O poema acima chegou até mim via
whatsapp como corrente iniciada por amigos que organizaram a leitura diária de
poemas para levar a quarentena melhor. Ele me tocou porque dialoga com a
fratura que vejo hoje percorrer nosso mundo. Vivemos um momento em que o corte
das rotinas anteriores abre um estado de interrogação, onde somos convocados a
pensar no fim de muitas coisas, com dificuldades extraordinárias e não
previstas que nos junta e nos divide, nos aproxima numa causa comum, mas nos
separa na forma em que cada um consegue exercitar uma boa distância.
Com o confinamento, fica em
evidência a artificialidade do arranjo em que vivemos quando toda função,
atividade ou serviço é redefinido ou continuado só após nova e sucessiva
confirmação. O pacto social se explicita e, mesmo que aparentemente estejamos
impossibilitados de discutir seus termos, ele parece estar sendo modificado
para ser assinado novamente. Temos o Leviatã do outro lado da mesa exigindo
novos condicionamentos, antes de restabelecer a segurança e a dinâmica da ordem
social. Será que podemos nos manter sem assinar?
O poema é dedicado à memória da
poeta polonesa Halina Poświatowska, que morreu com 32 anos em decorrência de
cardiopatia e problemas respiratórios adquiridos quando criança, durante a
ocupação nazista da Polônia. Impossível separar funcionamento biológico da vida
político social. Esse texto busca pensar nessa interseção, na encruzilhada em
que nos encontramos.
A holotúria, também chamada de
pepino do mar, é um equinodermo tentacular utilizado no Oriente como iguaria
gastronômica e também na medicina tradicional, inclusive contra a malária e a
artrite, da mesma forma que a hidroxicloroquina… Segundo uma pesquisa rápida
da Internet, vemos que este ser do fundo do mar tem capacidade de se auto
desmembrar em caso de perigo, depois se regenerando a partir do corpo restante.
Em caso de ameaça, a holotúria expele partes do abdome, genitais, intestino e
pulmão através do ânus ou de fendas da pele, como modo de amputação que distrai
os inimigos. Na poesia de Szymborska, a expressão latina “non omnis moriar”, provinda de um verso de Horácio, se traduz por
“não morrerei completamente”.
Qual é a fissura que, como no corpo
da holotúria, separa hoje a vida da morte, o perigo da possibilidade de sobreviver?
Pensando no nível do funcionamento da vida social, a poesia permite entender o
desafio da necessidade de revolta que se impõe para além ou junto com a
urgência da preservação física. Significa manter em pé a necessidade de luta
que a nova situação não posterga, nem suspende na sua urgência.
Na pandemia, renunciamos, de forma
voluntária ou proposta pelo Estado, a muito do que nos era familiar. Não nos
aproximamos uns aos outros como antes e paramos de circular territorialmente
fora dos lugares onde dormimos. O inédito das medidas alcança também a
interrupção da produção, a venda e a distribuição de variadas mercadorias.
Mesmo que momentaneamente notavelmente se interrompe aquilo que não era suposto
de poder parar.
O planeta volta a se mostrar mais
difícil de acabar do que o capitalismo e a espécie humana, ambos fragilizados
simultaneamente. A nossa espécie se diferencia agora não pelas qualidades
específicas da sua civilização (capacidade de linguagem e comunicação, de
trabalho, de história) mas por uma nova fragilidade respiratória que exige
interromper tudo. Forçada a sair momentaneamente da arrogante ideia do controle
da natureza, reaparece nossa conexão com o restante do ambiente como algo
inocultável. Nos encontramos num universo onde não estamos sós, e gotículas,
vírus, remédios, morcegos e oxigênio produzido por florestas se conectam num
único tecido. O capitalismo não se mostra desarticulado, mas inesperadamente
mostra sua subordinação à vida, quase nunca em evidência.
