Category: urucum

  • O caminho esquecido contra o que ainda nos consome

    Por Salvador Schavelzon para Urucum

     

    Da ressaca de todas as crises da esquerda que atravessamos ficamos com algo: o mundo não é mais só um.

    Encontramos assim, por todo lado, fragmentos de um caminho que se perde entre grandes aparelhos que pretendem controla-lo tudo, mas que sempre reaparece, servindo de trilha para quem precisa fugir ou resistir em algum lugar.

    Tradutores com horta no quintal; alguém sempre pronto para panfletar; bioconstrutor que conhece os segredos das bananeiras; xamã que nunca mais vai voltar para o posto da FUNAI; professora que interrompe a lição para falar da morte do ex aluno na quebrada; pescador que conhece as estrelas; leitor do Castoriadis; zapatista; demitido sem direitos que joga uma pedra contra dependência estatal; assembleias de populações contra a mineração e rachas dissidentes que abandonam assembleias ou grupos para fazer alguma ação ou posicionamento junto a um rio, numa biblioteca ou no banheiro de um bar.

    No exato momento em que o patriarca empreitero confirma a colaboração da cúpula do PT com os empresários, que militantes de oposição sindical já advertiram faz tempo; ou quando se confirma que, no essencial, a forma em que a esquerda pensa o País e o administra não difere da dos seus rivais partidários, é preciso fazer uma marca no tempo e fazer algo para que também o restante da esquerda deixe de ficar pendurado com tristeza aos movimentos e estratégias desse projeto derrotado desde dentro. Nesse momento, as formas de fazer política, os fins da organização da esquerda e o sentido da luta deve ser re-avaliada. A cumplicidade com o discurso e ação do desenvolvimento; a adaptação ao autoritarismo do Estado e sua máquina repressiva e de controle social; a política e organização da vida deixada para uns poucos; faz necessário unir expressões dispersas de fora dessa política e civilização.

    É preciso alimentar contradições dentro das lógicas normalizadas em toda instituição, espaço social ou setor, com  novos feixes de conexões em contínua mutação e calibragem, que poderão resgatar a dignidade e construir alternativas de quem pôs o peito para as balas em conflitos do campo, de quem acredita que existem outras formas de lutar ou desertar, ou de quem simplesmente não abaixa os braços para o que seria o inexorável, o único possível, recusando assim as armadilhas da nação, da pacificação religiosa, da promesa de revolução que sempre será no futuro, ou da fraqueza, em formulações políticas que reproduzem entre nós lógicas da empresa, do neoliberalismo ou do Estado, e de quem faz tempo está do outro lado.

    A tradução política da derrota não tem uma única leitura possível. Ao contrário, o que está aberto hoje é um mundo político mais amplo, com mais vozes, com contribuições marginais, estéticas, de uma nova conceição do público que tem ferramentas para recusar um mundo bipolar: canteiros vivos contra a mercantilização da natureza, cooperação tecnopolítica aberta para resolver problemas práticos de infraestrutura, debate sobre caminhos que não assumem que devamos escolher entre neoliberalismo e neokeynesianismo, entre mercado e estado, entre fascismo e conciliação com os verdadeiros donos do poder ainda colonial.

    Ficamos sem escolha além da ruptura com todo aquele que em lugar de lutar contra a máquina, trabalhe para ela. Isso implica também recusar os marcos interpretativos com que as formações políticas que nos querem sempre atrás deles leem a realidade. Contituidos eles mesmos como máquinas também, que só olham para cima, levando tudo para as respostas institucionais que não dizem nada, e negando tudo que é invisível para um poder que eles escolheram representar, e cujos dispositivos adoptaram como modo de funcionamento.

    Sem heranças pesadas que devamos carregar de forma penitente pelo resto dos dias, se torna mais importante questionar e inventar, que obedecer e acompanhar. Espíritos de luta percebem nesse novo momento de refuncionalização das ferramentas, que quem não rompe e se movimenta se transforma em um deles, e que sair da casa dos que exigem lealdade até na traição, é preciso para não morrer como eles; para não ser cortejo fúnebre de um morto que ainda é capaz de nos chantagear, chamando para a praça vazia, centro de uma sociedade que não existe mais, centro de nada que eles ainda chamam de sociedade. Só a autonomia, como poder político que se mantém longe de cúpulas fechadas e detém a decisão na mão de todos, se mostra como caminho para quem não queira ser também parte desse mundo morto-vivo que pretende nos governar e dizer com quais palavras temos que falar.

    Esse mundo contra o qual lutamos se pretende universal, mas se constrói localmente como filial individualizadora e totalizante. Se apresenta, com versões de direita ou progressistas, como mundo de escolhas obrigatórias que elimina tudo que não consegue assimilar, numa limpeza ontológica que só sabe de uma política como esfera elevada e elitista, separada na transcendencia onde o pacto secreto, o sequestro das vontades majoritárias e o avanço que deixa diferenças no caminho são então permanentes.

    Nesse mundo contra o qual lutamos quem não se disciplina é apenas tolerado ou reconhecido como crença, cultura, festa, passado, identidade. Os mundo da terra, contra o estado, da luta que abre mundos e situações libertárias não acredita nessas hierarquizações deterministas e separações. Contra isso a luta inventa novas linguagens, hackeios e organiza também materialmente uma classe subalterna de diferenças e multidões. As está inventando com amnésia e memória em doses certas, como tecido nebuloso de organização fantasma que se ativa quando é necessário, preparando combatentes de um mundo novo que não separa o que pensa do que vive e, assim, reconhece vida e política onde eles apenas enxergam mercadoria e representação do mundo sob controle.

    No território arrasado pela extração de minerais, respira o fantasma de uma floresta. Esquecemos quem se coloca por cima de nós como líder  ou chefe, mas não de nossos mortos e de quem lutou ou não quis ser um dos outros. Com outra temporalidade, distinta da do progresso e da burocratização; num lugar que não é possível ser reduzido ao espaço que eles sabem vender ou tornar produtivo; continuaremos aqui, atrapalhando seus planos; inventando outras formas de falar e de ouvir o que para eles não existe. Nas greves que duram para sempre, abrindo assim novas possibilidades não capitalistas nem do trabalho; ou mesmo na autonomia de quem não consegue trabalho ou faz com ele o que quer, novos antagonismos revolucionários se pronunciam.

    Nas ruinas de Belo Monte, na memória esquecida de junho de 2013, nas guerras de mundos cosmopolíticos que libertará rios na cidade ou encontrará lugares além do agronegócio, como grito coletivo ou pelas bordas, imperceptivelmente, o comum e o não representável por igrejas, estados e partidos continuará falando para quem tenha vontade e vigor para continuar em pé.

     

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  • Tessituras de uma cultura tecnopolítica

    de Henrique Parra – também publicado no Pimentalab

    Com um pequeno intervalo de 30 minutos, acompanhei no mesmo dia duas atividades que, no contraste de suas diferenças, indicam o tamanho do desafio que temos pela frente. A boa notícia é que não nos falta ação, mas sim capacidade de transversalidade e conexão. Um dos desafios, para além de superar nossa fragmentação, é compreender os agenciamentos do mundo sociotécnico em que estamos imersos e fomentar uma cultura técnica que dê suporte e amplifique os modos de vida que desejamos fazer proliferar.

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    Dois seminários públicos: o primeiro, na sede da FUHEM Ecosol, ONGs de pesquisa social e formação, onde ocorreu o lançamento da publicação Estado do Poder 2017, cuja edição foi dedicada à cultura/ideologia e suas formas de participação nos mecanismos globais de dominação. No lançamento da publicação assisti a uma excelente intervenção da pesquisadora-ativista boliviana Elizabeth Peredo Beltrán (Poder e Patriarcado) sobre o chamado \”fim do ciclo progressista na América Latina\”, dentre outras apresentações.

    O segundo seminário foi um achado acidental. No dia anterior, trombei com uma propaganda de página inteira no jornal impresso que lia no café. A imagem da campanha me pareceu tão exótica que se não fosse minha curiosidade semiótica jamais teria chegado ao conteúdo textual que eles queriam difundir. Esta atividade era o lançamento de uma campanha nacional – Caminho do Sol  – de mobilização pelos direitos de pequenos produtores à geração e comercialização de energia solar (fotovoltaica).

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    Imaginar outras infraestruturas tecnopolíticas

    O relato sobre a experiência política boliviana, insere-se num debate mais amplo sobre o chamado \”fim do ciclo progressista na América Latina\”. De certa forma, o discurso de \”fim do ciclo\” é um recurso performático que deseja traçar uma linha entre um antes e um depois, procurando ativar no presente outras interpretações, horizontes e projetos políticos. A própria idéia de \”fim de ciclo\” é tema de muitas controvérsias (experimente dar uma pesquisada no termo \”fim do ciclo progressista\”). Há uma versão de \”fim de ciclo\” proclamada pelas forças reacionárias e meios de comunicação corporativos que anunciam o esgotamento dos projetos da esquerda, e uma versão de \”fim de ciclo\” que pretende criar outras interpretações no campo da própria esquerda.

