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  • O que é um centro social? Ou sobre a Ingobernable (artigo traduzido)

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    Texto original em espanhol publicado em 10 de maio de 2017 aqui:
    http://ctxt.es/es/20170510/Firmas/12653/ingobernable-centro-social-okupas-patio-maravillas-carmena.htm

    Tradução: @_urucum em 11 de maio de 2017

    O que é um centro social? Ou sobre a Ingobernable
    Emmanuel Rodríguez [*]

    Desentulhar, varrer, esfregar… E assim até dar conta de todos os 3.000 metros quadrados do edifício \”Gobernador\” 39, situado em frente ao Jardim Botânico de Madrid, a meros 200 metros da estaçao Atocha. O edifício foi okupado no último 6 de maio, durante uma manifestação convocada com um lema enfático: \”Madrid não se vende\”.

    Desde então, o edifício, há tempos abandonado, tem sido povoado por toda classe de tribos, jovens, advogados, curiosos, ativistas, que circulam por todos os lados atarefados, apreensivos em limpar e tornar o mais apresentável o possível um espaço… gigantesco. Desde então, também, diversas associações e coletivos solicitam cantos para reuniões, oficinas, discussões sobre a situação internacional, sobre a soberania alimentar, espaços para organizar iniciativas que enfrentem o problema dos aluguéis da cidade, que crescem a um ritmo de dois dígitos. Inclusive, muitos dos representantes da nova política, em atitude valente, e sobretudo inteligente (é o caso de Pablo Iglesias e de Alberto Garzón) vem dado boas vindas ao novo espaço.

    Um centro social é uma instituição anômala. Funciona de acordo com lógicas que não estamos acostumados. A vida de um centro social é regulada pelos próprios participantes lá mesmo, sem a mediação de administrações públicas e tão pouco de empresas comerciais. A responsabilidade é coletiva, a atividade é coletiva, a administração é coletiva. Também por isso, muitos centros sociais são realidades extremamente vivas. E podem assegurar isso quem conheceu as distintas sedes do Patio Maravillas, ou previamente dos chamados Laboratorios. Espaços onde todas as semanas passavam literalmente milhares de pessoas para organizar atividades das mais variadas: desde batalhas de rap até bailes de salão, desde assembleias políticas até noites flamencas. Seu êxito reside no fato de que não havia falta de interesse e iniciativa para fazer uso dos espaços.

    Os centros sociais podem parecer anomalias, mas só desde uma perspectiva convencional atada ao que comunica o \”país oficial\”. Apenas na região de Madrid existem cerca de 60 espaços deste tipo. Há os grandes, a ponto de envolver boa parte da vida civil e política de alguns bairros, e há os pequeníssimos, de apenas algumas dezenas de metros, que se dedicam a uma só atividade. Há os alugados e há os ocupados. Há os metropolitanos, como La Ingobernable, empenhada em dar guarida para muitas atividades hoje dispersas pela cidade. E há os rurais, instalados em alguns pequenos povoados e direcionados a promover agroecologia e o consumo local. Na Espanha há mais de 600 centros sociais.

    Nos equivocaríamos, porém, se atribuíssimos esta realidade a uma condição particular ibérica. Se podem encontrar centros sociais em quase todas as grandes cidades europeias. Em Roma ou em Berlim são quase a única opção de ócio para aqueles jovens que não querem passar pela experiência embrutecedora da macro discotecas. Em Berlim, qualquer turista pode acabar em uma festa sob o ritmo de algum repetitivo som industrial, e poderá se surpreender ao saber que o espaço em que se divertiu a noite não era outro que não uma antiga okupa. Em muitas cidades alemãs e italianas os centros sociais são realidades tão comuns que as instituições estão acabando por reconhecê-las, estão deixando de incomodá-las.

    Poucas cidades estão sendo tão inteligentes, neste sentido, como a cidade de Nápoles. Alí, o prefeito, a pedido da maior parte dos movimentos sociais da cidade, está estabelecendo um estatuto particular para os centros sociais. Os espaços napolitanos estão sendo declarados comunes urbanos. Isto quer dizer, simplesmente, que a prefeitura as considera entidades legítimas; e, por sua vez, entidades que não são de sua competência.

    Um comum, um bem comunal, é um recurso que não é propriedade pública (do Estado), mas tão pouco uma propriedade privada. Um comum pertence a uma comunidade que gesta/gere o comum. Um centro social é assim um comum urbano, um espaço em que uma parte da cidadania decide tomar posse, gestionar/gerir diretamente e gerar riquezas que nenhum mercado e nenhuma burocracia seriam capazes de produzir. Curiosamente, essa riqueza, em forma de iniciativas, discussões, criatividade social e cultural, é o que constitui a base da democracia, ao menos quando entendemos que esta é algo mais do que partidos, voto e representação. Se a democracia é sobretudo a ativação cidadã e a participação sem mediações, os centros sociais são um recurso democrático inestimável.

    El Gobernador 39 é um caso exemplar da má gestão de bens públicos e, portanto, das potenciais vantagens de uma gestão comum. O edifício, propriedade da prefeitura, foi sede da UNED [Universidad Nacional de Educação a Distância], e em seguida centro de saúde, até que seus usuários foram transferidos para o bairro Vallecas. Pouco antes de deixar a prefeitura, Ana Botella cedeu o edifício ao arquiteto Emilio Ambasz. O contrato se realizou com legalidade duvidosa e por um periodo de 75 anos. Emilio recebeu a concessão através de sua própria fundação, cujo secretário entre 2008 e 2010 foi Miguel Ángel Cortes, ex secretário de Estado da Cultura e amigo íntimo da família Aznar [**]. Para ser exato, este “conseguidor” profissional acaba de ser marcado pelo fiasco de 28 milhões relacionados ao falido Museu de Arte Natural de Málaga.

    Diante de um PP [Partido Popular] desesperado com escândalos diários de corrupção, a prefeitura de Madrid governada por Manuela Carmena se vê em dúvidas sobre o que fazer com Gobernador 39. Mais uma vez se vê a beira de uma nova guerra cultural contra os aparatos midiáticos do PP, e lembra os tristes casos dos titiriteiros, os tuits de [Guillermo] Zapata ou os trajes dos Reis Magos [***]. Talvez ela pudesse ser aconselhada para neste caso deixar estar, deixar que La Ingobernable gere suas próprias simpatias e sua própria legitimidade. E que entenda que, sem centros sociais, como o Patio Maravillas, onde foi fermentado em grande medida a candidatura de Ahora Madrid, não há mudança.

    Seja como for, se Carmena ainda quiser disputar com o PP (se valendo de argumentos de seu próprio terreno, basta que investigue esse obscuro assunto da cessão do edifício a Emílio Ambasz. Também pode repetir o argumento liberal em relação a propriedade. Os liberais quando eram liberais, e não simples usurpadores de bens públicos, consideravam como valor último da propriedade a sua função social: a propriedade privada só se justifica em razão de sua capacidade de gerar riqueza. Por esse motivo, e em toda a Europa, as revoluções liberais lançaram ambiciosos processos de desamortização do que chamavam de bens em \”mãos mortas\”; terras da igreja e de povos cujo rendimento era considerado muito abaixo do que, ao menos em teoria, proprietários eficientes poderíam alcançar. O argumento dos liberais é um argumento de progresso, não um argumento legal. E com esse argumento ignoraram uma legalidade com vários séculos de história.

    Sobre os resultados da desamortização na Espanha, que muitas vezes produziu o oposto do que se pretendia, não cabe entrar agora. Porém, o argumento a favor de La Ingobernable é parecido. Manter a cessão fraudulenta a Emilio Ambasz ou, em outra direção, continuar a abdicar da administração do edifício e deixá-lo em \”mãos mortas\”. A propriedade comum de Gobernadora 39, o centro social La Ingobernable, é um bem que uma cidade como Madrid, assaltada por contínuos escândalos de corrupcão, não pode prescindir. Esse bem se chama democracia.

    Em grande parte da Europa já entenderam, espero que aqui também.

    Emmanuel Rodríguez – historiador, sociólogo e ensaista. É editor de Traficantes de Sueños e colaborador da Fundación de los Comunes. Seu último livro é \’¿Por qué fracasó la democracia en España? La Transición y el régimen de 1978\’

    ** José Maria Aznar é ex presidente da Espanha

    *** Titiriteros, Zapata, Reyes Magos, recentes \”guerras culturais\” da política madrilenha que se tornaram objeto de ataques conservadores ao governo municipalista, e não deixou de criar tensões internas na confluência de forças que possibilitaram a eleição da Manuela Carmena. Ver por exemplo: http://www.publico.es/culturas/cultura-sigue-siendo-problema.html

  • Mulheres, ocupações e a finitude radical das subjetividades políticas

    por Edson Teles

    Um edifício que até pouco tempo atrás estava abandonado. Agora, dentro se encontram mais de 100 famílias. Passam os dias refazendo as ligações de água, luz e esgoto, se organizando para ocuparem de maneira o mais equânime possível os apartamentos. Experimentam a produção de um comum em meio a tamanha heterogeneidade existencial. São migrantes do nordeste brasileiro, imigrantes da África, mundo árabe, América Latina, paulistanos, cariocas, mineiros. São várias as línguas faladas, mas nada que impeça a comunicação, ao contrário, funcionam como um convite ao encontro do diferente. Estas são cenas do filme “Era o Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé. Mas podem ser vistas em várias ocupações de movimentos populares por moradia.

    O Hotel Cambridge foi uma luxuosa hospedaria paulistana dos anos 50, 60 e 70, localizado no coração da cidade, em uma das principais vias do Centro. Como resultado da especulação imobiliária e do descaso dos governantes com a carência de moradias, o enorme edifício permaneceu por vários anos fechado, abandonado e deteriorando-se. Os movimentos de luta por moradia, como em outros edifícios da cidade, ocupou e iniciou a revitalização do espaço. O filme documentário nos apresenta uma experiência política alargada que poderia auxiliar na reflexão sobre o atual contexto das lutas de resistência.

    Desde o golpe contra a presidente Dilma Roussef se tem conversado, buscado, debatido sobre qual a saída para lidar com as intervenções cancerígenas em ebulição. Como resistir? Parece ser a esta a principal questão. Atônita ou surpreendida pelas estratégias autoritárias das elites dominantes, a esquerda se vê sem ou com poucas ferramentas para lidar com a situação. Por outro lado, se experimenta no país ricas formações políticas em que outros modos de intervenção nas relações sociais associam demandas práticas e cotidianas com a movimentação de novas subjetivações. Uma delas, me parece, está registrada nas cenas do filme de Eliane Caffé. Trata-se da quebra do paradigma masculino, branco, hétero, viril, universais que ainda teimam em ditar normatizações à ação política.

    Talvez o maior registro de subjetividades da ruptura e da resistência no filme esteja na presença de mulheres enquanto eixo organizador das relações humanas, éticas e políticas dentro da ocupação Cambridge. Enquanto uma das principais personagens, Carmem Silva interpreta a si mesma como líder da ocupação. Sempre à frente das ações, assessorada por outras mulheres, Carmem tem de lidar com diferenças culturais e sociais as mais variadas, vulnerabilidades existenciais, carências e fragilidades inerentes às condições de vida daquelas pessoas. Além da organização interna do movimento, da gestão do local e de suas instâncias políticas, as lideranças precisam se haver com as instituições do Estado que constantemente exercem pressão sobre o movimento. Desde a Polícia Militar, passando pelo sistema judiciário, até a interferência do Conselho Tutelar, ameaçando recolher uma criança cuja mãe tem dificuldades em exercer suas duas ou três jornadas diárias de trabalho.

    Também na experiência do imigrante dentro da ocupação a questão de um lugar social da mulher é tematizado quando vemos os homens dentro da Lan House do prédio se conectando com as mulheres que ficaram nos campos de guerra ou em meio aos conflitos sociais nos territórios de origem daqueles indivíduos. Uma mulher se comunica de dentro de um edifício, na faixa de Gaza, cujo cenário de fundo é um espaço urbano destruído por bombas, bem como a parede de seu apartamento está destruída. Neste caso, a ocupação vem de outro Estado, o israelense.

    O que mais chama atenção, do ponto de vista de novos agires, não é tanto a presença de mulheres em funções políticas e fortemente marcadas pelo masculino e suas caracterizações generalizadoras. Isto já vemos acontecer há tempos, nos mais diversos modos do agir, em movimentos e instituições. A diferença, portanto, não está nesta “presença”, mas nas suas funções ou efetividades. O processo político passa por mudanças e, neles, subjetividades diversas e singulares são a demanda dos indivíduos em movimentos. Se habitamos um mundo biopolítico, o corpo deve ocupar um outro espaço, ou estar nos atuais com outra postura.

    As subjetivações, ou subjetividades coletivas, para se produzirem na diferença e por suas próprias singularidades, entram em choque com concepções universalizadas do chamado sujeito político. Os processos de suas produções, bem como suas existências, perecem, têm data de validade, são finitas. As possibilidades eternas, os modos de relações sociais e humanas com base em valores universais, a imobilidade do indivíduo ao se manter dentro de padrões do agir diminui as pretensões e possibilidades de intervir no curso dos acontecimentos. Produz o engessamento da política aprisionando as resistências em caixas pré moldadas.

    Se, ao contrário, compreendermos as subjetividades, o mundo que habitamos e as nossas existências pelo viés da finitude radical, teremos a abertura para formas de resistência nas quais estratégias, mecanismos e tecnologias políticas também serão finitas. É aí que as mulheres, no caso do filme, se encontram com as transformações do contemporâneo. Sua existência social e afetiva já experimenta o viver dinâmico, com rupturas e transformações constantes. Se a finitude é a condição subjetiva da ação, com implicações efetivas nas máquinas políticas, então a questão se coloca de modo mais alargado: trata-se de se questionar o que estamos fazendo neste cenário, qual território me é acessível, por quanto tempo nos encontramos em determinado contexto e o que se faz com ele? O que e como se pode modifica-lo? O que em mim posso transformar para que a política também se modifique? Nesta abordagem é interessante considerar a ação política como processos em elaboração e permanente mudança.

    Para se pensar em atos, éticas e estéticas de resistência seria favorável ter em conta que as formas de dominação se atualizam e se modificam. Inclusive, limitando as possibilidades de dessubjetivações para manter o controle dos indivíduos. Resistir, neste caso, não é somente um ato de grupos sociais organizados, mas também a ação de coletivos ou indivíduos não compostos para a luta. São as sensibilidades poéticas, funcionais, performativas. Corpos e afetos que se reescrevem através de outras configurações urbanas, políticas, amorosas. A proliferação de uma rica formação política ganha em opções com um agir ciente das finitudes e da não eficácia do universal.

    É difícil hoje se esperar pelo líder, pela direção e condução de seus atos por meio da “organização” ciente de um “papel histórico”. Não se trata de desprezar os líderes, de desconsiderar a memória das lutas populares, as formas tradicionais dos movimentos e partidos. Trata-se de somar a tudo isto – que, de certa maneira, já operamos há algum tempo – toda e qualquer criação de intervenções e afetos associados às questões dos negros, das mulheres, das pessoas LGBTs, dos que não possuem, das minorias. Em certos casos, trata-se mesmo de substituir o tradicional pelo novo e inesperado. A “cerimônia do adeus” ao que nos pertencia pode ser uma liberdade para a criação do novo. E se finito, inesperado, fora do controle, mais de resistência se pode apreender com o acontecimento.

