Category: urucum

  • Trechos do ensaio \”3 ecologias\” – Felix Guattari 1989

    [pdf na íntegra: http://escolanomade.org/wp-content/downloads/guattari-as-tres-ecologias.pdf]

    [abaixo, pequena seleção de trechos com ênfase nos cruzamentos, semelhanças e diferenças entre as 3 ecologias]

    (…)

    Para onde quer que nos voltemos, reencontramos esse mesmo paradoxo lancinante: de um lado, o desenvolvimento contínuo de novos meios técnico-científicos potencialmente capazes de resolver as problemáticas ecológicas dominantes e determinar o equilíbrio das atividades socialmente úteis sobre a superfície do planeta e, de outro lado, a incapacidade das forças sociais organizadas e das formações subjetivas constituídas de se apropriar desses meios para torná-los operativos.

    (…)

    As formações políticas e as instâncias executivas parecem totalmente incapazes de apreender essa problemática no conjunto de suas implicações. Apesar de estarem começando a tomar uma consciência parcial dos perigos mais evidentes que ameaçam o meio ambiente natural de nossas sociedades, elas geralmente se contentam em abordar o campo dos danos industriais e, ainda assim, unicamente numa perspectiva tecnocrática, ao passo que só uma articulação ético-política – a que chamo ecosofia – entre os três registros ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana) é que poderia esclarecer convenientemente tais questões.

    (…)

    As relações da humanidade com o socius, com a psique e com a \”natureza\” tendem, com efeito, a se deteriorar cada vez mais, não só em razão de nocividades e poluições objetivas, mas também pela existência de fato de um desconhecimento e de uma passividade fatalista dos indivíduos e dos poderes com relação a essas questões consideradas em seu conjunto. Catastróficas ou não, as evoluções negativas são aceitas tais como são. O estruturalismo – e depois o pós-modernismo – acostumou-nos a uma visão de mundo que elimina a pertinência das intervenções humanas que se encarnam em políticas e micropolíticas concretas. Explicar esse perecimento das práxis sociais pela morte das ideologias e pelo retorno aos valores universais me parece pouco satisfatório. Na realidade, o que convém incriminar, principalmente, é a inadaptação das práxis sociais e psicológicas e também a cegueira quanto ao caráter falacioso da compartimentação de alguns domínios do real. Não é justo separar a ação sobre a psique daquela sobre o socius e o ambiente. A recusa a olhar de frente as degradações desses três domínios, tal como isto é alimentado pela mídia, confina num empreendimento de infantilização da opinião e de neutralização destrutiva da democracia. Para se desintoxicar do discurso sedativo que as grandes mídias em particular destilam, conviria, daqui para frente, apreender o mundo através dos três vasos comunicantes que constituem nossos três pontos de vista ecológicos [o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana].

    (…)

    [ECOLOGIA/ECOSOFIA SOCIAL]:
    A ecosofia social consistirá, portanto, em desenvolver práticas específicas que tendam a modificar e a reinventar maneiras de ser no seio do casal, da família, do contexto urbano, do trabalho etc. Certamente seria inconcebível pretender retornar a fórmulas anteriores, correspondentes a períodos nos quais, ao mesmo tempo, a densidade demográfica era mais fraca e a densidade das relações sociais mais forte que hoje. A questão será literalmente reconstruir o conjunto das modalidades do ser em grupo. E não somente pelas intervenções \”comunicacionais\” mas também por mutações existenciais que dizem respeito à essência da subjetividade. Nesse domínio, não nos ateríamos às recomendações gerais mas faríamos funcionar práticas efetivas de experimentação tanto nos níveis microssociais quanto em escalas institucionais maiores.

    (…)

    [ECOLOGIA/ECOSOFIA MENTAL]:

    A ecosofia mental, por sua vez, será levada a reinventar a relação do sujeito com o corpo, com o fantasma, com o tempo que passa, com os \”mistérios\” da vida e da morte. Ela será levada a procurar antídotos para a uniformização midiática e telemática, o conformismo das modas, as manipulações da opinião pela publicidade, pelas sondagens etc. Sua maneira de operar aproximar-se-á mais daquela do artista do que a dos profissionais \”psi\”, sempre assombrados por um ideal caduco de cientificidade.

    (…)

    [ECOLOGIA/ECOSOFIA AMBIENTAL]:

    Em minha opinião, a ecologia ambiental, tal como existe hoje, não fez senão iniciar e prefigurar a ecologia generalizada que aqui preconizo e que terá por finalidade descentrar radicalmente as lutas sociais e as maneiras de assumir a própria psique. 8 Os movimentos ecológicos atuais têm certamente muitos méritos, mas, penso que na verdade, a questão ecosófica global é importante demais para ser deixada a algumas de suas correntes arcaizantes e folclorizantes, que às vezes optam deliberadamente por recusar todo e qualquer engajamento político em grande escala. A conotação da ecologia deveria deixar de ser vinculada à imagem de uma pequena minoria de amantes da natureza ou de especialistas diplomados. Ela põe em causa o conjunto da subjetividade e das formações de poder capitalísticos – os quais não estão de modo algum seguros que continuarão a vencê-la, como foi o caso na última década.

    (…)

    O princípio particular à ecologia ambiental é o de que tudo é possível tanto as piores catástrofes quanto as evoluções flexíveis. Cada vez mais, os equilíbrios naturais dependerão das intervenções humanas. Um tempo virá em que será necessário empreender imensos programas para regular as relações entre o oxigênio, o ozônio e o gás carbônico na atmosfera terrestre. Poderíamos perfeitamente requalificar a ecologia ambiental de ecologia maquínica já que, tanto do lado do cosmos quanto das práxis humanas, a questão é sempre a de máquinas – e eu ousaria até dizer de máquinas de guerra. Desde sempre a \”natureza\” esteve em guerra contra a vida! Mas a aceleração dos \”progressos\” técnico-científicos conjugada ao enorme crescimento demográfico faz com que se deva empreender, sem tardar, uma espécie de corrida para dominar a mecanosfera.

    No futuro a questão não será apenas a da defesa da natureza, mas a de uma ofensiva para reparar o pulmão amazônico, para fazer reflorescer o Saara. A criação de novas espécies vivas, vegetais e animais, está inelutavelmente em nosso horizonte e torna urgente não apenas a adoção de uma ética ecosófica adaptada a essa situação, ao mesmo tempo terrificante e fascinante, mas também de uma política focalizada no destino da humanidade.

    (…)

    [parte do último parágrafo:]

    as três ecologias deveriam ser concebidas como sendo da alçada de uma disciplina comum ético-estética e, ao mesmo tempo, como distintas uma das outras do ponto de vista das práticas que as caracterizam. Seus registros são da alçada do que chamei heterogênese, isto é, processo contínuo de ressingularização. Os indivíduos devem se tornar a um só tempo solidários e cada vez mais diferentes. (O mesmo se passa com a ressingularização das escolas, das prefeituras, do urbanismo etc).
    A subjetividade, através de chaves transversais, se instaura ao mesmo tempo
    no mundo do meio ambiente, dos grandes Agenciamentos sociais e institucionais e, simetricamente, no seio das paisagens e dos fantasmas que habitam as mais íntimas esferas do indivíduo. A reconquista de um grau de autonomia criativa num campo particular invoca outras reconquistas em outros campos. Assim, toda uma catálise da retomada de confiança da humanidade em si mesma está para ser forjada passo a passo e, às vezes, a partir dos meios os mais minúsculos.

    (…)

    Tradução: Maria Cristina F. Bittencourt
    Revisão da tradução: Suely Rolnik
    Revisão: Josiane Pio Romera, Regina Maria Seco e Vera Luciana Morandim
    Titulo original em francês: Les trois écologies © Éditions Galilée, 1989

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  • As contradições cínicas do correismo equatoriano

    Os primeiros anos do governo de Aliança País no Equador, colocaram o País no mapa do progressismo latino-americano. Rafael Correa, como economista de esquerda, 
    chegava com apoio das forças que tinham se mobilizado contra a dolarização e a favor de um processo constituinte que acolhesse demandas dos povos indígenas 
    e movimentos sociais que impugnavam \"a longa noite neoliberal\", e reivindicavam uma agenda ecológica, voltada para o campo, etc. Já na Assembleia Constituinte
     se perfilariam tensões que mostrariam uma vontade estatal de governar de cima pra baixo, e que pouco a pouco iria se desfazendo dos rasgos progressistas para 
    criticar o avanço de direitos de indígenas (com instrumentos de proteção do território), das mulheres e coletivos LGTB (sobre as quais Correa se alinharia com as 
    o Opus Dei), e ecológica (encerrando iniciativas como a de defender a não exploração petroleira em terras indígenas e de reserva ambiental). Nesse texto do 
    site Chakanachronicles  são apontadas as contradições entre uma imagem progressista que Equador soube construir no exterior, e a forma que o regime político se 
    reproduz no dia a dia, se virando contra as forças que o constituiram... A continuação o texto:
    
    
    

    This week, as Julian Assange marks his fifth year inside the Ecuadorian embassy in London, international media coverage continues to strengthen Ecuador’s image as an international champion of free speech. While the diminutive Latin American nation should be applauded for its courageous stance against the US, the good PR masks much darker truths about Ecuador which rarely reach the attention of the international community.

    The recent election of President Lenin Moreno, former Vice-President to Rafael Correa and candidate of Ecuador’s ruling party Alianza País, was good news for Assange. Polls had predicted the victory of Moreno’s rival, conservative banker Guillermo Lasso, who had promised to evict the Wikileaks founder from the embassy should he come to power.

    As Moreno’s election victory was announced and Assange celebrated his continued safe haven, another political refugee wept. That April night, French Brazilian professor and journalist Manuela Picq was finally forced to accept her exile from Ecuador, the country she had called home for nearly a decade. In 2015, she had been peacefully covering a protest with her husband when the couple were set upon by police officers, beaten with batons and separated. Picq’s visa was revoked overnight and she was detained as an irregular migrant. Days later, she was expelled from the country for ‘participating in politics’.

    In fact, Professor Picq was forced into exile by the very same government, led by Rafael Correa, which offered sanctuary to Assange and Edward Snowden. As Moreno was announced President-elect she knew she would be denied re-entry to Ecuador. After two years in limbo, she would have to start building a new life away from her husband, the indigenous lawyer and water defender Carlos Pérez Guartambel, and her job as a Professor of International Relations at a prestigious Quito university.

    Picq’s detention was the culmination of months of government harassment against her for expressing criticism of Correa’s government, such as an article about the Vice-President’s father raping and impregnating a 12-year old girl. Without doubt, her detention was also a political retaliation against her husband, a key figure in the indigenous resistance movement, who has been imprisoned three times by Correa’s government for defending water against international mega-mining projects.

    Picq was detained at a national protest against a law that would have permitted Rafael Correa’s indefinite reelection. The official version of events was that a foreign national had been attacked by unknown assailants in the street and rescued by police, who then discovered her illegal visa status and handed her over to immigration. However, a journalist filmed the moment that she and Pérez were brutally attacked by police, exposing the government’s lies. In fact, there were no ‘unknown assailants’ and her visa was valid at the time of her arrest, as verified by Human Rights Watch.

    The attempt to silence Picq is just one example of many in Ecuador’s crackdown on dissenting voices. The day after her detention in August 2015 the government declared a state of exception to quell the protests, raiding houses in the indigenous town of Saraguro, beating and arresting hundreds. Picq is one of 700 people criminalized by Ecuador’s government, the majority indigenous leaders and environmental activists. While the government positions itself in the media spotlight as an international champion of free speech, within its own borders it is quietly implementing the most repressive media legislation in Latin America and forcibly closing NGOs and unions that disagree with its policies.

    Ecuador became the first foreign government to advertise during the US Super Bowl with this $3.8m commercial, soundtracked by The Beatles “All You Need Is Love.”

     

     

    Many governments use oppressive tactics to silence critics. What sets Ecuador apart is a world class marketing department that proactively defines Ecuador’s brand. Public relations and marketing are the biggest ministerial expenditures, used to generate a smokescreen behind which the government feels free to implement its own agenda, largely free from scrutiny and media criticism.

    It’s not just in the area of free speech where positive PR acts as a fig leaf for the Ecuadorian government’s less palatable activities:

    Ecuador was applauded by the global community for its high profile Yasuni Initiative in 2014, when the government sought international funds in exchange for not exploiting the oil under the most biodiverse national park in the world. However, the Guardian revealed that the administration was simultaneously negotiating a secret $1bn deal with a Chinese bank to drill for the very same oil.

    The use of PR as smokescreen can be blatant. In 2015, Ecuador was awarded the Guinness World Record for planting the most tree species in a single day. No mention was made of the auction of 3 million hectares of pristine Amazon rainforest to oil companies, a process known as the XI Oil Round.

    The Ecuadorian government is widely viewed as an environmental pioneer for awarding legal rights to nature in its constitution, even though it constantly prosecutes, threatens, or assassinates those who attempt to uphold these rights. The rights of nature have become rhetoric, disconnected from the constant attacks against environmental defenders.

    Ecuador promotes itself as plurinational state with constitutionally guaranteed indigenous land rights, however it commits ethnocide (according to the same constitution) by exploiting for oil in the territories of the country’s last two uncontacted tribes; and has undertaken the largest licensing of land for extractive industries in the history of Ecuador, much of it in indigenous territory.

    The government celebrates the indigenous Shuar’s contribution to the war against Peru, while carrying out a campaign of repression against these war heroes’ communities. It has even fired upon them from helicopters and is actively militarizing their territory to make way for a billion-dollar Chinese-owned copper mine.

    Correa often boasted about Ecuador’s financial independence from US, however, his administration more than doubled Ecuador’s external debt to $32 billion (32.9% of GDP), mostly in loans from China.

    The recent Presidential election was one more example of things not being what they seem. Guillermo Lasso, who narrowly lost a second round vote to Lenin Moreno, presented convincing evidence of election fraud and a partial recount was undertaken, but with every institution controlled by Correa, there was little hope for a transparent outcome.

    In the limited international media coverage it has received, the continuation of Correa-ism under Lenin Moreno has largely been portrayed as the triumph of a democratically elected socialist government over a right-wing, corporate-friendly, US-backed opposition. Many Ecuadorians, however, would tell a different story. In fact, a broad coalition of normally left-leaning Ecuadorian civil society groups, indigenous organisations, academics, activists and NGOs united behind Lasso. “Better a banker than a dictator,” explained Carlos Pérez succinctly.

    To these sectors of Ecuadorian society, the election of Moreno represents the triumph of oppression, fraud and good marketing. It would be some comfort to these Ecuadorians if the international community recognized their government for what it is: an authoritarian, extractivist regime.

    It is distressing that even world renowned critics and thinkers such as Chris Hedges appear to have been taken in by Ecuador’s PR. Chakana Chronicles wrote to Chris Hedges following this pro-Correa-ism podcast from his show ‘On Contact’, suggesting he does not limit his story to a government’s official narrative and proposing he interview Professor Picq to present a countervailing view, but received no response.

    Why does the international left, including influential dissidents like Hedges, prefer to believe the lies of Ecuador’s government than the cries for help of Indigenous peoples and journalists on the ground? Indigenous peoples are stewards of the most threatened biodiverse regions, such as the Amazon rainforest, and play a key role in combatting climate change. As they put their bodies on the line to defend their lands from extractivist regimes, the left chooses to turn a deaf ear to their cries, continuing their oppression, rendering them voiceless.

    So, as Julian Assange begins his sixth year inside the Embassy, the continuation of such an extractivist regime under Lenin Moreno might be good news for Julian Assange, but it is bad news for Manela Picq, Carlos Pérez and the indigenous peoples of Ecuador.

  • Edson Passeti: Aguardando a decisão…

    Aguardando a decisão…

    Publicado en página do NU-SOL

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    Há mais de duas semanas, vários colegas me encontram e alegremente me cumprimentam dizendo que ganhei o processo administrativo movido pela PUC-SP. Porém, eu não sei o que
    responder. Não recebi nenhuma comunicação oficial. Sei pelos corredores e salas da universidade por onde ando e trabalho que “ganhei”, “fui absolvido”… E só.

