas pela redução de outras (ainda que não exista margem para isso). A PEC visa submeter os gastos públicos a uma dinâmica concorrencial: saúde e educação pressionam os gastos com previdência e funcionalismo; ensino básico pressiona os gastos com ensino superior. A demanda de produtividade aumenta e a concorrência determina a racionalidade das despesas primárias do Estado, ao mesmo tempo em que as taxas de juros mantêm-se fora do cálculo. Na outra ponta, convoca-se o apoio da opinião pública, mobilizando sua correta percepção de que há problemas de gestão e injustiças no funcionamento da máquina estatal.

    Ainda que não tenha paralelo em outros países, essa PEC radicaliza uma política que, ao contrário das expectativas, vem sendo a tônica de governos socialdemocratas ao redor do mundo. É incerto afirmar que a onda não chegaria por aqui, ainda que sob formas mais suaves, com a manutenção dos governos do PT. Há algum tempo, a socialdemocracia tem agido como linha auxiliar dos mercados no desmonte da proteção social e dos direitos do trabalho, tornando-se cada vez mais incapaz de cumprir seu ideal de conciliar economia capitalista e justiça social. Ao invés de proteger a população dos efeitos do neoliberalismo, alia-se reiteradamente às suas formas de governo. No máximo, conseguem inserir medidas excepcionais no interior de governos atravessados por múltiplas contradições, como foi o caso, no Brasil, da expansão da universidade e do SUS. Não à toa, os setores que serão mais afetados pelo teto de gastos.

    O desmonte do Estado bem-estar social adquire proporções gigantescas no Brasil. Agora será a vez da reforma da Previdência e seguiremos perguntando por que a resistência organizada pela esquerda não consegue mobilizar a população mais pobre, que é sua própria razão de ser. As denúncias que vêm sendo feitas, apontando a intenção neoliberal de diminuir o tamanho do Estado, não parecem realmente suscitar a indignação necessária à mobilização. Pensando bem, por que as pessoas iriam defender um Estado de bem-estar social em abstrato, se não percebem os serviços públicos como proteção efetiva de seus direitos básicos de existência? Ao contrário, a maioria da população ou paga caro por planos de saúde e escolas privadas que funcionam mal ou precisa encarar quotidianamente a situação precária dos postos de saúde e das escolas públicas. Quando experiências tão distintas geram a mesma desconfiança em relação às promessas do Estado, deve-se procurar o erro nas promessas, e não em um suposto conformismo da população. Se levarmos a sério as percepções e escolhas da população, ao invés de enxergá-la como massa amorfa teleguiada pela mídia hegemônica, deveremos perguntar qual tem sido o papel do Estado em fornecer alguma garantia de segurança e acesso a direitos básicos de subsistência.

    A denúncia e a indignação podem ser sintomas de certo desencanto, como se pouca gente fosse capaz de ouvir e entender nossos clamores. Mas talvez esses clamores sejam slogans repetitivos esvaziados de sentido. Não à toa, toda essa discussão é perpassada pela dissolução da democracia liberal e pela necessidade urgente de repensarmos as bases de uma outra democracia possível. Mas esse será assunto de uma próxima conversa.

  • dos muitos golpes no Brasil: a situação atual da violência de Estado

    Acácio Augusto

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    O principal agente da violência nas sociedades modernas é o Estado. Ele se define e mantém sua dominância pelo exercício dela. Ao contrário do que se imagina, devido ao estereótipo vinculado ao futebol e ao carnaval, o Brasil é um país extremamente violento. Esta violência está diretamente ligada a uma polícia com alto grau de letalidade. Só em 2015, foram 58.383 pessoas assassinadas[1], 160 mortos por dia. Isso, segundo dados oficiais do governo apurados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2016. Destas mortes, 3.345 são atribuídas diretamente à polícia, mas deve-se considerar uma série de fatores que ligam as outras mortes indiretamente à ação policial. Em geral, essa letalidade é aplaudida pela grande maioria da população, que há muito tempo se regozija com um populismo punitivo alardeado pelas mídias e outros setores da sociedade.

    Além da violenta e predatória história colonial e o fato do Brasil ser o último país das Américas a abolir a escravidão, fatores recentes contribuem para essa extrema letalidade e uma violência social letal praticamente naturalizada. Em 1964 o país sofreu um golpe civil-militar que inaugurou a série de golpes na América do Sul com ingerência dos EUA como forma de garantir a zona de influência em um contexto de Guerra Fria. No entanto, quando o regime civil-militar teve fim, em 1985, a chamada “transição lenta, gradual e segura” não extirpou da vida pública os diversos agentes sociais que sustentaram e se beneficiaram do período de exceção: de grandes conglomerados comunicacionais até setores das oligarquias regionais rurais, além de uma pequena elite urbana de hábitos colonizados. A chamada abertura política e/ou democrática foi resultado de um pacto entre as elites, ainda que atendendo às demandas da chamada sociedade civil organizada. Este pacto corresponde às novas diretrizes planetárias, sintetizadas pela ONU e suas agências, em contexto de derrocada do mundo soviético ao leste do planeta e sob o signo do que se chamou de “nova ordem mundial”.