    A ação política não estaria nos modelos, tradicionais ou não, mas no cruzamento e na correlação dos componentes heterogêneos, dos processos finitos e radicais. E, por natureza semelhante, esta seria mais a política das sensibilidades afins às mudanças e à percepção do novo.

  • A repressão em seis eventos dessa semana

    (3/5/2017)

    Em apenas uma semana seis eventos gravíssimos aconteceram.

    Os eventos expressam a gravidade do momento em que vivemos no Brasil, talvez uma virada definitiva na conjuntura política. Combater essa avalanche autoritária, as arbitrariedades cometidas, o modo de atuação desse Estado violento e racista que se alimenta da legitimidade social punitivista precisa ser a prioridade de toda a esquerda e aqueles que estão na luta hoje.
    – Três companheiros trabalhadores sem-teto foram presos e continuam presos sem nenhuma prova por estarem se manifestando no dia da greve geral. Amanhã tem vigília denunciando essa arbitrariedade e também o caso do Rafael Braga que continua preso: https://www.facebook.com/events/156199361580725/

    – Ontem (2/5), companheiros refugiados palestinos e antifascistas foram presos porque estavam se defendendo de ataques fascistas e xenófobos produzidos por uma marcha contra imigrantes de um grupo chamado \”Direita São Paulo\” e que contou com todo o apoio da polícia, inclusive, para bater nos palestinos. Para entender mais o que é esse grupo: goo.gl/IYp0TL

    – Mateus Ferreira da Silva, o estudante de ciências sociais de Goiânia, continua internado por ter sido gravemente ferido por um policial militar durante uma manifestação. goo.gl/fOirDS

    – Uma adolescente na região metropolitana de MG foi baleada, na boca, atingida por uma bala de borracha em uma reintegração de posse ILEGAL de uma ocupação. goo.gl/BddH1T

    – O massacre contra indígenas e camponeses também está aumentando de forma preocupante. Uma emboscada armada por fazendeiros e com cumplicidade policial provocou um massacre contra indígenas no maranhão. De acordo com a Pastoral da Terra, 2016 bateu recorde de violência no campo, com 1.079 conflitos por terra, um aumento de 40% em relação ao ano anterior (que teve 771 casos): goo.gl/oTUnso

    – Uma CPI da Funai absurda, armada pela bancada ruralista, agora quer criminalizar lideranças indígenas e amigos antropólogos (Que JÁ estão sendo indiciados!) . O documento é dedicado a um bandeirante. goo.gl/AKyVJe

    Precisamos de redes mais integradas de resistência, muito apoio jurídico, coordenação nas redes, articulações internacionais, proteção para todos e todas que estão sendo criminalizadxs. Exceção é a regra.

    Precisamos estar fortes, atentas e organizadas.

  • Movimentos tradicionais, autonomistas e um novo ciclo de lutas no Brasil. Entrevista especial com Alana Moraes

    Publicado por: http://www.ihu.unisinos.br/567067-movimentos-tradicionais-autonomistas-e-um-novo-ciclo-de-lutas-no-brasil-entrevista-especial-com-alana-moraes

    Por: Patricia Fachin | 28 Abril 2017

    A crise petista transformou a esquerda em um “lugar de muita melancolia”, que produz uma “fixação” por “Bolsonaros”, ao invés de criar “afetos mais potentes para continuar caminhando, pensando novas possibilidades, criando brechas”, avalia a socióloga Alana Moraes na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ela, as tentativas de resposta à crise vêm “clamando por fórmulas que simplificam a questão”, seja no discurso que defende a “unidade das esquerdas”, no grito “Fora Temer” ou no discurso do “pacto pela estabilidade democrática”.

    Ao invés de procurar respostas simples e simplistas, defende, a esquerda precisa se perguntar “o que é ser de esquerda no Brasil hoje”. Ser esquerda, questiona, “é nos mobilizarmos para ter um candidato ‘viável’ para 2018? É nos afetarmos com a prisão dos muitos ‘Rafaéis Bragas’, com os massacres contra camponeses, indígenas, contra os pobres na periferia, contra as mulheres, que acontecem cotidianamente neste país? Construir redes mais eficazes contra a violência estatal? Esse é o momento de perseguirmos essas questões mais de fundo, de nos definirmos mesmo, em comum”. Antes de aderir a uma “unidade das esquerdas”, sugere, é preciso “pensarmos que esquerda somos e o que realmente queremos ser depois dessa experiência do ciclo petista”. E dispara: “2018 será uma consequência feliz ou infeliz do que conseguimos juntos produzir de respostas”.

    Na entrevista a seguir, a socióloga comenta a atuação dos movimentos sociais autonomistas no país e frisa que “a dificuldade de mobilização” que existe hoje “é fruto de uma escolha política do PT e de muitos outros setores ligados ao partido que foram completamente enfeitiçados pela disputa eleitoral, pelos jogos que estavam colocados para que o PT pudesse permanecer no poder, pelos pequenos poderes dos gabinetes”. Apesar disso, Alana aposta que a greve de hoje, organizada pela Central Única dos Trabalhadores – CUT e as Centrais Sindicais, será “uma mobilização histórica”.

    Além da mobilização organizada pelas Centrais, a socióloga menciona que “alguns processos interessantes estão também produzindo essa greve geral: coletivos que estão se reunindo na cidade para colar lambes de convocação como fez o Arrua em São Paulo; o próprio Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST fazendo assembleias em bairros na periferia de São Paulo para chamar as pessoas; os professores das escolas particulares enfrentando, muitas vezes, direções e pais conservadores e aderindo massivamente à greve; o movimento negro mobilizando e convocando para uma ala negra na marcha; os movimentos feministas também convocando bastante”.

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    Alana Moraes | Foto: Arquivo pessoal

    Alana Moraes é graduada em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestra em Sociologia e Antropologia pela mesma universidade, e atualmente cursa doutorado no Programa em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – Como você está avaliando o atual cenário político do ponto de vista das mobilizações sociais? O que tem sido significativo desse ponto de vista?

    Alana Moraes – É interessante porque o Brasil hoje vê desmoronar todo o arranjo institucional democrático representado pela Constituição de 1988, ao mesmo tempo em que a esquerda partidária e organizada também entra em uma crise profunda. Parece que agora vivemos em uma cidade de escombros, nada é muito reconhecível do ponto de vista das estruturas, mas alguns ainda acham que é possível reformar os edifícios, emendar os encanamentos, fiações. Eu sou daquelas que acham que temos que resgatar as coisas mais importantes, claro, mas é preciso não se ocupar muito com os escombros. Temos que construir uma nova cidade, viva, cheia de praças, para que a gente possa se encontrar e decidir juntos o que vai ser nosso projeto de emancipação.

    Tenho pensado muito numa frase do Marx em que ele diz que \”A situação desesperada da sociedade em que vivemos me enche de esperança\”. Penso que podemos e temos o dever de resgatar essa esperança. A esquerda hoje se tornou um lugar de muita melancolia: produzimos essa fixação com “Bolsonaros”, com nossas derrotas, mas precisamos de afetos mais potentes para continuar caminhando, pensando novas possibilidades, criando brechas. Por isso é importante estar conectado com as lutas que surgem hoje. A melancolia também é um efeito do neoliberalismo que nos paralisa, nos deixa doentes.

    Respostas à crise

    Muitos respondem a essa crise das esquerdas clamando por fórmulas que simplificam a questão: \”unidade das esquerdas\”, ou \”primeiramente fora Temer\”, \”pacto pela estabilidade democrática\”. É óbvio que a luta agora tem que ser no sentido de continuar denunciando o golpe e exigir o afastamento do governo ilegítimo, mas no fundo sabemos que o buraco é bem mais profundo. Temos um Estado racista que mata, encarcera, distribui desejo de punição. O Rafael Braga está preso porque carregava um Pinho Sol. Temos que nos perguntar o que é ser de esquerda no Brasil hoje. É nos mobilizarmos para ter um candidato \”viável\” para 2018? É nos afetarmos com a prisão dos muitos “Rafaéis Bragas”, com os massacres contra camponeses, indígenas, contra os pobres na periferia, contra as mulheres, que acontecem cotidianamente neste país? Construir redes mais eficazes contra a violência estatal? Esse é o momento de perseguirmos essas questões mais de fundo, de nos definirmos mesmo, em comum.

    Antes de “unidade das esquerdas”, sinto falta de pensarmos que esquerda somos e o que realmente queremos ser depois dessa experiência do ciclo petista. 2018 será uma consequência feliz ou infeliz do que conseguimos juntos produzir de respostas. Acho que precisamos abandonar a ilusão de que um novo programa de esquerda nascerá de uma ou duas reuniões com intelectuais ou dirigentes partidários. Penso que um programa, um plano de ação em comum, podem dar mais certo na medida em que conseguem produzir encontros, implicar pessoas vindas de lugares diferentes em práticas concretas.

    IHU On-Line – Alguns têm defendido – e até criticado – que o PT vem reconquistando sua hegemonia, inclusive de mobilização entre os setores de esquerda. Na sua avaliação, isso está acontecendo? Por quê?

    Alana Moraes – Acho que nem o PT acredita mais nessa hegemonia. Mas toda a dificuldade de mobilização que temos hoje, e o PT sabe bem disso, é fruto de uma escolha política do PT e de muitos outros setores ligados ao partido que foram completamente enfeitiçados pela disputa eleitoral, pelos jogos que estavam colocados para que o PT pudesse permanecer no poder, pelos pequenos poderes dos gabinetes.

    Esse não é só um problema do PT, é um problema da esquerda internacional. As apostas da social-democracia europeia hoje foram completamente absorvidas pelo sistema. A vida no neoliberalismo é insuportável. Nunca antes as pessoas estiveram tão medicalizadas e deprimidas, se sentem impotentes, não decidem nada das escolhas políticas que realmente afetam suas vidas. Óbvio que querem agora soluções mais radicais, que possam, de alguma forma, chacoalhar o sistema político. Não tem mágica aí: hoje os movimentos que mais mobilizam no Brasil, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST, conseguem fazer isso porque têm conexão com a prática, com o cotidiano das pessoas. O PT escolheu o caminho do Estado, da gestão e, é claro, muitas conquistas importantes surgem daí: a expansão das universidades, valorização do salário mínimo. Mas a experiência do PT no governo nos serve também para pensar sobre os limites de ocupar um Estado sem fazer da luta contra ele, contra essa forma atual de governamentalidade neoliberal que é uma camisa de força, uma máquina de moer tudo a serviço da financeirização e do processo contínuo de espoliação dos mais pobres.

    A esquerda que era oposição ao PT não parece pensar por outros caminhos também: ganhar eleições, construir mandatos, fazer políticas públicas. A receita é bem parecida. Precisamos de outras experiências de politização. Pensar e praticar o que seria modos de vida diferentes: redes de cooperação de trabalho que usem mais a tecnologia e a internet a favor dos mais pobres; novas redes de compartilhamento de cuidados; pensar com mais consistência a autoconstrução de moradias de qualidade contra a propriedade privada e os terrenos vazios para especulação; fortalecer as redes de midiativismo periférico que estão denunciando a violência policial, pensar sobre as disputas territoriais que nos façam ter mais controle de decisão sobre aspectos fundamentais da vida: as escolas, políticas de transporte, postos de saúde. Eu acredito que seja a partir dessas experimentações e da politização do cotidiano que vamos conseguir pensar um outro jeito de ser esquerda e de viver juntos. Isso não quer dizer que devemos abrir mão de disputar o que deveria ser público. As lutas hoje contra os desmontes dos direitos trabalhistas, a reforma da previdência são lutas incontornáveis. Mas uma esquerda que define seu sentido apenas pela disputa do Estado, desse Estado, é uma esquerda que está condenada ao definhamento.

    IHU On-Line – Qual é o impacto ou o legado de Junho de 2013 nos dias de hoje? Como os anseios expressos naquelas manifestações se manifestam ou repercutem ainda hoje?

    Alana Moraes – Os ecos de Junho estão aí quando nos deparamos com todo esse cenário de listas da Odebrecht, delações, acordos. Junho foi o grito ensurdecedor contra esse sistema. Ele começa com uma faísca simples, a indignação contra o aumento do transporte, mas foi a faísca suficiente para questionar toda a engrenagem. Junho sugeriu a possibilidade de radicalizar a luta contra o sistema que engoliu o próprio PT, mas naquele momento o PT quis se posicionar pela manutenção da ordem. Só que a \”ordem\”, demorando mais ou menos, estará sempre contra os de baixo. O PT e a esquerda de modo geral perderam a possibilidade de, com uma mobilização social histórica de 2013, fraturar e desmontar esse grande esquema de funcionamento da política no país. Outras forças se organizaram a partir desse vácuo e o \”Fora PT\” conseguiu responder aos anseios mais conservadores, mas, ao mesmo tempo, as mobilizações da direita tinham um perfil social e uma aparição política completamente diferente do que foi Junho. Junho pedia o fim da polícia militar, enquanto as manifestações da direita pediam mais polícia. A linha de corte é evidente.

    Agora estamos nos equilibrando num fio muito delicado: não podemos achar que a Lava Jato é, de fato, a solução para uma nova ordem democrática, isso é um erro gravíssimo. A Lava Jato expressa, justamente, o poder de outra casta, a do judiciário racista, a mesma que prende o Rafael, o único preso de 2013 hoje. Ao mesmo tempo, não podemos concordar com nenhum pacto de anistia de caixa 2 ou qualquer outro acordo que pretenda salvar esse sistema. Precisamos pensar outros caminhos, mas, enquanto isso, continuar nas ruas denunciando Temer, exigindo novas eleições. O golpe foi cruel porque ele desmonta, por dentro, tudo o que grande parte da esquerda brasileira construiu como estratégia: o pacto lulista, o nacional-desenvolvimentismo que se alimentava de propinas, o agronegócio, que além de destruir nossas florestas, de exterminar populações indígenas, terminaria votando pela família e por Deus contra o governo que mais o favoreceu. No fundo, a luta de classes prevalece, é o Martírio, filme impactante de Vincent Carelli, esse Brasil que permanece insubmisso, existindo pelas bordas.

    IHU On-Line – Muitos pesquisadores têm chamado a atenção para a mudança no modo de atuação dos movimentos sociais nos últimos anos, os quais já não seguem uma hierarquia e são mais difusos se comparados aos movimentos tradicionais. Nesse sentido, pode nos dar um panorama sobre o modo de atuação dos movimentos autonomistas nos dias de hoje? Que mudanças identifica entre antigos e novos movimentos, quem participa de movimentos sociais hoje, quais são as práticas desses movimentos e como eles se relacionam com a esfera pública?