    Faço uma sinopse, muita imprecisa e simplificada, para destacar alguns argumentos. É elaborada uma reflexão crítica sobre os limites das experiências de governo da esquerda latino-americana (Bolivia, Brasil, Equador, Venezuela, Argentina…) desses últimos 15 anos. As análises recuperam a história de lutas sociais que antecederam esses governos, construções de amplos movimentos sociais e redes de organizações de base em ciclos de 15, 20, 30 anos (a depender do país) até que um grupo/partido político oriundo dessas construções chega ao poder em escala nacional. Em seguida problematiza-se as tensões e dilemas que emergiram entre a lógica de governo e as dinâmicas da prática política dos movimentos, lançam perguntas desafiadoras sobre os limites da ação governamental (na tomada do Estado), e as armadilhas que se instalaram para a ação política. Por fim, abrem-se novas perguntas sobre os possíveis caminhos de um novo ciclo de luta política, cujo foco estaria orientado para a construção de políticas não estado-cêntricas. O Estado é importante, mas sua ocupação-gestão não seria o principal espaço da construção dessas alternativas. Neste percurso é também elaborada uma crítica ao fato de que, as políticas de inclusão social apoiaram-se num modelo de crescimento econômico que era dependente de programas de desenvolvimento de caráter extrativista, concentradores de renda, com forte dependência e alianças espúrias com as grandes corporações e capital financeiro, combinação esta que mostrou-se insustentável. Certamente, os argumentos são muito mais complexos. Há boas referências sobre essa discussão [veja Raquel Gutierrez Aguilar. Horizontes comunitario-popular: producción de lo comun más allá de las politicas estado-centricas].

    Dentro deste amplo debate, comentarei apenas um ponto: as grandes obras de infraestrutura (usinas, estradas etc). Com frequencia as grandes obras de infraestrutura são vistas como um problema em razão do enorme impacto socioambiental no meio em que são inseridas. Porém, pouco se discute sobre a maneira como um determinado modelo de infraestrutura é o resultado de todo um arranjo sociotécnico que faz com que um certo projeto/desenho se apresente como a melhor resposta a um conjunto de variáveis: um desenho de uma hidroelétrica em oposição a outros modelos de hidroelétricas; o traçado da construção de uma rodovia, a cadeia de produção e distribuição alimentar, o fornecimento de água nas cidades etc.

    Evidentemente, há sempre alternativas e decisões políticas em jogo, mas com muita frequência escapa ao debate tanto a descrição do conjunto das determinações que \”elegem\” um modelo de infraestrutura, como a proposição de alternativas que sejam capazes de oferecer outras respostas, neste caso, com uma eficiência simultaneamente societal e tecnopolítica.

    Se pretendemos produzir energia para que a vida de muitas pessoas sejam melhores num determinado espaço tempo, como podemos fazê-lo? Se vamos abastecer com água ou alimentos uma cidade, como podemos fazer isso de maneira diferente, agora e para gerações futuras? Não podemos ignorar este problema se desejamos fazer política com/para os 99%.

    O desenho de uma infraestrutura não é neutro, e seus efeitos no mundo não poderão ser posteriormente controlados por um projeto ou ideologia política. Claro, há sempre uma margem de flexibilidade, mas ela tende a ser cada mais vez menor a medida que os efeitos desta infraestrutura se reticulariza e se inscreve em encadeamentos sociais e técnicos mais amplos.

    Por analogia, podemos pensar o Estado como uma tecnologia de poder. O desafio de governar essa máquina não pode ser reduzido a uma problema de governabilidade e nem transformado num desafio de escalabilidade da luta social. A mudança nos meios de ação (extra-Estado X Estado) e a dimensão da ação (local x nacional x mundo), implica em profundas transformações em todos os entes envolvidos nessa relação. Não se trata apenas de um aumento na complexidade no sistema. Nada se mantém o mesmo. Técnica e política estão sempre entrelaçadas em sua inscrição e efetivação no mundo. Por isso, a proposta de criar outros horizontes políticos para um novo ciclo de lutas, não poderá se limitar à disputa de narrativas ou visões de mundo. Precisamos de práticas, corpos, ferro, aço, água…

     

    Energia = natureza + cultura + técnica + política

    Os problemas indicados acima ficam evidentes quando você resolve experimentar na prática a construção dessas alternativas. Esta é a potência de um protótipo. Neste processo surgem conflitos com atores e forças que desconhecíamos e um novo universo de expropriação do comum se evidencia.

    A campanha \”Sol e Justiça\” surge da mobilização de 60 mil famílias que investiram suas economias em iniciativas coletivas de produção e comercialização de energia fotovoltaica e que atualmente sofrem com a mudança de prioridade do governo. O estado espanhol pretendia fomentar a diversificação da sua matriz energética, no sentido de reduzir o impacto ambiental do modelo atual. Porém, no momento em que começam a proliferar diversas iniciativas de autoconsumo, associações, cooperativas e pequenas empresas que produzem e comercializam enérgia elétrica, as forças em jogo ficam mais evidentes e a política de incentivo estatal muda radicalmente. No caso em questão, grandes empresas internacionais fornecedoras de energia eletrica lograram impor novas regras, através do governo Espanhol, que fossem mais favoráveis aos seus investimentos. Como resultado, as 60 mil famílias ficaram afogadas com dívidas assumidas para a construção de um modelo energético que seria alternativo.

    São muitas as variáveis que afetam as condições de viabilidade de uma nova tecnologia ou atividade econômica: os mecanismos de autorização e controle para instalação de placas solares nas residências devem respeitar determinados protocolos, com fiscalização inclusive das empresas privadas que fazem o fornecimento de energia elétrica nas residências; os critérios para financiamento publico são modificados e outras formas de apoio estatal são exclusivos para determinada escala de empreendimento, entre outros. Em suma, tudo é feito de forma que o modelo que irá se apresentar como o mais \”eficiente\” é aquele que fortalece uma certa configuração de mundo. Neste caso, compreendemos rapidamente como a luz solar deixa de ser um Comum e se torna um recurso que deve ser submetido a um regime de escassez e monetarização.

    Ainda assim, a ação prática desses coletivos aprende com os bloqueios e passa a elaborar alternativas que, a despeito do ambiente inicialmente desfavorável, cria soluções e arranjos sociotécnicos que se relevam melhor adaptados, graças à uma combinação de engenhosidade técnica e estratégias de colaboração social.

    Os desdobramentos futuros desses arranjos é um campo de cultivos e batalhas. O campo dos \”estudos em inovação\” indicam que muitas inovações sociotécnicas que foram concebidas para transportar valores emancipatórios ou solidários, quando deslocadas ou apropriadas em outros arranjos, acabam frequentemente perdendo a capacidade de efetivação daqueles princípios políticos que desejavam difundir. Hoje temos comida orgânica tanto associada a modelos alternativos de vida (sistemas de produção local, com redes de consumo coletiva etc) como formas de produção e comercialização de orgânicos que fortalecem as estruturas tradicionais de concentração de renda e formação de oligopólios [veja alguns trabalhos de Adrian Smith].

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    foto: Campanha Orgulho Solar

     

    Problema semelhante acontece com a produção fotovoltaica. Você pode fazer parte de uma rede autogerida que produz, distribui e utiliza energia solar (veja http://ecooo.es ), ou você pode ser o locatário de uma unidade de produção numa grande fazenda de produção de energia solar (veja https://www.cosol.com.br/ ). Cada um desses arranjos sociotécnicos mobiliza mundos e modos de subjetivação absolutamente distintos.

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    foto:  COSOL – condomínio solar

     

    Tessituras de uma cultura tecnopolítica

    Terminei o dia com a sensação de que havia cruzado por dois mundos que pouco se comunicam. De um lado ativistas, sociólogos e ecologistas que lutam por um mundo socialmente justo e ambientalmente sustentável, sabem construir movimentos, organizações e comunidades, mas buscam formas para tornar durável as frágeis formas de vida que experimentam. De outro, engenheiros e economistas que criam tecnologias e iniciativas portadoras de novos arranjos socioeconômicos, que lutam para superar as adversidades (jurídicas, financeiras, culturais) que inviabilizam suas atividades. Tudo se passa como se fossem dois mundos a parte.

    Pergunto-me sob as possíveis formas de diálogo, aprendizados mútuos e alianças. Há, felizmente, sinais de que cada um desses mundos começa a se mover em direção ao outro. O fato de que as iniciativas comunitárias de energia solar estejam começando a se organizar como movimento social é um exemplo; o crescimento das redes de agroecologia e sua incorporação na pauta de distintos movimentos sociais também; a maior transversalidade do feminismo em diversas práticas sociais, entre outros casos.

    Talvez, um novo aprendizado diante da fragilidade institucional que nos assola neste momento, seja o reconhecimento da existência de outras formas de fazer política. A criação e o suporte de modos de vida em comum, exige também a produção deste comum. Para que este comum exista e possa se sustentar no tempo, começamos a reconhecer os diversos elementos e práticas, materiais e imateriais que lhe dão suporte. Técnica e cultura, política e tecnologia, valores e práticas caminham juntos, se entrelaçando. Uma tecnologia alternativa sem uma comunidade que lhe dê suporte não sobreviverá assim por muito tempo. Um coletivo que não cuida das infraestruturas que dão suporte a suas práticas não terá vida longa. Um movimento social que negligencia os corpos de seus participantes, não será capaz de criar uma comunidade política saudável.

    São essas diversas e interdependentes dimensões que talvez componham juntas outras cartografias políticas. Quais são as infraestruturas necessárias? Como criar e sustentar um corpo, individual e coletivo? Quais são nossos protocolos? Nossas tecnologias? Qual é a comunidade que dá existência e suporte à essas práticas? Quais são as práticas que produzem nossa comunidade? Quais são nossas formas de conhecer e de transmitir os conhecimentos? Tudo ao mesmo tempo agora.