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    No ocaso do século XX, mais precisamente na abertura do século XXI, o Brasil viverá um ciclo de governos chamados progressistas. Inaugurado por dois mandatos de um sociólogo de tendências marxistas, vinculado a um partido de nome “socialdemocrata” mas de política neoliberal, e seguido por um ex-líder sindical e uma ex-guerrilheira vinculada à luta contra a ditadura civil-militar, ambos pertencentes ao PT (Partido dos Trabalhadores), que gaba-se em ser o maior partido de massas das américas. Essa sequência de governos em uma democracia formal e sem ingerência dos militares na vida política inaugurou um ciclo de prosperidade, despertando fortes esperanças tanto interna quanto externamente: um país que finalmente “estaria dando certo” ou no caminho de ser grande. O recente processo de impeachment, concluído no segundo semestre de 2016, que derrubou o segundo mandato da presidente eleita pelo voto direto e majoritário criou uma fissura, em alguma medida inesperada, que acabou interrompendo esse ciclo progressista de governos, mas não alterou a racionalidade governamental dominante. Isto faz com que muitos no Brasil, em especial os setores próximos ao governo deposto, gritem que foi um golpe! Seguido de algum adjetivo: parlamentar, midiático, judicial ou os três juntos.

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    De fato, o processo que derrubou a presidente foi eivado de manobras jurídicas, jogos com a opinião pública e interesses mesquinhos dos representantes do poder legislativo e outros setores interessados. A operação de saneamento do Estado, encabeçada por um juiz de província elevado ao status de herói nacional, nomeada como Lava Jato foi o ponto de apoio dos setores da mídia e da massa conservadora da sociedade para colar no partido que até então ocupava o governo federal, o PT em aliança com o PMDB, o estigma de corrupto e tudo mais de abjeto que possa existir na política nacional. Somou-se a isso uma intensificação de posturas conservadoras e fascistas da sociedade, tanto nas classes médias quanto nas classes populares. Na última década, e junto ao histórico racismo de Estado, o ódio ao diferente tem ganhado campo amplo no país, se amplificando nas redes sociais digitais e encontrando representantes políticos que incorporam esse discurso. A ponto de se defender, abertamente, a volta dos militares ao comando do governo executivo. No entanto, seria equivocado, ou mesmo simplista, atribuir à deposição da presidente a culminância de uma escalada autoritária no país. Como se, após o chamado golpe, a democracia teria sido solapada e a política do país sofresse uma guinada de cento e oitenta graus. De uma perspectiva anarquista, o que se passa hoje no Brasil é consequência lógica de um regime democrático estatal representativo que só se mantém por uma extrema judicialização da vida e da política e uma prática de governo que se reduz cada vez mais a produção hiperbólica de segurança, a despeito de qualquer outro valor político e social, até mesmo em detrimento da democracia formal e dos valores elementares de uma sociedade moderna com o mínimo de liberdade individual, como amplo direito de defesa diante de um tribunal. A questão central é que isso não se iniciou com a deposição da presidente. Mesmo que a consumação desse fato tenha gerado, na linguagem dos constitucionalistas, uma insegurança jurídica e, com efeito, tenha legitimado setores conservadores que viam no governo do PT uma ameaça comunista, por mais absurdo que isso seja.

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    Os 13 anos do governo desposto se vangloria de ter atingido uma série de metas estabelecidas pelos organismos internacionais, em especial a ONU e suas agências como PNUD e UNICEF. A principal delas seria a erradicação da miséria extrema por meio de complementação de renda aos mais pobres, cobrando contrapartida como obrigatoriedade de matrícula escolar dos filhos e vacinação regular, ou seja, ampliando o controle estatal sobre os corpos, em especial, das crianças. Além disso, propagandeia uma série de políticas sociais ligadas à ampliação do crédito no varejo, programas de financiamento de casas populares e programas de crédito estudantil. Em resumo, o governo democrático de esquerda no Brasil promoveu uma política de inclusão pelo consumo que produziu uma massa de novos endividados, algo que os bancos, estatais e privados, agradecem. Além de favorecer, por meio dessas políticas, os valores característicos da racionalidade neoliberal, metamorfoseando proletários em proprietários, pobres em empreendedores de si. Mas não só. Este governo esteve à frente de megaprojetos desenvolvimentistas, como a construção da Usina de Belo Monte, com prejuízo aos povos indígenas e ribeirinhos. E como toda socialdemocracia no mundo pós-Muro de Berlim, investiu fortemente em segurança, como mostrou Loïc Wacquant em suas pesquisas sobre as prisões e política de segurança nos EUA, Inglaterra e França. O governo federal do PT criou uma nova polícia repressiva em 2004, a Força Nacional de Segurança; levou adiante um programa de superencarceramento já iniciado no governo anterior; despejou rios de dinheiro para a política de pacificação das favelas no Rio de Janeiro, as UPP (Unidades de Polícia Pacificadora), face interfronteiras da MINUSTAH, intervenção militar da ONU no Haiti capitaneada pelo exército brasileiro; enfim, um dos últimos atos da presidente desposta foi a criação de uma Lei Antiterrorismo (lei 13.2060/2016) que abre precedentes jurídicos brutais para criminalização dos movimentos sociais. Além do fato de que hoje, há menos de um ano do chamado golpe, o partido que se diz golpeado se vê às voltas com alianças junto aos partidos que perpetraram o tal golpe. Uma retórica, no mínimo, pouco convincente.