    Alana Moraes – Gostando ou não dos governos petistas, ninguém diria que o Brasil de hoje é o mesmo de dezesseis anos atrás. As formas de pensar e fazer luta, de se organizar, também estão mudando, ainda que coexistindo com as tradicionais formas de representação, cada vez mais em crise, como os partidos e sindicatos. O próprio Movimento Passe Livre – MPL, aliás, passou por uma crise importante desde 2013, e os debates produzidos nessa crise por eles são bons debates para pensar os problemas desses caminhos mais autônomos também. É difícil definir o que são os movimentos autonomistas hoje, é uma constelação bastante diversa de pequenos grupos que vêm misturando debates sobre formas de organização mais horizontais com outros debates sobre concepção de luta revolucionária, sobre o papel da classe trabalhadora, formas de conscientização, trabalho de base, tática etc. Podem misturar, por exemplo, como influências de forma de organização o zapatismo, mas, do ponto de vista da relação com a classe trabalhadora, apostar em estratégias de \”proletarização\” de seus militantes, como os trotskistas faziam aqui na década de 1970 nas fábricas.

    Acho que vivemos em uma fase de experimentações políticas e isso é muito interessante, mas não gosto muito de saídas nostálgicas que fetichizam a classe trabalhadora ou que se colocam essa tarefa de \”conscientizar\” o outro, a \”classe\”. Acho que é a prática de uma vida coletiva em comum que pode criar pertencimentos e nisso acredito pouco nas receitas da ortodoxia marxista e muito nas práticas feministas.

    Coletivos

    Outra coisa que explode no Brasil hoje são os coletivos de negros e negras e os coletivos feministas. Isso representa uma mudança subjetiva avassaladora. Hoje não se faz mais um debate na esquerda ou na universidade só com homens ou um debate sobre periferia sem negros e negras, sem gente da periferia, não se pode mais fazer isso sem consequências. E aqui a esquerda tem caído em uma armadilha. Vejo muita gente, de autonomistas a leninistas, dizendo que as novas lutas negras e feministas estão \”dispersando\” a \”verdadeira luta de classes\”, que elas são \”cooptadas pelo sistema\”, são \”pós-modernas\”. Mas o que é a \”classe\” no Brasil? A classe é uma mulher negra que trabalha fora e dentro de casa cuidando de outros, mal paga. Não é possível falar do neoliberalismo hoje sem falar do encarceramento em massa de negros que ele produziu, sem falar do feminicídio que explode, sem falar de um modelo de exploração permanente do corpo e da vida das mulheres, que servem de colchão para toda crise econômica e social que o próprio sistema produz. Então, eu diria que nada é mais ameaçador para a ordem capitalista do que mulheres feministas e negros e negras que se organizam. Toda a concepção de trabalho, de valor, e até mesmo de quais as vidas merecem ser vividas no capitalismo é produzida com os pilares do patriarcado e do racismo.

    Existe uma desconfiança em relação à \”esfera pública\” generalizada. Entre aspas mesmo, porque sabemos hoje que ela não é democrática, pública, ou igualmente acessível a todos e todas. Talvez o que toda essa constelação de novos movimentos esteja produzindo, como ecologia política, seja novas possibilidades de radicalização democrática. Quando os secundaristas ocupam suas escolas, entre outras coisas, é para dizer que eles próprios devem poder decidir sobre suas vidas, sobre suas escolas, contra uma gestão autoritária e burocrática. A divisão existente em muitos partidos de esquerda, que separa dirigentes-formuladores de política daqueles que executam tarefas, essa divisão não faz o menor sentido para essa nova geração. Não podemos pensar uma nova institucionalidade que seja mais aberta, mais democrática, sem pensar as formas tradicionais de organização das esquerdas.

    IHU On-Line – Como a esquerda, em geral, reage diante desses movimentos difusos? Eles podem ser considerados como movimentos ligados à esquerda?

    Alana Moraes – Quando o chamado novo sindicalismo surgia nos anos 1970, 1980, fazendo grandes greves e depois durante toda a discussão de formar um novo partido da classe trabalhadora, o PCB, que era a \”esquerda tradicional\” da época, dizia que criar o PT seria um gesto inconsequente, que atrapalharia no processo da abertura democrática e que o verdadeiro partido da classe era o PCB. É muito curioso que agora muitos dirigentes do PT estejam falando a mesma coisa desses novos movimentos, coletivos, do próprio processo de mobilização de Junho de 2013. Eu acho que o binômio novo X velho talvez não nos ajude hoje, ainda mais nessa conjuntura de reação conservadora. Precisamos pensar juntos novas formas organizativas, e hoje eu não vejo nenhum partido de esquerda realmente aberto a isso.

    A esquerda cria um universo próprio, com um vocabulário próprio, é autorreferente; o marxismo, muitas vezes, é tristemente transformado em cartilhas. A derrota sofrida pelo PT no Brasil é uma derrota de toda a esquerda, e penso que se não estivermos suficientemente abertos para formas de organização mais porosas e democráticas, mais conectadas com os novos \”chãos de fábrica\”, escolas, universidades, agroecologia, ocupações urbanas, coletivos de arte, se o programa político não estiver fortemente vinculado com as lutas da vida real, com as possibilidades de construir espaços de resistência ao neoliberalismo, acho que vamos demorar ainda mais tempo para levantar da lona. Não tem atalhos.

    IHU On-Line – Que futuro vislumbra para os novos movimentos sociais? Que impacto eles podem ter no âmbito público, por exemplo?

    Alana Moraes – Acho que vivemos um novo ciclo de lutas. O MTST, os secundaristas das ocupações, os coletivos que discutem direito à cidade, os coletivos feministas, o novo movimento negro, os coletivos antiproibicionistas, a proliferação de coletivos periféricos, o midiativismo, os advogados ativistas, os movimentos de mães de vítimas de violência policial, os coletivos de arte que estão explorando outras linguagens e formas políticas, os hackers e aqueles que discutem hoje o problema da segurança na internet, de uma comunicação livre, de uma alimentação livre de veneno, enfim, acho todos esses compõem o que seria essa nova geração política.

    É claro que o sindicalismo mais tradicional combativo ainda é muito importante, mas hoje temos novos atores em cena e que colocam novas questões – nada nos autoriza a jogar fora as experiências passadas, assim como combater as novas experiências de luta. É uma ecologia política bem interessante e que fala muito sobre o novo Brasil. Com a crise da forma-partido enquanto forma de organização, o que precisamos pensar hoje é o que seriam os novos espaços de confluência para que essas experiências de resistência possam se encontrar mais; como podemos pensar mais ações conjuntas, nos fortalecer mutuamente, nos reconhecer e ir produzindo nossos vínculos porque eles não são imediatos, ao contrário, eles são fruto dos encontros, do trabalho de construção de novas comunidades políticas.

    No final dos anos 1990, começo dos 2000, tínhamos o Fórum Social Mundial que, com todos os limites, nos permitia pensar juntos e nos formar também coletivamente. É preciso retomar esse fio e pensar o que seria hoje esse espaço, quais seriam as novas questões e possibilidades de atuar juntos. Não podemos perder também a possibilidade de criar redes internacionais de resistência, nos conectar com aqueles e aquelas que estão pensando o esgotamento do modelo progressista na América Latina, por exemplo. A recente convocação para a greve de mulheres, a campanha feminista do “ni una menos”, nos interpelam também para pensar desse lugar das alianças internacionais.

    IHU On-Line – Outro ponto da sua pesquisa é o estudo das novas configurações da classe trabalhadora no Brasil. Em que consistem essas novas configurações, como e desde quando elas estão ocorrendo?

    Alana Moraes – A classe trabalhadora no Brasil sempre foi muito heterogênea. Essa classe que imaginamos, masculina e industrial, ainda que muito relevante, só existiu de forma significativa em São Paulo. Nos últimos 30 anos, a forma de acumulação de capital mudou muito, assim como o trabalho. Com o domínio crescente do capital financeiro, as formas especulativas tornam-se cada vez mais importantes. A classe de assalariados transforma-se agora em uma classe de endividados. A tradicional relação capital-trabalho que se dava em um espaço delimitado (empresas, fábricas etc.) perde importância na produção de riqueza, o setor de \”conhecimento\” torna-se o setor mais dinamizado do capital e a classe trabalhadora desloca-se majoritariamente para o chamado setor dos \”serviços\” e dos cuidados. Esse deslocamento é o que faz também com que muitas pessoas procurem outras formas de sobrevivência, como os pequenos negócios, as pequenas produções familiares, o trabalho dos \”bicos\”.

    Com essa nova espacialidade do trabalho, com o fim das grandes fábricas e espaços de produção, fica mais difícil a organização dos trabalhadores nos locais de trabalho. Como diz o geógrafo David Harvey, toda a cidade se transforma agora em uma grande fábrica. Ainda temos um grande setor da classe trabalhadora que se relaciona com o desemprego constantemente. Junta toda essa fragilidade com uma vida impossível nas nossas cidades, com o déficit habitacional, o aumento dos aluguéis pela dinâmica da especulação imobiliária.

    A pergunta que ainda não sabemos responder é: se o sindicalismo correspondia, enquanto forma organizativa, a uma classe trabalhadora do começo do século XX, quais as formas possíveis de auto-organização da classe do começo do século XXI? A esquerda precisa pensar se a figura clássica do \”trabalhador\” pode ainda mobilizar essas novas subjetividades que emergem desde as dinâmicas neoliberais (e suas resistências cotidianas!) ou se a produção de identidades coletivas migrou também para outros lugares.

    É uma pergunta. Não sabemos bem, mas não podemos deixar de pensar nela e não podemos mais alimentar a nostalgia fordista querendo que as fábricas voltem para que nos situemos. A classe trabalhadora mudou radicalmente e pode não construir tanta identidade assim com o trabalho (já que os trabalhos \”que restam\” são trabalhos extremamente precários, extenuantes, pesados), mas com outras dimensões da vida, e por isso a igreja evangélica tem um papel fundamental. O combate ao neoliberalismo também passa por recriarmos formas de convivência, por exemplo, que produzam outras formas de solidariedade e cooperação, novos modos de existência.

    IHU On-Line – Sua pesquisa de doutorado trata sobre a produção da vida em comum e os caminhos da politização do cotidiano entre os sem-teto na periferia de São Paulo. Como a pesquisa está sendo desenvolvida?

    Alana Moraes – A minha pesquisa parte de uma pergunta simples, mas que hoje transformou-se quase em um não-problema para a esquerda e para a própria universidade: como se vive junto? Como é possível produzir uma vida em comum, um espaço compartilhado, pertencimentos coletivos em um mundo neoliberal marcado pelos processos constantes de esgarçamento dos tecidos sociais, pela transformação do mundo do trabalho, pela crise urbana?

    Na minha opinião, o MTST é um movimento incontornável para entender o Brasil de hoje. Ainda que seja um movimento de quase 20 anos, o MTST explode e emerge na cena política com mais protagonismo em Junho de 2013. Portanto, é também fruto de 2013, de algum modo. As ocupações de sem-teto nas periferias de São Paulo são um grande laboratório de produção da vida coletiva. Pensar a alimentação, cozinhas coletivas, como fazer as mediações de conflitos de todo o tipo, a limpeza, as inseguranças de falar em assembleia, o desemprego, separações conjugais, a relação com as crianças, com a fé.

    Na ocupação do Capão Redondo, fizemos uma rádio comunitária e temos também um cursinho popular para jovens, um salão de beleza autogerido, um bazar de roupas usadas. Construímos parede por parede, fiação por fiação. É um mundo extremamente feminino também. São as mulheres que cuidam das relações, as \”tias\” que, de alguma forma, também fazem novos parentescos, \”o movimento tem que entrar no sangue\”, como elas dizem. Na semana passada, fizemos uma roda de conversa só com mulheres sobre trabalho produtivo e reprodutivo na ocupação. Eram mais de 100 mulheres no barracão, e na hora da apresentação quase 90% das mulheres ali ou se apresentou como \”desempregada, do lar\”, ou \”faxineira\”, \”diarista\”, \”cuidadora\”, \”babá\”. Duas mulheres trans, em condição de prostituição, que trabalham à noite, também participaram da atividade. Fiquei pensando que se fosse uma reunião feminista na USP, teria um monte de tensão, mas ali no Capão, evangélicas, prostitutas, mulheres que cuidam, produziram um espaço incrível de formação coletiva e de convívio possível, pensando, por exemplo, o que fazemos com nosso escasso tempo livre. É muito importante pensar o tempo livre. As mulheres praticamente não têm esse tempo: estão sempre trabalhando, cuidando de tudo.

    Minha pesquisa segue os problemas colocados nessa feitura cotidiana das possibilidades coletivas, das práticas compartilhadas de trabalho e cuidados – elas são bem anteriores às cenas que costumamos ver como propriamente \”políticas\”: as manifestações, os embates públicos. Muitas pessoas chegam nas ocupações extremamente fragilizadas, quadros graves de depressão, ansiedades, insônias crônicas, alcoolismo. No entanto, a vida coletiva cura e estou muito interessada nisso também, em como podemos nos curar coletivamente. Eu me esforço muito para não elaborar um conhecimento sobre os sem-teto, mas um conhecimento com eles e elas, com a relação que estabelecemos nas tarefas e afetos de todos os dias. Nossas práticas de ciência precisam também estar situadas e posicionadas politicamente. Não é mais possível, nem desejável, produzir uma política ou um conhecimento de vanguarda, afastado dessas questões que só acontecem quando estamos implicados com algo, com relações, com uma causa coletiva. É um aprendizado de pensar a partir da demanda que a luta nos coloca.

    IHU On-Line – Qual é a expectativa para a greve geral anunciada para esta sexta-feira? Sendo a greve promovida pela CUT e pelas Centrais Sindicais, qual é a expectativa de adesão da população?

    Alana Moraes – Eu acho que vai ser uma mobilização histórica. Para mim, é um exemplo de como o processo prático de construção coletiva pode nos levar para lugares mais interessantes, podemos falar com mais gente. Alguns processos interessantes estão também produzindo essa greve geral: coletivos que estão se reunindo na cidade para colar lambes de convocação como fez o Arrua em São Paulo; o próprio MTST fazendo assembleias em bairros na periferia de São Paulo para chamar as pessoas; os professores das escolas particulares enfrentando, muitas vezes, direções e pais conservadores e aderindo massivamente à greve; o movimento negro mobilizando e convocando para uma ala negra na marcha; os movimentos feministas também convocando bastante.

    Por isso é importante que as estruturas sindicais repensem também o uso dos grandes carros de som que quase sempre impõem uma hierarquia muito grande nos atos e abafam qualquer possibilidade de outras expressões, impedem até que as pessoas conversem. Penso que nossas possibilidades de resistência estão muito vinculadas com a produção de outras espacialidades políticas também, espaços que permitam mais o encontro, que falem para mais gente e que permitam (e distribuam!) mais a própria condição da fala.

  • A periferia contra o estado? Para escapar das ciências tristes! Criemos outras possibilidades

    Por Alana Moraes, Henrique Parra, Hugo Albuquerque, Jean Tible e Salvador Schavelzon | Imagem: Gavin Adams

     

    Cagaram mil e uma regras de conduta
    Eu mandei pra puta que pariu
    E sorri, feliz.
    Jenyffer Nascimento

     

    No último dia 25 de Março, a Fundação Perseu Abramo apresentou os resultados da pesquisa Percepções na periferia de São Paulo, trabalho que era destinado, nas suas próprias palavras a \”compreender, de forma profunda e detalhada, os elementos que têm formado a visão de mundo e o imaginário social nas periferias da cidade de São Paulo\”. Dentre suas conclusões, o estudo considerou que \”a mistura entre valores do liberalismo, do individualismo da ascensão pelo trabalho e do sucesso pelo mérito, com valores mais solidários e coletivistas relacionadas à atuação do Estado, à universalização de direitos, à ampliação da inclusão social, permeiam a visão de mundo e o imaginário dessa nova classe trabalhadora das periferias de São Paulo\”, gerando intensos debates e conclusões peculiares. A pesquisa da FPA foi movida por uma pergunta inicial: \”por que os pobres não votam mais no PT?\”.