    Sei que fiz meu depoimento em 31 de março e que a comissão se reuniu. Suponho que sua decisão tenha sido encaminhada. O zum-zum não se espalhou do nada. Mais de dois meses depois
    do meu depoimento (o acusado sempre é o último a se manifestar) e mais de oito meses do início do processo, permaneço atento e com a presença de professores, funcionários e estudantes solidários da PUC-SP; de amigos, colegas, associações, organizações e pessoas que se manifestaram diante desse estranho processo; e principalmente da APROPUC.

    Sei também que o tribunal como locus da justiça se afirma a cada condenação. A absolvição para ele é apenas uma rotina burocrática e sua divulgação pouca obtêm relevância (a não ser em
    casos de política institucional em crise escancarada). Não preciso lembrar a ninguém como gentes são mantidas encarceradas mesmo depois de esgotados todos os caminhos do julgamento, e como o tribunal, propositalmente, é moroso. A sua forma de assegurar o poder de julgar, segundo suas regras, provoca a agonia. E também por saber disso constato seu costume, sem deixar de sublinhar que isso perturba.

    A abertura de um processo e os seus respectivos procedimentos constituem em si o suposto caminho para a punição, mas não só. Também por meio de artifícios de políticas públicas se interna
    (compulsória ou voluntariamente diante de um evento que embaraça a saúde pública). O justo, pelos meios convencionais ou modernosos, pretende punir mais e melhor. Por isso, também me coloco adversário da justiça restaurativa; simplesmente porque com ela está em jogo castigar, sob a alegação da rapidez de decisão compartilhada, condenando condutas e promovendo outras mais a serem criminalizáveis, passíveis de julgamentos compartilhados.

    Estou e estive sob os procedimentos convencionais, simplesmente porque o processo administrativo em curso foi aberto para me incriminar como trabalhador por conduta indisciplinar
    contra o empregador, a partir de uma denúncia encaminhada à ouvidoria da Fundação São Paulo.

    Noutra ocasião me manifestei abertamente sobre isso. Agora, depois de cumpridos todos os requisitos, apenas espero pela decisão. E a aguardo do mesmo modo: surpreso, atento e combativo.
    Ainda estou na PUC-SP, uma universidade, em passado recente, tida até como vanguardista, mas que hoje parece preferir a rotina de ajustes que se espelham no que o justo determina como
    regularidade, minimizando a força das suas contestações e invenções vindas de baixo. O termo em voga no palavreado politizado, a coalizão de agrupamentos, pode gerar colisão, simplesmente
    porque para haver coalizão é preciso confirmar negócios e suas devidas recompensas (e nisso a política brasileira é exímia, tanto para fazê-los como para agitar reformas em nome de uma novidade que apenas recicla os mesmos condutores). E assim, se renova e inova o ajuste justo, equalizado hoje, em termos e em tempos de resiliência.

    Espero que este processo se encerre e sirva para reabrir corajosamente modos de conviver menos policiais, mais livres e sabendo que nada é fácil. Fácil é denunciar, delatar em nome de
    direitos ou para recobrir autoridades, aguardando recompensas. Mas a luta por direitos é antes de tudo luta pela vida. É preciso se revirar um pouco diante da galopante disseminação da crença na
    punição (para os poderosos ela também gera negócios, para os de baixo, o estigma de cagueta, dedo-duro, informante, infiltrado…).

    É inacreditável que a PUC-SP se acomode no vaivém do justo ao político e vice-versa. Penso que até o mais simplório pluralista, em sua intimidade, tenha se assustado com este processo contra
    mim, simplesmente porque constatei que os temerosos de sempre ou da ocasião estremeceram.

    A PUC-SP pode sim, sair dessa rotina na qual é muito fácil, hábil e político declarar que o culpado é sempre o outro, produzindo embates entre os próprios trabalhadores. E que os canalhas
    que espezinham os de baixo tenham se revisto; que os tolos de baixo também; porque se uma universidade existe pela sua competência de saber, ela só se diferencia pelo modo como todos nela
    se governam fortalecidos e afirmando liberdades.

    Permaneço aguardando a decisão.
    Edson Passetti

  • PROCESSO DE CRIAÇÃO DO PROJETO/PROCESSO COMUNITARIO PARQUE AUGUSTA __ movimento JUN/2017

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    PDF COM O PROJETO/PROCESSO: http://zip.net/bstLqv

    NOTA PÚBLICA – MOVIMENTO PARQUE AUGUSTA – 20.06.2017:

    https://www.facebook.com/parqueaugustaja/photos/a.475529212525417.1073741827.475522202526118/1349961448415518/?type=3&theater

     

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    EP_parque augusta_SUPERIOR EP_parque augusta_INFERIOR EP_parque augusta_CORTES (1) carta 

  • A geopolítica do caos e o fim de ciclo na América Latina (Emiliano Teran Mantovani)

    Por Emiliano Teran Mantovani

    (tradução Giovanna Marra)

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    \”…se as medidas excepcionais são o fruto dos períodos de crise política e, enquanto tais, estão compreendidas no terreno político e não no terreno jurídico constitucional, elas se encontram na paradoxal situação de serem medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direito, e o estado de exceção se apresenta como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal\”.

    Giorgio Agamben

     

                O Grande Tabuleiro Mundial se requenta. O conflito social está se propagando por toda a moldura do sistema-mundo, produto não só das extraordinárias desigualdades socioeconômicas e da devastação de fontes de vida e territórios, senão também da terrível vulnerabilização que se provocou sobre os tecidos sociais nesses mais de 30 anos de neoliberalismo global. Como sintoma e consequência destes processos, direitas e extremas direitas ganham cada vez mais terreno em numerosas partes do planeta.

    Na América Latina, as entusiasmantes ilusões emancipatórias que se propagavam durante o auge dos governos progressistas estão sendo desfeitas por um horizonte de resistências, agora basicamente a partir da perspectiva das organizações populares de base e movimentos sociais. Se trata de um horizonte mais incerto, mas necessariamente mais combativo.

    Este panorama para América Latina não deve ser simplesmente interpretado como uma potencial \”volta ao passado\”, como um regresso na linha do tempo à 1990. Importantes transformações ocorreram na região, suficientes para afirmar que já nada será igual por aqui. Deve-se olhar adiante advertindo não só tendências histórico-estruturais senão também identificado as marcas sui generis do tempo em que vivemos.

    A crise civilizatória parece prefigurar uma geopolítica do caos, onde também opera uma estratégia do contingente, do instável, que por ser mais versátil, flexível, aberta e descentralizada não deixa de ser violenta e profundamente reacionária – por exemplo, a chamada \”Doutrina Obama\” esteve marcada por essas marcas [1]. Neste marco, é fundamental ressaltar os elementos:

     

    1. alguns mecanismos tradicionais de intermediação com o econômico (como os estados de bem-estar e políticas de assistência social massiva) e com o político (como os sistemas de partidos e instituições eleitorais, marcos jurídicos de direitos civis) parecem estar em processo de franco esgotamento histórico, seja porque sua legitimidade social está minada, porque não podem sustentar-se no tempo ou porque representam um obstáculo frente a necessidade que tem o capital de um ajuste radical. Portanto, este aponta à processos massivos e intensivos de apropriação direta da riqueza e do trabalho, sem intermediação nem negociação nem sedução, principalmente no Sul Global, mas avançando também no Norte. Nesse sentido, a guerra deixa de ser somente acontecimento histórico e vai se constituindo como exercício permanente de micro-política e como referente dos regimes de poder e dos estados de direito.
    2. mas a apropriação direta não supõe necessariamente uma atuação imperial na forma de um rolo compressor, senão baseada em estratégias diferenciadas que permitam sustentar ao máximo possível os processos de acumulação, os mercados e a circulação de capital. A isso poderíamos chamar uma política do cinismo: a combinação de retalhos de assistência social, regionalizações de consumo, zonas de \”paz\” com estados de guerra territorial, estados de exceção seletivos, configuração de democracias sitiadas, regimes de poder regional paraestatais, entre outros, que vão se desenvolvendo dependendo de fatores de conjuntura e as diversas reações sociopolíticas que provocam.

    A partir da análise geopolítica do discurso oficial progressista latino-americano, se promoveu a total centralidade da contradição Império vs Nação-periferia (basicamente EUA vs os governos progressistas), interrompendo uma análise de multi-escalas e deixando engavetadas as próprias contradições domésticas Estado-Governo – território/população.

    Ao mesmo tempo, se impulsionou uma prevalência do império-acontecimento (por exemplo, para o casa da Venezuela, uma eventual intervenção militar norte-americana) deixando de lado o império-processo, o qual expressa os múltiplos mecanismos de penetração e transformação desde dentro das tramas sociais, das forças contra hegemônicas, das facetas desafiantes dos regimes políticos nacionais, com o fim de ir prejudicando  e mudando-os para facilitar a acumulação de capital e a apropriação de recursos e trabalho. Essa forma de intervenção pode conseguir o desmantelamento e a desativação progressiva de um processo contra-hegemônico de mudança, ainda que na superfície dado regime político busque manter uma fachada popular-emancipatória. Nesse sentido, é vital ressaltar a contradição Império-território/população.

    Esta análise integrada macro-micro-político, de múltiplas escalas espaciais, esta fenomenologia do imperialismo, é útil ao menos por duas razões:

    Primeiro, fatores como o caos global e os altos níveis de incertezas, risco e volatilidade sistêmica, nos quais muitas das macro-instituições tradicionais são cada vez menos funcionais e se requer de ação direta; a lógica de penetração total do neoliberalismo a escala planetária; a potencial desregulação ou mutação dos Estados latino-americanos frente esta nova etapa; a vulnerabilidade de povos e comunidades frente esta situação; a disputa geopolítica pelos recursos naturais; entre outros, ressaltam a especial importância do foco sobre a dinâmica nos territórios. Uma estratégia de apropriação direta supõe analisar mais de perto o que ocorre nos mesmos, e nos tecidos sociais, onde se estão desenvolvendo vitais disputas pela vida a escala global.

    Segundo, dita análise poderia contribuir a fazer visíveis os diferentes atores envolvidos nas intervenções que o capital transnacional impulsiona, e que são canalizadas em escalas globais, regionais, nacionais e locais. Permite destacar as operaçòes de interface geográfico mediante as quais opera o capital para finalmente chegar ao tecido da vida socioecológica. Dessa forma, por exemplo, é possível ressaltar a relação orgânica, ainda que não necessariamente explícita, que tem o extrativismo com estas formas de operação imperial.

    Nas disputas geopolíticas e nacionais nesses novos tempos para a América Latina, não só se abriu o cenário para a aparição de governos favoráveis a um ou outro bloco global de poder, senão também a configuração de novas e complexas \”governamentalidades\” (Foucault) nos territórios e os tecidos da vida. Controlar e administrar o caos, assim como aproveitar e canalizar as mudanças essenciais que se produziram nos tecidos socioterritoriais, parece ser um objetivo central nessas disputas pelo mandato político. Convém avaliar pois, o terreno espinhoso onde se estão desenvolvendo as lutas atuais e as que virão.

     

    O terreno espinhoso de lutas por vir: reconfigurações nas entranhas da América Latina

     

    O ciclo progressista latino-americano que parece se concluir, e que teve impactos diretos e indiretos em toda a região, pode ser também lido como uma nova onda modernizadora para a região, impulsionada não só pelo boom dos commodities que iniciara na década passada, senão também por ampliações e novos dispositivos na distribuição social dos excedentes captados nesse processo.

    Colocar que América Latina já não será igual supõe reconhecer que esta onda modernizadora gerou importantes transformações nas molduras sociais; nos territórios urbanos, camponês e indígenas; em suas estruturas políticas – o que inclui as formas de exercício do poder e as lutas populares -; nas expectativas e padrões culturais; e nos metabolismos sociais; o qual tem e terá notáveis efeitos para toda a vida na região.

    Se bem variam em diversos graus e não operam de maneira absoluta, nos diferentes países latino-americanos é possível verificar algumas tendências compartilhadas tais como:

    . Crescimento dos processos de urbanização, modernização territorial e da população dentro das cidades, com tendências persistentes ao incremento para os próximos anos [2].

    . Caotização e vulnerabilidade das cidades – recorde-se por exemplo, a crise hídrica em São Paulo desde 2014 ou as inundações em Buenos Aires em 2013. Expectativas de \”modos de vida imperial\” (U. Brand) em cada vez mais gente, o que está se unindo contraditoriamente com a atual situação de queda dos preços dos commodities.

    . Avanço da fronteira extrativa em toda a região. Relançamento e expansão em grande escala em setores do extrativismo que não foram os tradicionais para cada país, como o caso da mineradora na Venezuela ou Equador, ou o petróleo no Brasil. Avanço dos extrativismos de alto risco por meio do impulso de exploração de hidrocarbonetos não convencionais, tais como a perfuração e fracking na jazida de Vaca Muerta, Argentina; ou os crudes pesados e extrapesados na Colômbia e Venezuela [3].

    . Crescimento nos metabolismos sociais (fluxos de materiais, energia e água), que ainda que em termos relativos (taxas de crescimento, fluxos per capita, etc.) poderiam diminuir em relação a décadas passadas, mostram notáveis tendências ao aumento em termos absolutos [4]. Isto ocorre não somente nas cidades, onde uma porção das populações foram incorporadas ao consumo de mais energia, materiais e água, senão também a raiz da expansão do extrativismo nos territórios da região.

    . Sistemas sociais mais complexos. Incorporação massiva de setores das classes pobres às classes médias [5]. Estratificações sociais mais heterogêneas e híbridas – por exemplo, bairros populares nos quais convivem diferentes \”classes\” sociais. Novas subjetividades nos jovens que adotam uma atitude frente a política e fazem um importante papel no desenvolvimento deste fim de ciclo.

    . Em alguns países se produziu o surgimento de novas burguesias, no seio dos processos de acumulação de capital impulsionados direta ou indiretamente pelas políticas dos governos, como no caso dos progressismos radicais da Venezuela e Bolívia – \”Boliburguesia\” e \”Burguesia Aymara\”, respectivamente.

    . Financeirização das classes populares e robustecimento qualitativo das economias informais. A pesar de que em vários países da região cresceu o emprego formal na última década – como na Argentina, Brasil e Chile -, devido às características dos modelos primários da região, o setor informal segue sendo muito significativo – uma média de 50% do total, sendo que em países como Paraguai, Colômbia, México, Guatemala ou Peru, se supera notavelmente esta cifra [6]. O processo de financeirização social lhe deu maior organicidade à economia informal e fortalece em termos qualitativos, na medida em que vigora suas redes, potencializadas pelo alto consumo. Poderíamos dizer que se socializou o setor terciário da economia, potencializando uma maior autonomização do setor informal. À raiz do fim do boom das commodities e uma re-explosão da economia informal. O que acontece quando a informalidade passa a ser um determinante de toda a economia e dos tecidos sociais?

    . Em diversos graus, dependendo dos territórios e países, as estruturas socioeconômicas e culturais dos povos indígenas e camponeses foram impactadas. Novas ruralidades e novas configurações no mundo indígena foram se desenvolvendo, com consequências a respeito da preservação de seus territórios, seus modos de vida, suas resistências e seus padrões culturais.

    . Surgimento de novas direitas, que assumem narrativas, projetos mais híbridos e flexíveis, com novos rostos, os quais buscam capitalizar as numerosas mudanças sociais, culturais e políticas da região. A crise dos progressismos reabriu o caminho a um potencial desprestígio dos ideais revolucionários e socialistas em amplos setores da população, com maior força na Venezuela.

    . Grupos de delinquência social, urbanos e rurais, que se transformaram a formas muito mais sofisticadas de ação, com maior capacidade de fogo e tecnológica, e com maior consciência de seu poder político, principalmente nos territórios que conseguem controlar.

    . Afirmação do que chamamos de um \”neoliberalismo mutante\” [7], o qual se configurou como um modo heterodoxo, híbrido, estratégico e flexível de acumulação de capital que muda, se reacomoda permanentemente, e no qual podem coexistir, por exemplo, mercantilização sem privatização ou financeirização com intervenção estatal, sem que isto implique o abandono de uma eventual guinada à ortodoxia ou ao horizonte de desapropriação massiva que o constitui.