Na pandemia, encontramos uma
igualação de todas as pessoas imposta pela dependência de iguais condições
pulmonares para poder respirar mas, como a holotúria frente ao perigo, ela
também nos divide. Apesar dos discursos de união e um imaginado corpo social
coeso que nos convoca como população, como País, como família, suspendendo a
individualidade pela possibilidade de qualquer um de contagiar, na realidade
muitos são obrigados a ter que continuar circulando. Quem deve garantir o
fornecimento de bens essenciais e cuidado da saúde se vincula ainda à ideia
recuperada de que somos um “social”, mas por uma lógica de sobrevivência outros
devem circular com efeitos em direção contrária do novo consenso geral.
Enquanto um rumo único revitaliza a ideia de welfare State a realidade – respiratória e económica – de muitos
mostra a inevitável falência de qualquer Estado para lidar com o que nos
desafia viralmente.
A resistência que a holotúria nos
propõe, ejetando parte dela para se preservar, pode ser lida com perversidade
neoliberal ou evolucionista, de sobrevivência dos mais aptos, os mais fortes ou
com mais recursos para superar a enfermidade… conseguir uma vaga no hospital
caso precise, frente ao descarte dos que não consigam, os perdedores na
concorrência de todos com todos por não adoecer até que a curva de óbitos se
estabilize. A biologia se encontra com a economia e a sociedade nas mãos do
Estado, como administração de leitos, cidadãos, mortes e vírus no ar. Mas a
holotúria inspira a poeta também de outra maneira.
Quando o poema de Szymborska se
refere à autonomização defensiva da holotúria presente também entre nós, os
humanos, o que o corpo emite e deixa ir, como sussurro sufocado, é o riso e o
poema. O abismo não nos divide de forma simples, afastando a morte de nós: o
perigo nos circunda. Entre nós, o que não morre parece não ser apenas nosso
corpo, que se protege, mas também o que sai de dentro de nós. Pensando na
pandemia, podemos encontrar por esse caminho um lugar que está além da proteção
mais imediata do corpo e da saúde. A experiência de viver em quarentena nos
permite imaginar pequenos atos que se encontram nesse lugar, todo dia, entre o
heroísmo, a transgressão, para além do enquadramento.
Para além do Leviatã e sua tentativa
de administrar a natureza na busca de um antídoto que elimine o perigo e nos
devolva os poderes de super homens dominantes do planeta, não encontramos
apenas a irresponsabilidade de alguns capitalistas, a ignorância da verdade da
ciência, a inconsciência ou cansaço que avança contra o social. Para além do
cuidado do corpo, entregue para as autoridades sanitárias, existe também agora,
quando tudo é reavaliado, a possibilidade de superação dessa ordem social onde
o que hoje nos ataca foi engendrado.
Sem questionar a organização do
mundo que hoje é suspenso, encontramos a posição homicida de quem diz que o
País não pode parar, mas também uma defesa hipócrita da quarentena que não leva
em consideração a incapacidade de proteção frente ao vírus de quem é obrigado a
sair, e não tem como adotar o confinamento. Não nos serve nenhuma dessas duas
posições políticas que hoje organizam a discussão de gestão política estatal. O
vírus se mantém no ar, mas só alguns o encontram. E dessa forma não discutimos
como geramos coletivamente a obrigatoriedade dessa circulação de uma parte de
nós que será sacrificada, como na defesa da holotúria.
Industriais e gestores do Estado
assessorados por expertos medem se vai ter muito contágio, ou contam já com a
previsão de ocorrência de infecções e mortes como parte do cálculo político ou
empresarial. Comparam tabelas de contagem de infecção e morte em países,
províncias, cidades, bairros, locais de trabalho. Milhões de corpos
relacionados com o fornecimento e distribuição; com a sobrevivência e com a
subordinação hierárquica no contexto do trabalho, já tiveram o botão de
“continuar” acionado. Veem como até as pessoas mais próximas os tratam como
apestados, sem o heroísmo reconhecido para os trabalhadores da saúde, que
também devem se adequar a uma lógica de guerra sem os cuidados correspondentes.
Pensando no corpo social único que
se preserva para regenerar, a margem premiada no poema, a necessidade de defesa
demarca um novo limiar civilizacional e de cidadania entre os que estão dentro
e os que ficam de fora. Esses conceitos se aplicam porque envolvem sempre a
definição de quem será excluído. Na quarentena, os de dentro são os que cuidam,
os que podem cuidar de si e ser cuidados. Quem circula, tosse sem cuidado, ou
promove a circulação não participará da civilização dos vencedores da pandemia.