    A pesquisa diz muito mais sobre si mesma e sobre a \”visão de mundo\” que a informa, do que potencializa novas perguntas e entendimentos sobre os processos sociais em curso. Curioso observar as leituras que surgiram dos resultados publicados. De uma lado, uma esquerda que se apresenta esgotada, sem assumir uma crise de paradigma constata que o território que pensava como próprio foi ocupado pelo inimigo.De outro lado, aparece uma direita triunfalista, que celebrou com matérias ou editoriais nos grandes jornais os resultados da pesquisa da FPA, no que aparece para eles como capitulação do estatismo de horizonte socialista frente a um liberalismo que é pano de fundo de uma sociedade aberta, do livre mercado, o mérito e o encerramento do conflito ideológico no campo social.

    A pesquisa serve a ambos os propósitos. Porém, outras possíveis leituras se abrem nas fissuras que permitem escapar de um mundo de binarismos, homogeneizações, e guerras culturais ancoradas nas disputas ideológicas do século 20. Esses lugares são os que mostram que a história não acabou, mesmo que algumas formas de construção política de fato não sejam mais possíveis. Bairros organizados para lutar por moradia e transporte, respostas políticas da população que não necessariamente se alinham com escolhas eleitorais. Um tránsito sinuoso, de ondulações e curvas, mostra também a possibilidade de outra ciência e outra política, que não pretende completar o trabalho da civilização ou do catequismo, e não assume como episteme as fronteiras impermeáveis de um indivíduo-cidadão, da sociedade organizada pelo Estado, nem do mercado, do trabalho e da propriedade privada como únicos, permanentes e estáveis de organização.

    Todo o debate gerado em torno da pesquisa, nos fez pensar também que disputar o que \”são\” os pobres é uma armadilha que só pode ser desativada por outras práticas de pesquisa, outros lugares de posicionamento. Essa inquietação a respeito do fundo no qual as questões foram postas nos parece um bom problema de partida: que modos de conhecer podem contribuir para a criação e potencialização de projetos coletivos de autonomia?

     

    Descer a torre e pensar pelas frestas: ritos de desautorização

    \”Por que os pobres não acreditam mais em nossa promessa de salvação?\”. É uma pergunta que ecoa através das décadas. Nas teorias clássicas do populismo, ao menos na sua primeira geração, os pobres eram \”cooptados\”, imersos em uma cultura rural e atávica cujo sentido era conferido pelas relações clientelistas. Estavamos fadados a ter uma classe trabalhadora vulgar, sem consciência, movida por interesses econômicos, quase sempre manipulada. As teorias sociológicas estavam lá para comprovar – isso, é claro, até migrantes nordestinos do ABC paulista restituirem de vez a dignidade da classe contra a teoria. Na cidade de São Paulo, o sindicalismo da oposição metalúrgica, nesse mesmo período, produzia intelectuais-operários e convocava intelectuais das universidades para pensar as possibilidades de luta e autonomia dentro das fábricas. A explosão do movimento operário nos anos 70/80 em São Paulo, assim como os movimentos populares de bairro, emergiam na cena política questionando a velha divisão entre sujeito e objeto, que em um dos seus desdobramentos, também se expressa na divisão que separa a vanguarda política da classe trabalhadora. O desejo de radicalização democrática se insurge também contra as fronteiras do pensamento e a autoridade de enunciação.

    De volta a um período de fechamento democrático, com intensificação das práticas autoritárias estatais, surge também uma necessidade renovada de pensar outras formas políticas que, dentre outros deslocamentos, consiga mais uma vez questionar as formas de produção de conhecimento. Nos deparamos hoje com um mundo em intensa transformação: as formas do trabalho mudaram radicalmente assim como as formas de representação, que hoje econtram-se em crise.

    O que propomos aqui é uma investigação coletiva que seja demandada pelos problemas que surgem de um novo ciclo de resistência, e que possa assim contribuir para desestabilizar a separação hierarquizante das formas de pensar e agir no mundo. Nossa proposta é simples: uma prática de pesquisa que atue pelas demandas concretas das resistências ao modo de vida neoliberal. É preciso também rejeitar a crítica ao \”pensamento intelectual\” que vem ecoando entre nós mesmos, lutadores e ativistas. Para superar esses impasses, nosso desafio é ainda maior: afirmar que é da luta e das criações de novas formas de vida que podem nascer reflexões intelectuais criativas e potentes. Da mesma forma, afirmar que não há potência de pensamento que não esteja fortemente implicado em processos coletivos de transformação. Não há pensamento criador sem luta, como não há luta sem produção de conhecimento.

    Assumir uma prática de pesquisa na qual estamos todos posicionados, implicados em causas e processos coletivos. Não nos é mais permitido fazer uma ciência ingênua. As feministas bem sabem que sem o corpo, sem a compreensão da economia de relações que fazem os próprios \”sujeitos\”, suas vulnerabilidades, sofrimentos e cotidianos não é mais possível fazer conhecimento, muito menos política. A crença na existência de sujeitos prontos – seja ele o sujeito da classe, seja ele o novo sujeito periférico é uma crença masculina que nunca leva em conta todo o trabalho anterior de relações, vínculos, alimentação, pertencimentos que produz pessoas, pensamentos, \”opiniões\”. Trabalho esse muito mais imprescindível em contextos populares. O movimento negro emergente no Brasil também tem produzido formulações imprescindíveis para pensar as formas de ciência. Pensar, por exemplo, como o racismo atua profundamente nas subjetividades, impedindo de forma violenta com que os sujeitos tenham acesso a sua própria fala: como levar à sério essas formulações nas práticas de \”aplicação de questionários\”, por exemplo?

    A dinâmica dos questionários pode ser muito cruel quando ele se torna uma inquisição averiguadora de \”valores\” dos pobres. Se a aposta for no mundo do discurso sobre a realidade, não tenham dúvida, ao menos no mundo ocidental, ele sempre estará do lado dos valores dominantes – da periferia de São Paulo ao Bronx. Uma política renovada precisa pensar outras formas de conhecimento sobre a realidade que não estabeleça tribunais, mas ao contrário, que se afete pelos interstícios, pelos escapes – que não negue a dominação, mas que consiga pensar apesar dela.

    Uma ciência que se compromete com a epistemologia das classes dominantes não pode ser outra coisa que não um retrato triste do pensamento colonial e da impotência política, ora pacificando as experiências dos pobres em categorias estranhas como o \”liberalismo popular\”, ora culpando os próprios pobres por não entenderem nunca as engrenagens da sua própria dominação. É também a expressão de um mundo intelectual que só consegue pensar a si próprio como a vanguarda iluminada da classe – distante, pedagógica, mas intacta em suas certezas.

    No entanto, a vanguarda nunca está lá – se estivesse, saberia, por exemplo que o apelo a imagem do \”empreendedorismo\” é evocada entre várias camadas de experiência: do pragmatismo das \”virações\” cotidianas de quem sempre foi excluído do assalariamento (especialmente mulheres) até o desejo de poder trabalhar sem um patrão. Quando a pesquisa identifica no \”empreendedorismo\” um \”liberalismo popular\” joga fora, de uma vez só, toda uma experiência de classe forjada entre migrações, industrialização e desindustrialização, desempregos constantes, assim como toda a dinâmica pragmática de uma economia popular feita por cabeleireiras, motoboys, faxineiras, ambulantes, as pessoas dos \”serviços gerais\”, a classe que vive do cuidado.

    A pesquisa dispensa também os intelectuais da classe que pensam a periferia porque sentem o que isso quer dizer e desobedecem, mais uma vez, as cercas que pretendem separar \”pensadores\” de \”objetos\” de conhecimento: movimentos populares, os artistas periféricos ou que constrõem relações com a periferia, as redes de cursinhos populares, movimento negro, feministas, secundaristas, aqueles que fazem as novas batalhas de slam, os saraus – deixam de pensar também a partir das tensões geracionais que hoje explodem dentro da própria classe. Uma pesquisa sobre os \”pobres\” que se pretende crítica dos poderes dominantes – da ciência ao golpismo – deveria convocar aqueles que estão produzindo pensamento na periferia, nos emaranhados de suas contradições e modos de vida, para pensar desde as hipóteses iniciais até às interpretações dos dados. Toda pesquisa deve ser também a possibilidade de encontros.

    Uma das consequências não previstas da ampliação do acesso à universidade no Brasil, com todos os limites desse processo, das transformações recentes na sociedade brasileira, foi a entrada massiva dos mais pobres, negros e mulheres nas universidades; a proliferação de coletivos feministas, coletivos negros, a luta por melhores condições nas universidades. Um processo não desprezível de tomada de assalto dos lugares de enunciação do conhecimento e que estabelece, pouco a pouco, ritos de desautorização da figura do homem branco intelectual portador da ciência. Desautorizam também as arenas de disputas em torno do que são ou devem ser os pobres. Nos convidam, mais uma vez, a embaralhar as fronteiras que separam pensamento e luta, transformar as práticas de fazer conhecimento.

    Não queremos afirmar a \”experiência\” como um lugar de autoridade: ela é um campo atravessado por inúmeros fatores e circunstâncias. Ela também é produzida por poderes e contra-poderes, violência, a vaga na creche que nunca chega, a passagem que aumenta novamente. No entanto, uma prática transformadora de conhecimento deve por isso apostar na fricção com a experiência ao mesmo tempo que deve também recusar, sempre que possível, a autoridade de um saber \”explicativo\” e especializado. A pesquisa do Eder Sader sobre a periferia de São Paulo nas décadas de 1970-80, por exemplo, já levava muitas dessas questões e era movida tambem por um espírito de criação emancipadora e coletiva que apostava na relação orgânica com a classe para pensar outros caminhos de ação. Aliás, naquela época, a desconfiança dos pobres em relação ao Estado já era evidente. No entanto, muitos intelectuais petistas como Eder Sader extraíam dessa desconfiança, proposições radicais sobre novas formas democráticas.

    Para derrotar o modo de vida neoliberal, precisamos voltar a perseguir problemas complexos. Eles estão por todos os lados, são produtos também das próprias praticas de resistência. Seria um problema muito mais interessante, por exemplo, pensar como é possivel que essa fração de classe que a pesquisa identifica como \”liberal\” e \”solidária aos seus empregadores\” seja também aquela que compõe a base social de movimentos sociais como o MTST. Pensar os problemas levantados pelas experiências de arranjos comunitários em curso: cozinhas coletivas, práticas de educação popular, produções artísticas que vem construindo novas linguagens e dispositivos de \”politização\” mais horizontais, as novas experiências de clínicas públicas de psicanálise, os coletivos de comunicação e midiativismos periféricos. É que as verdadeiras questões dão trabalho (nascem do trabalho de toda construção coletiva!) e, no fundo, precisamos escolher se vamos pensar com a classe (a classe preta, mulher, jovem, universitária), sobre ela ou contra ela. Pensar, finalmente, como a classe é feita e não dada.

     

    Para além do binarismo Estado X Mercado

    A esquerda que só se concebe do lado do Estado, e contra o mercado, também pode ser produtora de subjetividade neoliberal, criando condições para que, no final do caminho, o sujeito revolucionario transmutado em consumidor do mercado, dispense suas vanguardas e padrinhos, sem que a transição a um governo abertamente pro mercado, por mais diferente, não se constitua em clivagem determinante para a vida das famílias da periferia.

    O estudo da FPA conclui inequivocamente que a recusa ao Estado, e afirmação de alternativas a ele, são liberalismo. As massas pobres das periferias só poderiam estar alienadas, embebidas no sonho do mercado. A resposta, e antes dela, a pergunta, diz mais, novamente, sobre quem a fez do que quem a respondeu. Os pobres sujeitos à repressão sistemática do Estado mediante o aparato de segurança e, por outro lado, excluídos dos modos de autopreservação e cuidado público – a educação, a saúde etc – deveriam amar o Estado – e ainda que este funcione mal, talvez, deveriam ter a consciência do seu funcionamento ideal. Deveriam?

    A mesma conclusão esbarra em uma armadilha conceitual: como poderia o liberalismo ser contra o Estado? Não foi sob o regime neoliberal que se constituíram enormes redes de repressão policial, desenvolvimento bélico, apropriação dos fundos públicos e expropriação do patrimônio coletivo, espionagem de cidadãos e de fantásticos aparatos de aprisionamento e punição? O liberalismo, ainda que conteste o \”Estado grande\”, jamais atuou no sentido de sua abolição, tampouco advogou pela sua diminuição de garantidor da ordem capitalista.

    As multidões periféricas, ao conseguirem habitar, cuidar de sua saúde e se proteger da violência física perpetrada pelo Estado, podem ser mais anti-liberais do que as tais estruturas anti-liberais: a ideia vã de uma dicotomia entre Estado e Mercado, quase como uma batalha do fim do mundo, gera um sistema no qual em um polo está um Mercado planejado pelo Estado e, no outro, um Estado a serviço de um Mercado — a despeito dos arranjos e das gradações, Estado e Mercado estão sempre ali, interdependentes.

    O liberalismo pode ser inclusive interpretado como provocação e resposta dos pobres, frente ao Estado da esquerda que não oferece saídas políticas viáveis, nem projetos de sociedade sedutores, e menos ainda o mercado, frente ao qual os pobres sabem, sim, reivindicar o Estado ou, quem sabe, um outro lugar para além da representação e burocratização da vida.

    O binômio Estado X Mercado apresentado pela pesquisa perde de vista uma das principais engrenagens do modo de funcionamento do neoliberalismo que, para avançar, precisa que mercado e Estado produzam uma coexistência intrinseca: seja nas ações publicas orientadas por critérios de \”produtividade\” ou \”eficácia\”, a \”gestão de resultados\” ; seja no papel crescente das polícias como garantidoras extra-legais da propriedade privada, da especulação imobiliária e na criminalização dos movimentos questionadores da ordem de mercado.

    Se a romantização dos pobres e da pobreza é um equívoco, isso não pode ser dito nem pensado sem uma necessária desromantização do saber técnico, neutro e, literalmente, iluminado da ciência pura que se pressupõe, ainda hoje, uma espécie de demiurgo, de ente transcendental capaz de organizar o mundo a partir de seu local privilegiado de observação.

     

    Uma ciência comum para uma política do comum

    Toda ciência fabrica mundos. Um ato de descoberta científica produz novos objetos, novos processos, novos sujeitos e com eles surgem outras recomposições do mundo. É por isso que podemos dizer que a ciência é também política, no seu melhor sentido. Ela cria novas partições, novas dobras e novos pertencimentos com o real. Na sua versão etnocêntrica e colonial, no entanto, a ciência é política no mal sentido; ela fecha mundos, se interpõe sobre caminhos divergentes, ela \”limpa\”, \”barra\” as diferenças, classificando e organizando tudo no lugar narcisista do Eu. É política do poder, da ordem e do progresso.