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    O ponit of no returne da política e das lutas no Brasil foram as jornadas de junho de 2013, manifestações inéditas e espetaculares em todo país. Iniciada em São Paulo, em meio aos protestos contra o aumento da tarifa do transporte coletivo, essas manifestações colocaram em xeque a narrativa do Brasil grande e do país que finalmente deu certo. Grandeza que seria confirmada com a recepção de megaeventos planetários como a RIO+20, da ONU, a Copa do Mundo de Futebol, da FIFA, e as Olimpíadas, do COI. Respectivamente programadas paras os anos de 2012, 2014 e 2016. Muitos do que foram às ruas alertavam que nesse Brasil grande pobres, pretos e indígenas seguiam sendo assassinados pelo Estado; que as desigualdades históricas seguiam reforçadas; que os antigos perseguidores do presidente sociólogo, do presidente sindicalista e da presidente guerrilheira, são agora seus aliados de governo. Metamorfosearam-se de perseguidos em perseguidores. A emergência do ingovernável nas ruas em junho de 2013, que seguiu adiante, principalmente contra a Copa e as Olimpíadas, expôs o intolerável de qualquer governo, a insuficiência da democracia, e abriu uma brecha para manifestações de revoltas antipolíticas que não cabiam em planos e planilhas dos atuais gestores da miséria no país.

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    O governo, mesmo ungido pelo título de progressista, de esquerda e democrático, agiu como agiria qualquer Estado: reprimiu duramente os protestos, promoveu perseguições e investigações. Prontamente, a imprensa e diversos analistas políticos, à esquerda e à direita, produziram uma enxurrada de “análises”, diferenciando manifestantes “pacíficos” de “vândalos”, estes últimos identificados entre os anarquistas, autonomistas não ligados aos partidos e aos movimentos sociais não alinhados ao governo e, principalmente, praticantes da tática black bloc. Com os vândalos expulsos das ruas pelas bombas e cassetetes da polícia, e muitos respondendo a processos criminais, os chamados manifestantes pacíficos foram gradualmente ocupando essas ruas. Mas desta vez, vestidos com a bandeira do Brasil e pedindo maior moralidade dos governantes, maior punição a infratores da alta e da baixa política, e com demandas que iam da deposição da então presidente à pedidos de nova intervenção dos militares, além de regulares manifestações de ódio à gays, racismo institucionalizado e clamores por uma ordem mais rígida. Era comum entre esses manifestantes, ao invés do embate, a empatia com a polícia, tirando fotos para depois espalhar pelas redes sociais digitais. Enfim, a centralidade do Estado e sua violência foi reposta, após brutal repressão ao ingovernável e um conturbado processo eleitoral em outubro de 2014, começo da reação que visava conter a potência das ruas.

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    De uma perspectiva anarquista, não há o que lamentar desse processo, a não ser seguir lutando contra a violência do Estado e as explorações do capitalismo. No entanto, se hoje, janeiro de 2017, o país se encontra às voltas com um presidente que não foi eleito diretamente pelo voto, com o crescimento assustador de um discurso de ódio contra negros, gays, mulheres e todo tipo de manifestação de diferença e de contestação política, além de uma violência que se alastra por meio da polícia em manifestações de rua até decapitações em presídios de todos país, isso se deve ao fato de que, no momento em que a violência de Estado foi colocada em xeque nas ruas, as forças de esquerda que então ocupavam o governo fez de tudo para repor sua centralidade. Funcionou como aparador e contentor da revolta para depois ser chutada por seus próprios aliados e sócios nos negócios e negociatas do Estado. Hoje chora a falência de um Estado de Bem Estar Social que, a bem da verdade, nunca existiu aqui. A operação estatal mais bem sucedida como reposta às revoltas de junho de 2013 foi justamente a diferenciação entre vândalos e pacíficos, esta abriu caminho para um processo de pacificação brutal, todo efeito institucional a ser lamentado é posterior. E essa distinção foi operada pelo governo democrático e de que esquerda, reforçada a todo tempo por seus chamados \”intelectuais orgânicos\”, chegando ao absurdo de dizer que anarquia e fascismo eram equivalentes.