    PS: este post é parte da série de relatos que irei realizar durante o período de pós-doc em Madrid. Mais informações sobre o projeto atual: http://wiki.pimentalab.net/index.php?title=Projetos_Pesquisa

  • Programa Junho e seus significados políticos

     

     

    Junho e seus significados políticos

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    Jean Tible (DCP/USP) e Ramon Szermeta (pesquisador autônomo)

    Curso FESPSP

     

    Esse programa é um convite. Um convite à reflexão coletiva, à pesquisa-luta. A partir do Junho disruptivo, tenta pensar e imaginar políticas (existentes e por vir), organizando um debate plural. Todos/as, inscritos/as ou não, são bem-vindos/as.

     

    Dinâmica: Aulas expositivas e organização de debates em sala. Leitura de textos teóricos, etnográficos, posição e documentos de atores políticos e matérias nas diversas mídias. Participação de convidadas em algumas aulas.

     

    >>Será criado uma plataforma com os textos e documentos citados.

    >> 8 sessões de 4h

     

     

    >> 1ª sessão

    Democracia e Estado; representação, autonomia e movimentos

    Apresentação de cada um/a e conversa sobre a dinâmica do curso.

    Política selvagem e pesquisa-luta.

     

    Antonio Negri. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2002 [1992] (capítulo 7 “A constituição da potência”).

    Jacques Rancière. O ódio à democracia. São Paulo, Boitempo, 2014 (capítulo Democracia, república, representação).

    Marilena Chaui. Cultura e Democracia. São Paulo, Cortez, 2000 (capítulo Representação ou Participação?).

    Karl Marx. Guerra civil na França (1871). Parte 3.

    Alana Moraes, Henrique Parra, Hugo Albuquerque, Jean Tible e Salvador Schalvezon. “A periferia contra o Estado? Para escapar das ciências tristes! Criemos outras possibilidades”. Urucum, 24/4/17.

     

     

    >>2ª sessão

    Brasil pré-2013: democratização, consenso do lulismo, movimentos subterrâneos (os sintomas e os antecedentes)

     

    André Singer. “Raízes sociais e ideológica do lulismo”. Novos Estudos, n.85, 2009.

    Ralés, batalhadores e uma nova classe média. Entrevista especial Jessé de Souza. IHU, 23/1/01.

    Marcos Nobre. “O fim da polarização”. Revista Piauí n.51, dezembro de 2010.

    + matérias e documentos sobre lutas do período

     

     

    >>3ª sessão

    Junho como parte de um ciclo internacional?

    Junho e o contexto latino-americano. Junho e a conjuntura mundial.

     

    Oscar Vega Camacho. “Novas configurações”. Le Monde Diplomatique Brasil, 5/3/10.

    Gloria Muñoz Ramírez. EZLN: el fuego y la palabra. Buenos Aires, Tinta Limón, 2004.

    Colectivo Situaciones. 19y20: apuntes para un nuevo protagonismo social. Buenos Aires, Tinta Limón, 2002.

    comité invisible. Aos nossos amigos. São Paulo, n-1, 2016.

    David Graeber. Um projeto de democracia: uma história, uma crise, um movimento. São Paulo, Paz e Terra, 2015.

    Beatriz Preciado. Nós dizemos Revolução (2013).

     

     

    >> 4ª sessão

    A faísca: 13 de junho de 2013

    O que ocorreu naquele dia? A pauta do transporte no contexto de um capitalismo logístico. As revoltas da catraca e do buzu. A violência policial e repressão. São Paulo.

     

    MPL-SP. “Por uma vida sem catracas”.

    Peter Pal Pelbart. “Anota aí: Eu sou Ninguém”. Folha de São Paulo, 19/07/2013.

    Elena Judensnaider, Luciana Lima, Marcelo Pomar e Pablo Ortellado. Vinte centavos: a luta contra o aumento. São Paulo, Veneta, 2013.

    Sandro Mezzadra e Brett Neilson. “Extraction, logistics, finance: global crisis and the politics of operations”. Radical Philosophy, 178, 2013.

    + matérias e documentos sobre lutas do período

     

    Convidada: May Vivian (ativista, foi militante do MPL-SP)

     

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    >>5ª sessão

    A explosão: os dias loucos (desdobramentos imediatos de Junho)

     

    Alana Moraes, Bernardo Gutiérrez, Henrique Parra, Hugo Albuquerque, Jean Tible, Salvador Schalvezon (Orgs). Junho: potência das ruas e das redes. Friedrich Ebert Stiftung, 2014.

    nota do MPL sobre reunião com Dilma.
    + matérias e documentos sobre lutas do período

     

    Convidada: Natalia Szermeta (coordenadora do MTST-SP)

     

     

    >>6ª sessão

    O levante da direita e impedimento de Dilma Rousseff

     

    Ana Beraldo de Carvalho, Breilla Valenna Barbosa Zanon, Giulliano Placeres. A direita no Brasil em um novo ciclo políco: uma análise sobre o Movimento Brasil Livre (MBL). UFSCAR.

    Marina Amaral. A nova roupa da direita. Agência Pública, 23/6/15.

    Lee Fang. Esferas de Influência: como os libertarians americanos estão reinventando a política latino-americana. The Intercept, 11/8/17.

    + matérias e documentos sobre essas mobilizações

     

     

    >> 7ª sessão

    Apresentação de seminários e discussão dos trabalhos finais

     

     

    >> última sessão

    Balanços e perspectivas: Democracia e novas subjetividades; Autonomia e comum

     

    Coletivo DAR (org.). Dichavando o poder: drogas e autonomia. São Paulo, Autonomia Literária, 2016.

    Beatriz Perrone-Moisés. Festa e guerra. Tese de livre docência, DA/FFLCH/USP.

    Alana Moraes, Jean Tible, Bruno Tarin (orgs.). Cartografias da Emergência: Novas Lutas no Brasil. Friedrich Ebert Stiftung, 2015.

    Leila Saraiva. Não leve flores: crônicas etnográficas junto ao Movimento Passe Livre-DF. Dissertação em Antropologia Social, UnB, 2017.

    José Celso Martinez Corrêa, Balbucio grávido de arte política. 31 de agosto de 2015.

    Mães de Maio: dez anos dos crimes de maio de 2006. André Caramante (org.). São Paulo, Editora nós por nós, 2016.

    Tatiana Roque. “Os novos movimentos se constituem a partir de diagramas (e não de programas)…”. DR, n.1.

    + matérias e documentos das “novas lutas”

     

    Convidadas a definir

     

     

    Bibliografia complementar

     

    aula 1 (introdução)

    Ernesto Laclau. “Representación y movimientos sociales”. Revista Izquierdas, n.15, abril 2013.

    \”¿No nos representan?\” Discusión entre Jacques Rancière y Ernesto Laclau sobre Estado y democracia por Amador Fernándes Savater. El Diario, 5/8/15.

    David Graeber. Um projeto de democracia: uma história, uma crise, um movimento. São Paulo, Paz e Terra, 2015

    Vários. Nociones comunes: experiencias y ensaios entre investigación y militancia. Madrid, traficantes de sueños, 2004.

     

    aula 2 (sintomas)

    André Singer. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.

    Jessé Souza. Os batalhadores brasileiros e A ralé brasileira. Belo Horizonte, UFMG, 2010.

    Marcos Nobre. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013.

     

    aula 3 (internacional)

    Manuel Castells. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro, Zahar, 2013.

    Javier Toret. Tecnopolítica del 15M: la insurgencia de la multitud conectada (2012).

    Judith Butler. “Bodies in Alliance and the Politics of the Street”. EIPCP, 09/2011.

    Occupy, Movimentos de protestos que tomaram as ruas – Vários Autores.
    Boitempo Editorial e Carta Maior, 2013.

    documentário: The Square (Jehane Noujaim, 2013)

     

    aula 4 (faísca) e aula 5 (dias loucos)

    Luiz Inácio Lula da Silva. “Novas vozes no Brasil”. New York Times, 16/07/2013.

    Pronunciamento da presidenta Dilma Rousseff. 21/06/2013

    Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro – O Globo, Editorial, 31/08/2013.

    André Singer. Brasil, junho de 2013: Classes e ideologias cruzadas -.
    Novos Estudos, CEBRAP nº 97 – Novembro de 2013.

    Marcos Nobre. Choque de Democracia: razões da revolta. São Paulo, Companhia das Letras, 2013.

    David Harvey. “El tipo de ciudad en que queremos vivir está ligado al tipo de personas que queremos ser” e “No hay nada malo en tener un huerto comunitario, pero debemos preocuparnos de los comunes a gran escala”.

    Paulo Spina. O Movimento Passe Livre São Paulo: da sua formação aos protestos de 2013. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, UNIFESP, 2016.

    Teresa Caldeira. \”Social Movements, Cultural Production, and Protests São Paulo’s Shifting Political Landscape\”. Current Anthropology Volume 56, Supplement 11, October 2015

    Marco Aurélio Nogueira. As ruas e a democracia, ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Contraponto, 2013.

    Cidades Rebeldes, Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil – Vários Autores. Boitempo Editorial e Carta Maior, 2013.

    Aldo Fornazieiri. Os protestos e a tragédia urbana – 14/06/2013.

    Bruno Cava. A Multidão foi ao Deserto. Editora Annablume, 2013.