Junto com os dispensáveis pelo lucro ou a exclusão, a margem da vida delimita
também um bom governo e outro que não contribui à curva achatar.
Surpreende o tamanho da nova
coalizão. E conhecendo os participantes, nos perguntamos até onde poderemos
avançar juntos sem repensar a nossa vida no mundo. Ou será que nos exigem
deixar qualquer diferença para depois? Assistiremos a regeneração de uma social-democracia
cínica, que celebra a volta do Estado mas não vai se divorciar dos mercados e
continuará apostando no mesmo modelo de produção.
O velho mito da comunidade nacional
está hoje na ordem do dia, como um abraço com o cotovelo de empresários a busca
de recursos públicos, trabalhadores obrigados a responder à pandemia a partir
da margem de cuidado que lhes é permitida sem ser consultados, e um Estado
especialmente dedicado a preservar a ordem. O novo pacto social, assim, estará
mais perto das mensagens da nova etiqueta sanitária incorporada por marcas que
não aplicam esses cuidados à circulação e trabalho que elas mesmas geram, ou
pelas medidas de suspensão produto da necessidade de manter vivos a quem
precisa voltar a trabalhar, antes que por uma mobilização social de força
criativa.
Se o Estado de modelo chinês,
fascista ou progressista fracassa, e o capitalismo verde do Green New Deal não convence a ninguém,
talvez encontremos um misto de formas velhas com um novo funcionamento pós
pandemia que incorpora as transformações que já estavam encaminhadas e que,
agora, se aceleram. Erguido da rapinha intercapitalista dos que se beneficiem
das ruínas e da falência de um capitalismo “nacional”, um capitalismo menos
controlável pelo Estado avança apostando fortemente nas novas condições de
distribuição e venda, apoiadas na produção ubíqua e descentralizada que depende
de uma precariedade da força de trabalho com custo zero e sem nenhum
compromisso com a velha ideia do “social”.
Por esse caminho, vemos uma cisão
que redefine o capitalismo entre o assalariado e o precário, com ou sem renda,
entre a fábrica e a plataforma de geolocalização, entre especulação financeira,
serviços, informalidade e endividamento generalizado. O abismo nos circunda, e
é outro o lugar onde devemos estar. Não há apenas um modo de enfrentar a
pandemia, embora, como em tempos de guerra, existe apenas um único comando
geral. É no lugar das lutas onde é possível quebrar a hierarquia obrigatória do
consenso e revisar as receitas e diagnósticos construídos com a força de
estatísticas que opõem morte a vida mas não permitem perguntar qual vida.
Contra a nova civilização que se
mantém a mesma, ou como dilaceramento que sai de esta e toma outro rumo, nos
perguntamos pelo espaço para uma insurgência que construa um mundo novo com
outro ritmo e outra orientação principal. Como lutar, hoje, enquanto se impõem
restrições ao encontro e as ferramentas de controle se aperfeiçoam. Como
podemos questionar um modelo de desenvolvimento, de Estado e de ciência que,
longe de melhorar os modos de existência e subsistência de milhões, se
relaciona com as condições de possibilidade da pandemia, e com as dificuldades
e despreparo para enfrentá-la em que nos encontramos.
O perigo -mostra a holotúria- pode obrigar
à invenção de algo novo. Um pouco de voracidade pelo mundo e um pouco de fuga,
que nos permita voltar como fantasma que assombra qualquer novo pacto como
escolha fatalista. Recusando que para preservar a vida seja necessário abrir
mão do riso e da poesia, ou da revolta, a pandemia nos convoca a buscar
caminhos para que uma mobilização semelhante e maior à atual se volte também
para o questionamento da ordem social, com novas instituições a nascer, outro
regime de relação com o mundo não humano, e que de forma independente possa ser
também uma resposta à pandemia.