    . Penetração múltipla das economias latino-americanas por diversos atores geopolíticos, onde teve crescente presença China e em menor medida os outros países dos BRICS. Destacam os nexos do gigante asiático com Venezuela, Equador, Brasil, Peru e Argentina [8]. Relativo deslocamento da hegemonia dos EUA. Brasil incrementou sua influência geopolítica, ressaltando seu papel na América do Sul. Em geral, o fim do ciclo está também marcado por uma espécie de guerra fria que se desenvolve a nível mundial.

    . Vivemos em um mundo ainda mais convulsionado que quando começou este período de perfil progressista.

    Sobre a superfície acidentada, móvel, irregular e volátil desta geografia política das muito diversas molduras sociais latinoamericanas vai se conformando cadeias de regimes de poder, diferenciados mas profundamente conectados com as disputas geopolíticas, os Estados da região e os processos de acumulação do capital a escala global. Convém examinar as tendências que configuram, desde cima, um marco de excepcionalidade e militarização de todos os âmbitos da vida; e desde baixo, uma cooptação do antagonismo, especialmente de suas facetas autoritário-delinquenciais.

     

    Gerindo o caos desde cima: regimes de exceção e militarização da vida

     

    Os tempos por vir na América Latina parecem apontar a tempos conflitivos, de revoltas e intensas disputas territoriais pelos recursos. Os Estados latino-americanos não só vaõ se adaptando às dinâmicas de crise econômica global através da crescente execução de reformas e ajustes macroeconômicos (desde a Reforma Energética no México até as Zonas Econômicas Especiais na Venezuela), senão também se vêm compelidos a desenvolver ou ampliar formas de cooperação com a lógica de guerra global imperante.

    Neste marco, e com olhar na administração e gestão dos cenários de crise e caos sistêmico, se desenha uma crescente política de militarização de todos os âmbitos da vida e a expansão de estados de exceção diferenciados. Situações ou contextos de contingência vinculados à uma \”ameaça excepcional\”, vão sendo canalizados através destes mecanismos de controle, seja por crise econômica (como o Estado de Exceção e Emergência Econômica decretado à nível nacional na Venezuela desde maio de 2016, para combater a \”guerra econômica\” e outros fatores [9]); luta contra o terrorismo e o narcotráfico (como o declarado pelo governo peruano em setembro de 2016, em três distritos de Huancavelica, Ayacucho e Cuzco [10]); fenômenos naturais (como a explosão do vulcão Cotopaxi em agosto de 2015, que implicou uma declaração de estado de exceção à nível nacional e mobilização de todas as forças armadas no Equador [11]); grandes eventos (como o estado de exceção declarado pelo governo brasileiro para os Jogos Olímpicos de agosto de 2016 [12]); e evidentemente revoltas populares e manifestações sociais de diversos tipos.

    Mas é fundamental destacar que o desenvolvimento deste processo não se dá só por decretos; a promulgação de leis antiterroristas e o endurecimento dos códigos penais; o estabelecimento de novas bases militares estadunidenses na região (especialmente no Peru, Paraguai e Colômbia); a modernização das forças militares, policiais e de inteligência; ou inclusive a busca de consolidação do Conselho de Defesa Sul-americano da UNASUR; senão de como todos os aspectos e âmbitos da vida social vão sendo atravessados progressivamente pela lógica militar/policial de controle, sítio, vigilância e repressão. De como o sistema de direitos e garantias sociais vai ficando cada vez mais suspenso para que se vá impondo um regime político de excepcionalidade permanente, que permite às forças de segurança oficial tomar o controle dos recursos, instituições e territórios \”vulneráveis\” pela \”ameaça extraordinária\”.

    Tudo isso vai se configurando independentemente de se a aliança geopolítica dos diferentes Estados latinoamericanos é com os Estados Unidos, com China ou com outros atores nacionais e corporativos.

    No entanto, como já sinalizamos, estes processos evoluem de maneiras diferenciadas nos países e territórios latino-americanos, ao tempo que não se trata necessariamente de regimes rolo compressor  ou de formas totalitária homogeneizantes, senão que respondem a estratégias variáveis, flexíveis e regionalizadas.

    Por um lado, deve-se tomar em conta as estruturas políticas domésticas, a significação geopolítica de cada país e regiões, a importância de seus recursos e a intensidade das resistências populares frente os diversos processos de intervenção do capital, para compreender como se atribuem e se recorrem às diferentes modalidade e intensidade de operação sobre os territórios e população.

    No México, a \”Guerra contra o Narcotráfico\” (2006+) e a Lei de Segurança Nacional (2011) geram um marco de brutal excepcionalidade permanente e generalizada, com numerosas similitudes à região centro-americana, em especial em El Salvador, Guatemala e Honduras.

    Na América do Sul, Colômbia destaca como regime constituído em boa medida pela excepcionalidade e por ser uma área geopolítica de pivô (ou charneira), sendo que o cenário pós-conflito não supõe necessariamente que se interrompa o processo de militarização imperante (com processos atuais de intensa repressão social e desaparição de ativistas) e o crescimento da assistência militar por parte dos EUA [13].

    Por sua vez, nos países de governos progressistas latino-americanos se produziu intensas disputas sociopolíticas atravessadas por atores rivais nacionais e internacionais, o qual incrementa os níveis de conflitividade geral, e portanto, os processos de militarização e cenários de excepcionalidade, sendo Venezuela o caso onde isto se desenvolve com mais intensidade.

    A Amazônia aparece como uma zona chave na evolução destes processos de conflito. Do mesmo modo, destacam-se formas de militarização urbana (ex. Caso brasileiro) e as complexas dinâmicas fronteiriças em toda a região (ex. A Tríplice Fronteira ou a fronteira Colombo-venezuelana).

    Por último, ainda que países como Chile, Uruguai ou Costa Rica não apareçam como grandes áreas estratégicas, de risco ou de insubordinação, podem aparecer processos deste tipo em menor escala ou setorizados, como ocorre com a crescente militarização e conflito na araucania chilena.

    Finalmente, é essencial insistir que o custo político, econômico e social, e as enormes dificuldades que acarretam a execução e manutenção de um regime total de excepcionalidade permanente a escala nacional, coloca a pertinência para o status quo do impulso de políticas setorizadas e de contingência.

    O fim do ciclo não tem que ser pensando única e necessariamente como um tsunami arrasador. Uma restauração conservadora na América Latina ou uma radicalização da acumulação por despossessão parece ir montando-se progressivamente, mediante políticas que, ainda que possam chegar a ser violentas e de ampliaçãodo descaso social, se configuram de maneiras seletivas e diferenciadas.

    Mais além destes dispositivos exibidos desde cima, é necessário também examinar como estes também podem expandir-se a partir das próprias tramas da vida social, analisar como vão se configurando desde baixo.

     

    Gerir o caos desde baixo: autoritarismos delinquenciais e o tecido social como campo de batalha.

     

    A pesar da progressiva configuração de todos estes dispositivos de controle, os marcos da legalidade e dos aparatos e instituições formais estão sendo cada vez mais transbordados pelas dinâmicas sociais, culturais, metabólicas e territoriais que se desenvolvem nas entranhas da região, e que descrevemos anteriormente.

    O crescimento de redes de narcotráfico, de amplas molduras de economias informais e comércio de contrabando, muitos deles de caráter transfronteiriço, e a acelerada expansão da mineração ilegal, principalmente na região amazônica, estão constituídos por grupos sociopolíticos que conseguem exercer cada vez mais poder sobre os territórios, configurar economias locais com cada vez maior afinco popular, gerar crescentes danos ambientais e impactar significativamente sobre os tecidos sociais e os processos de produção cultural e de subjetividade.

    O controle territorial dos cartéis mexicanos em várias regiões do país; o avanço político das \”maras\” na América Central (recordemos a greve de transporte convocada por Mara Salvatrucha e Barrio 18 em El Salvador, em julho de 2015 [14]), as estruturas de poder de grupos armados irregulares e gangues criminosas urbanas e rurais na Colômbia, e a forma acelerada como cresceram as mesmas na Venezuela; a expansão do tráfico de commodities na Amazônia e outras zonas do subcontinente (especialmente nas novas fronteiras de extração); são expressão de como estes grupos podem inclusive criar seus próprios regimes políticos, suas próprias formas de excepcionalidade, os quais podemos entender como autoritarismos delinquenciais regionalizados.

    Nestes circuitos e territorializações, não há área protegida, zonas de reserva, direitos humanos, regulações econômicas e jurídicas que o valha, não só porque não se impõe uma institucionalidade formal que os faça respeitar, senão porque  ao mesmo tempo vão se institucionalizando desde baixo estes outros formatos do \”paralelo\” – ilegal-informal.

    É comum impingir a ocorrência destes fenômenos a uma \”ausência de Estado\”, e ainda que de fato isto possa revelar um abandono ou deslocamento da institucionalidade estatal, convém também analisar processos de cooperação e articulação que estão se produzindo entre os âmbitos do formal/legal e o informal/ilegal.

    O capital e o Estado podem configurar uma poderosa biopolítica que opera em um duplo âmbito de ação: não somente na militarização da vida e sua lógica de controle de amplo espectro, impulsionada desde cima, senão também buscando cooptar as pulsões contra-hegemônicas, desde baixo.  Isto basicamente implica tentar canalizar o mal-estar popular, o transbordamento social, as pulsões de sublevação e de poder, pondo especial atenção nas poderosas estruturas delinquenciais, para favorecer formas de controle territorial e apropriação local do trabalho, os recursos, os corpos e o território, ao mesmo tempo que se possa dividir, fragmentar e vulnerabilizar ainda mais o tecido social que poderia conformar a alternativa contra-hegemônica. Dessa forma, o tecido social se converte em campo de batalha.

    O lema mexicano em torno da tragédia de Ayotzinapa (2014) de\”No fué el narco, fué el Estado\”, que expressa um regime de co-governança e entrecruzamento de aparatos repressivos formais e grupos delinquenciais; as variadas expressões cooperativas entre setores militares e os grupos que impulsionam a expansão da mineração ilegal na região amazônica; ou bem o importante rol que vão adquirindo as instituições policiais no próprio auge da delinquência urbana; por mencionar alguns exemplos, revelam um padrão de poder que tem um caráter multiescalar, corporativo e reticular , no qual as fronteiras entre o formal/legal e o informal/ilegal vão se fazendo cada vez mais apagadas. Isto nos traz de novo à recorrente pergunta sobre o que é o Estado, pensando-o agora a partir da América Latina no século XXI.

    Tomando em conta o auge dos poderes territoriais delinquenciais e as ramificações e transbordamentos dos Estados mais além das margens do formal/legal, nos perguntamos também se trata-se somente de uma tendência conjuntural ou se estamos frente à configuração histórica de novas formas de estatalidade na região.  No marco da geopolítica latino-americana, estamos frente uma tendência regional estruturada e determinada pelas intensas disputas intercapitalista mundiais? São exemplos africanos e asiáticos (como o Boko Haram ou o ISIS), referentes a um padrão de apropriação radical nos territórios do Sul Global?

    Na biopolítica da disputa mundial, a batalha transcendental está se produzindo sobre os tecidos sociais e os territórios/ecossistemas. É fundamental levar em conta estas tendências nas análises dos tempos por vir para a região. Se trata de uma questão vital.

     

    O comum no caos: pensar-nos desde o conflito, disputar o antagonismo, tecer comunidade

     

    O caos sistêmico é também a revelação de um sistema extraordinariamente rachado, por onde sempre poderão colar-se às pulsões das revoltas e a transformação para a emancipação. O esgotamento do \”ciclo progressista\” muito provavelmente vai supor a abertura de novos ciclos de lutas populares na América Latina, as quais por sua vez poderiam promover o surgimento e expansão de novas modalidades, narrativas e formatos de operação nas mesmas. Mas um desenlace da atual encruzilhada regional, o mais favorável possível para um projeto popular-ecológico-emancipatório, passa por reconhecer os códigos de operação destes agressivos regimes de poder multi-escalares. Dizer que os próprios tecidos socioterritoriais são um campo de intensa batalha, como nunca antes na história do capitalismo, supõe  reconhecer que a força destrutiva do capital penetra nas redes da vida – sua força ecocida – e na própria constituição do popular-comunitário. Como se desenvolve e se desenvolverá o antagonismo do popular, o antagonismo dos pobres e excluídos em tempos de caos sistêmico? Que formas toma ou pode tomar?

    Intervir violentamente na própria produção constitutiva do popular-comunitário busca transformar sua potência em máquinas fragmentadas de guerra, em campo fértil para a distopia; canalizar o descontentamento social frente formas orgânicas de fascismo; formatar a comunidade para o combate ao que está fora dela – as maras centro-americanas podem ser interpretadas como comunidades/máquinas de guerra -; e assim voltar inviável a massividade de uma revolta emancipatória.

    Não basta pois, somente promover o antagonismo contra-hegemônico, senão inclusive disputar para tentar  canalizá-lo a um projeto coletivo e emancipatório do comum-diverso-ecológico, onde o humano se funde com a realidade material de sua geografia imediata, de seu ecossistema, e da reprodução e afirmação da vida.

    Isto implica privilegiar uma política a partir dos territórios e portanto, alcançar uma meta que até agora não se conseguiu no grosso dos projetos e narrativas da esquerda: descentrar o rol do Estado nas transformações sociais. Não se trata de ignorar sua presença, operação e poder, nem tampouco, como insistiram alguns autores, reivindicar um \”horizonte localista\”, senão impulsionar uma estratégia multi-escalar na qual a luta territorial e a reprodução material da vida são centrais e ponto de partida de toda a luta emancipatória.

    Quando pensamos nas estratégias e narrativas na escala global, a regional e inclusive a nacional, o que nos resta por reivindicar em quanto as grandes narrativas políticas, essas que podem unir numerosas subjetividades e agrupações em torno de um projeto comum? O socialismo? O desenvolvimento? A democracia?

    Frente o transbordamento dos contratos sociais e a configuração da guerra como fator de organização por excelência, devemos defender ao máximo os princípios e marcos mínimos dos estados de direito, de garantias mínimas sociais, os pilares do ideal da democracia? O que resta como projeto para a convergência de lutas, mais além do parapeito das estruturas institucionais da modernidade? É possível ressignificar os pilares fundamentais da chamada democracia? Uma democracia radical e ecológica poderia e deveria ser um eixo narrativo e programático que articule diversas iniciativas populares de luta? Podemos avançar juntos sem um grande projeto mobilizador?

    Talvez um dos paradoxos dos tempos que vivemos reside na forçosa combinação de uma esperança a qual não podemos renunciar, com a franqueza e valentia de reconhecer que o transbordamento do conflito, sua massividade, sua multiplicidade, nos habita cada vez mais. Seria o estouro social do Caracazo em 1989 na Venezuela somente um acontecimento histórico ou a expressão da configuração de um novo cenário político urbano, da inviabilidade das cidades latino-americanas, da latência de seu transbordamento?

    As intensas lutas de resistência indígenas e camponesas no Peru; as fogueiras e as guardas comunitárias em Cherán, México; as retenções de militares por parte de povos indígenas na Colômbia e Venezuela; os bloqueios nas estradas e assembléias populares em comunidades como Famatina, Argentina; os bloqueios a escavadoras e múltiplos métodos de ação direta para a resistência, realizados em numerosas localidades latino-americanas; são conflitos convencionais ou a resposta frente um radical avanço belicista a respeito das novas fronteiras de commodities? Acreditamos que pensar as alternativas passa também necessariamente por pensar-nos a partir do conflito.

    Talvez convenha reivindicar o  \”princípio de esperança\” não unicamente ancorado em um horizonte ideal por conseguir, senão também orientado a uma disposição que rodeia e fica contida no fazer, no devir, seja quando as águas estão calmas, seja quando haja avisos de tempestade. Entretanto, tecer e tecer comunidade, em cada âmbito e escala de luta, parece um objetivo vital nestes tempos. E não esquecer que o jogo segue aberto.

     

    Caracas, dezembro de 2016.