    O desafio de construir outras formas de produção de conhecimento exige também a invenção de outras formas políticas. Como seria essa ciência comum potencializadora de outros mundos compartilhados? E o que pode acontecer se partirmos de uma perspectiva parcial, situada e incorporada e que fosse movida pelos problemas dos modos de existência? O que acontece se renunciarmos de partida às ambições projetivas e as totalidades pré-constituídas ou mesmo à eleição de um ponto de vista privilegiado a partir do qual explicamos todo o ordenamento do social? Se todo saber é também poder, como seria produzir um saber insurgente de uma forma política também desconhecida?

    Inspiramo-nos aqui na experiência de diversos movimentos sociais, comunidades afetadas (por problemas de saúde, desastres, conflitos etc), minorias organizadas que a partir de sua experiência e saberes produzem junto a outros atores cognitivos e políticos (pesquisadoras e pesquisadores profissonais ou amadores, ativistas, gestores engajados entre outros), novas formas de organização e luta simultaneamente à produção de conhecimentos contra-hegemônicos. Neste processo, surgem também novos sujeitos políticos. Encontros de saberes e formas diferentes de vida interessadas na co-criação de mundos. A experiência de mulheres que se organizam e que produzem saberes que interrogam as práticas e protocolos médicos, num ataque direto à biopolítica dos sistemas de saúde; os trabalhadores então invisibilizados ou silenciados que criam seus centros de pesquisa e documentação e confrontam as estatísticas oficiais (como foi a criação do Dieese); indígenas e quilombolas cujos saberes são indissociáveis da produção das formas de suporte à vida em comum; hackers e suas comunidades cujas práticas modificam o regime de visibilidade da vida contemporânea tecnicamente mediada, produzindo política através de tecnologias aparentemente neutras, criando clivagens que dão a ver os novos processos de produção de valor e as técnicas renovadas de governo das populações.

    Se criamos espaços de escuta novas linguagens podem ser inventadas (ao invés de ficarmos operando mediações que encaixam o pensamento dos outros em nosso mundo). Talvez seja mais do que tradução, mas a pura invenção de uma outra linguagem comum, por isso, também criadora de outras comunidades políticas. Os regimes de subjetivação que nos constituem são muito heterogêneos. Se desejamos criar novos entendimentos, capazes de fazer proliferar a multiplicidade do real, teremos que aceitar as indeterminações e os trajetos experimentais. Disputemos a imagem do laboratório! Ao invés da sala limpa, pensemos num laboratório contaminado. Nossa hipótese é de que podemos constituir um novo laboratório (que fabrica novos sujeitos, novos objetos, novos mundos) junto àqueles que estão produzindo novas formas de vida em comum, agindo contra o desmanche de algo que é comum e encontra-se ameaçado pelas forças em jogo. Porém, este comum não é necessáriamente conhecido ou visível. Ele é aquilo que é produzido entre todos, e não para todos. Mas justamente por isso, é frequentemente imperceptível. Ele pode ser o silêncio da noite, a qualidade do ar que respiramos, o tempo que temos para cuidar dos próximos, nossos trajetos na cidade e até o trabalho que temos (como é difícil definir hoje as bordas do trabalho e do não-trabalho!).

    Como seria a política dessa forma de conhecer? Talvez, ela também seja inventada justamente ali onde se produz a vida mais ordinária. Nossa hipótese, é que esta forma de conhecer surge simultaneamente à formação de novas comunidades políticas que, para além do regime da representação, produzem a política de forma imanente à vida. Se ela realiza no presente sua política, não é que ela seja prefigurativa da forma política a se construir noutras escalas. Sua política é da ordem de uma singularidade. Ela é menor, situada, parcial, incorporada, da mesma forma que o conhecimento que a produz.

    Apostamos que nesta forma de conhecer por meio desta política do comum, novas individuações coletivas – de ordem transindividual – podem emergir. Por isso, não há forma política a ser preenchida. E isso é o mais difícil no atual momento. Manter os canais de enunciação, de práticas cotidianas, de formas multiplas de pertencimento, todos abertos à proliferação de outras formas de vida (mais solidárias, mais emancipatórias, mais autônomas etc) também demanda a capacidade de lutar contra todas as formas de opressão, homogeneização, sujeição e exploração. Essa forma de conhecer que desejamos praticar com essa política, é sempre feita a favor de algo e contra algo.

     

    Conclusões tão precárias como a classe: por outras práticas de pesquisa-luta

    Uma ação política emancipatória que realmente queira sair de seu beco sem saída precisa, sem dúvida, atravessar os muros que nos separam não apenas fisicamente, mas os muros que interditam o desejo, o pensamento, as práticas de existência em comum

    O problema da liberdade e da emancipação coletiva, da construção de mundos que buscam superar opressões e muros, é um problema que nos situa, todos e todas, em um terreno comum. Isso quer dizer que, apesar de todas as experiências de lutas, das mais vitoriosas até as derrotadas, apesar de todas as teses, ensaios, questionários, não há fórmula-guia que possa nos confortar e mostrar a salvação. Não sabemos. Ou apenas sabemos que nosso saber não pode ser interposto a outros saberes. Não há um plano pronto a ser executado e nesse sentido, toda pesquisa que se pretende comprometida com um projeto de transformação deve conter, desde o início, a possibilidade de experimentações e criações. A relevância de uma pesquisa engajada pode ser testada pela possibilidade que ela oferece de fazer sentido para as pessoas, em suas vidas comuns, para a produção de novos mundos.

    Perseguimos a hipótese de que um conhecimento ativo pode ser produzido a partir dos ruídos com a experiência, extrapolando os lugares de autoridade e ser o resultado de alianças e relações entre diferentes saberes situados e desejantes de um projeto comum. Não é mais permitido (ou legítimo) produzir um saber sobre os \”outros\” de modo instrumental, reificado e não-solidário. Nossa prática de investigação se deseja híbrida e acontece no meio, no entre pesquisa-luta, sua terceira margem. Em certo sentido, é uma forma de conhecer antiga, mas que no atual contexto adquire novas configurações graças às metamorfoses nos regimes de poder e suas formas de saber: os antigos centros de produção de verdades e seus dispositivos, multiplicaram-se e há também novas concentrações, fazendo emergir novos campos de lutas.

    Um laboratório ocupado por corpos e saberes interpelados pelo problema da fabricação de um mundo em comum. Pesquisadoras, pesquisadores que sejam capaz de farejar onde estão as dobras que podem nos mover, as questões que os poderes dominantes tentam esconder a qualquer custo, que possam produzir interferências no sistema hierarquizado de saberes e que possam, de fato, sonhar com outros mundos mas também praticá-los. Enfim, abandonar o delirio de fazer uma ciência neutra que revele as \”percepções\” dos pobres (pra quê? pra quem?) e ensaiar novos laboratórios povoados de corpos, afetos, interferências.

    Fazer mundos exige escuta, é entender com outros, exatamente o que precisa ser feito: novas infraestruturas para a vida coletiva; espaços que possibilitem decisões coletivas sobre a vida comum, pensar o compartilhamento dos cuidados, gerir o problema do desemprego e produzir novas sustentabilidades, criar novas práticas de co-formação que possam se multiplicar, redes de proteção contra violência do estado, novas linguagens e, dessa forma, apontar para outras formas de vida que não estejam encerradas no binarismo Estado X Mercado. Pensar com outros – levar à sério as diferenças, suas contradições, formas de vida, práticas de existência. A classe sempre está por fazer-se, não há uma susbtância a ser revelada.

    Contra a melancolia da vida neoliberal e suas práticas de conhecimento impotentes, cultivemos os afetos alegres de uma ciência implicada e comprometida com a produção de formas de vida em comum, mais solidárias e emancipatórias.

     

    Publicado também em: http://outraspalavras.net/brasil/quer-dizer-entao-que-a-periferia-e-liberal/

  • Da revolução feminista e o problema do comum Bruxas de todos os mundos: distribuí-vos!

    Alana Moraes*

    Como narrar um mundo no qual nós, mulheres, fomos continuamente exiladas, expulsas, condenadas? A história é, sobretudo, o terreno dos vencedores – e a metáfora uma arma de neutralizar o acontecimento. Buscamos por isso a matéria prima da fala, pausas, gestos, silêncios, o grito. Somos o fim da possibilidade interpretativa e sua autoridade significadora. É assim que contamos nossas histórias. É do mangue, da espessura anônima que recebe tudo que morre e tudo que nasce. É da rua sem saída, das encruzilhadas, das cozinhas abafadas e dos segredos que fabricamos nossa poética e nossas alianças. \”Gostariam de acreditar que eu fui derretida no caldeirão. Mas não fui, nós não fomos\”, diz Gloria Anzaldúa. 

    Talvez seja necessária uma ruptura com a própria linguagem – a língua do opressor. Porque é urgente destruir o sentido metafórico em nome do qual, durante séculos, a história das bruxas foi congelada. Nossas falas são herdeiras daqueles e daquelas que fizeram da língua um lugar corporificado – em feitiçaria as palavras funcionam como matéria. Elas vibram como flechas: circulam, atingem, transformam, fazem pegar. A palavra desautorizada que age no mundo provocando temor aos altares do discurso oficial: da medicina aos governos, dos velhos aos novos hospícios, do casamento à solidão das mulheres (em situação de) prostitutas.

    Evocar todas as bruxas para contar uma história sobre o fim do mundo – quantas vezes já assistimos essa história? Escovar a história à contrapelo. Uma poética benjaminiana da redenção dos vencidos – das vencidas! – como única possibilidade de futuro. Não é inteiramente verdade que as bruxas foram mortas e caçadas em nome de um “obscurantismo religioso”. Não! Elas foram queimadas também em nome de um futuro. Um futuro fabril, assalariado, masculino e moderno. Um futuro cromado, veloz e imponente. Um futuro desenhado entre grossas e protegidas paredes anunciado por vozes militares e pálidas, futuro neurótico cheio de medo do mundo.

    Stengers, bruxa belga, diz que “os verdadeiros herdeiros dos caçadores que queimaram as bruxas , são as ciências humanas que transformaram esse mundo em não-acontecimento:  um mundo de pobres velhas – dizem eles – era apenas uma questão de superstição.”

    Em Caliban e a Bruxa, Silvia Federici, bruxa italiana, nos oferece um tratado de rendenção. Contar a história do surgimento do capitalismo como a história de uma guerra contra as mulheres.

    Nossa pergunta ecoa e persegue os labirintos dos séculos: Por que um dos maiores massacres da história – aquele cometido pela igreja, pela intelectualidade da época, pela nascente burocracia estatal, pelas elites econômicas – um massacre que exterminou, perseguiu, torturou milhares de mulheres – por que essa história de uma violência originária foi apagada século após século? Por que a história desse massacre foi pacificada em fábulas, transformou-se em folclore, fez com que gritos de liberdade se transformassem em canções de ninar? Nós sabemos.

    Conectar o pré-capitalismo com o pós-capitalismo em um sobrevoo trans-histórico – nem tão baixo que nos possa enganar a visão, nem tão alto que possa nos embriagar na vertigem de uma história transcendente, essa que se proclama a ciência histórica que tudo vê com os olhos de deus. O vôo das bruxas, ao contrário, é sempre um vôo entre camadas, polinizador. Voar pelos interstícios. Fertilizar. Somos herdeiras dos deslocamentos, da lua cheia, das tecnologias fúngicas, pensando com Tsing (2015), contra o ideal tão arraigado de domesticação da monocultura, “pelo menos o da domesticação de mulheres e de plantas” (Tsing, 2015:180).

    Recuperar o início da história do capitalismo para não esquecer que a “caça às bruxas” atingiu seu ápice na Europa entre os séculos XVI e XVII, ou seja, em uma época na qual as relações feudais já estavam dando lugar às instituições econômicas e políticas típicas do capitalismo mercantil.

    Para não esquecer que a caça às bruxas, antes de se disseminar como uma guerra acusatória contra as mulheres, foi organizada por um aparato administrativo oficial. Política de Estado – com todas as letras maiúsculas. O Estado foi feito a partir desses escombros de destruição de uma vida em comum e incorporou em sua burocracia as imagens dos nossos pesadelos: um grande pai, o protetor, o juíz, o caçador, encarcerador, o dirigente.

    A “caça às bruxas” foi o modo pelo qual as mulheres foram expropriadas de seus próprios corpos, controle reprodutivo e da vida comunitária. Nas propriedades coletivas, típicas do modo de produção feudal, ainda que a divisão sexual do trabalho existisse, não havia, entretanto uma hierarquização radical entre os trabalhos. Foi preciso o trabalho assalariado – aquele que se dava fora do espaço coletivo – para que a hierarquia se instaurasse. Expropriadas da possibilidade da produção comunal, excluídas do trabalho assalariado, as mulheres foram aos poucos sendo empurradas ao espaço doméstico e ao trabalho inesgotável e não pago da reprodução da vida e da nova \”força de trabalho\”. Uma verdadeira fábrica social capaz de produzir a mão de obra e reproduzi-la cotidianamente. Diria Silvia que a ameaça da fogueira ergueu barreiras mais formidáveis ao redor dos corpos das mulheres do que aquelas levantadas quando as terras comunais foram cercadas.

    “Marx nunca poderia ter suposto que o capitalismo preparava o caminho para a libertação humana se tivesse olhado sua história do ponto de vista das mulheres”.

    A acumulação primitiva não é um momento originário, como pensava Marx, mas a forma pela qual o capitalismo administra suas próprias crises de tempos em tempos: expropriação massiva de trabalhadores agrícolas e camponeses, encarceramento em massa, a escalda da violência e perseguição contra as mulheres, novas diásporas de trabalhadores migrantes e em consequência movimentos de perseguição a esses trabalhadores. A escalada do feminicídio como expressão do esgarçamento contínuos do tecido social – o ódio dos caçadores nunca nos abandonou. A violência doméstica quase sempre começa com uma punição pelo não cumprimento de um trabalho doméstico – e o feminicidio é uma comunicação da soberania masculina pela morte de um corpo não domesticado, uma língua envenenada. O estado que destrói nossas possibilidades associativas e práticas hermanadas é o mesmo que nos promete justiça. Não acreditamos. O capitalismo é uma guerra perpétua às mulheres.

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    O pacto fundador do capitalismo moderno é a guerra contra as mulheres na Europa, a guerra contra os povos indígenas e depois a escravidão negra nas colônias. Guerra também epistemológica – porque foram modos de pensar o mundo, modos de pensar pela interdependência, pelo prazer que foram sistematicamente apagados e lançados nesse abismo inelegível da “superstição”. Guerra ontológica porque precisou destruir modos de existência.

    Nos julgamentos por bruxaria, a “má reputação” era prova da culpa. A bruxa era também a mulher desobediente que “respondia”, discutia, insultava e não chorava sob tortura. No entanto, ainda pixamos em algum muro de Hanói ou Cochabamba: “Somos mais do que hereges, somos pagãs!”.

    É preciso não esquecer também do papel da nova moldura familiar: complemento do mercado, instrumento da privatização das relações sociais e, sobretudo, da propagação
    da disciplina capitalista e da dominação patriarcal, a família surgiu no período de acumulação primitiva também como a instituição mais importante para a apropriação e ocultamento do trabalho das mulheres. Apagamento dos nossos corpos, criações e autonomia. Um novo regime de regulação doméstica e patriarcal do trabalho.