Se o capitalismo também mata,
enfrentando os jovens que não podem ficar em quarentena com velhos sem UTIs
suficientes, enquanto se eliminam as aposentadorias e os direitos laborais, é
preciso manter no ar a possibilidade concreta, e não apenas imaginada, de
reagir evitando trabalhar pelo restabelecimento daquilo mesmo que devemos
desarticular. Se tudo que é viral se mantém no ar, não nos asfixiemos deixando
a solução em mãos dos que apostam no caos do desespero, ou na ordem da
repressão.
Entre o ressentimento e a coragem, a
resignação e a fuga, se abrem duas formas de agir, como duas metades. Uma vive
o confinamento como fim do mundo, buscando desesperadamente repará-lo no
sentido anterior. O outro é o desafio quase impossível, mas ao mesmo tempo
imprescindível, de não transitar dentro de qualquer consenso se não for com
autonomia, mantendo a luta no ar, contra todo novo pacto que nos imponham, para
que todos possamos respirar.
Salvador Schavelzon é antropólogo,
docente e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo.
Quando
alguém fala de distração, penso nos movimentos que parecem difusos… Em
pequenas fugas regidas por coisas que carregamos e perderam a conexão
com o tempo presente… Mas que ainda revelam, a partir do agora, o
magnetismo que as coisas do mundo tem sobre nós e nos dão algumas
pistas, como um mapa no mundo, dos nossos afetos, ou da nossa capacidade
afetiva construída através do tempo.
Por
exemplo, a borboleta que está trabalhando nas flores novas do
abre-caminho no quintal de casa… Isso é trabalho da vida, mas também
associo silenciosamente à distração… pelo modo como ela vai, volta…
salta pra outra planta, pra outra flor, some de vista. Retorna. Sobrevoa
meu corpo deitado ao Sol, volta pra flor.
Associo
então, esse trabalho à distração pelo efeito do voo polinizador da
borboleta sobre mim, por minha aptidão em acompanhá-la visualmente em
seu trabalho que é sua vida.
Noto,
dentro da distração que penso ‘trabalho’ na relação entre a flor a
borboleta. Sobreponho isso a vida da borboleta. O que me parecia natural
passou por um estranhamento no espaço da distração. Por que pensar isso
como trabalho… ou como distração?
Percebo
que em mim a distração normalmente ocorre num espaço que é ao mesmo
tempo dentro e fora. E sobre isso, hoje, me atento às experiências que
faço com a fala em diferentes espaços, públicos e privados, ou alguma
coisa entre isso… e como elas me tornam ora potente, ora enfraquecida.
No propósito, na abertura, na inadequação… A potência na maior parte das
vezes encontra-se na escuta, e as vezes mais especificamente na
evidência da escuta entre as falas, no abrir e orientar sentidos. Se tem
eco… tem eco
Não tem… tem
Se
antes pensava na distração como bifurcação. Agora, ou aqui em
isolamento, ando pensando na distração como espaço, brecha, borda,…
espaço de suspensão e ao mesmo tempo de contato.
… Era pra ser um texto sobre ecologia, mas encontrei uma frase que ecoou:
“Eco amava os bosques e os montes, onde muito se distraía”…
Me
dei conta de que muito se fala da ninfa Eco pela repetição, mas pouco
pela distração. A distração de Eco nesses espaços: nas montanhas,
bosques, cavernas e grutas (onde as oréades habitavam)… relacionada a
seu amor pela vida que ali se expressava, tinha um revés que emergia
como (d)efeito sobre alguns seres, os humanos e os deuses
antropomorfisados… O defeito de Eco era o de falar demais. Queria saber
em que momento emergiu a evidência de que a fala de eco havia passado
dos ‘limites’. Se essa inadequação do quantum de fala era algo
relacionado com o efeito no ambiente, nos corpos, com o efeito do que
ela trazia, apresentava como conteúdo… Fazia emergir das próprias
pessoas.
A
ninfa gostava de dar a última palavra. Se a última palavra fosse uma
afirmação, Eco encerrava a conversa. Se a última palavra fosse uma
questão, havia continuidade.
Qual ‘a diferença entre’ a repetição e a distração? ‘a diferença entre’… Fico na ‘diferença entre’.