    Paulo Arantes. Depois de junho a paz será total –. Artigo no Livro “O novo tempo do mundo”. Boitempo, 2015.

    Rosana Pinheiro-Machado. “Etnografia do \’rolezinho\’”. CartaCapital, 15/1/14.

    Leo Vinicius. A guerra da tarifa 2005: uma visão de dentro do MPL-Floripa. Faísca Publicações Libertárias, 2005.

    Documentários “Com Violência”, Coletivo Nigéria. Amanhã vai ser maior” (coletivo, 2005) e “Revolta do Buzú” (Carlos Pronzato, 2003).

    \”Amanhã vai ser maior\” (coletivo, 2005)

    “Revolta do Buzú” (Carlos Pronzato, 2003)

     

     

    aula 8 (perspectivas)

    Alana Moraes. “Da revolução feminista e o problema do futuro. Bruxas de todos os mundos: distribuí-vos!”. Urucum, 11/3/17.

    Antonia Campos, Jonas Medeiros e Márcio Ribeiro. Escolas de luta. São Paulo, Veneta, 2016.

    Benjamin Arditi. Las insurgencias no tienen un plan—ellas son el plan: performativos políticos y mediadores evanescentes. Disidencia, vol.10 n.2, 2013.

    Caetano Patta. Contestando a ordem: um estudo de caso com secundaristas da Zona Leste Paulistana. Dissertação de Mestrado em Ciência Política, USP, 2017.

    Comite de Resistência Curda (org.). A Revolução Ignorada – Liberação da mulher, democracia direta e pluralismo radical no Oriente Médio. São Paulo, Autonomia Literária, 2016.

    Daniel Guérin. Rosa Luxemburgo e a espontaneidade revolucionária. São Paulo, Perspectiva, 1971.

    Felix Guattari. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo, Brasiliense, 1981.

    Guilherme Boulos. Por que ocupamos? São Paulo, Autonomia Literária, 2016.

    Jo Freeman. “A Tirania das organizações sem estrutura” (1970).

    Martha Kiss Perrone e Fábio Zuker. “Por que ocupamos…”. Nossa Voz, agosto de 2016.

    Lincoln Secco. \”A escola retomada\”. CartaMaior, 22/11/15.
    Lincoln Secco. “Secundaristas”. Blog da Boitempo, 24/5/16.

    Lucas Keese. A Esquiva do Xondaro. Dissertação de Mestrado, DA/FFLCH/USP, 2017.

    Maria Galindo (entrevista por Alana Moraes, Mariana Patrício e Tatiana Roque). DR 3.

    Hakim Bey. TAZ: zona autônoma temporária. São Paulo, Conrad, 2011.

    Michael Hardt e Antonio Negri. Declaração: isto não é um manifesto. São Paulo, n-1 edições, 2014.

    Peter Pál Pelbart. Carta Aberta aos Secundaristas. São Paulo, 2016

    Revista Organismo Parque Augusta, n.1.

    Tiarajú Pablo D´Andrea. A Formação dos Sujeitos Periféricos: Cultura e Política na Periferia de São Paulo. Tese, DS/FFLCH/USP, 2013.

    Henrique Parra. Política do protótipo: o caminho se faz caminhando. Milharal, 2017.

     

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  • As estratégias fundamentais da violência e o genocídio do negro, do pobre e da mulher

    As estratégias fundamentais da violência e o genocídio do negro, do pobre e da mulher

    por: Edson Teles

    originalmente publicado em Le Monde Diplomatique

    foto: autoria desconhecida

     

    Muito se ouve, se fala e se sente acerca da violência em seus vários aspectos. O ódio se encontra disseminado entre as pessoas dissonantes, como se não pudéssemos habitar o mesmo espaço que o outro que pensa e age diferente. A violência institucional do Estado, seja na omissão de um sistema prisional, como os que produziram mortes em massa no início do ano, seja nas ações homicidas das polícias militares nas periferias e manifestações políticas de resistência. As práticas sociais agressivas, punitivistas e de linchamento não se resumem à tradicional oposição Estado versus sociedade. Entre cada indivíduo das comunidades, dos bairros, dos mesmos transportes públicos ronda o fantasma da violência.

    Certamente, as causas destes fenômenos são múltiplas, talvez tanto quanto o são suas ocorrências. Bem como são históricas e tradicionais. Sofrem mais do dinamismo da continuidade do que a sinergia das rupturas. Mas, apesar das várias facetas sob as quais poderíamos analisar a violência endêmica, há certos mecanismos e estratégias que se repetem. Como funcionam? Mais ainda, quais funções e dispositivos de manutenção destas práticas que se atualizam no mundo do trabalho, na sociabilidade desigual e na urbanidade precária?

    A continuidade, permanência e sofisticação dos modos da violência poderiam ser sintetizados, na experiência brasileira, em duas estruturas fundamentais e dominantes: o racismo e o machismo. Este binômio reúne, entre suas efetividades e discursos e em suas ramificações, os principais mecanismos de alimentação da lógica autoritária e agressiva das sociabilidades e dos sujeitos que nelas operam.

    Cerca de 60.000 pessoas sofrem homicídio no país a cada ano. São mortes que possuem características próprias, tanto em seus aspectos territoriais, quanto em relação à dimensão socioeconômica das vítimas. Algo que se torna absurdo se somar a estes dados de morte toda sorte de violência física e morais, psicológicas e de imposição de formas de dominação, tais como as sofridas em escolas, delegacias, sistema de saúde, transporte público precário, mundo do trabalho etc. Há que se considerar o histórico de grave desigualdade social, o qual somente se acentuou nos últimos anos – apesar da diminuição das pessoas em situação miserável, o abismo entre pobres e ricos somente aumentou, com o crescimento do primeiro grupo e concentração das riquezas em posse de poucos.

    Há, neste cenário, uma violência que se destaca negativamente nas estatísticas. É a cometida por agentes de segurança pública, justamente aqueles que deveriam ou poderiam atuar no sentido de diminuir a condição alarmante da violência. A polícia brasileira é a que mais mata no mundo, produzindo óbitos sem a mínima preocupação com a legalidade de seus atos. São inúmeros os casos de assassinatos – sem contar as chacinas em presídios ou as operadas por policiais sem farda, em espécies de “esquadrões da morte” – não computados, acobertados por outros servidores do sistema de segurança, com cena do crime adulterado e falseamento da narrativa dos casos. Tudo muito parecido com os procedimentos dos agentes da repressão política nos anos de ditadura militar (1964-1988).

    Vejamos o exemplo do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM, do Ministério da Saúde), que faz a computação de dados sobre mortes violentas intencionais registradas no sistema de saúde. Há, como forma de registro, as categorias Y35-Y36 do SIM sobre informações de “intervenções legais e operações de guerra”. Ter no Brasil uma base de registros oficiais para “operações de guerra” denota o quão bélico se encontra a sociedade. Talvez ainda mais grave é que nestas estatísticas sobre a violência policial apareça o registro de “0” ocorrências em alguns anos e em alguns estados da Federação. Ocorre, portanto, uma subnotificação da violência de Estado.

    Houve tentativas de algum controle mínimo da impunidade do Estado policial. Exemplo disto foi a criação do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (de 2013). Com cinquenta por cento e mais um de seus membros formados por representantes da sociedade e o restante de agentes do governo federal, tal instituição falhou em implementar ações concretas de contenção da tortura. O maior problema foi a ação corporativa dos representantes estatais, conforme denunciou a Pastoral Carcerária ao se retirar do Comitê: “o que deveria ser um sistema baseado na absoluta autonomia dos seus elementos, e preponderância da sociedade civil na condução dos trabalhos, eis que o Estado brasileiro era e continua sendo o maior dos torturadores, transformou-se em mais um aparelho burocrático, sob permanente tutela governamental” [“Carta de saída da Pastoral Carcerária do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura”, de julho de 2016].

    O quadro da violência no país indica como vítimas endêmicas jovens negros e pobres nas periferias, bem como mulheres, em especial a mulher negra. Genocídio do negro, feminicídio, somado ao etnocídio é a síntese de uma sociedade bélica, ainda que astuta o suficiente para se declarar respeitosa das diferenças e racialmente democrática. Se somarmos o fato de que o futuro breve das gerações de jovens será de graves dificuldades no acesso aos direitos trabalhistas, previdência social cada vez menos eficaz e mundo do trabalho escasso com aumento na demanda por produtividade, a violência tende a piorar.

    Tem-se, de fato, o genocídio em marcha. Pois, se aos números de homicídios, violências físicas e morais e psicológicas, somarmos o fato de que as vítimas destas formas de sociabilidades têm pouco acesso à educação, utilizam um sistema de saúde excludente e precário – no caso das mulheres a situação é ainda mais grave, com pouca ou quase nenhuma política pública de assistência à saúde da mulher para além de pensa-la como um elemento do processo reprodutivo.

    No caso do indivíduo afro-brasileiro a questão é ainda mais séria. Segundo o “Atlas da Violência” (Fórum Brasileiro de Segurança Pública e IPEA, 2016), um jovem negro ou pardo tem 147% mais chances de ser assassinado do que um branco ou amarelo. O país cordial e democrático, em seu cotidiano, tem três mulheres assassinadas por dia. E a maioria das vítimas é composta de mulheres negras (segundo pesquisa da Flacso, de 2015, entre 2003 e 2013 a morte violenta de mulheres negras aumentou 54%, enquanto a de mulheres brancas diminuiu 9,8% [“Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil”]).