    Hereges do novo mundo moderno. Hereges do regime assalariado. O capitalismo não seria possível sem esses dois cercamentos fundamentais: o das terras e da possibilidade comunal por um lado, e por outro, o cercamento dos nossos corpos e a transformação deles em um terreno inesgotável de apropriação de trabalho. Hereges do futuro.

    Elaboramos em todo esse tempo um idioma de protesto corporal contra a disciplina do trabalho. Em São Caetano do Sul, no subúrbio da cidade de São Paulo, fez-se o aparecimento do demônio para várias operárias de uma nova seção onde se fazia a escolha, classificação e encaixotamento de ladrilhos na Cerâmica São Caetano S.A. Durante vários e sucessivos dias, no ano de 1956, mulheres desmaiaram no chão de fábrica depois de verem demônios espreitando.

    Final dos anos oitenta nas fábricas de eletrônicos da Malásia, centenas de mulheres são possuídas por demônios e desmaiam constantemente na linha de produção.

    Somos mais do que o chão da fábrica poderia suportar.

    É preciso por isso saber herdar a experiência das bruxas, saber evocá-las para pensar também uma outra política – uma política do meio, como nos sugere Stengers – que não seja apenas obcecada pela micropolítica, mas também que não se perca nos caminhos inférteis da macropolítica – essa que faz, muitas vezes, o trabalho do capitalismo: descuidar dos vínculos, das pequenas alianças, das constituições dos nós. Reapropriação dos meios de reprodução.

    Uma “política do meio” é uma politica extremamente pragmática. As bruxas são extremamente pragmáticas. Verdadeiras técnicas da experimentação. Nossas perguntas devem ser:  “como as relações funcionam?”,  “de que materiais são feitos os vínculos?”. Conhecer o terreno, entender suas propriedades, desestabilizar continuamente as fronteiras que separam o corpo da terra, o trabalho da vida – as bruxas foram representadas voando em suas vassouras porque sempre desprezaram as fronteiras.

    Esse saber de terreno, pragmático, nos faz pensar as feituras cotidianas desse mundo materialmente sempre provisório e que só́ pode ser sustentado por uma prática constante de produção de relações. 

    O que as bruxas possuíam – e ainda possuem –  é uma poderosa tecnologia de pertencimento. Hay que mezclarse entre diferentes! Como nos diz a bruxa boliviana Maria
    Galindo: entrar juntas e assaltar às mesas desordenando tudo. A comunidade também pode ser um lugar privilegiado da reprodução patriarcal, como ela mesmo nos conta sobre o Bem Viver. Por isso, n
    os resta produzir as alianças insólitas, as alianças proibidas entre putas, lésbicas, indígenas. Uma co-mu-na-li-da-de radical feita de implicações e diferença. Tornar-se capaz de fazer e pensar porque se pertence a algo. Não é possível ser livre sozinhas, sabemos. Por isso precisamos de círculos, rituais de experimentação do viver juntas. Precisamos reativar o corpo e a festa.

    Evocar também as mulheres que foram às guerras. As bruxas soviéticas que estiveram na linha de frente para nos contar que a guerra não tem rosto de mulher – “somos gente da comunhão”, nos lembra Svetlana, bruxa ucraniana,  falando entre os escombros femininos da guerra contra o nazismo. Evocar Rosa Luxemburgo, Bruxa comunista, profanadora da política com o “p” maiúsculo – aquela que também lutou contra as cercas do Partido, da nação, contra a guerra e suas honras masculinas. Por um comunismo-feiticeiro!

    As bruxas curdas e a produção de um novo confederalismo ecológico;

    A bruxa negra Ângela Davis, a mulher mais perigosa do mundo – diria a nação com o maior poder bélico desse mesmo mundo – lutando também contra as cercas das prisões, nossa nova escravidão.

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    As bruxas zapatistas e a produção cotidiana do entramado comunitário; O primeiro levante zapatista, em março de 1993, foi liderado pelas mulheres.

    A bruxa Louise Michel, sobrevivente da Comuna de Paris, deportada para a Nova Caledônia, lá onde conheceu o povo Kanak e se indigenizou.

    As bruxas, milhares, de bruxas-sem-teto e suas cozinhas coletivas, o compartilhar dos cuidados, os modos de produção da vida são «princípios operativos» :  o poder está nas infra-estruturas! “Os homens só sabem dar opinião”, elas dizem. O poder está na cozinha e sua política de experimentação.

    Evocar as novas bruxas-secundaristas, tomando de assalto suas escolas, corpos, cabelos e sexo contra o Estado.

    A socialidade nos excede. O perigo do saber das bruxas vem dessa tecnologia poderosa de produzir relações, fazer funcionar, pensar com o mundo vivo para além do Estado. “tramas que geram mundos” – como diz Raquel Gutierrez, bruxa mexicana.

    “O mais anti-capitalista dos protestos é cuidar de alguém e cuidar de si. Levar a sério a prática feminilizada e historicamente invisibilizada de cuidar, alimentar, receber. Levar a sério a vulnerabilidade, a fragilidade, a precariedade de cada um e dar apoio, honrar, fortalecer. Proteger uns aos outros, fazer e praticar comunidade. Um parentesco radical, uma socialidade da interdependência, uma política do cuidado “, nos diz Hedva, Bruxa norte-coreana.

    O capitalismo precisou destruir a feitiçaria para perpetuar seu projeto de modernidade. “Elas creem, nós sabemos” – é o que eles dizem. Mas o capitalismo é, ele próprio, um sistema de feitiçaria sem feiticeiros, para terminar com essa imagem nos oferecida pela bruxa belga. O mundo enfeitiçado da mercadoria. O que nos permite resistir às capturas é um processo muito radical de fabricação de conexões. Produzir substâncias de desenfeitiçamento pela pratica experimental de estar junto.

    “O que é importante não são nunca as filiações, mas as alianças e as ligas; não são os hereditários, os descendentes, mas os contágios, as epidemias, o vento. As bruxas bem o sabem” – Para terminar com Deleuze, o filósofo que inventou o devir para poder experimentar também a bruxaria.

    O futuro comunista é feito de contágios, das alianças insólitas e malditas – mas sobretudo, é pragmático e imanente. Tem a ver com o saber das bruxas de fazer funcionar os corpos em relação. Criar sentidos e práticas do comum contra as cercas. Saber herdar a bruxaria. “Manter a brasa viva”, nos convida Silvia Cusicanqui, bruxa aimara, para que o fogo possa pegar novamente.

    * Antropóloga e militante feminista

  • Nota de apoio ao MTST. Contra a escalada da repressão aos movimentos e lutas no Brasil!

     

    Companheiros/as,

    Um coletivo de entidades de defesa de Direitos Humanos (Cendhec, Gajop, CPDH e RENAP-PE), gabinetes de parlamentares progressistas (Edilson Silva e Ivan Moraes Filho), assim como as comissões de \”DHs\” e de \”Prerrogativas das/os advogadas/os\” OAB estiveram desde o final da tarde de quarta-feira, dia 22 de fevereiro,  na central de flagrantes de Recife. Nessa tarde uma manifestação do MTST na Companhia Estadual de Habitação foi interrompida por uma ação policial sem ordem judicial e terminou com a prisão do advogado do movimento e manifestantes de forma arbitrária. 
    Participantes idosos, mulheres e crianças foram agredidos/as pela polícia, \”balas de borracha\” e munição letal foram utilizadas, advogadas/os foram agredidos verbalmente e impedidos de acompanhar a ouvida de testemunhas. Houve pelo menos duas e pessoas atingidas por balas comuns e que foram atendidas em hostpitais da área.
    Recebemos também notícias de que um dos detidos teve duas costelas fraturadas durante a detenção no ato e está com hemorragia interna no HGV.
    Sem diálogo nenhum com a delegacia. Imputaram tudo e mais um pouco: tentativa de incêndio; dano qualificado ao patrimônio; Associação criminosa; resistência à prisão.
    Os detidos foram transferidos/as para o fórum do Recife nesta quarta-feira (22/02) para audiência de custódia. Pedimos aos parceiros/as das entidades de defesa de DHs e movimentos que comparecessem  e acompanhassem  a audiência junto aos familiares dos militantes presos. A mobilização foi importante para conquistar a liberação dos militantes detidos. As acusações, no entanto, estão mantidas. 
    A ação é um padrão de ação policial que afronta o próprio Estado de Direito e que potencialmente afetará todos/as nós.
    =========Inglês============
    Comrades,
    In the afternoon ofthe 21rst of February, a demonstration led by the MTST (Homeless Workers Movement) protesting in front of the government agency Housing State Company was interrupted by a police attack, no warrant served. The repression included the arbitrary detention of the movement’s lawyer and of many more demonstrators.
    On the same day, a collective composed of several Human Rights organizations have come together at the police station in the Brazilian city of Recife, where those detained had been taken to. Organizations include Cendhec -Centro Dom Helder Câmara, Gajop – Legal Support for Popular Organizations, CPDH – Environment State Agency, and RENAP/PE –National Popular Lawyers Association, progressive members of the State Assemblies (Edilson Silva and Ivan Moraes Filho), as well as the Human Rights and Lawyers’ Prerogative commissions of OAB (National Bar Association). 
    Elderly protesters, women and children were injured by the police. Both rubber bullets and live ammunition were deployed, lawyers were verbally abused and stopped from accompanying the hearing of witnesses. There were at least two people hit by standard metal bullets and they are receiving medical attention in local hospitals.
    We have also received reports that one of the men detained has suffered injuries to his ribs, which were cracked during detention. He is currently in Getulio Vargas Hospital, bleeding internally.
    There was no dialogue once inside the police station. Many charges were brought against the demonstrators: attempted arson; damage to property; association with criminal intent; resistance to arrest. 
    Those detained were transferred to Recife’s Courts on Wednesday (February 22) for a custody audience. We have called our partners in Human Right defence organizations, other movements and relatives to join us as we followed the audience. The mobilization achieved the release of the arrested militants, who were released on the same day. However, the charges were mantained.
    The aggression is a pattern of police action that affronts the very Rule of Law and potentially will affect all of us.
    ========Espanhol==========
    Compañeras/os
     
    En la tarde del 21 de febrero, una manifestación dirigida por el MTST (Movimientode Trabajadores sin Techo) que protestaba en frente a la Companhia Estadual de Habitação [agencia gubernamental de vivienda] fue interrumpida por un ataque dela policía, sin orden judicial. Larepresión incluyó la detención arbitraria del abogado del movimiento y demuchos más manifestantes.
    Ese mismo día, en la comisaría de la ciudad brasileña de Recife, adonde fueron llevados los detenidos, se reunió un grupo de organizaciones de derechos humanos. Las organizaciones incluyen Cendhec (Centro Don Helder Câmara), Gajop (Apoyo Jurídico a Organizaciones Populares), CPDH (Comité Permanente por la Defensa delos Derechos Humanos) y RENAP / PE (Asociación Nacional de Abogados Populares), parlamentares progresistas de las Asambleas Estatales (Edilson Silva e Ivan Moraes Filho), las Comisiones de Prerrogativa de los Derechos Humanos y de los Abogados de la OAB (Asociación Nacional de Abogados).
    Ancianos/as, mujeres y niñas y niños fueron atacados/as por la policía con balas de goma y munición letal; los/las abogadas/os fueron agredidos/as verbalmente y se les impidió acompañara las/los testigos. Hubo por lo menos dos heridos por balas comunes, que estánsiendo atendidos en hospitales de la zona. También se nos informó que a uno delos detenidos le quebraron dos costillas durante la detención y está internado en el Hospitla Getúlio Vargas con una hemorragia interna.
     
    No hubo diálogo una vez dentro de la comisaría. A los detenidos se los acusa de todo: intento de incendio; daño calificado al patrimonio; asociación con intensión criminal; resistencia a la detención.
     
    Los detenidos fueron trasladados a los Tribunales de Recife el miércoles 22 de febrero para una audiencia de custodia. Llamamos a los/las compañeras/os delas entidades de defensa de DDHH y otros movimientos para que se uniesen anosotros y a los familiares para acompañar la audiencia. La movilización logró la liberación de los militantes detenidos en lo mismo dia. Todavia, se han mantenido los cargos. 
    Fue una acción policial que secontrapone al proprio Estado de Derecho y que potencialmente nos afectará a todos/as.
    créditos: Tradução Tática
    Read more:
    http://www.mtst.org/mtst/nota-do-mtst-brasil-sobre-a-violencia-da-policia-na-cehab-e-a-criminalizacao-do-movimento/
    Diário de uma detenta e nove detentos:  nao.usem.xyz/af1d
  • Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército

     

    Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército

    acácio augusto

     

    O Espirito Santo é um dos estados mais violentos da federação. Há décadas figura nas primeiras posições em taxa de homicídios, taxa de encarceramento e assassinato de mulheres. Basta consultar os últimos Atlas da Violência, Mapa do Encarceramento e Mapa Violência. Essa violência, como não poderia ser diferente, remonta ao estilo de colonização da região. A colonização pela espada e pela cruz esteve orientada aqui para que o estado servisse de barreira de proteção às riquezas das minas gerais. E mesmo recentemente, quando no começo dos anos 2000, os índios Tupinikin e Guarani resolveram enfrentar a multinacional Aracruz Celulose (hoje FIBRIA), foram duramente reprimidos pela Polícia Federal e por tratores, no sangrento janeiro de 2006. Em resumo, a violência é regra e não exceção no estado. Há menos de um ano, o assassinato de um jovem em Jardim da Penha, Vitória, despertou alguns poucos que ainda se incomodam com isso [nota 2].

    Recentemente o estado tem sido lembrado como exemplo de superação em relação à política penitenciária. Após abrir os famosos “micro-ondas”, carceragens de zinco em formato de contêineres, e ser denunciado no CIDH, a política de superencarceramento do Espírito Santo ganhou aporte federal. Hoje, passados quase 10 anos e a propósito das cabeças que rolaram ao norte do país, a imprensa nacional olha para o Espírito Santo como modelo a ser seguido. Seu secretário de Justiça hoje, Walace Tarcísio Pontes, integrante da equipe de Paulo Hartung, mesmo governador da época dos contêineres, se gaba de ter zerado as mortes e controlado o “caos prisional” no estado. Em matéria da BBC Brasil, ele declara que sua palavra-chave é “arquitetura-prisional” e após investir mais de R$ 500 milhões, o estado passou de 13 par 35 unidades prisionais [nota 3]. Descentralizadas e inspirada em prisões estadunidenses que impedem a comunicação entre pavilhões e proíbe a entrada de comida e material de higiene trazidos pela família, essas modernas instalações substituem os chamados cadeiões com eficácia, como se orgulha o ilibado gestor. No entanto, pesquisadores que acompanham de perto essa política de aprisionamento da miséria no estado, mostram que nem tudo são flores e que a “arquitetura-prisional” foi erigida com violentos procedimentos de tortura sistematizada [nota 4].