     

    Fontes consultadas

    – AFP. OIT: empleo informal en América Latina alcanza el 50%. Diario Pyme. Sin fecha. Disponible en http://www.diariopyme.com/oit-empleo-informal-en-america-latina-alcanza-el-50/prontus_diariopyme/2016-06-21/144744.html

    – Alba Ciudad. Conozca el Decreto de Estado de Excepción y Emergencia Económica firmado por el Presidente Maduro este 13 de mayo. 14 de mayo de 2016. Disponible enhttp://albaciudad.org/2016/05/decreto-estado-excepcion-estado-emergencia-mayo-2016/

    – BBC Mundo. El paro que demuestra el poder de las maras en El Salvador. 29 de julio de 2015. Disponible en http://www.bbc.com/mundo/noticias/2015/07/150729_america_latina_el_salvador_maras_pandillas_paro_transporte_aw

    – CEPAL. Ciudades sostenibles con igualdad en América Latina y el Caribe. HABITAT III, Conferencia de las Naciones Unidas sobre la Vivienda y el Desarrollo Urbano Sostenible Quito, 17 a 21 de octubre de 2016. Disponible en http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/40658/1/S1601057_es.pdf

    – Constante, Soraya. Correa declara el estado de excepción por la erupción de un volcán. El País. 17 de agosto de 2015. Disponible en http://internacional.elpais.com/internacional/2015/08/15/actualidad/1439662969_985121.html

    – EFE. Gobierno peruano declara estado de excepción en tres distritos por terrorismo. 11 de septiembre de 2016. Disponible en http://www.eluniversal.com.mx/articulo/mundo/2016/09/11/gobierno-peruano-declara-estado-de-excepcion-en-3-distritos-por-terrorismo

    – Justo, Marcelo. ¿Cómo terminar con el trabajo informal en América Latina? BBC Mundo. 29 de mayo de 2014. Disponible en http://www.bbc.com/mundo/noticias/2014/05/140527_economia_trabajo_informal_wbm

    – Krieg, Andreas. Externalizing the burden of war: the Obama Doctrine and US foreign policy in the Middle East. International Affairs 92: 1 (2016) 97–113. Disponible enhttps://www.chathamhouse.org/sites/files/chathamhouse/publications/ia/INTA92_1_05_Krieg.pdf

    – Roa Avendaño, Tatiana. Scandizzo, Hernán. Qué entendemos por energía extrema. OPSur-Oilwatch Latinoamérica. septiembre 28, 2016. Disponible en http://www.opsur.org.ar/blog/2016/09/28/que-entendemos-por-energia-extrema/

    – Telesur. Brasil declara estado de excepción para Olímpicos Río 2016. 17 de junio de 2016. Disponible en http://www.telesurtv.net/news/Brasil-declara-estado-de-excepcion-para-Olimpicos-Rio-2016-20160617-0043.html

    – Teran Mantovani, Emiliano. La crisis del capitalismo rentístico y el neoliberalismo mutante (1983-2013). Documentos de Trabajo Celarg, 2014, vol. 5, p. 1-27. Disponible enhttp://www.celarg.org.ve/Espanol/Imagenes/avances%20de%20investigacion/5.%20Documento%20N%C2%B05.%20Emiliano%20Teran%20(corregido).pdf

    – Teran Mantovani, Emiliano. Los rasgos del “Efecto China” y sus vínculos con el extractivismo en América Latina. Rebelión. 6 de febrero de 2014. Disponible en http://www.rebelion.org/noticia.php?id=180450 .

    – The White House. FACT SHEET: Peace Colombia — A New Era of Partnership between the United States and Colombia. 4 de febrero de 2016. Disponible en https://www.whitehouse.gov/the-press-office/2016/02/04/fact-sheet-peace-colombia-new-era-partnership-between-united-states-and

    – UNEP. Recent Trends in Material Flows and Resources Productivity in Latin America. 2013. Disponible en http://www.unep.org/dewa/portals/67/pdf/RecentTrendsLA.pdf

    – United Nations. World Urbanization Prospects 2014. United Nations New York, 2014. Disponible en https://esa.un.org/unpd/wup/Publications/Files/WUP2014-Highlights.pdf

    – United Nations. América Latina debe impulsar un modelo de crecimiento urbano que genere riqueza, sugiere el PNUD. 15 octubre 2016. Disponible en http://www.un.org/sustainabledevelopment/es/2016/10/america-latina-debe-impulsar-un-modelo-de-crecimiento-urbano-que-genere-riqueza-sugiere-el-pnud/

    [1] Sobre esta discussão, ver por exemplo: Krieg, Andreas. Externalizing the burden of war: the Obama Doctrine and US foreign policy in the Middle East.

    [2] Ver: United Nations. World Urbanization Prospects 2014; y CEPAL. Ciudades sostenibles con igualdad en América Latina y el Caribe.

    [3] Roa Avendaño, Tatiana. Scandizzo, Hernán. Qué entendemos por energía extrema.

    [4] UNEP. Recent Trends in Material Flows and Resources Productivity in Latin America.

    [5] United Nations. América Latina debe impulsar un modelo de crecimiento urbano que genere riqueza, sugiere el PNUD.

    [6] Justo, Marcelo. ¿Cómo terminar con el trabajo informal en América Latina? AFP. OIT: empleo informal en América Latina alcanza el 50%.

    [7] Teran Mantovani, Emiliano. La crisis del capitalismo rentístico y el neoliberalismo mutante (1983-2013).

    [8] Teran Mantovani, Emiliano. Los rasgos del “Efecto China” y sus vínculos con el extractivismo en América Latina.

    [9] Alba Ciudad. Conozca el Decreto de Estado de Excepción y Emergencia Económica firmado por el Presidente Maduro este 13 de mayo.

    [10] EFE. Gobierno peruano declara estado de excepción en tres distritos por terrorismo.

    [11] Constante, Soraya. Correa declara el estado de excepción por la erupción de un volcán

    [12] Telesur. Brasil declara estado de excepción para Olímpicos Río 2016.

    [13] The White House. FACT SHEET: Peace Colombia — A New Era of Partnership between the United States and Colombia.

    [14] BBC Mundo. El paro que demuestra el poder de las maras en El Salvador.

     

     

     

     

  • O processo bolivariano desde dentro. Sete chaves para entender a crise atual

    Por Emiliano Teran Mantovani

    (tradução Giovanna Marra) \"\"

    Não é possível entender a crise atual na Venezuela sem analisar em conjunto os fatores que se desenvolvem \”desde dentro\”, e que não são explicados em seu conjunto pelos principais meios de comunicação. Apontamos sete chaves da crise atual nas quais se ressalta que não se pode compreender o que ocorre na Venezuela sem levar em conta a intervenção estrangeira e que o conceito de \”ditadura\” nem explica o caso venezuelano, nem é uma especificidade regional desse país. Por sua vez, apontamos que se está transbordando o contrato social, as instituições e os marcos da economia formal e que se está canalizando o devir e as definições políticas da atual situação pela via da força e através de um bom número de mecanismos informais, excepcionais e subterrâneos. Propomos que o horizonte compartilhado dos blocos partidários de poder é neoliberal, que estamos frente uma crise histórica do capitalismo rentista venezuelano e que comunidades, organizações populares e movimentos sociais se enfrentam a um progressivo esvaziamento do tecido social.

     

    O tratamento que se dá a Venezuela nos grandes meios de comunicação internacionais é sem dúvida especial em todo o mundo. Não tenha dúvidas que hajam demasiadas tergiversações, demasiado maniqueísmo, demasiados slogans, demasiadas manipulações e omissões.

    Mais além das versões cretinizantes da linguagem midiática que interpreta tudo o que ocorre no país na chave de uma \’crise humanitária\’, \’ditadura\’ ou \’presos políticos\’, ou bem de uma narrativa heróica da Venezuela do \’socialismo\’ e a \’revolução\’ que interpreta tudo o que ocorre no país na chave de uma \’guerra econômica\’ ou \’ataque imperial\’, há muitos temas, sujeitos e processos que são invisibilizados, que ocorrem mar adentro e que essencialmente constituem o cenário político nacional. Não é possível entender a crise atual na Venezuela sem analisar em conjunto os fatores que se desenvolvem \’desde dentro\’.

    O critério de ação e interpretação baseado na lógica \’amigo-inimigo\’ responde mais a uma disputa entre elites dos partidos políticos e grupos econômicos que aos interesses fundamentais das classes trabalhadoras e da defesa dos bens-comuns. É necessário apostar por visões integrais do processo de crise e conflito nacional, que contribuam a traçar as coordenadas para transcender ou enfrentar a conjuntura atual.

    Apresentamos 7 chaves para sua compreensão, analisando não só a disputa governo-oposição, mas também processos que estão se desenvolvendo nas instituições políticas, nos tecidos sociais, nas tramas econômicas, ao passo que se ressaltam as complexidades sobre o neoliberalismo e os regimes de governo e governança no país.

     

    Não é possível compreender o que ocorre na Venezuela sem tomar em conta a intervenção estrangeira

     

    O rico e vasto conjunto dos chamados \’recursos naturais\’ do país; sua posição geo-estratégica; seu desafío inicial às políticas do Consenso de Washington; sua influência regional para a integração; assim como suas alianças com China, Rússia ou Irã; lhe outorgam um notável significado geopolítico à Venezuela. Entretanto, existem setores intelectuais e midiáticos que continuamente buscam obviar as muito fluidas dinâmicas internacionais que impactam e determinam o devir político no país, onde se ressalta o persistente acionar intervencionista do Governo e os diferentes poderes fáticos dos Estados Unidos.

    Nesse sentido, estes setores se encarregam de ridicularizar a crítica ao imperialismo, e apresentam o Governo Nacional como único ator de poder em jogo na Venezuela, e portanto  como o único objeto de interpelação política.

    No entanto, desde a instauração da Revolução Bolivariana se desenvolveu um intenso intervencionismo estadunidense na Venezuela, o qual se agravou e tornou-se mais agressivo a partir da morte do presidente Chávez (2013) e do contexto de esgotamento do ciclo progressista e restauração conservadora na América Latina. Vale recordar a Ordem Executiva assinada por Barack Obama em março de 2015 no qual se declarava a Venezuela como uma ameaça inusual e extraordinária para a segurança nacional dos EUA – \’an usual and extraordinary threat to the national security and foreign policy of the United States\’ [1]. Já sabemos o que ocorreu aos países que são catalogados dessa maneira pela potência do norte.

    Atualmente, ademais das ameaçadoras declarações do Chefe do Comando Sul,  o Almirante Kurt W. Tidd (6 de abril de 2017), colocando que a \’crise humanitária\’ na Venezuela poderia obrigar a levar adiante uma resposta regional – \’The growing humanitarian crisis in Venezuela could eventually compel a regional response\’ [2] – e da evidência da agressividade da política exterior de Donald Trump com o recente bombardeio à Síria, o Secretário Geral da Organização de Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, encabeça junto a vários países da região a tentativa de aplicação da Carta Democrática para abrir um processo de \’restituição da democracia\’ no país.

    Os ideólogos e operadores midiáticos da restauração conservadora na região se mostram muito preocupados pela situação de Direitos Humanos (DDHH) na Venezuela, mas não conseguem explicar em sua análise porque estranhamente não se faz nenhum esforço supranacional do mesmo tipo frente à espantosa crise de DDHH em países como México e Colômbia. Nesse sentido, parece que a indignação moral é relativa e preferem calar-se.

    Seja pois, por razões de intencionalidade política ou ingenuidade analítica, estes setores despolitiza o rol de organismos supranacionais desconhecendo as relações geopolíticas de poder que os constituem, que fazem parte de sua própria natureza. Uma coisa é uma leitura paranóica de todas as operações impulsionadas por estes organismos globais e outra muito diferente é uma interpretação puramente procedimental de seu acionar, obviando os mecanismos de dominação internacional e controle de mercados e de recursos naturais que se canalizaram através destas instituições de governança global e regional.

    Mas há algo importante que adicionar. Se falamos de intervenção, não podemos somente falar dos EUA. Na Venezuela existem crescentes formas de intervencionismo chinês na política e as medidas econômicas que se foram tomando, o que aponta a perdas de soberania, incremento da dependência com a potência asiática e processos de flexibilização econômica.

    Uma parte da esquerda preferiu calar estas dinâmicas, dado que parece que a única intervenção que merece ser assinalada é a estadunidense. Mas ambos propósitos de ingerência estrangeira estão se desenvolvendo para favorecer a acumulação capitalista transnacional, a apropriação de \’recursos naturais\’ e que nada tem a ver com as as reivindicações populares.

     

    O conceito de \’ditadura\’ não explica o caso venezuelano

     

    Quase desde o início da Revolução Bolivariana a Venezuela foi intitulada como \’ditadura\’. Este conceito segue sendo objeto de amplos debates na teoria política devido a que tenha sido desafiado pelas transformações e complexificação dos regimes e exercícios de poder contemporâneos, sobretudo na atual época globalizada, o que coloca sérios vazios e imprecisões em suas definições.

    A \’ditadura\’ soa estar associada a regimes políticos ou tipos de governos nos quais todo o poder está concentrado, sem limitações, em uma só pessoa ou um grupo delas; há uma ausência de divisão de poderes; ausência de liberdades individuais, de liberdade de partidos, liberdade de expressão; e inclusive em ocasiões o conceito foi vagamente definido como \’o oposto a democracia\’.

    O termo \’ditadura\’ na Venezuela foi utilizado e massificado no jargão midiático de maneira bastante superficial, visceral e de uma forma moralizante, praticamente para colocá-lo como uma espécie de especificidade venezuelana, distinguindo-se assim dos outros países da região, onde em teoria haveria regimes \’democráticos\’.

    A questão é que na Venezuela na atualidade dificilmente se pode dizer que todo o poder está concentrado sem limitações em uma só pessoa ou um grupo delas, devido a que no país estamos frente a um mapa de atores, que se é hierarquizado, é também fragmentado e volátil – sobretudo depois da morte do presidente Chávez -,  pela existência de diversos blocos de poder que podem aliar-se ou enfrentar-se entre eles e que transborda a dicotomia governo-oposição.

    Ainda que exista um governo com um componente militar importante, com crescentes expressões de autoritarismo e com certa capacidade de centralização, o cenário é altamente movediço. Não há dominação total de cima à baixo, e há certa paridade entre os grupos de poder em disputa. Em troca o conflito poderia transbordar-se, tornando ainda mais caótica a situação.

    O feito de que a oposição venezuelana controle a Assembléia Nacional, a qual ganhou contundentemente pela via eleitoral, assinala ademais que antes que uma pura ausência de divisão de poderes, há em troca uma disputa entre eles, até agora favorável à combinação Executivo-Judicial.

    Antes que falar de um regime político homogêneo, estamos frente uma ampla e conflitiva rede de forças. A metástase da corrupção faz com que o exercício do poder se descentralize ainda mais, ou se dificulte sua centralização por parte do Poder Constituído.

    O que sim tem a ver com o velho conceito romano de ditadura, é que neste contexto o Governo Nacional está governando por meio de decretos e medidas especiais no marco de um declarado \’estado de exceção\’ que se oficializa desde inícios de 2016. Em nome da luta contra a guerra econômica, o avanço da delinquência e do paramilitarismo e os avanços subversivos da oposição, numerosas mediações institucionais e procedimentos democráticos estão sendo omitidos. Destacam-se por sua gravidade políticas de segurança como a Operação de Liberação do Povo (OLP), que representam intervenções de choque diretas dos corpos de segurança do Estado em diferentes territórios do país (rurais, urbanos, bairros periféricos), para \”combater a quadrilha\”, os quais soam ter polêmicos saldos em mortes; a paralisação do referéndum revogatório; a suspensão das eleições ao governo em 2016 sem assim deixar claro quando se realizarão; crescentes repressões e excessos policiais frente ao descontamento social, produto da situação no país; e um incremento de processos de militarização, ressaltando as zona fronteiriças e as declaradas de \’recursos naturais estratégicos\’.

    Este é o mapa político que, junto às diversas formas de intervenção estrangeira, configuram o cenário de guerra de baixa intensidade que atravessa praticamente todos os âmbitos da vida cotidiana dos venezuelanos. Este é o marco em que se desenvolvem as liberdade individuais, a oposição e pluralidade partidária, a convocatória e realização de marchas, expressões de dissidência e críticas nos meios de comunicação, entre outras formas da chamada democracia na Venezuela.

     

    III. Na Venezuela se está transbordando o contrato social, as instituições e os marcos da economia formal

     

    Se há algo que poderia definir-se como uma especificidade do caso venezuelano é que seu cenário sociopolítico atual está desgarrado, profundamente corrompido e altamente caotizado. Temos sustentado que no país estamos frente uma das crises institucionais mais severas de toda América Latina [3], fazendo referência com isso ao conjunto das instituições jurídicas, sociais, econômicas, políticas, entre outras, que conformam a República venezuelana.