Não tenho resposta. Dou passagem
“Dar
passagem”… é uma expressão usada em alguns terreiros para a se referir a
incorporação da entidade pelo médium. “Sua pombagira está pedindo
passagem, você quer dar passagem? Precisa de ajuda?” … Me parece mais
fácil senti-la quando estou só. Tamanha a tensão que fico quando alguém
me diz algo assim… A observação dos sinais no corpo. Sinto, permito com a
mente, mas o corpo resiste. … é numa espécie de rápida distração que
algo acontece.
[ ]
Talvez
repetição seja uma ‘distração de si’ acoplada ao mundo, ao tempo do
mundo… que não tem muito espaço nos “entres”. Uma repetição que quanto
mais rápida… menos espaço há para sentir ou para notar o que se sente.
No ritmo do mundo, no propósito da produção, não é possível pensar pela
distração, observar o que evidencia o corpo distraído. Aqui ela aparece
como dissociada da vida, mas quando ‘a vida’ é trabalho-produção.
Sem espaço não tem Eco. E se o eco lembrara repetição, digo que já não me parece o caso.
No
trânsito da voz trocamos sentidos. A voz como som se propaga pelo
espaço, no tempo. Como a borboleta, constrói o sentido de seus
movimentos difusos nas relações que estabelece entre as flores que
visita. Da sua vida entrelaçada com a continuidade de outras. A natureza
como um todo tem mecanismos que impedem ou dificultam uma polinização
que não efetue troca de material genético. A vida sabe que precisa da
diversidade para continuar para além dos indivíduos, de sua
transitoriedade. A diversidade é resiliente. A vida resiliente é
diversa. Nesse caso, a diversidade fala sobre uma distribuição de
características dentre os indivíduos, ‘soles’, que podem se manifestar
como potências ou vulnerabilidades a depender da ameaça emergente. A
variabilidade vai em direção a uma melhor resposta do todo. Que todo? O
corpo? A casa? A cidade? Biomas? Ecossistemas?
Lembrei
que no começo do texto só queria entender melhor a etimologia de Eco.
Talvez encontrar algum sentido que teria passado despercebido.
Parece que enfim cheguei a ecologia.
[ ]
Se
você conhece o mito de Eco, talvez se lembre também do encontro entre
Eco e Narciso. Ele teria rejeitado a ninfa. Inclusive encontrei uma
versão que a era o contrário, a Ninfa teria rejeitado Narciso. Bem, na
desilusão ante a não-correspondência ela o amaldiçoa a nunca possuir o
objeto de seu amor. O que tem algo a ver com a fixação de Narciso na
própria imagem. A fala e a imagem. Fala como projeção de si.
Eu gosto da distração? Precisei repetir isso em voz alta para perceber que estava ali.
… Não tem eco … tem eco.
O que a distração me permite acessar sobre a vida que me atravessa…
O que a distração me permite acessar?
Essa
semana, ressurgiu o pensamento sobre a relação entre rejeição e fixação
em mim mesma… sobre como me projeto através da fala nos grupos, nas
ações… na capacidade de escuta… Tem coisas com as quais concordo
racionalmente, mas não desejo ecoar. Tem coisas que desejo ecoar. Mas
não consigo… Tem coisas que ecoo sem perceber. Traduzo…
Há
fatos que nos escapam tamanha é nossa capacidade de absorção em relação
ao processamento das experiências, das interações. Continuo sendo
afetada por coisas que vivi há muitos anos atrás, ou ontem… E essa
continuidade me distrai. Como se tudo ainda estivesse acontecendo em
outras dimensões. Essa continuidade me distrai. As vezes a distração sou
apenas eu resgatando o que perdi enquanto estava focada e não
necessariamente atenta. As vezes é ressentimento… sentir, ressentir,
buscar alguma diferença entre ecos de algo que já senti mas não lembro
ao certo o que é… que me ‘marcou’.
Em
algumas situações percebo em mim uma espécie de tristeza em figuras de
destaque que tentam, cedo demais, amarrar os sentido do que ainda
estamos vivendo.