    Chamem de golpe ou impeachment, a atual situação política de instabilidade no Brasil é a sequência dos históricos golpes perpetrados aqui por oligarcas, militares e dirigentes/gestores políticos, de esquerda e de direita, que nunca vacilam em repor e reafirmar a centralidade e a violência do Estado. A despeito de questões conjunturais extremamente preocupantes, o Brasil segue, como antes, tendo a polícia que mais mata no mundo. E como sabe qualquer anarquista, a polícia é o golpe de Estado permanente.

    Não há solução diante disso, apenas a luta contínua, ou a pequena guerra (petite guerre), como chamava Proudhon a atividade de luta rebelde contra a miséria das guerras de Estado, travada além das fronteiras e contra aqueles declarados inimigos internos. Desde junho de 2013, as lutas autônomas e o interesse pela anarquia cresceu no Brasil, mas também surgiu um movimento conservador que, diferente de outros momentos da história do país, vai para rua e se organiza aos moldes de um “movimento social”, reivindicando seu espaço no espetáculo político da chamada opinião pública, esse consenso fabricado que acaba incidindo como ditadura da maioria em favor dos interesses da mesma minoria (neste caso, numérica, e não no sentido dado por Deleuze). Estes grupos, a partir do pedido de deposição da presidente eleita, conseguiram dar vazão à todo conservadorismo da sociedade brasileira.

    Os anarquistas seguem com suas lutas, enquanto a esquerda institucional luta por hegemonia, tentando reorganizar-se em torno da sua zona de influência juntos aos movimentos sociais domesticados e inscritos na gramática da luta política estatal por reconhecimento e direitos. Nós, anarquistas, seguimos nas ruas, com bandeiras e blocos negros, e nas universidades, com pesquisas e publicações que desafiam a ordem, enquanto minoria potente (essa sim, no sentido dado por Deleuze). Desacatamos a ordem durante o governo de esquerda que agia segundo a governança global da racionalidade neoliberal. Não será diferente agora, diante da nova conformação governamental dessa mesma racionalidade neoliberal que anuncia um ajuste conservador em todo planeta. Não nos interessa a conservação de direitos ou a defesa de um Estado de Bem Estar Social, que ao Sul nunca existiu e ao norte significou a contenção e normatização das lutas. Sabemos que todo direito implica dever para com o Estado, seja ele de que cor for. E quando dizem que a autogestão (mutualismo econômico) e a ação direta (associativismo e federalismo político) são utopias, o que temos a dizer é: utopia é essa busca por paz e segurança projetadas no Estado que habita os corações e as mentes desde a emergência da era moderna. O trabalho de um anarquista é outro. O anarquista é o artífice na construção da vida outra. A luta, para ele, é feita na transformação de si, na luta contra o que somos e em guerra contra a sociedade e o Estado.

     

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    Imagem 9

     

    nota: Este breve registro foi escrito originalmente para a edição #123, de fevereiro de 2017, do periódico Slingshot Collective de Berkeley, EUA (http://slingshot.tao.ca/). Não se trata de uma análise de conjuntura, mas um curto diagnóstico histórico-político da situação das lutas no Brasil para anarquistas de outros países. Reproduzo, com pequenas modificações, por dois motivos: 1. Me parece que há algumas questões pouco consideradas aqui sobre a situação política do país, vistas de uma perspectiva anarquista; 2. O periódico circula impresso e em outra língua, logo de difícil acesso ao leitor brasileiro.

     

    Legenda de imagens:

    Imagem 1 (Arquivo “ataque à polícia”): Um manifestante black bloc ataca a polícia em manifestação de junho de 2013 na cidade de São Paulo. Autor: Revista Vice Brasil.

    Imagem 2 (Arquivo: “antifa SP”): concentração para o Ato contra a tarifa do MPL, em janeiro de 2016, em frente ao Teatro Municipal de São Paulo. No destaque a bandeira do grupo Antifa SP. Autor: W. Raeder.

    Imagem 3 (Arquivo “BB Copa”): grupo de black blocs perfilados contra a polícia em Ato contra a Copa do Mundo de 2014 na cidade do Rio de Janeiro. Autor desconhecido.

    Imagem 4 (Arquivo “BBs”): grupo de black blocs com escudos em ato no centro da cidade de São Paulo em junho de 2013. Autor desconhecido.

    Imagem 5 (Arquivo “estudantes RJ”): Dois estudantes em uma escola ocupada do Rio de Janeiro em fevereiro de 2016, com a placa “Foda-se a PM” (polícia militar). Autor desconhecido.

    Imagem 6 (Arquivo “contra a olimpíada”): black blocs com sinalizadores em ato contra a abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro 2016 no centro da cidade em agosto de 2016. Autor desconhecido.