    A crise histórica do modelo de acumulação rentista petroleiro, a metástase da corrupção no país, severas vulnerabilidades ao tecido social desde o \’período neoliberal\’ e em especial desde 2013, e a intensidade dos ataques e disputas políticas, transbordou em seu conjunto os marcos das instituições formais de todos os âmbitos da sociedade, canalizando grande parte das dinâmicas sociais pela via de mecanismos informais, subterrâneos e ilegais.

    No âmbito econômico, a corrupção se transformou em um mecanismo transversal e motor de distribuição da renda petroleira, desviando enormes somas de divisas à discrição de poucos, e minando as bases da economia formal rentista. Isto ocorre de maneira determinante com PDVSA [4], a principal indústria do país, assim como com fundo chave como o Fundo Chino-Venezuelano ou com numerosas empresas nacionalizadas.

    O colapso da economia formal fez da informalidade praticamente um dos \’motores\’ de toda a economia nacional. As fontes de oportunidade sociais, seja de ascensão social ou de possibilidade de maiores ganancias, se encontram com frequência no chamado \’bachaqueo\’ de alimentos (o comércio ilegal, a altíssimo preços, dirigidos ao mercado negro) [5] ou outras formas de comércio nos diversos mercados paralelos seja de divisas, medicinas, gasolina, etc.

    No âmbito político-jurídico, o estado de direito carece de respeito e reconhecimento por parte dos principais atores políticos, os quais não só se desconhecem mutuamente se não que recorrem a movidas políticas dispostos a tudo para vencer um ao outro. O governo nacional enfrenta ao que considera as \’forças inimigas\’ com medidas de exceção e comoção, enquanto grupos da oposição mais reacionários desenrolam operações violentas de vandalismo, confrontação e ataque a infraestruturas. Neste cenário diminui sobremaneira o estado de direito, tornando muito vulnerável à população venezuelana.

    Cada vez reina uma maior impunidade, a qual se expandiu à todos os setores da população. Isto não só faz que se enquiste ainda mais a corrupção, que surge indetível, senão que implica que a população não espere nada do sistema de justiça, e cada vez mais a exerça com suas próprias mãos.

    O colapso do contrato social gera tendências de \’salve-se quem puder\’ na população. A fragmentação do poder também contribuiu a que se gerem, cresçam e se fortaleçam diversos poderes territoriais, como são os chamados \’sindicatos mineiros\’ que controlam com armas minas de ouro no estado Bolívar, ou grupos criminosos que dominam setores de Caracas como El Cementerio ou La Cota 905 [6].

    O marco apresentado implica nada mais e nada menos que o devir e as definições políticas da atual situação no país estão se desenvolvendo em grande medida pela via da força.

     

    A crise de largo prazo do capitalismo rentístico venezuelano

     

    O afundamento dos preços internacionais do crude foi determinante no desenvolvimento da crise venezuelana, mas não é o único fator que explica este processo. Desde a década dos anos 80 existem crescentes sintomas de esgotamento do modelo de acumulação baseado no extrativismo petroleiro e na distribuição de renda que gera. A atual fase de caotização da economia nacional (2013-hoje) é também produto do devir econômico dos últimos 30 anos no país. Por quê?

    Vários razões explicam. Em torno de 60% dos crudes venezuelanos são pesados e extra-pesados. Estes crudes são economicamente mais custosos e requerem maior uso de energia e o emprego de processamentos adicionais para sua comercialização. A rentabilidade do negócio que alimenta o país vai descendendo com respeito a tempos anteriores, quando prevaleciam crudes convencionais. Isto ocorre ao mesmo tempo que o modelo exige cada vez mais ingressos rentísticos e cada vez mais inversão social não só para paliar as crescentes necessidades de uma população que segue aumentando.

    A hiper-concentração populacional nas cidade (mais de 90%) promove um uso de renda orientado fundamentalmente no consumo (de bens importados) e muito pouco em formas produtivas. As épocas de bonanza promovem o fortalecimento do setor extrativo (primário) – os efeitos da chamada \’Doença Holandesa\’ – o que vulnerabiliza notavelmente aos já débeis setores produtivos. Logo finalizada a bonança (como ocorreu nos fins dos anos 70 e agora desde 2014), a economia fica mais dependente e ainda mais débil para enfrentar uma nova crise.

    A corrupção sócio-política do sistema também possibilita fugas e descentralizações fraudulentas da renda, o que impede o desenvolvimento de política coerentes de distribuição para paliar a crise.

    A crescente volatilidade dos preços internacionais do crude, assim como mudanças na balança de poder global em torno do petróleo (como a progressiva perda de influência da OPEP) tem também significativos impactos na economia nacional. Enquanto se desenvolvem todos esses vaivéns econômicos no país, os recursos ecológicos seguem sendo minados  e esgotados, o que ameaça os meios de vida de milhões de venezuelanos para o presente e o futuro.

    A atual solução que impulsiona o Governo nacional foi incrementar notavelmente o endividamento externo, distribuir a renda de maneira mais regressiva para a população, expandir o extrativismo e favorecer ao capital transnacional.

    Em resumo, qualquer das elites que governe nos próximos anos, terá que enfrentar, sim ou sim, os limites históricos que foi alcançado com o velho modelo rentista petroleiro. Não bastará somente esperar um golpe de sorte para que os preços do petróleo subam. Virão mudanças transcendentais e há que se estar preparados para enfrentá-las.

     

    Socialismo? Na Venezuela está sendo levado a cabo um processo de ajuste e flexibilização econômica progressivo.

     

    No país está se desenvolvendo um processo de ajuste progressivo e setorizado da economia, flexibilizando prévias regulações e restrições ao capital, e desmantelando paulatinamente os avanços sociais alcançados em tempos anteriores à Revolução Bolivariana. Essas mudanças aparecem mascaradas em nome do Socialismo e da Revolução, ainda que representem políticas cada vez mais rechaçadas pela população.

    Destacam-se políticas como a criação das Zonas Econômicas Especiais, as quais representam liberalizações integrais de partes do território nacional, uma figura que entrega a soberania aos capitais estrangeiros que passariam a administrar praticamente sem limitações ditas regiões. Se trata de uma das medidas mais neoliberais desde a Agenda Venezuela implementada pelo governo de Rafael Caldera nos anos 90, sob as recomendações do Fundo Monetário Internacional.

    Também ressaltam a paulatina flexibilização dos convênios com as corporações estrangeiras na Faixa Petrolífera do Orinoco; liberalização de preços de alguns produtos básicos; crescente emissão de bônus soberanos; desvalorização da moeda, criando-se um tipo de câmbio flutuante (Simadi); aceitação de alguns trâmites comerciais diretamente em dólares, por exemplo, no setor turismo; ou o fiel cumprimento dos pagamentos de dívida externa e os serviços da mesma, o que implica um recorte nas importações e consequentes problemas de escassez de bens de consumo básico.

    Está se impulsionando o relançamento de um extrativismo flexibilizado, apontando fundamentalmente frente às novas fronteiras da extração, onde destaca-se o mega-projeto do Arco Mineiro do Orinoco, o qual suscita instalar como nunca antes a mega-mineradora em um território de 111.8000 kms de extensão, ameaçando fontes de vida chave para os venezuelanos, em especial para os povos indígenas. Estes projetos supõe ademais o encadeamento a largo prazo aos esquemas de dependência que produz o extrativismo [7].

    Cabe destacar que estas reformas se combinam com a manutenção de algumas políticas de assistência social, contínuos aumento dos salários nominais, algumas concessões a demandas das organizações populares e o uso de uma narrativa revolucionária e anti imperialista. Isto evidentemente tem como um de seus principais objetivos a manutenção dos apoio eleitorais que ficam.

    Estamos em presença do que chamamos de um \’neoliberalismo mutante\’, na medida em que se combinam formas de mercantilização, financeirização, e desregulação com mecanismos de intervenção estatal e assistência social.

    Parte da esquerda esteve muito focada em evitar a chegada de governos conservadores ao poder para assim evitar a \’volta do neoliberalismo\’. Mas esquecem de mencionar como governos progressistas também avançaram em várias medidas seletivas, mutantes e híbridas do perfil neoliberal, que finalmente afetam o povo e a natureza [8].

     

    A alternativa? O projeto dos partidos da \’Mesa da Unidade Democrática\’ (MUD) é neoliberal

     

    A direitista \’Mesa da Unidade Democrática\’ (MUD) é o bloco predominante da oposição partidária ao Governo nacional, ainda que uma oposição de esquerda venha crescendo lentamente e seja factível que o siga fazendo. Esta esquerda crítica, ao menos a mais definida, não se identifica com a MUD e não se articula politicamente com esta.

    A MUD não é um bloco homogêneo, e em troca existem setores que vão, desde influentes grupos radicais de extrema direita – que poderíamos chamar \’uribistas\’ – até chegar a alguns setores de conservadorismo light, e de liberalismo de elite com certa tendência distribucionista. Estes diversos grupos têm uma relação conflitiva entre eles e com eventuais confrontos e insolências mútuas.

    Apesar de suas diferenças, aos diferentes grupos da MUD unem-se ao menos três fatores fundamentais: sua matriz ideológica, as bases de seu programa econômico e sua agenda reacionária frente ao Governo nacional e frente a possibilidade de uma profunda transformação de corte popular emancipatório. Nos referiremos às duas primeiras.

    Sua matriz ideológica está profundamente determinada pela teoria neoclássica e pelo liberalismo conservador, enaltecendo obsessivamente a propriedade privada, o fim da \’ideologização\’ por parte do Estado e o auge das liberdades empresariais individuais.

    Estes pilares ideológicos são mais claros na programática deste bloco que em seus próprios discursos midiáticos, onde a retórica é simplista, superficial e cheia de lemas. A síntese mais acabada de seu modelo econômico se encontra nos \’Alinhamento para o Programa de Governo de Unidade Nacional (2013-2019)\’ [9]. Se trata de uma versão neoliberal mais ortodoxa do extrativismo petroleiro, em relação ao projeto do atual Governo venezuelano.

    Destaca-se o fato de que, a pesar de hastear a bandeira da \’mudança\’ e da \’Venezuela produtiva\’, sua proposta coloca levar a extração de petróleo na Venezuela até 6 milhões de barris diários, colocando ênfase no incremento as cotas da Faixa Petrolífera do Orinoco. Ainda que se acusem, briguem e assinalem publicamente, as propostas petroleiras de Henrique Capriles Radonski (Petróleo para seu Progresso) [10] e Leopoldo López (Petróleo na Melhor Venezuela [11]) são gêmeas, e consentem com o \’Plano da Pátria\’ 2013-2019 impulsionado pelo Governo nacional. A mudança anunciada não é mais que outro encadeamento com o extrativismo, mais rentismo e desenvolvimentismo, e as consequências econômicas e impactos sócio-ambientais e culturais que carrega este modelo.

     

    VII. A fragmentação do \’povo\’ e a progressiva minada do tecido social

     

    Em todos esses processos de guerra de baixa intensidade e caos sistêmico, o principal afetado é o povo trabalhador. A potente coesão sócio-política que se configurara nos primeiros anos da Revolução Bolivariana sofreu não só um desgaste mas uma progressiva desarticulação. Mas estas afetações chegaram inclusive à própria medula dos tecidos comunitários do país.

    A precariedade para cobrir as necessidades básicas da vida cotidiana; os incentivos à resolução individual e competitiva dos problemas socioeconômicos da população; a metástase da corrupção; a canalização dos conflitos e disputas sociais por via da força a perda de referenciais ético-políticos e o desgaste da polarização devido ao descrédito dos partidos; a agressão direta a experiências comunitárias fortes ou importante e a líderes comunitários por parte de diversos atores políticos e territoriais; fazem parte deste processo de vulnerabilização dos tecidos sociais que aponta a minar os verdadeiros pilares de um potencial processo de transformação popular-emancipatório ou das capacidades de resistência da população frente um maior avanço das forças regressivas no país.

    Enquanto isso, diversas organizações de base popular e movimentos sociais ao longo do país insistem em construir uma alternativa desde seus territórios. Os tempos dirão qual será sua capacidade de resistência, adaptação e sobretudo sua habilidade coletiva para articular-se entre eles e disputas com maior fortaleza o rumo do projeto político nacional.

    Se existe uma solidariedade irrenunciável que deveria impulsionar-se desde as esquerdas na América Latina e no mundo, deve ser com esse povo lutador, esse que historicamente carregou sobre seus ombros a exploração e os custos da crise. Esse que frequentemente transbordou e se reapropriou das ruas buscando que suas demandas sejam escutadas e atendidas. Esse que na atualidade se enfrenta aos complexos dilemas que supõe os atuais tempos de refluxo e regressões. Este que parece ser o verdadeiro ponto de honra das esquerdas. O custo de dar as costas a estas contra-hegemonias populares em nome de uma estratégia de conservação do poder poderia ser muito alto.

     

    Caracas, abril de 2017.

     

    [1] https://obamawhitehouse.archives.gov/the-press-office/2015/03/09/executive-order-blocking-property-and-suspending-entry-certain-persons-c

    [2] http://www.southcom.mil/Portals/7/Documents/Posture%20Statements/SOUTHCOM_2017_posture_statement_FINAL.pdf?ver=2017-04-06-105819-923

    [3] http://www.rebelion.org/noticia.php?id=207450

    [4] http://www.correodelorinoco.gob.ve/impacto/maduro-hay-que-ir-a-sanear-profundamente-a-pdvsa-corrupcion-todos-ambitos/

    [5] http://www.eluniversal.com/noticias/economia/leon-bachaquero-invierte-400-revender-gana-mil_21462

    [6] http://efectococuyo.com/principales/van-al-menos-24-fallecidos-en-enfrentamientos-entre-cicpc-y-bandas-delincuenciales; http://www.radiomundial.com.ve/article/enfrentamiento-en-cota-905-deja-14-muertos-y-134-detenidos-audio

    [7] http://www.alainet.org/es/articulo/175893

    [8]   http://www.alainet.org/es/articulo/172285

    [9]   http://static.telesurtv.net/filesOnRFS/opinion/2015/12/09/mud_government_plan.pdf

    [10] http://www.eluniversal.com/noticias/politica/plan-petroleo-para-progreso-henrique-capriles-radonski_359574

    [11]   http://www.leopoldolopez.com/en-la-mejor-venezuela-duplicaremos-la-produccion-petrolera-para-impulsar-el-bienestar-y-el-progreso/

     

     

     

     

  • Violência, pobreza, cultura e potência. A periferia e as tentativas de transformação da realidade. Entrevista especial com Tiaraju D’Andrea

    Por: Patricia Fachin, entrevista Tiaraju D\’Andrea

    fonte: http://www.ihu.unisinos.br/568429-o-sujeito-periferico-e-suas-tentativas-de-transformar-a-realidade-entrevista-especial-com-tiaraju-d-andrea

     

    “A periferia paulistana passa por um período de transição”. Esse é um dos diagnósticos do sociólogo Tiaraju D’Andrea, que acompanha as transformações nas periferias nos últimos 25 anos. Segundo ele, embora o lulismo tenha representado “uma melhoria nas condições de vida” na periferia, “o desemprego ronda esta população, sendo as condições de trabalho uma preocupação concreta”, e “há uma descrença generalizada nos partidos políticos e no sistema representativo como um todo”.

    Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, D’Andrea explica as principais transformações ocorridas na periferia paulistana em duas décadas e meia, como o surgimento do Primeiro Comando da Capital – PCC, o crescimento dos evangélicos e a explosão de coletivos artísticos. “Esses três fenômenos foram saídas encontradas pela própria população da periferia para superar o contexto de violência e pobreza da década de 1990. Foram formas de superar o esgarçamento do tecido social e criar uma ética regulatória em um contexto de crise”, avalia.

    Além disso, pontua, três outros fenômenos que não estavam presentes na década de 1990 ajudam a compreender as transformações nas periferias. “Uma narrativa, ou a tentativa da periferia de contar a sua própria história e sem depender de mediadores, uma subjetividade, ou o fato de os moradores da periferia passarem a ter orgulho dessa condição, e o lulismo, como forma de governo, baseado no aumento dos direitos sociais e do consumo”. Na atualidade, frisa, “pode-se observar o crescimento de tendências conservadoras, assim como na sociedade em sua totalidade”.