Não
sei como pensar num futuro sincero à vida, sem levar em consideração o
efeito das imagens que acessamos dos animais que ganharam as ruas e
outros espaços antes habitados quase exclusivamente por humanos. Que
espaço é esse? Que brecha é essa que uma pandemia, associada ao nosso
desejo de continuar/medo de sumir possibilitou? O que o silêncio das
cidades permitiu emergir?
…
Quando vi os golfinhos nos canais de Veneza e as manchas de sardinhas
na costa em Recife-Pernambuco, nas ruas em tantos lugares, Gambás,
Cangurus, Veados … Um para e olha seu reflexo no vidro de uma loja em
algum país no norte global. Capivaras… Macacos… pequenos macacos
descansando em um imenso corrimão em Iguaçu. Eles não sabem que aquilo
não é um galho, nem que a piscina do condomínio no Rio de Janeiro não é
um lago.
Não
existe uma palavra para descrever o que senti vendo cada uma dessas
imagens… coisas boas e ruins se juntaram… vontade de rir, de chorar, de
querer sumir… de querer ficar e ver.
Algumas respostas vem cedo demais. Outras demoram um bocado…
[ ]
Só
poder falar repetindo o que os outros dissessem foi um castigo de Hera à
ninfa Eco, por um uso inadequado de sua fala. Mas Hera não imaginava
que Eco contava com o ar. Ela não repete como uma máquina. Nos distrai
com nossa própria voz deslocada, pelo espaço-tempo… Tomada por outros
corpos. Tempo suficiente para nos desencontrarmos do que é “Eu” em cada
fala e nos reencontrarmos com o que é Eu nas falas dos outros… E pensar
no fluxo de Eco como um caminho entre mundos (dentro e fora) a ser
percorrido. No limiar de algo. Nossa fuga em função do encontro. A
distração como aquilo que abre a possibilidade de habitar a vida, viver,
a partir do que o mundo registrara como vulnerabilidade, como falta ou
problema.
Logo,
retorna, como eco, a imagem da borboleta, que tem sua vida associada a
falta de continuidade humana (‘borboletando’) porque não cumpre os
pré-requisitos estéticos que construímos na história recente do planeta
sobre o que é trabalho. Não podemos controlar o fluxo produtivo da
borboleta. Dizer qual a próxima flor. E quais serão as trocas
realizadas.
Nós queremos durar sob uma forma, enquanto a borboleta tem uma vida individual muito curta.
Há muito tempo que não consigo imaginar futuro. Agora ‘não consigo’ com muitas outras pessoas.
Talvez a fala performática de Eco tenha muito a dizer. Talvez não queremos ver o que acontece nos espaços entre o que se ‘repete’. O que encontramos no que parece fuga. O pedido de escuta daquilo que está no que não é dito dentro da linearidade da linguagem estruturada. Às vezes a vida exige o risco da distração.
Echo, de Richard Serra (2019 no IMS São Paulo)
Seguimos
com Gaia, que tendo assimilado as partes de Eco espalhadas pela Terra
(condenada e estripada por rejeitar Pã), passou a operar o efeito sonoro
da ninfa. Se a distração depende da posição do meu olhar, pergunto: De
que distração Gaia nos retorna a partir de seu eco, dessa brecha aberta
para nos reencontrarmos com nós mesmos, e com o efeito de nossas
neuroses,… nossos medos cristalizados no mundo? Ou que distração nos
possibilita para podermos retornar à vida?
Precisei
ler sobre o mito de Eco e viver atentamente minhas distrações no
isolamento provocado pela pandemia de Covid-19, para compreender de
algum modo a obra de Richard Serra que encontrei no Instituo Moreira
Salles. Meses e acontecimentos se passaram entre um momento e outro.
Sabemos
que a experiência do tempo é multidimensional. São muitas as
dobras e escalas e nem caberia aqui tentar explorar todas. Mas há
que dizer pelo menos que o tempo é uma construção “social”, ou
coletiva, envolvendo ritmos mais ou menos independentes de nós e que
se impõem a nós: a hora em que professor e alunos entram em sala de
aula; a hora em que, na Zona de Contágio, nos encontramos para
cons_pirar (5a feira,
19 horas, a cada duas semanas). De outro lado, há também ritmos
subjetivamente construídos, conforme um espaço de escolha – a
“autogestão do sentido”, segundo a sugestiva expressão de
Savater. De um lado, tempo imposto, ritmos obrigatórios. De outro,
tempo escolhido. O tempo nos coordena, mas ele também nos obriga.