    Como se pode falar em estado democrático e de direito quando este mesmo ente público é um dos principais agentes da violência? Por que é que os discursos e as subjetividades emergentes deste quadro apelam para esforços ainda mais agressivos, ao mesmo tempo em que se saúda a suposta existência de um único desejo de país – ou de um desejo binário, mas dentro de uma mesma ordem – e de um sujeito brasileiro universal? Como a produção de estratégias, mecanismos e funções de um país e de um povo universais afetam e incrementam a violência?

    Pois bem, se os negros habitam em condições precárias, certamente sofrerão discriminação no momento de almejar um emprego. Se a ausência de trabalho mais digno é causada pela carência de formação e preparo técnico, esta permanece precária pela inexistência de auxílio financeiro. O círculo vicioso – habitação, escola, saúde, trabalho – produz um racismo (e sexismo) naturalizado e estabelecido como a normalidade das práticas sociais. Assim, a forma violenta de sociabilidade, invertendo a análise dos dados e a abordagem histórica, configura-se no senso comum e no cotidiano das cidades como a normalidade. Se o normal é a violência, o racismo e o machismo, como a mulher ou o jovem negro podem experimentar uma autodefinição de sua existência, condição necessária para se repensar o quadro de violência.

    Nega-se a estas vítimas o direito de autodefesa – se o fizerem serão classificados como vândalos, elementos patológicos diante do normal e da ordem. Desta forma, se brada neste território: “somos todos brasileiros”. A violência, ao se tornar operativa de certa forma de governo da população, torna-se [1] mecanismo fundamental de manutenção das formas de controle e dominação, bem como [2] dispositivo de bloqueio e anulação das potências de resistência dos coletivos atingidos. A lei, a ordem e a normalidade social “acolhem” todos em seu aconchego “democrático” e nacional. Desde que não iniciam processos de ruptura ou criação de outras experimentações fora da ordem estabelecida.

     

    O discurso bélico

    Sendo a violência estrutural e o próprio dinamismo das sociabilidades de forte carga histórica, mas renovado, atualizado e transformado a cada nova demanda ou experimentação dos fenômenos do cotidiano, se poderia tomar como uma espécie de modelo de explicação qualquer acontecimento ou período. Assim, o atual estado de direito, inaugurado sob a herança de um regime ditatorial amplamente violento, tendo nascido sem processos de ruptura e como resultado de acordos silenciosos, fornece um quadro de como opera a violência em um aspecto importante, o da produção de subjetividades aptas e suscetíveis à violência, porosas às formas fundamentais do ódio do outro e da agressividade.

    O caráter originário do novo regime sucessor da ditadura no Brasil foi justamente o de ser a promessa de se interromper e reparar as violências vividas no passado. No Brasil pós ditadura nasceu certa democracia cuja legitimação central adveio do discurso de uma história de violações diante dos quais haveria a esperança de se desfazer do passado indesejado com políticas de diminuição dos sofrimentos sociais. A nova Constituição, de 1988, seria a promessa de outras práticas, de produção de sujeitos universais – mulher, índio, idoso, adolescente, quilombola, trabalhador – cujas naturezas eram a própria história de vitimizações contínuas. A nova lei, legitimada na fundamentação futura de uma outra vida, seria a redenção para estes sujeitos.

    A democracia ficou marcada, fato que repercutiu nos anos seguintes, por dois discursos principais fundantes de sua legitimação. Por um lado, um discurso do tipo soberano, totalizante e apostando na produção de um sujeito universal, o brasileiro, cujas subjetivações circulariam em torno da cordialidade, orgulho, felicidade, nacionalismo moderado e liberalismo político, entre outras características mais específicas do momento e do lugar. Por outro lado, marca-se o discurso bélico, da sociedade cindida, reconciliada forçosamente para evitar o pior, das subjetivações que se suportam, mas, até por isto, se odeiam, cujas relações seriam binárias e violentas. Se o primeiro discurso “unifica” no sujeito “brasileiro”, o segundo divide drasticamente esta outra subjetividade.

    No laboratório de experimentações de formas de vida foi justamente a junção dos dois discursos, aparentemente contraditórios, que produziu maiores e mais fortes efeitos de poder para o novo regime democrático. Se o bélico fundamenta a sociedade dividida, o processo de transição da ditadura para o estado de direito logo tratou de fabricar o discurso da reconciliação e do consenso. Pela lógica da diminuição do risco, sob a fórmula de se evitar os extremos, reúnem-se os elementos que orbitam mais ao centro, os quais seriam maioria e, sob a astúcia da racionalidade política, exclui-se os restos não “pacificados”. Produz-se o sujeito vitorioso do processo de criação do novo regime político.

    É neste ponto do experimento bem sucedido da democracia que se fundem os dois discursos. Com a narrativa de construção do estado democrático de direito, soberano, centralizado, formado pelos “brasileiros”, subjaz franco e atuante, ainda que silencioso e rasteiro, o discurso do conflito, do inimigo, das lutas que continuam, que permanecem enquanto constitutivas da existência do país. Os vivas à democracia, ao estado de direito, à Constituição, às leis e à ordem, convivem com o ódio ao outro, o racismo violento, o preconceito contra o nordestino, o desejo separatista, as homo trans lesbo fobias, o machismo, a perseguição à militância política. Poderíamos acrescentar: ao político, ao corrupto, ao craqueiro, ao drogado, ao pobre, ao vizinho, ao torcedor do outro time. Enfim, a ideia de sermos um único sujeito, universal, brasileiro, alegre e complacente, habita e, mais do isto, somente existe em sintonia, choque e aliança com a subjetividade do ódio, da diferença não tolerada, da consideração do outro, do estranho, estrangeiro, como aquele que não é “nós”.

    Via um deslocamento silencioso e astuto, o binário ou heterogêneo se reestrutura no homogêneo do brasileiro, cidadão de bem, pacífico. E o outro, inimigo ou desqualificado, nada mais será que um acidente a ser contido e eliminado. No mais das vezes, será considerado como um estorvo a ser suportado. Apesar de ser destas terras, é como se ele fosse um corpo contaminado, contagioso, estranho ao corpo social. Ou o estrangeiro historicamente explorador do que há de mais natural e próprio destas terras, o colonizador invasor. Ocorre neste modelo uma militarização do governo da vida e dos corpos.

     

    A violência e o uso ‘operativo’ da segurança pública

    Com este quadro de grave violência, assistimos à repetição de um forte discurso de alerta sobre a violência urbana, gerando o medo e a necessidade de medidas “fortes” visando combater a situação de insegurança vivida nas grandes cidades. Reduzir a idade penal para conter a presença dos adolescentes no crime; encarceramento em massa da população com aumento das penas; aquisição de armamentos novos e mais eficazes para as polícias militares; investimento em tecnologia de vigilância da população, criação de batalhão de policiais preparados para impedir manifestações de rua; uso de forças armadas para patrulhamento de espaços civis precarizados devido à ausência do Estado.

    Neste contexto, há a produção de eficientes máquinas de controle social fundamentadas no discurso da violência urbana e na legitimação de políticas de uso da força na segurança pública, o que tem alimentado uma violência desmedida e histórica por parte de agentes do Estado. Ano após ano, em continuidade à lógica de combate ao inimigo interno institucionalizada durante a ditadura, o estado de direito não tem obtido resultados positivos na diminuição da violência.

    Além de pouco modificar o quadro da forma de vida vulnerável nos grandes centros urbanos, as informações publicizadas indicam o aumento constante da violação de direitos por parte dos aparatos e agentes do Estado, com destaque para o crescimento das cifras de brasileiros assassinados por ações de instituições de segurança. A securitização das práticas sociais tem sido recorrente nos vários modos de governo da vida. Se nas principais potências militares do planeta isto se dê sob a alegação de guerra ao terrorismo, aqui no Brasil a justificativa é o combate à criminalidade e à violência urbana.

    Em São Paulo, no último mês de maio, tentaram legitimar uma ainda maior militarização da cidade. Foi a operação visando acabar com a “anormalidade” dos usuários de drogas na Cracolândia. Mais conhecido como “política higienista”, o “Projeto Redenção” da Prefeitura de São Paulo, cuja parte de suas reuniões, não sem propósito, ocorreram na Secretaria de Segurança Pública, visa “erradicar” – arrancar pela raiz, eliminar, extirpar – o tráfico de drogas e “revitalizar” a distribuição da posse imobiliária da região. As cenas que se seguiram à determinação do prefeito, juntamente com o governador e por meio de suas forças policiais, foram de violência indiscriminada. Bombas, tiros, ameaças, destruição de imóveis provocando o “fluxo” desesperado de centenas de paulistanos, abandonados pelas instituições que deveriam lhes garantir direitos. Há nestas ações a articulação de uma militarização da vida urbana, ou ainda, da política.

    A sinergia entre estas operações de higienização, repressão a manifestações e eliminação de corpos é a característica e confirmação maior da militarização da vida, das subjetividades e da política. Essa nova política já vem sendo testada nos conflitos de terra, nas periferias das grandes cidades, nos entornos de campos de futebol, nos megaeventos esportivos por vários anos. Os modelos de “pacificação” e controle via militarização vêm acompanhados de discursos de conciliação, consenso e manutenção da ordem. Trata-se de um tipo de biopolítica, praticada desde sempre, é verdade, mas que sofreu uma intensificação na última década.