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    Tiaraju D’Andrea | Foto: Arquivo pessoal

    Tiaraju D’Andrea é doutor em Sociologia da Cultura, mestre em Sociologia Urbana e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Atualmente é pesquisador convidado da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris.

     

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – Um dos temas problematizados na sua tese é o sentido e o significado do termo ‘periferia’. O que entende por ‘periferia’ a partir das suas pesquisas?

    Tiaraju D’Andrea – Historicamente, sempre houve uma disputa entre distintos agentes sociais para obter a preponderância para definir o que era ou o que é um fenômeno social de nome periferia. Denominamos aqui “discurso preponderante” aquele que possui maior abrangência e aceitação social para a explicação de um determinado fenômeno, mas isso não quer dizer que não existam outras explicações concorrentes.

    De acordo com a tese, de mais ou menos 1960 até 1993, a academia possuía a preponderância da explicação do fenômeno periferia. Eram intelectuais de distintas áreas como sociologia, antropologia, geografia, economia, história e urbanismo que conflitavam entre si para obter a explicação mais aceita, mas tudo se passava dentro das formulações da academia. A partir de 1993, com o lançamento de um CD do grupo de rap Racionais MC’s de nome “Raio-X Brasil”, a preponderância passa para moradores de bairros periféricos, cuja eficácia da expressão ocorreu pela via artística, e não pela via científica. Esse CD apresentou ao mundo raps como: “Fim de Semana no Parque” e “Um Homem na Estrada”, dentre outros. Esses raps foram tão impactantes que mudaram a forma de se pensar e enxergar a periferia. A preponderância periférica sobre o fenômeno periferia durou mais ou menos até o ano de 2002, quando o lançamento do filme “Cidade de Deus” fez com que a Indústria do entretenimento passasse a possuir a preponderância das representações sobre o que seja a periferia. Esse filme abriu as portas para uma série de produções cinematográficas e televisivas sobre o assunto. A partir de 2002 a produção da periferia sobre o fenômeno periferia passa a ter um concorrente de maior peso social: a indústria do entretenimento.

    IHU On-Line – Quais são as principais mudanças sociais, culturais e econômicas ocorridas nas periferias paulistanas desde os anos 1990 até os dias de hoje?

    Tiaraju D’Andrea – Certamente, um território amplo como o que denominamos periferia é múltiplo sincronicamente, assim como diacronicamente foi passando por mutações. Creio que nos últimos 25 anos é possível enumerar alguns fenômenos que não existiam antes dos anos 1990. São eles:

    1) o surgimento do PCC,

    2) o crescimento dos evangélicos e

    3) uma explosão de coletivos artísticos.

    Estes três fenômenos foram saídas encontradas pela própria população da periferia para superar o contexto de violência e pobreza da década de 1990. Foram formas de superar o esgarçamento do tecido social e criar uma ética regulatória em um contexto de crise.

    Outras duas tentativas de superação da violência foram provenientes de agentes externos à periferia. Foram elas:

    4) O crescimento da presença de ONGs (Organização Não Governamental) nessas regiões e

    5) o aumento da presença estatal.

    Por fim, outros três fenômenos que não existiam até a década de 1990, passaram a ocorrer nessas regiões. São eles:

    6) uma narrativa, ou a tentativa da periferia de contar a sua própria história e sem depender de mediadores;

    7) uma subjetividade, ou o fato de os moradores da periferia passarem a ter orgulho dessa condição; e

    8) o Lulismo, como forma de governo, baseado no aumento dos direitos sociais e do consumo.

    Na atualidade, pode-se observar o crescimento de tendências conservadoras, assim como na sociedade em sua totalidade. Ainda é cedo para saber se esse fenômeno é conjuntural ou estrutural.

    No que tange à produção artística, e aqui me aterei à música, é interessante notar como nos anos 1980 houve uma preponderância do samba e do rock nacional. Nos anos 1990 o gênero hegemônico foi o rap. A partir dos anos 2000 o funk passou a tomar a cena. Também não podemos esquecer o sertanejo e suas distintas variações, dado que é o gênero mais escutado no Brasil como um todo, inclusive nas periferias paulistanas.

    IHU On-Line – Na sua tese você analisa a “explosão de atividades culturais na periferia nos últimos 20 anos”. Quais atividades são essas e a que atribui esse cenário?

    Tiaraju D’Andrea – Trata-se de uma série de atividades artísticas e culturais que ganharam impulso a partir dos anos 1990 e foram agraciadas com uma série de financiamentos públicos a partir dos anos 2000. Nessas podem-se incluir os saraus, as comunidades de samba, as posses de hip-hop, os cineclubes audiovisuais, os grupos de teatro, os grupos de dança, a literatura marginal, dentre outras. Todas essas atividades são organizadas por coletivos artísticos.

    A explosão do número desses coletivos artísticos na periferia de São Paulo nos últimos vinte anos ocorreu por pelo menos cinco grandes fatores:

    a) Produção artística como pacificação: neste caso, a produção artística foi uma saída para a espiral de violência que se abateu sobre as periferias na década de 1990.

    b) Produção artística como sobrevivência material: neste ponto, a produção artística foi uma forma de auferir renda em um contexto de pobreza. Isto ocorre pelo crescimento de financiamentos e de mercado para esta produção. Obter renda por meio de produção artística era uma forma de escapar de duas soluções pouco interessantes: de um lado o mundo do trabalho capitalista stricto sensu, que sempre representou exploração, baixos salários e humilhação para a população mais pobre; por outro lado, a possibilidade dada a jovens de baixa renda de auferir recursos por meio de atividades ilícitas.

    Entre o mundo do trabalho e o mundo do crime, construiu-se uma terceira opção: a produção artística como forma de sobrevivência material. Cabe destacar que a partir do ano 2000 aumentou exponencialmente o número de financiamentos para esse tipo de atividade.

    c) Produção artística como participação política: na década de 1990, em um contexto de crise das formas clássicas de participação política expressa em partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, os coletivos de produção artística passaram a reaglutinar os indivíduos que buscavam intervir politicamente.

    d) Produção artística como emancipação humana: neste caso, a produção artística foi uma forma de moradores de bairros periféricos sentirem-se vivos e se humanizarem em um contexto de múltiplas violências, humilhações e estigmas.

    e) Produção no local como resposta à segregação socioespacial: neste ponto, avalia-se a multiplicação de atividades artísticas na periferia como forma de dotar o local, levando-se em conta que na cidade de São Paulo os equipamentos culturais concentram-se mormente na região central e no quadrante sudoeste.

    IHU On-Line – Como os coletivos artísticos se manifestam na periferia e ressignificam o entendimento de periferia?

    Tiaraju D’Andrea – Para responder essa questão é necessário recuar no tempo. Em meados de 1990, o termo periferia passou a ser utilizado de maneira política pelos próprios moradores de periferia. Essa utilização fez com que o termo se popularizasse. Em um primeiro momento, essa utilização do termo periferia ocorreu pela ação do movimento hip-hop, depois passou a ser utilizado e disseminado por uma série de outras expressões culturais presentes nas periferias. Nesse primeiro momento de utilização do termo periferia, fundamentalmente nos primeiros anos da década de 1990, o termo tinha um caráter de denúncia, pois mostrava à sociedade a realidade ou a verdade, criticando com isso o pensamento hegemônico neoliberal de princípios dos 1990 que pregava o “fim da história” ou o “fim das classes”.

    Aquele mostrar a realidade em caráter de denúncia se apoiava na apresentação de duas características da periferia: a violência e a pobreza, como forma de criticar a sociedade, mostrando características presentes na realidade social que o pensamento hegemônico queria esconder. No entanto, afirmar-se enquanto periferia por meio dos elementos violência e pobreza era pautar um processo histórico de superação desses elementos. Logo, periferia continha e negava violência e pobreza. Assim sendo, a partir de meados da década de 1990 começa-se um processo histórico de superação desses dois elementos, do qual a produção artística dos bairros periféricos foi um dos principais articuladores. Hoje o significado do termo periferia foi alargado, sendo que o mesmo se entende contendo em seu âmago quatro significados: violência, pobreza, cultura e potência.

    Devido à fragilidade de expressões políticas tradicionais como partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, fundamentalmente a partir dos anos 1990, uma parte migrou para a produção cultural como forma de fazer protesto e se posicionar politicamente. Essa espécie de orfandade política das periferias fortaleceu o crescimento desses coletivos. Com o passar do tempo, coletivos de várias periferias se organizaram para atuar conjuntamente, fundando assim o Movimento Cultural das Periferias – MCP. Esse movimento formulou uma lei de iniciativa popular que após muita luta foi aprovada, intitulada Lei de Fomento às Periferias.

    Não foi à toa que João Doria (PSDB), ao assumir a prefeitura de São Paulo, reduziu em 43% a verba da cultura do município, atingindo a Lei de Fomento, dentre outras linhas de financiamentos de atividades artísticas nas periferias. Mais do que econômica, essa atitude foi política. Sabendo a importância desses coletivos, o sufocamento econômico é uma forma de desorganizar politicamente as periferias.

    IHU On-Line – De outro lado, a que você atribui o crescimento evangélico nas periferias paulistanas?

    Tiaraju D’Andrea – Creio que múltiplos fatores se somam para este fenômeno. Por um lado, há um conservadorismo crescente na sociedade, do qual os evangélicos são causa e consequência. Por outro lado, esse crescimento é também fruto da dinâmica violenta dos anos 1990. Cabe também ressaltar, a crise econômica faz a população buscar em comunidades religiosas algumas saídas. Tampouco se deve esquecer o eficiente trabalho proselitista dessas igrejas.

    IHU On-Line – Como a presença do PCC se manifesta nas periferias paulistanas? Hoje muitos especialistas em segurança falam que a atuação do tráfico se dá dentro e fora das prisões, inclusive em disputas entre facções fora das prisões. Como isso tem ocorrido nessas periferias?

    Tiaraju D’Andrea – O PCC segue presente nas periferias de São Paulo, mas tem menos impacto no que tange à regulação da violência se comparado a dez anos atrás. Este é um dos fatores do aumento da violência nas periferias nos últimos três anos.

    IHU On-Line – Quais são as principais questões que você tem abordado na sua pesquisa atual sobre “Periferia, Periférico e Sujeito Periférico”?

    Tiaraju D’Andrea – Tento entender quais foram os processos sociais que redundaram naquilo que denomino o ser periférico, que é uma espécie de orgulho de ser morador da periferia em resposta ao estigma que muitas vezes acompanha essa condição. No entanto, essa passagem do estigma ao orgulho só foi possível de acontecer historicamente com a percepção de que a situação urbana e social de um morador da periferia é uma situação distinta de outras situações urbanas e sociais. No entanto, o processo de identificação com essa condição e que redunda no ser periférico, por si só não basta. O sujeito periférico é aquele indivíduo que, por meio da percepção de sua condição e da superação do estigma, age politicamente para transformar a sua realidade, seja incidindo nas condições de moradia, por melhores condições de saúde, de educação, de transporte e de cultura. Cabe destacar, no entanto, que foi no campo da produção artística que se fortaleceu um certo orgulho de se morar na periferia.

    IHU On-Line – Qual seu diagnóstico acerca da atual situação da periferia paulistana, dada a atual crise brasileira?

    Tiaraju D’Andrea – A periferia paulistana passa por um período de transição. Se por um lado o lulismo representou uma melhoria nas condições de vida, se comparada à década de 1990, a crise econômica posterior foi um dos fatores que fez esta população retirar seu apoio ao PT. No entanto, ainda é cedo para se afirmar que a adesão a pautas conservadoras seja um fenômeno estrutural. Em todo esse quadro de incertezas, pode-se, ao menos, fazer duas afirmações: o desemprego ronda esta população, sendo as condições de trabalho uma preocupação concreta; e há uma descrença generalizada nos partidos políticos e no sistema representativo como um todo.

     

  • Cracolândia, Redenção, Ocupa Brasília e a militarização da política

    texto por Edson Teles

    foto: Centro de Mídia Independente: https://midiaindependente.org/?q=node/298

    fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2017/05/31/cracolandia-redencao-ocupa-brasilia-e-a-militarizacao-da-politica/

    A securitização das práticas sociais tem sido recorrente nos vários modos de governo da vida. Se nas principais potências militares do planeta isto se dê sob a alegação de guerra ao terrorismo, aqui no Brasil a justificativa é o combate à criminalidade e à violência urbana.

    Em São Paulo, neste mês de maio, tentaram legitimar uma ainda maior militarização da cidade. Foi a operação visando acabar com a “anormalidade” dos usuários de drogas na Cracolândia. Mais conhecido como “política higienista”, o “Projeto Redenção” da Prefeitura de São Paulo, cuja parte de suas reuniões, não sem propósito, ocorreram na Secretaria de Segurança Pública, visa “erradicar” – arrancar pela raiz, eliminar, extirpar – o tráfico de drogas e “revitalizar” a distribuição da posse imobiliária da região.

    As cenas que se seguiram à determinação do prefeito, juntamente com o governador e por meio de suas forças policiais, foram de violência indiscriminada. Bombas, tiros, ameaças, destruição de imóveis provocando o “fluxo” desesperado de centenas de paulistanos, abandonados pelas instituições que deveriam lhes garantir direitos. É como se fosse necessário, para este modo fascista de governo, transformar seres humanos em bando, os excluindo do acesso à lei, para acionar os mecanismos inscritos na mesma lei e que visam lidar com possíveis situações emergenciais. O bando é a própria condição da efetividade de um poder autoritário e discricionário, cujos instrumentos devem ser os equipamentos do Estado.

    Os fluxos resultantes da repressão policial produziram outras cracolândias pelo Centro de São Paulo. São cenas conhecidas do paulistano. Em janeiro de 2012, Prefeitura e Estado haviam “deflagrado” a “Operação Dor e Sofrimento”, cuja síntese funcional era inflingir dor e sofrimento aos usuários, mediante a falta da droga e a dificuldade de fixação, obrigando-os a solicitarem ou aceitarem ajuda (leia-se: “internação”). Agora, em 2017, a agressão do Estado foi mais longe e pretende, com autorização judicial, abordar, deter e internar compulsoriamente os indivíduos considerados perigosos para a “ordem pública” na região.

    Mas de qual “ordem pública” se está falando? Por que a garantia da lei e da ordem exige zonas de indistinção entre o lícito e o ilícito, o democrático e o fascista? A que visa a política de produção dos “bandos”?

    Sem dúvida que no caso da Cracolândia um dos principais objetivos específicos da ação criminosa das instituições do Estado é a tentativa de erigir a “Nova Luz”, projeto de especulação imobiliária para a construção de torres de apartamentos e de centros comerciais sob a direção das já excessivamente delatadas construtoras. A alegação de lugar degradado não se deve à presença de usuários de drogas, mas à negligência do poder público em cumprir funções e serviços básicos como coleta de lixo, manutenção dos espaços comuns, cuidado com os bens históricos e culturais do bairro. Soma-se ainda o fechamento de um grande centro comercial, em 2007, e a demolição deste e de outros imóveis nos anos seguintes, espaço para onde se deslocaram com mais intensidade os abandonados e esquecidos.

    Contudo, há nestas ações a articulação de uma militarização da vida urbana, ou ainda, da política. Atos de governo para a manutenção da ordem – higienistas, como na Cracolândia, ou repressivas, como na violência contra as manifestações do “Ocupa Brasília” – não objetivam somente os “criminosos”, “traficantes” e “vândalos”. Estariam na mira das forças da ordem todos os que podem ser de alguma forma perturbadores da normalidade hegemônica submetida a poderes econômicos, oligárquicos e políticos.

    Quando em 2007 o então ministro da Defesa Nelson Jobim anunciou que a presença das tropas brasileiras em solo haitiano seria um bom treino para a garantia da lei e da ordem no Brasil, já se visava agredir com esta força militar os atos de protesto e movimentos de resistência, desde os mais críticos às políticas neoliberais até os coletivos de luta contra a gentrificação e em defesa de direitos humanos. No manual do ministério da Defesa, de execução da “Garantia da Lei e da Ordem”, de 2013, pode-se ler que seu uso se destina, como uma de suas principais funções, ao emprego das Forças Armadas quando houver o “esgotamento” dos órgãos de segurança pública para conter os “movimentos contestatórios”. No cenário do treino descrito no “Manual” se descreve como “forças oponentes” os “elementos integrantes de movimentos sociais reivindicatórios, de oposição ou protesto, comprometendo a ordem pública”.