Essa coordenação não é neutra – ela é atravessada por relações
de poder.
Qual
o grau de obrigação e qual o espaço de escolha? Não há resposta
única para isso. Tudo depende dos contextos específicos e das
condições individuais. Sempre me pareceu que a universidade ainda é
um espaço relativamente privilegiado do ponto de vista do grau de
liberdade que ela deixa a cada um. Relativamente, porque as condições
de trabalho pioram a cada dia. Em apenas um ano letivo, no meu
departamento da Universidade de Toulouse, três
professoras-pesquisadoras entraram em licença médica durante vários
meses por burn out. Eram jovens mães, com filhos pequenos, em começo
de carreira, que não aguentaram o ritmo. Para elas, o espaço de
escolha foi praticamente zerado.
No
mundo capitalista, há dois vetores principais na construção
coletiva do tempo imposto: o Estado e o “mercado”. Consta que
Jules Ferry, pai da ensino público francês, gostava de olhar o
relógio e dizer: neste exato momento, todas as crianças da
República estão entrando na escola. Essa unidade temporal
manifesta, nos quatro cantos do país, era expressão direta do poder
do Estado em construir, através da escola, uma sociedade nacional.
Os
mecanismos de imposição do tempo a que recorre o “mercado” têm
variado consideravelmente. Em L’Établi
(1978), livro que teve à época uma recepção fulgurante, Robert
Linhart mostrou de que forma os operários resistiam, nas linhas de
montagem, aos ritmos de trabalho impostos pelas usinas fordistas. Com
o declínio do assalariamento e sua substituição crescente pelo
empreendedorismo como modo de construção da dependência econômica,
os mecanismos de imposição do tempo passaram a ser outros – os da
uberização do trabalho e as múltiplas formas de terceirização,
como mostrou Ken Loach em “Você não estava aqui”. Outros, mas
não menos brutais. O tempo escolhido do personagem de Ken Loach,
como o das jovens professoras-pesquisadoras do meu departamento, foi
praticamente zerado.
Apesar
disso, a dialética entre tempo imposto e tempo escolhido permanece
como um dos espaços através dos quais uma reflexão sobre o tempo
se torna possível.
****
Hoje,
no entanto, o grande arquiteto do tempo, o senhor dos relógios, já
não é mais o Estado, e tampouco o capital, mas um vírus altamente
contagioso e particularmente letal, que pôs em cheque os sistemas de
saúde mundo afora. O virus criou a experiência do confinamento,
impôs seu ritmo e suas exigências aos Estados e quebrou a economia
capitalista em um grau jamais visto. Os mercados financeiros
continuam a especular e há gente ganhando muito dinheiro com a
especulação, como mostra o movimento das bolsas. Mas nada e ninguém
é capaz de esconder as impressionantes imagens das filas de aviões
estacionados em grandes aeroportos internacionais como Orly ou
Barajas, o mergulho espetacular dos preços do petróleo ou os trinta
milhões de desempregados nos Estados Unidos.
O
virus introduziu também uma incerteza duradoura em relação ao
presente e ao futuro. Fazendo pairar sobre cada um de nós a sombra
da morte, ele redefiniu nossas urgências subjetivas. Não se trata
apenas, desta vez, de uma simples suspensão do tempo. Trata-se de
uma incerteza radical em relação às nossas condições de
existência e ao que será daqui para frente o normal das nossas
vidas. Pelo menos até que uma vacina esteja disponível – isto é,
daqui a um ano, um ano e meio, segundo as melhores previsões. Penso
que isso nos empurrará – talvez – para comportamentos mais
frugais. Somos mais facilmente levados a reconhecer a inutilidade de
uma parte do que consumimos – a partir da simples consciência de
que aquilo que deixamos de consumir, sem grande dificuldade, em
verdade não nos faz falta; e a partir daquilo que o próprio poder
público define como atividades “essenciais”, jogando todo o
resto para o registro do “não essencial”.