    Parece esquizofrênico, mas quanto mais o Estado é violento, mais o quadro social se apresenta como de crise produzida pela violência urbana e mais se autoriza o investimento na capacidade de uso da violência por parte das políticas de segurança pública. Parece-nos que tal quadro não é o resultado de falhas ou má execução destas políticas. Ao contrário, há neste processo a eficaz produção de uma sociedade de controle, disciplinamento e punição, produzindo o cidadão domesticado e manso, para que assim ele seja ainda mais produtivo sem tomar em suas mãos a própria potência de agir politicamente. Do ponto de vista da eficácia desta política de segurança pública é mais importante uma situação de violência urbana do que de relações harmoniosas e ordeiras. Assim como é necessário a disseminação de subjetividades violentas, seja qual for o alvo (podendo ser até mesmo o próprio Estado e a ordem), para se manter o discurso da necessidade de controle e militarização da vida.

    Haveria a disseminação do terror mobilizando uma opinião pública com a sensação de vulnerabilidade e alimentando o jogo do medo, o que institucionalmente e em larga escala ocorre ao menos desde a ditadura. Neste contexto, pouco importa se as polícias têm a imagem de eficientes ou de serem completamente desestruturadas. O efeito é o de mostrar à população que a força aplicada será sempre que necessário acima da legalidade. Nesta prática de segurança pública a lei funcionaria somente como um parâmetro de medida da violência necessária por parte dos agentes de segurança pública para a contenção dos que saírem da normalidade social e política.

    Assim, cria-se o cidadão de bem, pacífico, trabalhador (ou proprietário) e ordeiro, e o vagabundo, vândalo, louco, drogado, arruaceiro, o indivíduo fora das bordas que delimitam o possível autorizado pela ordem. Desta forma, com a combinação do jogo do medo com a percepção de uma força acima das leis, a segurança pública em prática no país demonstra que o aparato institucional é insuficiente para proteger os cidadãos, demandando o acionamento do autoritário e violento para conter o “outro” perigoso.

    É por estas razões que campanhas pela diminuição da maioridade penal ou pelo recrudescimento das leis são vitoriosas mesmo quando não atingem seu objetivo aparente e discursivo. Não é necessário alterar a menoridade ou aumentar a pena por determinado crime, pois a pauta conservadora de seus debates já cria um imaginário e legitima a ação violenta e violadora de direitos. A norma se impõe pela força (e apoiada nas leis) e sua lógica é a da produção do anormal, do patológico, ao qual ela deveria, em tese, agir com rigor para curá-lo, eliminá-lo, ou, ao menos, anulá-lo.

    São operações que desfazem as separações jurídicas e éticas entre o lícito e o ilícito, o legítimo e o ilegítimo. São cada vez mais localizadas, para não se tornarem alvo de denúncias do modelo bélico e ainda servirem como teste. E permanentes, normalizando o que surge perante a opinião pública como exceção. Tais formas de controle social emergem com base na construção dos perfis de indivíduos e de comportamentos, de territórios e coletivos, aos quais são atribuídos qualificações e graus de risco à ordem, bem como potências de resistência.

    A vigilância da vida tem como paradigma o controle dos espaços, comuns e privados, das estruturas e práticas sociais e da circulação dos corpos a partir da produção da ideia da guerra e da insegurança. Isso serve à militarização de discussões sobre o transporte, as paisagens e os espaços urbanos, mas também de questões amplas como a cultura popular (por exemplo, projeto de lei para a censura do funk em discussão no Congresso Nacional). Os argumentos da guerra e da militarização se dirigem especialmente aos processos de produção de subjetividades. São nesses processos que se encontra a vida política mais profunda. E, por isto, são nessas ranhuras e porosidades do cotidiano que se criam as mais eficazes estratégias de resistência.

  • Política do protótipo: o caminho se faz caminhando

    de Henrique Parra no Pimentalab

     

    Acho interessante a maneira como, aqui na Espanha, a palavra \”protótipo\” está muito presente em diferentes iniciativas de coletivos ativistas (ambientais, urbanistas, hackers, culturais etc) e como este termo é utilizado por instituições públicas e não-governamentais. Investigar e problematizar a genealogia desse termo daria uma ótima tese (lançada a sugestão). Gosto da idéia de protótipo por algumas razões, por isso comecei a utilizá-la há algum tempo para descrever algumas práticas em que estou envolvido.

    Na minha experiência, se a memória estiver correta, comecei a escutar esse termo nos primeiros anos do século XXI (2003…2005?), em grupos da então chamada \”cultura digital\” (bons tempos com midiatática, submidialogia, metareciclagem, midiaindependente…). Naquele contexto, acho que a palavra vinha mesmo da turma que estava mais imersa na cultura de desenvolvedores de softwares (seja por experiência profissional ou de formação). Ali, a noção de protótipo trazia vínculos de origem com a criação de produtos ou serviços – empresarial, corporativa ou mesmo de programadores entusiastas do software livre – que deveriam ser colocados rapidamente em circulação para que pudessem ser testados e aperfeiçoados.

    Ao invés de ficar desenvolvendo um produto até sua conclusão, a ideia do protótipo valorizava o inacabado e a importância da abertura para que se receber rapidamente novos inputs e melhorias, dando relevância aos modos de uso e apropriação para experimentar suas possíveis trajetórias e adequações. Em suma, ele reúne elementos que reconhecem o caráter contextual de qualquer criação. Ao mesmo tempo, a maneira como o ambiente, as infraestruturas e as relações sociais participam do arranjo que surge com o protótipo em uso é parte indissociável do próprio protótipo. Isso que parece um pequeno detalhe faz muita diferença quando exploramos algumas das implicações políticas desta concepção. Talvez por isso, o termo tenha deslizado tão facilmente para outros contextos. Farei um pequeno comentário sobre os possíveis sentidos da noção de protótipo em dois campos: (1) produção de conhecimento; (2) prática política.

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    (1) Prototipar como forma de conhecer

    Quando a ideia de protótipo refere-se a uma prática de conhecer surgem coisas interessantes. Em primeiro lugar, significa levar a sério o fato de que todo processo de produção de conhecimento é também um ato de intervenção no mundo. Uma pesquisa que se realiza através da criação de um protótipo deve incorporar na sua análise os efeitos e as consequências do que ela está produzindo. É também uma forma de conhecer baseada na indissociabilidade teoria e prática. A noção de experiência ganha força: conheço algo que me acontece; sou partícipe e implicado com este processo de conhecer.

    Ao prototipar colocamos em movimento o problema que está sob investigação. Ao fazer isso, criam-se novos problemas pelos quais somos responsáveis. Isso é interessante porque a dimensão ética de qualquer pesquisa torna-se ainda mais visível e urgente, obrigando os pesquisadores a serem mais humildes, cautelosos e lentos. Dessa forma, uma política do cuidado inscreve-se de maneira imanente ao processo de investigação e prototipagem.

    Mas a noção de protótipo também pode indicar uma outra topografia entre diferentes atores envolvidos num processo de investigação. O protótipo, nos casos que acompanhamos, baseiam-se em princípios de abertura e colaboração. Isso significa que distintos saberes (indivíduos/grupos) podem ser incorporados na produção e apropriação do protótipo. Produtores, pesquisadores, usuários, leigos e experts participam de formas distintas da trajetória do protótipo. A depender das condições de participação dos distintos públicos o protótipo terá características muito diferentes.
    Promover as condições de sua contínua apropriação e modificações implica portanto num outro regime de propriedade sobre o conhecimento produzido e sobre o processo: deve-se tratá-lo como um comum (commons). Por fim, essa abertura implica no reconhecimento do caráter sempre inacabado e transitório de todo processo de investigação e aprendizado.

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    (2) Protótipo e ação política

    Quando a noção de protótipo é mobilizada por coletivos ativistas ela pode indicar outras formas de ação política, que também encontramos no repertório de alguns movimentos sociais. A realização de um protótipo envolve, primeiramente, a decisão de substituir a adesão a um projeto idealizado e acabado de um modo de vida ou sociedade futura, pela decisão de experimentar construir no aqui-agora, sempre parcialmente, aquela mudança que se deseja. Pode-se estabelecer aí uma relação com o conceito de política \”pré-figurativa\” tão presente em alguns movimentos contra-culturais (anos 60-70s) e nos movimentos alter-anti-globalização (2000\’s).

    É portanto uma política do cotidiano que busca introduzir modificações nas formas de vida existentes. Quando ativistas ambientais criam, por exemplo, uma ação prototípica de uma alternativa de transporte nas cidades, ela deve ser minimamente capaz de se efetivar no mundo atual. Ou seja, trata-se de uma ação que reconhece as forças em jogo e objetiva criar uma diferença capaz de resistir e persistir. Em alguns casos, a mera percepção da possibilidade de sua efetivação gera efeitos de modificação no horizonte de expectativas. Noutros casos, a construção de um protótipo pode estar orientada para modificar as condições do ambiente em que sua produção/reprodução ocorre. Novamente, essas condições \”ambientais\” ou contextuais, são consideradas parte deste protótipo político, indicando portanto a substituição da oposição meios X fins, pela necessária combinação dos meios e fins. Por isso, essa noção de protótipo pode ser portadora de uma política imanente ou de uma política pelo \”meio\” (pelo meio, par le millieu, mesopolítica, entre outros termos).