    No movimento “Ocupa Brasília” se tentou, novamente como em outros momentos de produção de farsas da lógica da governabilidade, alegar a violência de alguns, os “vândalos” infiltrados nos movimentos sociais, para reprimir indiscriminadamente e em proporções obviamente desiguais e absurdas corpos em resistência. Esse parece ser o alvo: os corpos em luta, em especial os dos negros, dos pobres e das mulheres.

    Frequentemente, lanço meu próprio corpo às ruas em dias de manifestações. Desde 2013 não vou a elas sem um lenço para tapar o meu rosto. Eu sei que se for uma manifestação que apresente qualquer risco à “ordem”, as bombas e tiros virão. A “máscara” é o mínimo de proteção. E lá, no calor da correria, quando a polícia começa a agredir indiscriminadamente para intimidar o protesto, facilmente entendo e me solidarizo com os que têm a desproporcional coragem (em relação à força policial) para enfrentar as agressões. Não dá mais para apelar à lógica conciliatória diante do governo da vida descartável e matável. É claro que não se deve lançar-se contra o que irá nos ferir profundamente, é importante se preservar. Mas compreendo a revolta (e isso é também política, concorde-se ou não com o método) produtora dos ataques aos símbolos do capitalismo ou da burocracia e das instituições do Estado.

    Dor, sofrimento, redenção. Redenção, dor, sofrimento, repressão. Não, a redenção não aconteceu. Ninguém foi liberto, salvo ou reabilitado. Tal como no “Projeto Redenção” em São Paulo, a violência do Estado se repetiu, sob moldes parecidos, nas proximidades do município de Redenção, no interior do Pará. Dez pessoas foram executadas pela Polícia Militar, segundo os relatos dos sobreviventes colhidos pelo Ministério Público Federal. O que mais se pode ler nestes depoimentos transcritos é: “a polícia chegou atirando”, de modo semelhante a Cracolândia ou a Brasília, mas com munição letal. Redenção é uma localização próxima ao massacre de Eldorado dos Carajás, que completa 21 anos com profundos rastros de impunidade. É também a região onde, entre 1972 e 1974, cerca de 100 guerrilheiros de resistência à ditadura foram assassinados e, em sua maioria, continuam com os corpos desaparecidos até hoje.

    Brasília, Cracolândia e Redenção não são fatos isolados. Também não começaram a ser praticados ontem. São modelos de laboratório para a modulação de uma sociedade de controle. A sinergia entre estas operações de higienização, repressão a manifestações e eliminação de corpos em resistência é a característica e confirmação maior da militarização da vida, das subjetividades e da política. Essa nova política militar já vem sendo testada nos conflitos de terra, nas periferias das grandes cidades, nos entornos de campos de futebol, nos megaeventos esportivos por vários anos e, nestes dias, a vimos em plena potência. Esses modelos de “pacificação” e controle via a militarização vêm acompanhados de discursos de conciliação, consenso e manutenção da ordem. Trata-se de um tipo de biopolítica, praticada desde sempre, é verdade, mas que sofreu uma intensificação na última década (é só conferir relatórios de ONGs de direitos humanos) e sob os olhares atônitos ou de cumplicidade das instituições do Estado de Direito.

    São operações – termo apropriado ao discurso da guerra mobilizado (vocabulário utilizado também contra a violência urbana, o ataque à propriedade, os “vândalos”, mas que se soma à guerra contra o tráfico, alimentar, da saúde pública) – que desfazem as separações jurídicas e éticas entre o lícito e o ilícito, o legítimo e o ilegítimo. São cada vez mais localizadas, para não se tornarem alvo de denúncias do modelo bélico e ainda servirem como teste; e, permanentes, normalizando o que surge perante a opinião pública como exceção. Em vez dessa militarização da política se fundamentar nos direitos humanos, nas leis e na cidadania, tais formas de controle social emergem com base na construção dos perfis de indivíduos e de comportamentos, de territórios e coletivos, aos quais são atribuídos qualificações e graus de risco à ordem, bem como potências de resistência.

    A vigilância da vida (tanto as de resistência quanto as corriqueiras) tem como paradigma o controle dos espaços, comuns e privados, das estruturas e práticas sociais e da circulação dos corpos a partir da produção da ideia da guerra e da insegurança. Isso serve à militarização de discussões sobre a menoridade, o transporte, as paisagens e os espaços urbanos, mas também de questões amplas como a cultura popular. Os argumentos da guerra e da militarização se dirigem inclusive aos processos de produção de subjetividades. São nesses processos que se encontra a vida política mais profunda. E, também, são nessas ranhuras e porosidades do cotidiano que se criam as mais eficazes estratégias de resistência.

  • História em pedaços – Brasília, 24 de maio

    Publicamos aqui um relato de Gavin Adams sobre os acontecimentos do dia 24 de maio de 2017 em Brasília. Gavin tem realizado um rigoroso trabalho de observação, registro, coleta e interpretação de diversas manifestações de rua que vem ocorrendo desde o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Seus relatos são documentos preciosos sobre o atual momento histórico; uma observação fina no nível da rua, olhar de formiga construindo análises a partir de fragmentos. Na melhor tradição etnográfica ativista e num esforço benjaminiano, Gavin vai recolhendo tudo, como que tentando antecipar o pior porvir, deixando assim um rastro para o aprendizado de futuros intérpretes sobre nossa catástrofe.

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    24 de maio

    Cheguei no cruzamento central da cidade de Brasília a pé às 13:15h. O Shopping Conjunto Nacional estava à minha esquerda quando entrei e percorri o viaduto sobre o Eixo Monumental. Fui surpreendido pela multidão que já escoava pela avenida embaixo de mim. Esperava alcançar o Estádio Mané Garrincha para a concentração, mas a torrente era tal que fiquei para olhar. Tinha tanta gente que não deve ter cabido no estacionamento e acabou espirrando pela avenida, iniciando a passeata antes do horário previsto de início, que era 14h.

    Era muito bonito de ver e centenas de grupos, centrais e sindicatos caminhavam sob o forte sol, dos dois lados do viaduto. Muita bandeira, faixa e cartaz. Era uma verdadeira salada de frutas composta de inúmeros sindicatos e centrais. Tinha vários carros de som, e nesse segmento em particular predominavam os aventais amarelos da NCST. Muitos manifestantes sindicalistas estavam lá em cima do viaduto olhando a multidão também. Desci para a avenida e decidi caminhar um pouco em sentido contrário, na direção do estádio, para checar a passeata.

    Logo vi os Policiais Penitenciários, acho que carcereiros, de preto, talvez uns 300. São da Força Sindical. Vi a faixa “A reforma da Previdência é o fim da aposentadoria dos policiais”. Notei alguns dos numerosos balões da manifestação: CUT, CTB e CNTI. As centrais tinham trazido muita gente que vestia seus aventais e tremulava suas bandeiras. Eram muitos corpos em movimento.

    Tentei anotar os nomes dos sindicatos cujas faixas, camisetas ou bandeiras eu encontrava, mas eram tantos que apenas capturei algumas siglas. Alguns tinham nomes bem curiosos, e na hora achei que poderiam compor uma prateleira de remédios de uma farmacopéia laborista: APRASC, STICMA, ENESSO, FASUBRA, SINTRATECOB.

    Outras associações presentes ali naquele trecho: SINTHOTESB, SINDIRETA – DF, CSPB, CONTRATUTH, SINDUS, INTERSINDICAL, UGT, CTB, CONTAC, FORÇA SINDICAL, CGTB, MST, CSP-CONLUTAS, FSCM. Vi um grupo de uns 15 jovens negros com uma bandeira Quilombo. Bandeiras do Povo Sem Medo, das Brigadas Populares. Vi bandeiras do Brasil (umas seis), da Juventude do PT, do Pernambuco e Paraíba. Um moço vestia a camiseta com o rosto de Lula: “O cara está voltando!”.

    Ao caminhar vi os vários carros de som. Alguns tinham nomes como “Chumbo Grosso” e “Trio Laser”. Quando tem muita gente, o carro de som fica menos agressivo, e é possível buscar espaços mais vazios de som. O rumor geral das vozes era um oceano vivo. Mas os oradores estavam no modo sindical clássico. Apesar disso, o clima geral era de festa e carnaval. Um dos carros, inclusive, de Minas, trazia uns meninos que faziam um funk vocal, com beatbox e tudo. Naturalmente, muito Fora Temer e Diretas Já!. Uma outra palavra de ordem dizia “ô deputado, presta atenção, se você vota sim, a gente vota não!”. Um senhor de pé, parado na calçada, tinha um cartaz: “Precisa-se de presidente, governador e deputado para trabalhar na saúde, educação, segurança. Povo paga bem! Sem corruptos”. Um cartaz trazia “Liberte Rafael Braga”.

    Decidi voltar e caminhar na direção do fluxo. Passamos ao lado da Rodoviária e um orador anunciou 100 mil manifestantes. Outro mais adiante afirmou que a Globo tinha contado 25 mil (a PM deu 35 ao fim do dia). A contagem final na imprensa de esquerda deu um teto de 150 mil. Foi chamada de “a maior marcha da história” da esquerda em Brasília. Muita gente buscava refúgio debaixo da sombra das poucas árvores ao longo da avenida. Um orador em um carro de som rogou aos “companheiros de amarelo sentados na sombra, venham para a luta companheiros!”. Vi enfermeiras, aeroportuários, e depois os estivadores do Rio com suas camisetas “113 anos de luta e resistência”. Ao lado deles, os “Arrumadores de Itajaí”, com bandeira. Vi uma bandeira com o rosto do Che e “Juntos na Luta”, uma do PCdoB, da FENTECT, da FETRHOTEL, do CONEN, e outra do SINTUFF. Uma camiseta do Levante Popular da Juventude.

    Tinha muitos balões na passeata, contei mais de 100. Vi uma faixa “Volta Dilma – Anula o golpe”. Vi uma camiseta “Sou mais favela”, uma outra “Greve de 2006 – eu participei”, e uma bandeira do Rio Grande do Sul. Vi uma moça indígena de cocar.

    As palavras de ordem eram as clássicas e esperadas FT! E DJ!, além de “Golpistas, fascista, não passarão”. Teve muita chamada para a Greve Geral, que desta vez quer ser de 48 horas. O nome de Lula não foi chamado até onde ouvi. Fiquei de olho nas bandeiras do Brasil que eu via. Acho que até então umas 12, quase sempre aos ombros. Parei de contar aos 50.

    Entramos na Esplanada. Seguindo pela avenida, pela via da esquerda, notei um dragão inflável que estava sendo enchido. Ele tinha uns 10 metros e possuía três cabeças. Pude ver apenas duas palavras que nomeava cada uma delas: “juros” e “desemprego”. Mais adiante, uma pipa gigante, ainda no chão, com as cores LGBT e uma cauda que trazia um Fora Temer. Vi o Sindicato de Padeiros de São Paulo, uma bandeira do SINDUTE, do PSTU. Um ambulante vendia adesivos de unha no asfalto, muito buscado por manifestantes. Vi o Ivan Valente do PSOL e finalmente alcancei os policiais penitenciários que vira do viaduto.

    Ia chegando mais perto do fim da Esplanada, onde acabam os ministérios, tendo passado vários carros de som. Deu para ver gente voltando, e dava para sentir alguma atividade lá na frente e sentir um cheiro de gás lacrimogênio. Um helicóptero da PM sobrevoava o local. A partir daqui, coletei uma infinidade de pequenos eventos que só mais tarde compilei em um retrato narrativo mais coerente. Do nível do chão, era difícil ter uma visão mais geral. Nas muitas reportagens que vi depois, era muito fácil colar os fragmentos de maneira maliciosa.

    Vi três carros de som, que eram os que estava mais perto da barreira policial. Dois deles vinham perpendiculares à barreira policial, que bloqueava o acesso ao Congresso. Eles acompanhavam a multidão que vinha pela via da esquerda na Esplanada. Estavam parados a uns 500 metros da PM. O outro carro tinha chegado antes, creio, e estava transversal barreira policial, mais do lado da via da direita da avenida. Era o carro de som da Pública. Os carros mais próximos eram um do PSTU CONLUTAS e o outro da CUT/UGT/CTB/CSB. Um outro da Força ficou lá trás.

    Pareceu de começo que o PSTU estava chamando o povo para o confronto, e que a CUT pelegava. Mas depois percebi que o pau já estava comendo e os três carros no final estavam pedindo e participando da defesa à agressão policial. No geral estes três carros participaram da resistência e buscaram sensibilizar a PM, dizendo “voltem suas bombas para trás, contra Temer e o Congresso”. Além disso, faziam as chamadas de concentração e encorajavam a formação defensiva e de confronto.

    É importante aqui sublinhar que a ação repressiva policial NÃO FOI RESPOSTA A VANDALISMO. Nenhum prédio tinha sido tocado quando as bombas e balas começaram a chover. A ação foi claramente de dispersão e não de contenção de indivíduos violentos. Pelo menos um manifestante foi baleado com munição viva, de arma de fogo. Vi depois na televisão que havia uma fileira de PMs no começo da Esplanda que pretendia revistar uma a uma 150 mil pessoas. O povo avançou e furou a coluna. A PM reagiu então e depois. Não se tratou de vandalismo.

    Assim, cheguei ao fim da Esplanada em plena conflagração. Eram umas 14:15h talvez. Escorri pela direita, em direção à linha de frente. Colei atrás dos policiais penitenciários, que claramente estavam prontos para a briga, atraídos pelo confronto. Mas um megafone avisou-lhes que obedecessem à liderança e não brigassem. Segui então uma bandeira do MAIS que ia à linha de frente.

    Vi melhor a linha de confronto. Um gradil separava os muitos PMs. Contei ali, à vista, uns 500. Mas depois na TV vi mais de 500 à espera atrás de um edifício. Tinha cavalaria, uma dúzia deles. Uns 200 soldados de escudo, capacete e cassetete, com atiradores. Estes estavam bloqueando a via asfaltada, portanto à minha esquerda era o foco do embate. O gramado for reservado para a manifestação, e o espaço atrás das grades, guardado pela PM, nos era proibido. Os primeiros 100 metros de gramado em frente a grade era área de risco e de contato com projéteis.

    O dia todo pode ser resumido como um vai e vem do povo contra a barreira, seguida depois de uma lenta varredura pela PM do espaço da esplanada em direção ao estádio, de onde viéramos. Ao lado disso, a certa altura, uma meninada foi progressivamente atacando os ministérios, protegendo-se com barricadas para ir segurando a PM enquanto trabalhavam todos os edifícios até o fim da Esplanada.

    Então o povo ia chegando e enchendo o espaço. Quando juntava massa crítica, estourava uma onda que ia encarar os policiais. Acabavam por recuar, depois de mais ou menos resistência. Então tinha várias zonas dentro da manifestação sob ataque. O fogo do confronto na frente, uma linha intermediária e uma zona de retaguarda, onde as pessoas sentavam-se sobre a relva ou conversavam em grupos. As zonas se expandiram e contraíram ao sabor do embate. Mas a ação da PM não fazia muita distinção e frequentemente atacava todas as zonas, redesenhando subitamente o mapa da refrega.

    Andei um pouco pela zona intermediária e vi uma bandeira trazia “UERJ em luta”. Uma meninada do JUNTOS vieram de amarelo e de escudos feitos de câmara de pneu de caminhão e foram para a linha de frente. Vi uma leva de pessoas com bandeiras do PCB e da Unidade Classista. Muitos autonomistas presentes, inclusive Black Blocks que tiveram destaque depois. Um palhaço de nariz vermelho. Trazia um cartaz onde se lia “Não sou palhaço, não bati panela”. Um homem se fantasiara de vampiro grisalho e vestia uma faixa presidencial. Ele sorriu para mim.