    No entanto, mesmo com um histórico deste, o estado ficou de fora da farra orçamentária da segurança pública que circundou a realização dos megaeventos. Como se sabe, especialmente estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, tiveram uma volumosa renovação de equipamentos, treinamentos, contratação de pessoal, etc., como resposta às revoltas de junho de 2013 e adaptação às exigências internacionais para realização dos megaeventos. Pois bem, o Espírito Santo ficou fora disso tudo e tem hoje uma PM pré-Copa. Militares são constitucionalmente impedidos de fazer greve. Mas seus familiares decidiram prostrarem-se diante dos quarteis da Polícia Militar reivindicando ajuste salarial (alegam que a categoria não o tem há 7 anos), plano de saúde familiar (alegam que o Hospital Militar está abandonado) e auxílio alimentação, uma promessa não cumprida pelo governo do estado. A mobilização dos familiares começou na noite de sábado, 4/2/17, mas foi na manhã de segunda que o discurso de pânico e desordem produziu seus efeitos. Via aplicativos de mensagens e redes sociais digitais, os relatos e vídeos de lojas saqueadas, carros roubados e violência generalizada foram se avolumando desde o final de semana, até que na tarde de segunda, 6/2/17, a Região Metropolitana da Grande Vitória se tornou uma cidade fantasma.

                         

    Deste momento em diante as coisas se passam como se fosse um resumo em ato das ficções jurídicas que justificam o Estado nos livros jusnaturalistas do século XVII e XVIII. A ausência de autoridade instala a “guerra de todos contra todos” e é preciso uma autoridade centralizada e forte que estabeleça a lei e a ordem. Foi o que o secretário de segurança do estado, André Garcia, fez: convocou o Exército Brasileiro e a Força Nacional de Segurança para (re)estabelecer a ordem. Em pouco tempo, as mensagens com relatos e vídeos de lojas saqueadas foram sendo substituídas por imagens de abordagens dos homens do exército e imagens apavorantes de corpos empilhados no DML (Departamento Médico Legal de Vitória), que teve sua capacidade excedida. No entanto, o que foi anunciado como guerra de todos contra todos, logo se tomou uma caçada de homens armados e fardados contra quem se aventurou a não respeitar o toque de recolher. No DML, as imagens dos corpos mutilados eram de corpos, como diz a canção, todos pretos, ou quase pretos de tão pobres. Para um paulistano vivendo em Vila Velha/ES, a lembrança do maio de 2006 [nota 1] e o massacre de 500 pessoas pela polícia e grupos paramilitares de extermínio foi imediata. Aqui, até o momento, os números oficiais falam em mais de 60 corpos.

    No entanto, tudo isso, infelizmente, não é novidade quando se pensa na repressão regular dos dispositivos de segurança do Estado. O que mais me impressionou foi que, no final da tarde de segunda-feira, conforme os carros e caminhões do Exército Brasileiro (a Força Nacional de Segurança diz chegar durante o dia 7/2/17) foram ganhando as ruas desertas, as pessoas saíam nas sacadas dos prédios para saudá-los, batendo palmas e gritando vivas. No exato momento me veio à mente a cena do filme do grego Costa Gravas, Missing, que em português recebeu o nome de Desaparecido, um grande mistério, de 1982, baseado em história real contada no livro de Thomas Hauser, The Execution of Charles Horman: An American Sacrifice, de 1978, que conta o desparecimento de um jovem jornalista estadunidense durante o golpe de Estado do General Augusto Pinochet, no dia 11 de setembro de 1973, no Chile. Neste filme, cada vez que os caminhões do exército passavam nas ruas, logo após o golpe, as pessoas saíam nas sacadas das mansões para aplaudir os militares. É claro que não quero comparar, muito menos mostrar similitude entre momentos dispares no tempo e no espaço. Na forma de relato expresso apenas uma memória imagética e cinematográfica que me acorreu ao ver as pessoas em suas sacadas, nas quais antes se batiam panelas, agora aplaudindo o exército tomando as ruas da cidade. No entanto, em ambos os casos fica claro uma coisa: não se condena a violência em si, mas apenas aquela violência que parece não estar a serviço de sua segurança e felicidade.

     

    Outra relação um pouco aflitiva com o filme retomado em minha memória imagética é que o protagonista do filme, Ed, pai de Charles Horman, vai ao Chile e procura mobilizar as autoridades de seu país natal para saber o que aconteceu com o jovem jornalista desaparecido. Ed, junto à esposa de Charles, Beth, corre delegacias, hospitais, embaixadas até descobrir que seu filho foi “desaparecido” por agentes do exército e se encontra emparedado no Estádio Nacional de Santiago, junto à outros opositores do Golpe. Essa lembrança me leva a pensar nos pais, mães, irmãs, esposas, irmãos que começarão a mesma jornada de reconhecimento de corpos e esclarecimento dos fatos com os possíveis “desaparecidos” desta noite de estado sítio no estado do Espírito Santo. Com a diferença de que seus filhos, irmãos e companheiros não são nem jornalistas nem cidadãos da nação mais rica e poderosa do mundo.

    Por fim, sem a menor intensão de estar produzindo uma análise para além de um relato com impressões [nota 5], há uma última questão a ser levantada. Muito se falou que a partir da greve da PM no estado, a população do Espírito Santo ficou refém de “marginais” e da “criminalidade”, isso pode até ser verdade, durante algumas horas e/ou dias, mas podemos ver as coisas de outro jeito também. Quando aqui chegaram os colonizadores, eles diziam encontrar um povo “sem fé, sem lei e sem rei”. Pois bem, por meio da violência e de um brutal etnocídio instaurou-se aqui a fé, a lei e a autoridade centralizada (seja ela do rei, do povo ou da nação). Mais de 500 anos depois, uma simples greve daqueles que mantém a lei e a ordem pela violência, é capaz de instaurar a desordem, atiçar a ânsia em tomar na marra tudo aquilo que se repete a exaustão que se deve ter, mas não se pode comprar. Numa equação simples, se por horas ou dias a população ficou refém da criminalidade, por toda vida ela é refém da polícia. Assim, a força maior vem para pacificar e instaurar a ordem contra aqueles que ainda subsistem, aqueles que insistem em viver nessa civilização sem fé, sem lei e sem rei. O que mostra, a despeito de todas a explicações filosóficas, sociológicas e históricas, que vivemos sob uma autoridade que é tão brutal, na mesma medida em que é extremamente frágil, pois encontra-se em guerra permanente contra uma parte significativa da sociedade, enquanto a outra parte vive entre o pavor de ser expolida e a prontidão em aplaudir o massacre em nome de sua felicidade. Então, diante disso, eu pergunto: é de polícia que precisamos? Ou melhor: quem precisa de polícia? Para quê? Contra quem? Pra que serve a polícia? As respostas triviais não nos levarão a conclusões satisfatórias.

    De fato, como nos alertou Michel Foucault, “a política é a guerra continuada por outros meios”.

    Nota 1: Ver “Um breve histórico da luta e vitória das comunidades indígenas contra a gigante Aracruz Celulose no ES”, in https://prazeresdeamelie.wordpress.com/2009/02/27/um-breve-historico-da-luta-e-vitoria-das-comunidades-indigenas-contra-a-gigante-aracruz-celulose-no-es/

    Nota 2: Ver http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2016/10/grupo-sai-da-ufes-e-protesto-contra-morte-de-jovem-no-bairro-da-penha.html

    Nota 3: Camilla Costa. “Como o Espírito Santo conseguiu zerar mortes em prisões – e o que ainda não funciona em seu sistema”, in BC Brasil em São Paulo, 17 de janeiro de 2017, em http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38657173

    Nota 4: Ver “Crescimento da população carcerária implica aumento da violação de direitos. Entrevista especial com Humberto Ribeiro Júnior” in http://www.ihu.unisinos.br/publicacoes/159-entrevistas/564467-aumento-da-populacao-carceraria-implica-aumento-da-violacao-de-direitos

    Nota 5: Veja também o relato de Lívia de Cássia Godoi Moraes. “Esta noite dormiremos temerosos: sobre o caos nas cidades capixabas” in http://www.esquerdadiario.com.br/Esta-noite-dormiremos-temerosos-sobre-o-caos-nas-cidades-capixabas

  • As 7 vidas do neoliberalismo

    Tatiana Roque

    Professora da Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ

    Presidente da ADUFRJ (Sindicato dos professores da UFRJ)

     

     

    A estranha não-morte do neoliberalismo. Essa é a tradução do título de um livro de Colin Crouch, mostrando que, ao contrário do que esperávamos após a crise de 2008, o neoliberalismo não morreu, ele renovou suas formas de governo. Um dos mecanismos que tornou possível essa virada está no tratamento preferencial dado a grandes organizações, no lugar das leis anti-truste que caracterizavam o projeto neoliberal em seu início. Isso só é possível pela aliança entre empresas e governos, que instituem os mecanismos necessários para que corporações globais dominem o mercado e o cenário político. O livro foi escrito em 2011, antes de Trump, que atualiza de modo surpreendente o projeto, colocando diretamente os CEOs das grandes corporações em cargos políticos do governo, em uma estratégia que Naomi Klein chamou de “eliminação dos intermediários”.

    Acontece algo parecido por aqui. Ainda que tenhamos um intermediário em posição mais que estratégica, na presidência da república, trata-se do intermediário perfeito, pois funciona como correia de transmissão direta dos interesses das corporações e do mercado financeiro. Não que esses mecanismos estivessem ausentes durante os governos anteriores, só que havia um nível razoável de disputa política intermediando o jogo de interesses. Agora está tudo escancarado.

    O jogo de interesses oligárquicos mantém a crise como instrumento de ampliação do poder político (tornado imediatamente econômico). Assistimos à vitória das grandes empresas multinacionais que exercem pressões contínuas sobre as autoridades políticas para se beneficiarem de subvenções, vantagens fiscais e trabalhistas que garantem a deflação dos salários. Esse fenômeno, que acontece em escala mundial, atuou fortemente para a política desastrosa de desonerações fiscais, que contribuiu para a derrocada da economia no governo Dilma.

    Para entender “esse pesadelo que não acaba”, Pierre Dardot e Christian Laval destacam o papel do Estado como agente ativo na implementação das políticas capazes de atender as demandas das empresas. Ao invés de funcionar como proteção aos direitos sociais, tentando um equilíbrio entre a lógica do capital e alguma justiça social, o Estado passa a ser um ator-chave na implementação de um ambiente fértil para os negócios. Assim, “as velhas receitas do nacional-estatismo são inoperantes, quando não chegam a usar a retórica da direita em um deslize perigoso”. O Estado é um dos atores em uma teia complexa que garante a instalação da racionalidade neoliberal em todo o tecido social, visando instalar a concorrência.

    Para dar um exemplo recente, a aprovação da PEC do teto de gastos busca, precisamente, instaurar a lógica concorrencial dentro das despesas públicas. Para ser possível respeitar o limite, mantendo os padrões atuais de investimento em saúde e educação, deve-se compensar essas despesas pela redução de outras (ainda que não exista margem para isso). A PEC visa submeter os gastos públicos a uma dinâmica concorrencial: saúde e educação pressionam os gastos com previdência e funcionalismo; ensino básico pressiona os gastos com ensino superior. A demanda de produtividade aumenta e a concorrência determina a racionalidade das despesas primárias do Estado, ao mesmo tempo em que as taxas de juros mantêm-se fora do cálculo. Na outra ponta, convoca-se o apoio da opinião pública, mobilizando sua correta percepção de que há problemas de gestão e injustiças no funcionamento da máquina estatal.

    Ainda que não tenha paralelo em outros países, essa PEC radicaliza uma política que, ao contrário das expectativas, vem sendo a tônica de governos socialdemocratas ao redor do mundo. É incerto afirmar que a onda não chegaria por aqui, ainda que sob formas mais suaves, com a manutenção dos governos do PT. Há algum tempo, a socialdemocracia tem agido como linha auxiliar dos mercados no desmonte da proteção social e dos direitos do trabalho, tornando-se cada vez mais incapaz de cumprir seu ideal de conciliar economia capitalista e justiça social. Ao invés de proteger a população dos efeitos do neoliberalismo, alia-se reiteradamente às suas formas de governo. No máximo, conseguem inserir medidas excepcionais no interior de governos atravessados por múltiplas contradições, como foi o caso, no Brasil, da expansão da universidade e do SUS. Não à toa, os setores que serão mais afetados pelo teto de gastos.

    O desmonte do Estado bem-estar social adquire proporções gigantescas no Brasil. Agora será a vez da reforma da Previdência e seguiremos perguntando por que a resistência organizada pela esquerda não consegue mobilizar a população mais pobre, que é sua própria razão de ser. As denúncias que vêm sendo feitas, apontando a intenção neoliberal de diminuir o tamanho do Estado, não parecem realmente suscitar a indignação necessária à mobilização. Pensando bem, por que as pessoas iriam defender um Estado de bem-estar social em abstrato, se não percebem os serviços públicos como proteção efetiva de seus direitos básicos de existência? Ao contrário, a maioria da população ou paga caro por planos de saúde e escolas privadas que funcionam mal ou precisa encarar quotidianamente a situação precária dos postos de saúde e das escolas públicas. Quando experiências tão distintas geram a mesma desconfiança em relação às promessas do Estado, deve-se procurar o erro nas promessas, e não em um suposto conformismo da população. Se levarmos a sério as percepções e escolhas da população, ao invés de enxergá-la como massa amorfa teleguiada pela mídia hegemônica, deveremos perguntar qual tem sido o papel do Estado em fornecer alguma garantia de segurança e acesso a direitos básicos de subsistência.

    A denúncia e a indignação podem ser sintomas de certo desencanto, como se pouca gente fosse capaz de ouvir e entender nossos clamores. Mas talvez esses clamores sejam slogans repetitivos esvaziados de sentido. Não à toa, toda essa discussão é perpassada pela dissolução da democracia liberal e pela necessidade urgente de repensarmos as bases de uma outra democracia possível. Mas esse será assunto de uma próxima conversa.

  • dos muitos golpes no Brasil: a situação atual da violência de Estado

    Acácio Augusto

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    O principal agente da violência nas sociedades modernas é o Estado. Ele se define e mantém sua dominância pelo exercício dela. Ao contrário do que se imagina, devido ao estereótipo vinculado ao futebol e ao carnaval, o Brasil é um país extremamente violento. Esta violência está diretamente ligada a uma polícia com alto grau de letalidade. Só em 2015, foram 58.383 pessoas assassinadas[1], 160 mortos por dia. Isso, segundo dados oficiais do governo apurados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2016. Destas mortes, 3.345 são atribuídas diretamente à polícia, mas deve-se considerar uma série de fatores que ligam as outras mortes indiretamente à ação policial. Em geral, essa letalidade é aplaudida pela grande maioria da população, que há muito tempo se regozija com um populismo punitivo alardeado pelas mídias e outros setores da sociedade.

    Além da violenta e predatória história colonial e o fato do Brasil ser o último país das Américas a abolir a escravidão, fatores recentes contribuem para essa extrema letalidade e uma violência social letal praticamente naturalizada. Em 1964 o país sofreu um golpe civil-militar que inaugurou a série de golpes na América do Sul com ingerência dos EUA como forma de garantir a zona de influência em um contexto de Guerra Fria. No entanto, quando o regime civil-militar teve fim, em 1985, a chamada “transição lenta, gradual e segura” não extirpou da vida pública os diversos agentes sociais que sustentaram e se beneficiaram do período de exceção: de grandes conglomerados comunicacionais até setores das oligarquias regionais rurais, além de uma pequena elite urbana de hábitos colonizados. A chamada abertura política e/ou democrática foi resultado de um pacto entre as elites, ainda que atendendo às demandas da chamada sociedade civil organizada. Este pacto corresponde às novas diretrizes planetárias, sintetizadas pela ONU e suas agências, em contexto de derrocada do mundo soviético ao leste do planeta e sob o signo do que se chamou de “nova ordem mundial”.