    A criação de protótipos nos \”laboratórios cidadãos\” é traduzida por Antonio Lafuente numa boa expressão: do protesto à proposta. Ou seja, ao se engajarem na produção de protótipos esses coletivos afirmam e experimentam positivamente a possibilidade de construção situada (contextualizada, implicada, parcial) de alternativas concretas para aquilo que reivindicam. Ao fazerem isso dão a ver de maneira mais clara o comum ameaçado, apropriado, e os mecanismos de reprodução social em sua micro e macro-política.

    A criação de um protótipo, no contexto de uma intervenção ativista, também indica a valorização de ações práticas, em detrimento das armadilhas das escolhas excessivamente ideologizados que se descolam das condições de ação no presente. Evidentemente, toda prática é portadora de princípios e valores, mas quando deslocamos o foco para a construção de uma ação prática somos obrigados a criar soluções que tornem aquela ação possível. É portanto, um outro estado de presença corporal, onde aprendemos a pensar e praticar uma política sensível com o corpo que temos no mundo que habitamos. Em suma, indica-se uma outra concepção de mudança social.

     

    Algumas referências:
    *Master em Comunicação, Cultura e Cidadania Digital: http://cccd.es/wp/
    *Prototype: coletivo de investigação e intervenção, urbanismo e antropologia: http://www.prototyping.es/
    *Diversos laboratórios realizados no âmbito do Medialab-Prado http://medialab-prado.es/
    *Inteligencia Colectiva: http://www.inteligenciascolectivas.org/category/prototyping/
    *Red de Huertos Comunitarios de Madrid: https://redhuertosurbanosmadrid.wordpress.com/2014/06/03/taller-de-autoconstruccion-de-cocinas-solares-en-cantarranas/
    *Exemplo de laboratório cidadão http://medialab-prado.es/article/proyectos-madrid-escucha
    *Hacklab da Ocupa Ingobernable: https://hacklab.ingobernable.net/

    Veja o artigo: 2016. Corsín Jiménez, Alberto & Adolfo Estalella. ‘Ethnography: a prototype.’ Ethnos, online first, DOI: 10.1080/00141844.2015.1133688. Special Issue, Obstruction and Intervention, edited by Rane Willerslev, Lotte Meinert and George Marcus. Pre-print available here

    PS: este post é parte da série de relatos que irei realizar durante o período de pós-doc em Madrid. Mais informações sobre o projeto atual: http://wiki.pimentalab.net/index.php?title=Projetos_Pesquisa

  • Paraíba-farol: Desfazendo Gênero

     

    Paraíba-farol: Desfazendo Gênero

     

    Por: Carlos Enrique Ruiz Ferreira

     

    Não são poucos os faróis da Paraíba que iluminam o Brasil e o Mundo. Falta-nos apenas valorizar mais nossas produções, feitos, líderes e intelectuais que abrilhantam a sociedade. Valorizar as boas iniciativas torna-se cada dia mais difícil, já que vivemos num status quo marcado pelo déficit de generosidade e solidariedade, pela cultura egóica, do hiperconsumo, do fast food e do “sucesso” a qualquer preço. Muitas vezes “passamos” por Augusto dos Anjos, José Américo, Zé Lins do Rêgo, Chateaubriand, Celso Furtado e não nos damos conta das inovações tecnológicas, artísticas e políticas que empreenderam. De igual forma, custa-nos inserir nos currículos escolares as resistências das e dos indígenas Potiguaras, dos quilombolas, as lutas das mulheres, pela reforma agrária, das nossas Margaridas Alves, dos Pedros Teixeras, dos Negos Fuba e tantas outras.

     

    Com uma literatura de cordel de qualidade artística ímpar (que nos lega o maior acervo de cordel do mundo, o Acervo que toma o nome do idiossincrático e brilhante Átila Almeida), com um gênero musical grandioso, que é o forró e suas variantes, com a energia e beleza das Rodas de Coco e dos terreiros de Jurema, a Paraíba avança em suas resistências. Que dirá dos músicos e músicas que aí estão a rodar e encantar o mundo.

     

    Passado e presente: são muitos os faróis que iluminam. Lembram-nos a imagem do Farol de Cabo Branco mas que, com uma vez disse o Embaixador Celso Amorim (em nossas terras) bem poderia chamar-se “Cabo Negro”.

     

    Outro farol para o país e para o mundo aparecerá em outubro, na rainha da Borborema, nossa querida Campina Grande. O terceiro seminário internacional Desfazendo Gênero diz em seu nome a que veio: “Com a diferença tecer a resistência”. (http://desfazendogenero.com/ ) Para nós, os nomes e as palavras importam: “com”, “diferença”, “resistência”, “tecer”. Por onde passo neste país deparo-me com a notoriedade e respeitabilidade do Seminário, que teve inicio em 2013, em Natal, teve sua segunda edição em Salvador, em 2015 (quando trouxe a expoente dos estudos de gênero, política e relações internacionais Judith Butler) e marcará nosso Estado com a terceira edição em Campina Grande.

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    Aqui se falará não apenas dos preconceitos, sexismos e racismos incrustados na cultura oficial, conservadora, da Casa Grande, mas também dos mecanismos mais sutis do que o peruano Haya de La Torre uma vez chamou (na década de 30) de “coloniaje metal”. Quais as estruturas coloniais, no tocante aos hábitos, desde os políticos institucionais, até os culturais, familiares, afetivos, que preservamos e reproduzimos em nossos corpos e mentes? Como descortinar esses processos? Como descolonizar o pensamento e os corpos que tanto avassalam e, por que não dizer, atrasam nosso desenvolvimento em termos de potencialidades subversivas do saber-fazer? E, para esta tarefa, trata-se de articular, intercambiar, construir pontes, não só na esfera acadêmica e universitária, mas com as e os ativistas, com aquelxs que estão na luta cotidiana, que tanto sofrem os estigmas e marcadores sociais mas que também produzem tecnologias sociais para sobreviver e para sublevar o sistema heteronormativo, homogeneizador e produtor e mantenedor de desigualdades.

     

    Desta forma, o seminário também cumpre o papel fulcral da universidade – muitas vezes deixado em segundo plano – de estar em movimento e construir uma parceria direta com a sociedade civil. A Universidade, as produções de pesquisa, extensão e ensino, neste sentido, deve servir não só às Empresas e sua lógica produtivista, mas também à sociedade civil como um todo, às resistências sociais, aos combates das assimetrias históricas e contemporâneas, à descolonização das práticas e saberes.

     

    O desfazendo gênero vem para desfazer mas vem também para tecer. Oxalá os diversos atores sociais, políticos e educacionais, estejam atentos, presentes e participem desse processo de envergadura considerável para o saber-fazer das insurgências do século XXI. É por aí, acreditamos muitos, na trilha dos pensamentos de Darcy Ribeiro, Glauber Rocha e Oswald de Andrade, que a Paraíba e o país pode dar seu verdadeiro salto de desenvolvimento. Aquele tão esperado, do Farol do mundo.

     

     

     

  • Corpo/Cuidado/Luta

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    Corpo-Conspira
    Nós outr s presentes

    Estamos convocando um encontro público para falar compartilhar práticas de corpo/cuidado/luta. Fazeres que partem da vulnerabilidade, da inteligência, da potência dos corpos e da presença coletiva. Nos cuidar. Experimentar outras formas de presença. Honrar os problemas dos quais ainda não conhecemos soluções. Conspirar. O que pode um corpo? O que significa resistir? Como honrar nossas precariedades corpóreas e fazer delas matéria de novos vínculos? Nos implicar; Lutas; Formas de vida; Comum.

    – O que você/seu coletivo(a) faz para se manter inteira(o)?
    – Qual é o problema não resolvido de que você/sua coletiva(o) mais gosta?
    – Do que precisa uma vizinhança para (sobre)vivermos em comum?

    A ideia é reunir praticantes de clínicas, cuidados, cultivos, curas, danças, combates, coletivos que entendam suas práticas como formas de luta e de produção de conhecimento e que queiram compartilhar problemas, afinidades, conspirar e começar a articular uma vizinhança. >>

    A iniciativa nasce de debates e encontros do Urucum pesquisa-luta.