    Achei a coisa toda meio surreal, uma mistura de “fog of war” com carnaval veneziano sob o gás lacrimogênio. Os três carros de som irradiando vozes iradas que descascavam a ação da polícia, chamando a insurreição. As nuvens de gás varrendo a multidão. Gente em modo combate, outras relaxadas conversando, outras cuspindo e vomitando com o lacrimogênio e pimenta, de joelhos na grama. Acabei por lembrar de filmes como Kagemusha e outros filmes de guerra. Aqui do chão dava para ver grupos de bandeiras percorrendo o campo aberto por cima da cabeça das pessoas, indicando concentrações e dispersões de corpos. Tem algo de medieval nos embates de rua. Aqui, no espraiamento da Esplanada, era quase um xadrez.

    E, bem nessa hora, uma banda, no carro da Pública perto de onde eu estava, começou a tocar “Será?” do Legião Urbana. “Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer?”. Não posso dizer que sou fã do Legião, mas esta canção, no meio das bombas e gritos, bandeiras e palavras de ordem, no meio do Planalto Central do Brasil, comoveu. Que vida louca, eu com 50 anos e cabelos grisalhos ouvindo uma canção da adolescência perdida aqui nos campos da luta política atual. Nessa hora eu ainda era o jovem tímido esperando a vez de um futuro melhor, hoje cercado de meninas e meninos que iam confrontar a polícia e seus projéteis. A distância entre o país dos anos 1980 e esse Brasil do quase AI-5 colapsando em um motim sindical em frente ao Congresso Nacional.

    Eram 14:30h quando a cavalaria atacou. Eram uns 15 enormes cavalos cavalgando pelo gramado. Nessa hora tive medo. Uma coluna de soldados paramentados pode ser vencida na corrida. Mas a velocidade e inércia geradas por um grupo de cavaleiros é muito potente. Lembro-me dos motins contra o imposto individual na Inglaterra, o chamado poll-tax. Uma manifestação grande foi reprimida pela polícia, incluindo uma carga de cavalaria e seus longos bastões. Uma moça foi atropelada pela tropa montada e se machucou muito.

    Então eu corri. O orador no carro de som ficou revoltado e gritou muito contra a cavalaria. Só que aí a carga de cavalos hesitou e parou. O povo então se voltou contra os cavalos! Vi umas 2 mil pessoas correndo na direção da cavalaria gritando “pega eles! Fascistas!”. De onde eu estava vi também várias bandeiras tremulando nervosas voando em direção ao foco. A cavalaria recuou e se recolheu. Exultamos todos. Foi lindo.

    Nessa exata hora encontrei G do Arrua, o único conhecido que vi hoje. Conversamos um pouco. As bombas e balas de borracha continuavam a voar em nossa direção. Alguns atiravam pedras contra a polícia, às vezes algum rojão, mas a palavra “confronto” não é exata. Trata-se de tiro ao alvo, de agressão e repressão violenta. Não pude deixa de lembrar dos atos do MPL em São Paulo. A operação policial era idêntica: repressão ao direito de manifestação, provocação, perseguição pós-ato e atos ilegais como uso de arma de fogo, acompanhados de cobertura maliciosa da imprensa que fazia petistas… apoiar a ação policial! Lembro-me que ouvia então dos autonomistas “quando a PM bater em vocês amanhã nós também vamos ficar de lado olhando”. Hoje, estavam juntos. Aliás, acho que vi todas as centrais, partidos, grupos, coletivos e fracções de esquerda atuantes dos dias de hoje que conheço.

    Os dois carros de som que estavam ao lado vieram junto do carro da Pública, e formaram uma barreira contra os projéteis da polícia. A massa não parava de chegar, e novas ondas arremetiam contra o rochedo policial. Um menino negro avisava aos amigos “cuidado quando ouvir tiro, eu fui atingido por essa bala de borracha”, mostrando o projétil, chamado eufemisticamente de “elastômetro”. Vi duas bandeiras LGBT, uma da UJC. Vi uma camiseta com o rosto de Malcolm X, com o texto “Não há capitalismo sem racismo”, e outra camiseta com o Mandela. Vi ima bandeira do NOS, uma da ANEL, A banda toca Cazuza, “Que país é esse?”, mas não me toca. Não gosto muito dele.

    O carro de som cobra do comandante o respeito ao acordo firmado entre eles, de poder ocupar o gramado. O oficial responsável pela operação é chamado pelo nome muitas vezes. “Somos mais de 50 mil trabalhadores aqui, respeito! Exijo respeito!”. A certa altura, a multidão grita em uníssono, umas 5 mil pessoas: “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da policia militar!”. Vi banheiros químocos sendo rolados no chão para servirem de barricada contra os tiros. Teve uma hora quando a polícia atirava contra as pessoas no carro de som, o que não vinha fazendo.

    Uma moça do MTST distribuía uma máscara de boca. Pouco adiantava. No geral, é sempre possível observar onde detona a bomba de gás e sentir o vento. Muitos chutam o aparato de volta. Mas ficar de olho na direção da nuvem e se esquivar dá resultados. Mas nem sempre o vento colabora, e há nuvens invisíveis que te envolvem num aquário ardente. O rosto queima e os olhos e nariz ardem muito. Dá um desespero. Mas tem é que sair da nuvem e deixar queimar: arde mas passa, e não esfrega os olhos. Água não adianta.

    O gás foi muito usado, por mais de três horas. Muito agressivo. Um moço contou que o helicóptero da polícia não apenas atirava as bombas, mas também usava de suas hélices para espalhá-lo. Passei a reparar e acho que é verdade. Muita gente passou mal com a pimenta e lacrimogênio.

    A essa altura, manifestantes começaram a usar escudos. Valia tudo: uma placa “Nada temos a Temer”, uma placa redonda de trânsito E, faixas de pano. O orador no carro de som surtou “Vocês não vão impedir este ato! Quando a PM quer aumento vocês vão quebrar o Congresso! PM, fique quieta, recue! Vocês não têm a autoridade, vocês não têm o direito!”. Falou o deputado Vicentinho, o único orador de partido que ouvi, e rogou à PM que parasse a agressão. O povo cantava: “não adiante reprimir, o seu governo vai cair!”.

    Vi nessa hora o estandarte laranja do Rua, uma bandeira “Tribo UFRJ”, uma negra com o A anarquista, uma da LJR, uma vermelha e negra, “GT Antiracismo” da CUT, uma bandeira do sindicato dos Caravaneiros, uma de Minas Gerais, da LSR, UBES, UNE, Kizomba, Liga Operária, Enegrecer e FASUBRA. Vi uma camiseta “Morro do Timbó, Baixa do Sapateiro” e outra vermelha “Ajax Futsal”. Olhei para trás e vi balões até a altura do viaduto da Rodoviária. Vi também duas colunas de fumaça negra à nossa direita, contras as quais um drone branco se destacava. Depois vi que os fumos originavam de uns banheiros químicos e de um ministério cujo térreo ardia.

    Perguntei a um senhor a hora e eram 15:20h. Percorria agora a zona de retaguarda. Muitos jovens e coletivos, sentados e de pé. Certas agremiações são nacionais, e dava para notar que uns cuidavam dos outros e construíam intimidade na manifestação. Este é um espaço muito importante, o do encontro, que o carro de som (e a polícia) não deixa formar. A rua é educativa nesse ponto também, e “permanecer nas ruas” precisa significar formar fóruns de escuta e conversa. O púlpito precisa ser evitado. Vi um pessoal do Território Livre, da ADUSP e ANDES. Vi uma bandeira autonomista RECC, uma da JCA, uma do Faísca, do PSOL e outra do MTST. Vi um moço com a camisa do Santos FC onde pichara “Fora Temer!”, e outra camiseta “MLPS Vidreiros”. Muita camiseta preta também. Vi um batuque do Faísca e o pessoal do Arrua e do Levante popular da Juventude, alguns muito jovens, de 15-20.

    No geral da manifestação, achei muito diversa a composição das pessoas, e as idades iam dos 20 aos 50, bem equilibrado homem/mulher. Encontrei T, que disse que vira o Boulos.

    Um carro de som diz “somos todos filhos de Zumbi”. Depois anunciou que havia um homem baleado ali perto, e pedia socorro aos bombeiros. Disse que ele fora atingido por arma de fogo, o que foi confirmado depois na imprensa. Daí subiu um policial civil que subiu o tom das falas. Ele falou duramente contra a ação da PM: “É covardia, o que que é isso, meu irmão? É por isso que o Brasil está nesse estado. Vocês estão fudendo com nós. Mire naqueles que estão atrás de vocês! A família da PM está sendo defendida aqui, respeita porra! Respeito! Cadê a disciplina militar? Cadê o comandante da PM?”. Vi essa atitude combativa quando policiais civis e penitenciários aplaudiam a ação de black blocks e demonstravam respeito à meninada que fazia barricada e enfrentava a chuva de balas e bombas. Eles avançavam pouco a pouco em direção à linha de atiradores e tentavam atingir os policiais com pedras e, vez ou outra, rojões.

    A certa altura a banda começou a tocar o hino nacional em ritmo de rock. Foi bizarro, agora a linha de frente contava com várias barricadas e o pau comia. Eram 16h e, apesar de muita gente espalhada e insistindo em ficar e realizar o ato, os oradores começaram a desescalar o evento. A PM vinha avançando em varredura e já não havia nenhum manifestante entre a grade e os carros de som, que por vezes ficavam totalmente envolvidos por fumaça tóxica. Os tiros vinham dos dois lados, além da frente do ato. Três helicópteros sobrevoavam o local e atiravam bombas na manifestação.

    A bomba de gás nem assusta muito, o pior é a de concussão. Mas quando o gentil arco do artefato cruza o ar em sua direção, não dá para saber se é de gás ou de explosão. Ele rola na grama graciosamente, como um fliperama sinistro. Mas o pior mesmo é a bala de borracha, que zune na altura dos olhos.

    Fomos saindo e, mesmo de costas, a fuzilaria continuava. Um orador no carro de som dizia que “estamos saindo deste ato com muito orgulho!”, e chamou a Greve Geral. Vi uma faixa da “INTRATEL”, cujo símbolo era um desses emojis da carinha sorridente, com um headphone. Deve ser dos trabalhadores do telemarketing. Vi um pessoal do SINDIPOL, que é da polícia civil. Vi uma camiseta com toda a letra do Raul Seixa, “Gita”. Um moço da Força sindical ajoelha, cuspindo e tossindo muito. Um grupo de policiais penitenciários fazia um sorridente selfie de grupo no meio do gramado agora meio vazio. Vi um grupo de petroleiros também fazendo sua selfie coletiva.

    Voltamos pelo lado dos Ministérios e vimos o estrago. O da Fazenda queimou bem, os outros menos. Nos edifícios estragados, vi as seguintes pichações, dentre outras: “Desgraça Punk”, “Não ao silêncio”, “Greve Geral”, “Morte à Burguesia”, “Porcos Safados”, “Favela vive!” com o A anarquista.

    Chegamos ao Museu Nacional, já na extremidade da Esplanada. Ouvimos umas mulheres gritando “vaza, vaza!”. Vimos então que uma coluna de 40 PMs enquadrou três desavisados adolescentes que pichavam “Fora Temer!” na parede do museu. Juntou gente (tinha muito manifestante) gritando “Não acabou, tem que acabar, EQOFDPM!” e “Fora Temer!”.

    Vimos a Força Nacional no caminho de volta, mas não o exército. Vários grupos de PMs estavam localizados em vários pontos da cidade. Depois vieram notícias da covarde atuação que é usual: a perseguição de grupos pequenos de manifestantes submetidos a todo o tipo de agressão.

    Subimos ao CONIC para uma merecida cerveja. A caminho do lugar, uma mulher cutista estava contando que sua irmã telefonara dizendo que Temer tinha decretado estado de sítio. Disse que ela chorava ao telefone. Assustamos um pouco, mas esperei para ver o que era, os boatos crepitam em manifestação de rua. Achamos um boteco repleto de sindicalistas, e também o G, que estava numa mesa. Ele esclareceu que de fato era um decreto presidencial chamando o exército a manter a ordem, mas com limite de data e circunscrito a Brasília. Depois o decreto foi anulado, dadas as críticas que recebeu. Mas uma linha importante foi cruzada e tenho certeza que, em outro ambiente político, de maior consenso ao redor de um presidente, a medida passaria por legal. O STF não peitaria e ficaria por isso mesmo.

    Vimos na tela dos botecos o programa do Datena, que mostrou uns BBs batendo em policiais, o que foi muito comemorado. Vimos imagens do Rio de Janeiro. Quando passou um grupo de 7 PMs, patrulhando aquele espaço, a galera explodiu em “Fora Temer!” e “Diretas Já!”. Os PMs voltaram e encararam com rosto fechado por um tempo e depois saíram.

    Vimos as notícias do dia depois. A PM do Pará fez 10 mortos em despejo. Vimos os seis tiros disparados por um PM na cidade. Essas irrupções de violência parecem convidar coordenação tenebrosa. Vimos as repercussões da Cracolândia, incluindo uma ocupação de secretaria municipal. O ato espontâneo da Paulista. Vimos os tumulto nos trâmites das reformas, o empurra-empurra e tapetão no Congresso. O JN comprando o discurso do caos e a necessidade da intervenção das Forças Armadas. O JN defende Reinaldo Azevedo de uma maneira que não fez por ocasião da divulgação do grampo de Lula e Dilma ou no caso de Eduardo Guimarães.

    foto: https://pbs.twimg.com/media/DArf1hLXYAA1AKb.jpg

     

  • Carta do Povo Guarani à sociedade nacional sobre a CPI da FUNAI e INCRA

    Reunidos na Aldeia Morro Alto, em Santa Catarina, nós as lideranças do povo indígena guarani do sul e do sudeste do país, articulados na nossa organização política, a Comissão Guarani Yvyrupa, resolvemos escrever essa carta para divulgar o nosso pensamento e as nossas palavras sobre a Comissão Parlamentar de Inquérito da FUNAI e INCRA. Nossas palavras são para vocês, nossos amigos, porque os nossos inimigos não merecem o nosso tempo: para eles, que nos atacam há muito, nós guardamos as nossas flechas.

    E o que temos a dizer é que não foi surpresa ver na televisão que a bancada ruralista, os deputados que se dizem donos da terra e da bala, acusaram as nossas lideranças, os nossos parceiros, e o órgão e as leis que nos defendem. Na lista de “indiciados”, estão lideranças da terra indígena Morro dos Cavalos (SC) e Mato Preto (RS), estão rezadores e anciãos, e estão inclusive parentes que já se foram desse mundo e estão com Nhanderu, nosso Pai Celeste – sobre eles não pesará mais a injustiça desse mundo. Estão também na lista de indiciados antropólogos que trabalharam na identificação das nossas terras, servidores da FUNAI, Procuradores do Ministério Público Federal, e religiosos, cujo maior crime foi o de entender a nossa luta.

    Também não foi surpresa ver na televisão os mesmos deputados que acusaram as nossas lideranças, os nossos parceiros, e o órgão e as leis que nos defendem, são os mesmos que figuram nas listas dos que receberam dinheiro dos empresários que cortam nossas aldeias com rodovias, que levantam casas e prédios e querem construir condomínios nas nossas terras, que trancam nossos rios com barragens hidrelétricas, e que querem cavar o chão para arrancar os minérios que Nhanderu enterrou nos nossos territórios.

    De qual crime nos acusam? O de existir. Por se identificarem como indígenas, querem que nossas lideranças respondam por “falsidade ideológica”. Por se organizar para defender nossos territórios e os direitos de todos os povos, querem que nossas lideranças respondam por “formação de quadrilha”.

    O que temos a dizer a vocês, nossos amigos, é que os tempos estão difíceis mas não é hora de recuar. Há mais de quinhentos anos o povo guarani faz a sua luta, há mais de quinhentos anos guardamos os nossos tekoa. Tenham certeza que agora, mais do que nunca, estaremos fortes e chamamos vocês para estar do nosso lado. Nossos inimigos apostam na nossa morte, mas não se enganem: se vencem eles, perdemos todos. Os xeramoi já disseram, e agora dizemos a vocês: se não houver terra para os Guarani, para os todos os povos indígenas, para os quilombolas, para os que vivem da terra mesmo, não haverá terra para ninguém.

    Que estejamos sempre fortes.

    Aguyjevete!

    (Foto retirada de: https://www.flickr.com/photos/stankuns/13985055326/in/photostream/)