    Imagem 7 (Arquivo “flávio galvão”): grupos de black blocs destroem carro da polícia civil de São Paulo, na região da República em junho de 2013. Autor: Flávio Galvão, da ADVP (Ação Direta de Vídeo Popular).

    Imagem 8 (Arquivo “imagem oficina”): grupo de black blocs em junho de 2013 contra a polícia do Rio de Janeiro. Autor desconhecido.

    Imagem 9 (Arquivo “leviatã”): Tropa de Choque da PM de São Paulo perfilada para defender a vidraça de um cinema na Avenida Paulista, janeiro de 2016, ao fundo cartaz do filme “Leviatã”. Autor desconhecido.

    [1] Dados do 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado em 3 de novembro de 2016, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Disponível em http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/wp-content/uploads/2015/10/9-Anuario-Brasileiro-de-Seguranca-Publica-FSB_2015.pdf

     

     

     

  • O Brasil é uma hipótese improvável: Mc Beijinho e as faíscas de redenção

    Por: Alana Moraes

    fonte: http://vaidape.com.br/2017/01/o-brasil-e-uma-hipotese-improvavel-mc-beijinho-e-as-faiscas-de-redencao/

    Foto: Divulgação

    Um menino foi preso em Salvador – e os meninos presos são quase todos pretos, como diz a canção. Do outro lado, um programa de televisão “cobre” a ação policial. Mais do que transmitir a cena, o que esses programas fazem diariamente é produzir doses diárias de fé na punição, de medo do outro, de racismo e cumplicidade com o genocídio da população negra e com a explosão do encarceramento. Ódio, medo, punição e violência compõem o roteiro da oração diária dessas encenações midiáticas feitas para os homens de bem e para que a máquina de pacificação dos pobres não pare nunca de girar.

    Desse enquadramento anestesiado de todos os dias, emerge a hipótese improvável. Um verdadeiro acontecimento. O menino escapa da cena esperada, rasga o roteiro, improvisa e começa a cantar uma música. É a sua música. O menino agora tem um nome. Ele se chama Ítalo. Seu canto é um ato de descumprimento. Ele canta apesar do massacre em Roraima. Ele canta apesar do Massacre em Manaus. Ele canta também apesar da morte brutal de Luiz Carlos Ruas, assassinado pelos cumpridores dessa mesma ordem. Ele canta evocando os tambores do Pelô e sua canção de liberdade escapa para todos os lados.

    O repórter não entende a dignidade do ato. É mais que dignidade: é a ruptura com esse lugar da humilhação. É também a potência do Brasil em sua insurreição perpétua e subterrânea: a casa grande nunca foi capaz de ouvir o barulho das insubmissões cotidianas, do que nunca foi possível de governar.

    A revolução será feita também dos ritmos imponderados, dos corpos em festa e desses momentos improváveis capazes de paralisar a miséria fascista que só deseja prender e exterminar. Desviar dos enquadramentos e multiplicar nossa possibilidade de fuga: o sistema não apenas encarcera, mas também age para tornar dóceis nossos corpos. Me liberar, nos liberar.

    Assim é o hit do verão em Salvador.

    MC Beijinho agora está ecoando em todos os lugares – até no violão de Caetano. Porque tudo o que temos são canções de redenção.

  • O \”MEME\” NO POOL DE MEMES – origem do termo

    RESUMO/FICHAMENTO
    CAPÍTULO 11: \”MEMES, OS NOVOS REPLICADORES\”
    LIVRO: \”O GENE EGOÍSTA\” 1976
    ESCRITOR: RICHARD DAWKINGS (ETÓLOGO)
    * TEXTO INTEGRAL AQUI: http://migre.me/vOjJb (pág 121)

    OBSERVAÇÕES PRÉVIAS
    :
    FOI NESSE LIVRO/CAPÍTULO
    EM QUE O TERMO
    \”MEME\”
    FOI INSERIDO NO
    \”POOL DE MEMES\”
    DA HUMANIDADE
    ,
    QUANDO E ONDE
    \”MEME\”
    COMEÇOU A VIRAR
    MEME
    .
    (
    50 ANOS DEPOIS, 2016
    PODE-SE DIZER
    QUE VIROU
    MEME
    MESMO
    )

    TRECHOS SELECIONADOS
    E TRANSCRITOS POR DANSCAN
    EM 2016
    VIA
    PROSA
    POROSA
    (COMO É COMUM NOS CHATS)
    LÁ VAI
    :