    Terça-feira, 19 de setembro às 19:00

    Casa do Povo: Rua Três Rios, 252, Bom Retiro, São Paulo

  • Por um materialismo do mistério

    Por um materialismo do mistério

    por: Alana Moraes

    No princípio era o mistério. E depois. E depois. E depois.
    Tudo o que importa, se olhar bem, é mistério. As capacidades cerebrais e o movimento das marés: mistério. A disposição para o combate, a indisposição para o combate: mistério. O que pode um corpo e o que ele não aguenta mais: mistério. Ondas do rádio, ervas que curam, solar um bolo. Mistério. O que pode reunir, o que pode afastar, as ideias que vingam, o que cicatriza, um rio que seca. Gente na rua; muita gente na rua; os encontros improváveis. Toda a energia liberada no acontecimento de corpos revoltados e até isso que chamamos de \”a revolução\”: mistério, mistério, mistério. As viroses, as visões que antecipam futuros, o tremor silencioso e atômico que antecede um beijo apaixonado. Perder o controle: mistério. O delírio de ter o controle: mistério. Ser possuído por um poema, uma entidade, uma mensagem telepática, uma memória olfativa. O contágio. A paralisia. Um cartaz exato. Números imaginários. Amar o som de uma palavra. A improvisação. Mistério. Mistério é como ritmo: move, desloca, arrasta. Não significa, mas atravessa. A febre. A obediência  e a recusa à obediência: quem poderá dizer que sabe bem como acontece? Sermos governados. Mistério. O silêncio diante do extermínio. A paisagem devastadora da guerra. A crença nos muros. A densa e invisível névoa dos desastres nucleares. O rio suspenso que arrasta a areia do Saara à Amazônia. Maiakovski. A fertilidade e o carnaval.  O enfeitiçamento da vida burguesa e a miséria das burocracias. A cumplicidade da lua e das menstruações. As intuições. A fé guevarista, a convicção bolchevique. As cartas de amor de Rosa Luxemburgo. A poesia desesperada dos presos de Guantánamo escrita em copos de plástico: \”Haveremos de vencer\”!
     A nova hipnose algorítmica.
    Mistério, mistério, mistério.
    \”Aparelhos ideológicos\”, vão dizer. \”Falsa consciência\”. \”Isso não existe\”. \”Disciplina!\”
    Interrompem a festa. Sempre.  Tanta força para contornar o mistério, domesticá-lo. O mistério, entretanto, escapa.
    Sabemos. Eles sabem. A fronteira entre suportar e não mais suportar é feita de matéria misteriosa. O que faz funcionar? O que já não pode mais ser contido? Ser transformado por uma ideia, explodir o próprio corpo, arriscar tudo, gritar uma palavra maldita. \”Homens e mulheres fazem história mas não do jeito que querem\” – a brecha misteriosa de Marx. Conspirar é compartilhar  as intenções misteriosas do que não pode mais esperar. Aliança entre coisas humanas e as não humanas. Invadir uma propriedade privada. O mistério é o sopro de vida de todo o acontecimento.
    Não há oposição entre mistério e materialismo: o que cria mundos ou verdadeiras paixões se não o mistério? O mistério nos exige estar atento aos sinais, todos eles.
    Por um materialismo do mistério: misterialismos.
    Práticas de atenção do invisível.
    Guerrilhas cosmopolíticas.
    Metafísicas do sensível.
    Não parar de dançar.
  • corpo-Exu

    Por: Fernando Frias

    O corpo-rito dos negrxs retidos

    Corpo banzo que extrai de sua melancolia  a luta

    Choro, Samba, Ginga

    Zumbi e Dandara  dançam  ao som de tambores

    Negrxs amores cantam até  a tristeza passar

    A macumba    foi começar

    Laroie Exu

    Salve Dona Maria  Padilha

    Ao sino da igrejinha já  fez blém blém

    Seu Tranca Rua vai abrir  a gira

    Dancemos o transe erótico e libertador dos corpos

    Que as forças da natureza tomem nossos corpos  e sigamos pela  deriva do inconsciente

    Até que  os corpos sejam livres e desnudem pelas ruas, avenidas e praças

    Façamos  travessuras na  noite

    Sejamos EXUS

    Corpos, Corpos e mais corpos: 

    uni-vos!

     

    Arte: Carnaval nos Arcos da Lapa. Heitor dos Prazeres

    Você pode-poderá ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=lz5k1kxjfoA

     

  • Se eu puder dançar

    Se eu puder dançar

    por: JULIA RUIZ DI GIOVANNI

    fotos: Alicia Esteves

     

    “Se eu não puder dançar não será minha revolução” ou “não me convide para uma revolução em que eu não possa dançar”. Atribuída à ativista Emma Goldman, a fórmula hoje famosa seria uma reelaboração da convicção expressa pela escritora anarquista em sua auto-biografia: a liberdade que defendia era inseparável do direito à autoexpressão, à beleza e à alegria que ela própria exercia dançando às vistas de seus companheiros. Convertida em um ditado político, a frase ficou conhecida menos pela autenticidade da autoria e mais por sua capacidade de resistir ao tempo ganhar sentidos novos, sendo difundida e reinventada em contextos muito diferentes dos bailes que Goldman dançou. Além do direito às coisas belas e radiantes, o enunciado fala também da relevância tática e estratégica das forças do corpo dançante considerado em um sentido mais amplo. Reaparece, nesse sentido, sempre que alguém em algum lugar sente a urgência de indicar que não se pode abrir mão de algo que apenas os corpos em movimento articulam. Sempre que é preciso declarar que há revoluções que só os fazeres e saberes corporais podem operar, lá onde as criatividades amadurecidas nos trabalhos e amores cotidianos (ou contra eles) encontram a possibilidade transformação social.

    Essa potência política dos corpos é um tema fundamental para as confluências entre práticas de ativismo e práticas artísticas, sobre o qual muito se experimentou e escreveu ao longo da segunda metade do século XX. É impossível conceber os protestos e conflitos protagonizados pelo proletariado urbano desde o final do século XIX sem considerar-se a produção de engajamentos corporais múltiplos e complexos, tensionados pelo adensamento da organização científica do trabalho e de políticas higienistas, tornados parte da educação dos corpos da classe trabalhadora para a produção capitalista. A partir dos anos 1960, o lugar do corpo ganha outros múltiplos sentidos, sendo associado a novas poéticas de dissenso e desobediência, que incluem na equação dos confrontos político-culturais dimensões da vida antes tidas como banais ou privadas – rituais domésticos, práticas sexuais, frivolidades festivas, condutas disruptivas. Além disso práticas de pensar e fazer corpo dos movimentos negros e do feminismo, foram e são fundamentais para que saibamos hoje que tudo que se diz sobre e pelos corpos constitui uma zona de enfrentamentos políticos da maior importância. O corpo que dança e luta é campo de batalha. Conflito e diferença ganham o peso próprio dos corpos: na sua materialidade, plasticidade, forças e fragilidades, o que era oculto ou invisível torna-se exposto e torna-se possível historicamente reconhecer a dimensão política de formas que permaneciam relegadas à massa indistinta das experiências cotidianas associadas à repetição mecânica, inconsciente, alienada, que supostamente não reivindicam nenhum sentido.

     

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    Então, é muito importante falar do corpo. Mas é mais importante ainda saber que dizer “corpo” não é o bastante. Dizer corpo muitas vezes serve somente para continuar mandando o que há de mais intenso e criativo na experiência política de “volta” ao lugar do que é marginal e indizível, do que mesmo que nos pareça sedutor, percebemos como algo aquém do pensamento. Pelo menos desde a década de 1970 o corpo tem um lugar importante (seja pela contracultura, seja pelo marketing capitalista) nos discursos de busca da felicidade, de prazer, de comunhão, de mais “natureza” ou mais “realidade”. Corpo se torna sinônimo de uma aspiração por mostrar o que se oculta, de eliminar o que separa, de atingir uma verdade livre de representações: um desejo difuso de retornarmos à uma suposta imediaticidade original, à afortunada condição do não-saber. O corpo, assim, condensa também formas de exotismo, presentes seja na sua ostentação como objeto sensível e sensual, seja na multiplicação de práticas e discursos terapêuticos fundados na exploração do corpo através de experimentos e exercícios. Passando pelos vocabulários da medicina, do erotismo e das drogas, o corpo, alegoria de desmistificação, se torna ele mesmo mito de uma busca da verdade.

    Talvez a questão seja menos dizer corpo e mais fazer corpo. Como propõe a antropóloga Annemarie Mol[i], sabemos que “temos” corpo, que “somos” corpo, mas o que acontece se começarmos a perceber e considerar politicamente importante o fato de que um corpo é algo que fazemos e refazemos todos os dias?

    E se em vez de supor o corpo como algo inteiro e acabado que é preciso “resgatar ou “reencontrar”, pudéssemos entender o corpo como algo que precisa ser feito ? Que sua inteireza não está dada, mas depende de pequenas e grandes ações íntimas e coletivas? Quem sabe isso nos fizesse reconhecer o tamanho da luta que esse fazer implica. Luta para manter-se inteira, que a juventude negra que acorda todos os dias na linha de tiro da política de genocídio que governa as cidades brasileiras, ou que as mulheres que mantém casas e comunidades funcionando noite e dia, que os sem acesso à serviços de saúde, que aqueles para quem a crise e a precariedade nunca foram condições passageiras, conhecem melhor que qualquer macroanálise. Isso quem sabe nos fizesse reconhecer mais seriamente, que no coração disso que chamamos política estão, por exemplo, todas a operações e tarefas ordinárias, anti-heroicas e não remuneradas que as mulheres fazem e refazem todos os dias. Todos as práticas de cultivo dos prazeres criativos e festivos, muito associados à categoria política da “juventude”: outro termo exotizante. Todos os sistemas difusos de cuidado, de vizinhanças, de escuta, de amparo, todos os usos, todos os exercícios e rituais religiosos e profanos de fortalecimento e preparo para os combates do dia a dia.

    Poder dançar, desse ponto de vista, não seria entendido como um desejo individualizado de “extravasar”, nem dependeria das qualidades de certos corpos que supomos serem naturalmente mais propícios à insubmissão, à “expressão” ou mesmo à criatividade: em geral a corpos jovens ou mesmo femininos (no Brasil, diferente de outros países da América Latina, dançar é uma atividade considerada feminina ou feminizante, com toda carga de atribuições sociais, econômicas e de violências que isso implica). O que acontece se entendermos a dança não como uma atividade especializada, mas como um modo intensificado de estar presente, de lutar para fazer-se inteira, algo que pode ser e já é praticado por uma maioria? Poder dançar seria sim poder fazer corpo abertamente, conscientemente, políticamente: exercitar modos disseminados e socialmente compartilhados de mover-se e fazer mover, modos de conhecer o mundo, no ato mesmo de transformá-lo, saberes de que ninguém detém o monopólio ou o segredo.

    [i]