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    No ocaso do século XX, mais precisamente na abertura do século XXI, o Brasil viverá um ciclo de governos chamados progressistas. Inaugurado por dois mandatos de um sociólogo de tendências marxistas, vinculado a um partido de nome “socialdemocrata” mas de política neoliberal, e seguido por um ex-líder sindical e uma ex-guerrilheira vinculada à luta contra a ditadura civil-militar, ambos pertencentes ao PT (Partido dos Trabalhadores), que gaba-se em ser o maior partido de massas das américas. Essa sequência de governos em uma democracia formal e sem ingerência dos militares na vida política inaugurou um ciclo de prosperidade, despertando fortes esperanças tanto interna quanto externamente: um país que finalmente “estaria dando certo” ou no caminho de ser grande. O recente processo de impeachment, concluído no segundo semestre de 2016, que derrubou o segundo mandato da presidente eleita pelo voto direto e majoritário criou uma fissura, em alguma medida inesperada, que acabou interrompendo esse ciclo progressista de governos, mas não alterou a racionalidade governamental dominante. Isto faz com que muitos no Brasil, em especial os setores próximos ao governo deposto, gritem que foi um golpe! Seguido de algum adjetivo: parlamentar, midiático, judicial ou os três juntos.

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    De fato, o processo que derrubou a presidente foi eivado de manobras jurídicas, jogos com a opinião pública e interesses mesquinhos dos representantes do poder legislativo e outros setores interessados. A operação de saneamento do Estado, encabeçada por um juiz de província elevado ao status de herói nacional, nomeada como Lava Jato foi o ponto de apoio dos setores da mídia e da massa conservadora da sociedade para colar no partido que até então ocupava o governo federal, o PT em aliança com o PMDB, o estigma de corrupto e tudo mais de abjeto que possa existir na política nacional. Somou-se a isso uma intensificação de posturas conservadoras e fascistas da sociedade, tanto nas classes médias quanto nas classes populares. Na última década, e junto ao histórico racismo de Estado, o ódio ao diferente tem ganhado campo amplo no país, se amplificando nas redes sociais digitais e encontrando representantes políticos que incorporam esse discurso. A ponto de se defender, abertamente, a volta dos militares ao comando do governo executivo. No entanto, seria equivocado, ou mesmo simplista, atribuir à deposição da presidente a culminância de uma escalada autoritária no país. Como se, após o chamado golpe, a democracia teria sido solapada e a política do país sofresse uma guinada de cento e oitenta graus. De uma perspectiva anarquista, o que se passa hoje no Brasil é consequência lógica de um regime democrático estatal representativo que só se mantém por uma extrema judicialização da vida e da política e uma prática de governo que se reduz cada vez mais a produção hiperbólica de segurança, a despeito de qualquer outro valor político e social, até mesmo em detrimento da democracia formal e dos valores elementares de uma sociedade moderna com o mínimo de liberdade individual, como amplo direito de defesa diante de um tribunal. A questão central é que isso não se iniciou com a deposição da presidente. Mesmo que a consumação desse fato tenha gerado, na linguagem dos constitucionalistas, uma insegurança jurídica e, com efeito, tenha legitimado setores conservadores que viam no governo do PT uma ameaça comunista, por mais absurdo que isso seja.

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    Os 13 anos do governo desposto se vangloria de ter atingido uma série de metas estabelecidas pelos organismos internacionais, em especial a ONU e suas agências como PNUD e UNICEF. A principal delas seria a erradicação da miséria extrema por meio de complementação de renda aos mais pobres, cobrando contrapartida como obrigatoriedade de matrícula escolar dos filhos e vacinação regular, ou seja, ampliando o controle estatal sobre os corpos, em especial, das crianças. Além disso, propagandeia uma série de políticas sociais ligadas à ampliação do crédito no varejo, programas de financiamento de casas populares e programas de crédito estudantil. Em resumo, o governo democrático de esquerda no Brasil promoveu uma política de inclusão pelo consumo que produziu uma massa de novos endividados, algo que os bancos, estatais e privados, agradecem. Além de favorecer, por meio dessas políticas, os valores característicos da racionalidade neoliberal, metamorfoseando proletários em proprietários, pobres em empreendedores de si. Mas não só. Este governo esteve à frente de megaprojetos desenvolvimentistas, como a construção da Usina de Belo Monte, com prejuízo aos povos indígenas e ribeirinhos. E como toda socialdemocracia no mundo pós-Muro de Berlim, investiu fortemente em segurança, como mostrou Loïc Wacquant em suas pesquisas sobre as prisões e política de segurança nos EUA, Inglaterra e França. O governo federal do PT criou uma nova polícia repressiva em 2004, a Força Nacional de Segurança; levou adiante um programa de superencarceramento já iniciado no governo anterior; despejou rios de dinheiro para a política de pacificação das favelas no Rio de Janeiro, as UPP (Unidades de Polícia Pacificadora), face interfronteiras da MINUSTAH, intervenção militar da ONU no Haiti capitaneada pelo exército brasileiro; enfim, um dos últimos atos da presidente desposta foi a criação de uma Lei Antiterrorismo (lei 13.2060/2016) que abre precedentes jurídicos brutais para criminalização dos movimentos sociais. Além do fato de que hoje, há menos de um ano do chamado golpe, o partido que se diz golpeado se vê às voltas com alianças junto aos partidos que perpetraram o tal golpe. Uma retórica, no mínimo, pouco convincente.

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    O ponit of no returne da política e das lutas no Brasil foram as jornadas de junho de 2013, manifestações inéditas e espetaculares em todo país. Iniciada em São Paulo, em meio aos protestos contra o aumento da tarifa do transporte coletivo, essas manifestações colocaram em xeque a narrativa do Brasil grande e do país que finalmente deu certo. Grandeza que seria confirmada com a recepção de megaeventos planetários como a RIO+20, da ONU, a Copa do Mundo de Futebol, da FIFA, e as Olimpíadas, do COI. Respectivamente programadas paras os anos de 2012, 2014 e 2016. Muitos do que foram às ruas alertavam que nesse Brasil grande pobres, pretos e indígenas seguiam sendo assassinados pelo Estado; que as desigualdades históricas seguiam reforçadas; que os antigos perseguidores do presidente sociólogo, do presidente sindicalista e da presidente guerrilheira, são agora seus aliados de governo. Metamorfosearam-se de perseguidos em perseguidores. A emergência do ingovernável nas ruas em junho de 2013, que seguiu adiante, principalmente contra a Copa e as Olimpíadas, expôs o intolerável de qualquer governo, a insuficiência da democracia, e abriu uma brecha para manifestações de revoltas antipolíticas que não cabiam em planos e planilhas dos atuais gestores da miséria no país.

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    O governo, mesmo ungido pelo título de progressista, de esquerda e democrático, agiu como agiria qualquer Estado: reprimiu duramente os protestos, promoveu perseguições e investigações. Prontamente, a imprensa e diversos analistas políticos, à esquerda e à direita, produziram uma enxurrada de “análises”, diferenciando manifestantes “pacíficos” de “vândalos”, estes últimos identificados entre os anarquistas, autonomistas não ligados aos partidos e aos movimentos sociais não alinhados ao governo e, principalmente, praticantes da tática black bloc. Com os vândalos expulsos das ruas pelas bombas e cassetetes da polícia, e muitos respondendo a processos criminais, os chamados manifestantes pacíficos foram gradualmente ocupando essas ruas. Mas desta vez, vestidos com a bandeira do Brasil e pedindo maior moralidade dos governantes, maior punição a infratores da alta e da baixa política, e com demandas que iam da deposição da então presidente à pedidos de nova intervenção dos militares, além de regulares manifestações de ódio à gays, racismo institucionalizado e clamores por uma ordem mais rígida. Era comum entre esses manifestantes, ao invés do embate, a empatia com a polícia, tirando fotos para depois espalhar pelas redes sociais digitais. Enfim, a centralidade do Estado e sua violência foi reposta, após brutal repressão ao ingovernável e um conturbado processo eleitoral em outubro de 2014, começo da reação que visava conter a potência das ruas.

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    De uma perspectiva anarquista, não há o que lamentar desse processo, a não ser seguir lutando contra a violência do Estado e as explorações do capitalismo. No entanto, se hoje, janeiro de 2017, o país se encontra às voltas com um presidente que não foi eleito diretamente pelo voto, com o crescimento assustador de um discurso de ódio contra negros, gays, mulheres e todo tipo de manifestação de diferença e de contestação política, além de uma violência que se alastra por meio da polícia em manifestações de rua até decapitações em presídios de todos país, isso se deve ao fato de que, no momento em que a violência de Estado foi colocada em xeque nas ruas, as forças de esquerda que então ocupavam o governo fez de tudo para repor sua centralidade. Funcionou como aparador e contentor da revolta para depois ser chutada por seus próprios aliados e sócios nos negócios e negociatas do Estado. Hoje chora a falência de um Estado de Bem Estar Social que, a bem da verdade, nunca existiu aqui. A operação estatal mais bem sucedida como reposta às revoltas de junho de 2013 foi justamente a diferenciação entre vândalos e pacíficos, esta abriu caminho para um processo de pacificação brutal, todo efeito institucional a ser lamentado é posterior. E essa distinção foi operada pelo governo democrático e de que esquerda, reforçada a todo tempo por seus chamados \”intelectuais orgânicos\”, chegando ao absurdo de dizer que anarquia e fascismo eram equivalentes.

    Chamem de golpe ou impeachment, a atual situação política de instabilidade no Brasil é a sequência dos históricos golpes perpetrados aqui por oligarcas, militares e dirigentes/gestores políticos, de esquerda e de direita, que nunca vacilam em repor e reafirmar a centralidade e a violência do Estado. A despeito de questões conjunturais extremamente preocupantes, o Brasil segue, como antes, tendo a polícia que mais mata no mundo. E como sabe qualquer anarquista, a polícia é o golpe de Estado permanente.

    Não há solução diante disso, apenas a luta contínua, ou a pequena guerra (petite guerre), como chamava Proudhon a atividade de luta rebelde contra a miséria das guerras de Estado, travada além das fronteiras e contra aqueles declarados inimigos internos. Desde junho de 2013, as lutas autônomas e o interesse pela anarquia cresceu no Brasil, mas também surgiu um movimento conservador que, diferente de outros momentos da história do país, vai para rua e se organiza aos moldes de um “movimento social”, reivindicando seu espaço no espetáculo político da chamada opinião pública, esse consenso fabricado que acaba incidindo como ditadura da maioria em favor dos interesses da mesma minoria (neste caso, numérica, e não no sentido dado por Deleuze). Estes grupos, a partir do pedido de deposição da presidente eleita, conseguiram dar vazão à todo conservadorismo da sociedade brasileira.

    Os anarquistas seguem com suas lutas, enquanto a esquerda institucional luta por hegemonia, tentando reorganizar-se em torno da sua zona de influência juntos aos movimentos sociais domesticados e inscritos na gramática da luta política estatal por reconhecimento e direitos. Nós, anarquistas, seguimos nas ruas, com bandeiras e blocos negros, e nas universidades, com pesquisas e publicações que desafiam a ordem, enquanto minoria potente (essa sim, no sentido dado por Deleuze). Desacatamos a ordem durante o governo de esquerda que agia segundo a governança global da racionalidade neoliberal. Não será diferente agora, diante da nova conformação governamental dessa mesma racionalidade neoliberal que anuncia um ajuste conservador em todo planeta. Não nos interessa a conservação de direitos ou a defesa de um Estado de Bem Estar Social, que ao Sul nunca existiu e ao norte significou a contenção e normatização das lutas. Sabemos que todo direito implica dever para com o Estado, seja ele de que cor for. E quando dizem que a autogestão (mutualismo econômico) e a ação direta (associativismo e federalismo político) são utopias, o que temos a dizer é: utopia é essa busca por paz e segurança projetadas no Estado que habita os corações e as mentes desde a emergência da era moderna. O trabalho de um anarquista é outro. O anarquista é o artífice na construção da vida outra. A luta, para ele, é feita na transformação de si, na luta contra o que somos e em guerra contra a sociedade e o Estado.

     

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    nota: Este breve registro foi escrito originalmente para a edição #123, de fevereiro de 2017, do periódico Slingshot Collective de Berkeley, EUA (http://slingshot.tao.ca/). Não se trata de uma análise de conjuntura, mas um curto diagnóstico histórico-político da situação das lutas no Brasil para anarquistas de outros países. Reproduzo, com pequenas modificações, por dois motivos: 1. Me parece que há algumas questões pouco consideradas aqui sobre a situação política do país, vistas de uma perspectiva anarquista; 2. O periódico circula impresso e em outra língua, logo de difícil acesso ao leitor brasileiro.

     

    Legenda de imagens:

    Imagem 1 (Arquivo “ataque à polícia”): Um manifestante black bloc ataca a polícia em manifestação de junho de 2013 na cidade de São Paulo. Autor: Revista Vice Brasil.

    Imagem 2 (Arquivo: “antifa SP”): concentração para o Ato contra a tarifa do MPL, em janeiro de 2016, em frente ao Teatro Municipal de São Paulo. No destaque a bandeira do grupo Antifa SP. Autor: W. Raeder.

    Imagem 3 (Arquivo “BB Copa”): grupo de black blocs perfilados contra a polícia em Ato contra a Copa do Mundo de 2014 na cidade do Rio de Janeiro. Autor desconhecido.

    Imagem 4 (Arquivo “BBs”): grupo de black blocs com escudos em ato no centro da cidade de São Paulo em junho de 2013. Autor desconhecido.

    Imagem 5 (Arquivo “estudantes RJ”): Dois estudantes em uma escola ocupada do Rio de Janeiro em fevereiro de 2016, com a placa “Foda-se a PM” (polícia militar). Autor desconhecido.

    Imagem 6 (Arquivo “contra a olimpíada”): black blocs com sinalizadores em ato contra a abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro 2016 no centro da cidade em agosto de 2016. Autor desconhecido.

    Imagem 7 (Arquivo “flávio galvão”): grupos de black blocs destroem carro da polícia civil de São Paulo, na região da República em junho de 2013. Autor: Flávio Galvão, da ADVP (Ação Direta de Vídeo Popular).

    Imagem 8 (Arquivo “imagem oficina”): grupo de black blocs em junho de 2013 contra a polícia do Rio de Janeiro. Autor desconhecido.

    Imagem 9 (Arquivo “leviatã”): Tropa de Choque da PM de São Paulo perfilada para defender a vidraça de um cinema na Avenida Paulista, janeiro de 2016, ao fundo cartaz do filme “Leviatã”. Autor desconhecido.

    [1] Dados do 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado em 3 de novembro de 2016, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Disponível em http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/wp-content/uploads/2015/10/9-Anuario-Brasileiro-de-Seguranca-Publica-FSB_2015.pdf