    <
    CAP 11. MEMES, OS NOVOS REPLICADORES

    haverá motivo para supor que a nossa espécie seja única
    ?
    acredito que a resposta é sim

    a maior parte daquilo que o homem tem de pouco usual
    pode ser resumido em uma palavra
    :
    CULTURA

    a transmissão cultural é análoga
    à transmissão genética
    no sentido de que
    apesar de ser essencialmente conservadora
    pode dar origem a uma forma de evolução
    ,
    a linguagem parece evoluir por meios não genéticos
    a uma velocidade que é várias ordens de grandeza superior
    à velocidade da evolução genética

    a linguagem é um exemplo entre muitos
    :
    a moda no vestuário e na dieta
    as cerimônias e os costumes
    a arte e a arquitetura
    a engenharia e a tecnologia
    ,
    tudo isso evolui no tempo histórico de uma forma
    que se assemelha à evolução genética altamente acelerada
    mas que
    na realidade
    nada tem a ver com ela

    a seleção de parentesco e
    a seleção a favor do altruísmo recíproco
    podem ter atuado sobre os genes humanos
    para produzir muitos dos nossos atributos
    e tendências psicológicas básicos
    ,
    tais ideias são plausíveis até certo ponto
    no entanto elas não chegam a fazer frente
    ao enorme desafio de explicar a cultura e sua evolução
    bem como as acentuadas diferenças existentes entre
    as diversas culturas humanas ao redor do planeta

    para compreender o homem moderno
    devemos começar por abandonar a idéia do gene
    como a única base das nossas idéias a respeito da evolução
    ,
    sou um adepto entusiasmado do darwinismo
    mas penso que se trata de uma teoria demasiado ampla para ficar confinada
    ao contexto limitado do gene
    ,
    o gene entrará na minha teoria
    como uma analogia
    e nada mais
    ,
    afinal de contas o que os genes têm de tão especial
    ?
    a resposta é que eles são REPLICADORES

    mas existirá alguma coisa que tenha de ser válida
    em relação a qualquer forma de vida
    onde quer que ela se encontre e
    qualquer que seja a base da sua constituição química
    ?
    trata-se da lei segundo a qual toda a vida evolui
    pela sobrevivência diferencial de suas entidades replicadoras

    o gene
    (a molécula de DNA)
    é
    por acaso
    a entidade replicadora mais comum no nosso planeta
    pode ser que existam outras
    se existirem
    desde que algumas condições sejam satisfeitas
    elas tenderão
    quase inevitavelmente
    a tornar-se a base de um processo evolutivo

    será que temos de viajar até mundos distantes
    para encontrar outros tipos de replicador
    e em consequência
    outros tipos de evolução
    ?

    penso que um novo tipo de replicador
    surgiu recentemente neste mesmo planeta

    está bem diante de nós

    está ainda na infância
    flutuando ao sabor da corrente no seu caldo primordial
    porém já está alcançando uma mudança evolutiva
    a uma velocidade de deixar o velho gene
    ofegante
    muito para trás

    o novo caldo é o caldo da cultura humana

    precisamos de um nome para o novo replicador
    um nome que transmita a idéia
    de uma unidade de transmissão cultural
    ou uma unidade de imitação

    mimeme provém de uma raiz grega adequada
    mas eu procuro uma palavra mais curta
    que soe mais ou menos como \”gene\”

    espero que os meus amigos classistas me perdoem
    se abreviar mimeme para MEME

    se isso servir de consolo
    podemos pensar
    que a palavra \”meme\” guarda relação com \”memória\”
    ou com a palavra francesa même

    devemos pronunciar de forma a rimar com \”creme\”

    exemplos de memes são
    melodias
    idéias
    slogans
    as modas no vestuário
    as maneiras de fazer potes ou de cosnstruir arcos

    tal como os genes
    os memes se propagam em um pool
    no caso
    o pool de memes

    saltando de cérebro para cérebro através de um processo que
    num sentido amplo
    pode ser chamado de imitação

    se um cientista ouve ou lê sobre uma boa idéia
    transmite-a aos seus colegas e alunos
    ele a menciona nos seus artigos e nas suas palestras
    e
    se a ideia pegar
    pode-se dizer que ela propaga a si mesma
    espalhando-se de cérebro para cérebro

    sempre que surgirem condições
    para que um novo tipo de replicador
    possa produzir cópias de si mesmo
    o novo replicador tenderá a tomar as rédeas da situação
    e a iniciar um novo tipo de evolução
    ,
    uma vez começada essa nova evolução
    ela não terá em nenhum sentido
    de se submeter à antiga
    ,
    quando a evolução antiga
    por seleção de genes
    produziu os cérebros
    ela forneceu o \”caldo\” em que se originaram os primeiros memes
    ,
    no momento em que os memes auto-replicadores surgiram
    a sua própria evolução
    de um tipo muito mais veloz
    teve início

    nós
    biólogos
    assimilamos tão profundamente a ideia da evolução genética
    que tendemos a esquecer que ela é apenas um
    dos vários tipos de evolução possíveis
    .

    até agora
    falei dos memes como se fosse óbvio aquilo em que consiste um meme unitário
    mas isso está
    evidentemente
    longe de ser óbvio

    afirmei que uma melodia era um meme
    no entando
    quantos memes haverá numa sinfonia
    ?
    será que cada movimento é um meme
    ou cada frase reconhecível de uma melodia
    ?
    ou ainda
    será que cada compasso é um meme
    ?
    cada acorde
    ou o quê
    ?

    um \”meme-ideia\”
    pode ser definido como uma entidade
    capaz de ser transmitida de um cérebro a outro

    o meme da \”teoria de darwin\” é
    portanto
    a base essencial da ideia compartilhada por todos os cérebros
    que compreendem tal teoria

    no entanto
    se contribuirmos para o patrimônio cultural do mundo
    ou seja
    se tivermos uma boa idéia
    compusermos uma canção
    inventarmos uma vela de ignição
    escrevermos um poema
    pode ser que a nossa contribuição sobreviva
    intacta
    muito depois que os nossos genes tiverem se dissolvido no pool comum de genes

    pode ser que sócrates tenha um ou dois genes vivos no mundo de hoje
    mas
    que interesse isso tem
    ?

    em contrapartida
    os complexos memes de
    sócrates
    leonardo da vinci
    copérnico e marconi
    continuam em pleno vigor

    uma característica exclusiva do homem
    que poderá ou não ter evoluído memicamente
    é sua capacidade de previsão consciente
    ,
    os genes egoístas (e
    se forem permitidas as especulações deste capítulo
    também os memes egoístas)
    não têm essa capacidade
    ,
    eles são replicadores cegos e inconscientes

    é possível que ainda outra qualidade exclusiva do homem
    seja a capacidade para o altruísmo verdadeiro
    genuíno e desinteressado
    espero que sim
    mas não irei defender nem atacar tal hipótese,
    e tampouco especular sobre sua possível evolução mêmica

    o ponto que quero salientar é que
    a despeito de sermos pessimistas
    e de assumirmos o pressuposto de que o ser humano
    é fundamentalmente egoísta
    a nossa previsão consciente – a nossa capacidade de
    simular o futuro
    usando a imaginação –
    poderia nos salvar dos piores excessos egoístas dos replicadores cegos

    pelo menos
    dispomos do equipamento mental
    para promover nossos interesses egoístas de longo prazo
    a participar de uma espécie de \”conspiração de pombos\”
    e podemos nos reunir para discutir maneiras de fazer
    com que essa conspiração venha a funcionar

    temos o poder de desafiar os genes egoístas que herdamos e
    se necessário
    os memes egoístas com que fomos doutrinados

    podemos até discutir maneiras de estimular e ensinar
    deliberadamente
    o altruísmo puro e desinteressado
    – algo que não existe na natureza e que
    nunca existiu antes na história do mundo

    somos construídos como máquinas de genes
    e educados como máquinas de memes
    mas temos o poder de nos revoltar contra nossos criadores

    somos os únicos no planeta terra com o poder de nos rebelar contra
    a tirania dos replicadores egoístas
    >

    * TEXTO ORIGINAL NA ÍNTEGRA AQUI: http://migre.me/vOjJb (pág 121)

    OBSERVAÇÕES POSTERIORES:

    considero importante a divulgação dessa raizdapalavra
    pois me soa reveladora a noção dessa relação dos memes com os genes

    quero dizer
    o termo traz darwin e o anti-criacionismo para o campo da evolução cultural
    !

    após a leitura
    um meme nunca mais será
    apenas uma imagem cômica
    divulgada nas redes sociais
    o termo é de 1976
    mto antes da internet nascer
    !

    trazer a tona o significado da palavra
    já tão maciçamente utilizada por gente de todas as ideologias
    pode colocar em posição de desconforto os que utilizam o termo e são
    por exemplo
    homofóbicos
    ou são daqueles que acreditam que vão para o céu
    ou para o inferno

  • Resposta a Emir Sader (Verónica Gago)

    Resposta a Emir Sader (Verónica Gago)

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    A acusação de Emir Sader  aos que assinamos o manifesto impulsado contra a desposessão da comunidade Shuar a mãos de projetos de mineração megaextrativa e à perseguição dxs militantes de Ação Ecológica é útil: explicita muitas das razões que contribuem ao que ele diz querer evitar: a fraqueza -envolvida em soberbia; do que foi ou é chamado de \”governos progressistas\” e de muitos dos intelectuais que são considerados orgânicos a eles. Vejamos os pontos:

     

    1) O lugar em que localiza às lutas sociais pelo território e pela vida. Ele diz: \”Para além da justiça ou não da reclamação, para além da maior ou menor importância n oassunto\”. O menosprezo que implica esse \”para além da justiça\” e o lugar no qual intelectuais como Sader acreditam ocupar para marcar esse para além, que não é nem mais nem menos que o lugar do calendário eleitoral localizado comoinstância superior, reitera mais uma vez como os conflitos e as lutas concretas só aparecem nomeadas ou convocadas ad referendum da legitimidade de um governo. E quando não contribuem a tal propósito, além de pôr em dúvida sua \”justiça\” ou de relativizar o peso dessa \”justiça\” em relação a uma cena supostamente \”maior\”, são reduzidas a um mero \”assunto\”. De novo: o desprezo às lutas concretas não é mais que uma pirueta para não discutir a articulação dos governos com a trama de negócios com as multinacionais e o modo em que isso se traduz em violências concretas para comunidades concretas. Não se pede um purismo aos governos chamados progressistas, mas um balanço político sobre os efeitos concretos que se escondem uma e outra vez em nome da \”soberania nacional\”.

     

    2) O tempo no qual se localiza as lutas sociais pelo território e pela vida. Diz Sader que nas iminentes eleições presidenciais no Equador do que \”se trata é do futuro do país\”. Temos que entender que as lutas que pedem acompanhar e fazer um pronunciamento público completam contra o futuro? Culpar aos movimentos e organizações que não se quadram é complicado: justifica a sua criminalização em nome de uma soberania abstrata e um futuro, justifica no presente a avançada neoextrativa depredadora. Mas ainda de modo mais irônico, Sader diz que a eventual vitória do candidato opositor ao oficialismo representará \”a devastação da Amazônia e dos povos que a habitam\”. É chamativo como esse \”assunto\” lhe interessa apenas no futuro e como argumento a favor do voto do candidato que apoia Correa (é engraçado incluso que chame atenção sobrea ameaça que vem com a palavra \”desmonte\” de todo o conquistado).

     

    3 )A acusação da construção de alianças e redes de apoio. Sader falar para os intelectuais (em masculino, por sinal). Com isso, primeiramente desprecia às organizações e lutas que são impulsoras do manifesto. Logo, explica que xs assinantes ou estamos enganadxs ou temos má fé ou somos hipócritas porque a equação é simples: apoiar as luras nos territórios é fazer o jogo da direita e enfraquecer ao governo (a escala regional). Na América Latina, esse binarismo conseguiu congelar durante muitos anos as possibilidades de discussão, impossibilitou a muitas litas ter um lugar sem ficar subsumidas na questão de se eram favoráveis ou não aos governos. A ofensiva conservadora e neoliberal da região que estamos presenciando se deve em parte ao modo em que esses espaços de debate internos, de escuta aos movimentos, de crítica não canalha foram desconhecidos, despreciados e, muitas vezes, perseguidos. Ao modo em que se disciplinou desde cima toda crítica às articulações problemáticas entre neodesenvolvimentismo, neoliberalismo e neo-extractivismo. Que agora se insista de novo em culpar à crítica das derrotas eleitorais é, nem mais nem menos, o que permite uma vez mais ficar a salvo e deixar intocado um modo de pensamento político que tem mostrado já seus limites.

    4) A \”ultra-esquerda\” como causa da derrota progressista. Esse argumento, que acusa de complot e de instrumentalismo às alianças entre movimentos e intelectuais críticos, com o só propósito de uma posição \”aventureira\” que procura conseguir um lugar no campo político, não apenas é mesquinha (se atribui a famosa hegemonia do espaço político), mas que por cima de tudo põe à crítica como \”causadora\” de uma ampla rejeição -que ainda não se termina de discutir a fundo- da legitimidade dos governos progressistas, evitando assim problematizar em sério as causas das sucessivas \”derrotas\”. Isso implica não só a infantilização do eleitorado de distintas classes sociais, mas também o desconhecimento de como operam forças bastante mais complexas: as igrejas contra a chamada \”ideologia de género\”, as finanças como formas de exploração das economias populares, as concessões às multinacionais como expropriações diretas às comunidades, etc.

    5) O que Sader chama de \”a disputa maior do continente\” é claramente o modo retórico de defensa abstrata de alguns governos. Que para fazê-lo tenha que despreciar as lutas concretas e se atribuir o \”ser de esquerda\”(nesse caso como sinônimo de defender a situação do Equador) revela um dos maiores problemas do progressismo: o desprezo das forças sociais que não se enquadram e que questionam os cimentos neoliberais que o progressismo no poder não se animou a confrontar. O testo de Sader revela um modo de argumentar mais amplo que é incapaz de dar lugar a uma verdadeira discussão sobre os efeitos perversos e violentos das formas de articulação entre capital e Estado no ciclo dos governos chamados progressistas. Esse fechamento revela bastante de suas recentes derrotas.

     

     

    Texto original de Verónica Gago http://anarquiacoronada.blogspot.com.br/2016/12/respueta-emir-sader-veronica-gago.html

    Artigo do Sader https://www.pagina12.com.ar/11094-a-los-intelectuales-latinoamericanos

     

    Outros textos relacionados com a polêmica:

    http://montecristivive.com/emir-sader-o-la-mendicidad-intelectual/

    Manifesto em defesa da comunidade Shuar: http://anarquiacoronada.blogspot.com.br/2016/12/el-gobierno-ecuatoriano-y-la-doble.html

    http://anarquiacochabamba.blogspot.com.br/2016/12/a-proposito-de-un-articulo-de-emir.html?m=1