O
confinamento tem favorecido uma volta à cozinha. Na França, falta
farinha de trigo nos mercados porque as pessoas puseram-se a fazer
pão. E o governo se inquieta com a sorte das 50.000 padarias
artesanais desertadas pelos franceses em todo o país. Em São
Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro, já não se encontram galinhas
vivas para comprar porque os moradores do município (terceiro em
população, no Estado) resolveram produzir seus próprios ovos.
Maior frugalidade do consumo, produção doméstica de alimentos,
interesse crescente pela permacultura – tudo isso aponta para uma
redefinição de necessidades e uma reconfiguração dos
comportamentos.
Empurradas
pelos efeitos duradouros da pandemia, pelo prolongamento do
teletrabalho “sempre que possível”, inclusive em situações em
que os governos falam de desconfinamento, essa redefinição de
necessidades e essa reconfiguração dos comportamentos têm muita
chance de se estabilizar. Tanto mais que a crise econômica será
profunda e feroz. A ruptura com a “austeridade” (aquela imposta
aos pobres), mola-mestra das políticas neoliberais e de seus
impasses – que precederam a pandemia – foi imposta pelo virus
como condição minimamente necessária para a gestão da crise ; e
prosseguirá obrigatoriamente no momento da reconstrução e da busca
das saídas de crise. Que governo poderá esquecer, em nome de um
liberalismo agressivo, a importância dos sistemas públicos de
saúde? Que coerência e que sentido poderá ter, para os fiéis das
igrejas evangélicas, a ideia de prosperidade individual quando o
virus nos impõe a solidariedade coletiva?
Em
Como a Democracia Chega ao Fim (2018), David Runciman cita o
especialista em história antiga Walter Scheidel (2017) que afirma
que, na história humana, nenhuma sociedade conseguiu corrigir a
desigualdade crescente sem a intervenção da violência em grande
escala. “Ela não precisa assumir a forma de uma guerra, diz
Runciman. Uma revolução violenta, uma calamidade natural, uma
epidemia ou uma peste podem bastar. Não precisam dar origem às
formas de solidariedade social que surgem no caso das guerras de
sobrevivência das nações. Basta que a experiência coletiva da
violência seja suficientemente difundida para que todos sofram em
relativa igualdade de condições. Uma calamidade que aniquile as
propriedades e as vidas dos ricos no mesmo grau que afeta as dos mais
pobres pode contribuir para o advento de uma sociedade mais
igualitária. E também instalar um verdadeiro inferno na terra”…
O
futuro está em disputa. O virus não destruiu o capitalismo, mas
embaralhou as cartas. Ele está nos dando uma chance de ampliarmos
nossa compreensão e nossa definição do planeta que queremos.
Nos primeiros meses de 2020, o Brasil e o mundo foram acometidos
pela pandemia do novo coronavírus. A intrusão viral fez surgir impulsos
múltiplos: negação da ciência, criação de falsos dualismos entre
manutenção da vida e economia, vigilância corporativa e entre pares,
cuidado coletivo, discussão sobre papel do estado, solidariedade,
desejos de explicação e temor foram apenas alguns dos sentimentos,
discursos e práticas que emergiram, e seguem vivos, nesse período.
Habitar o acontecimento covid-19 foi a vontade que motivou a convocação da Zona do Contágio,
um laboratório situado, de prática coletiva de uma ciência do risco,
espaço de convergência de saberes e atores sociais diversos, que deseja
mobilizar uma inteligência coletiva alternativa à vigilância e ao
controle.
“Com o acontecimento COVID-19, o Laboratório Zona de Contágio
instaura-se como um dispositivo de pesquisa e intervenção na medida em
que a produção coletiva de conhecimento sobre as atuais possibilidades
de fabricação de uma vida não-fascista torna-se urgente. Se o
fortalecimento de governos autoritários já era uma ameaça à vida comum, a
intrusão viral potencializa a disseminação de uma cultura imunitária e
securitária de contornos fascistas no tecido da própria vida social”,
descreve a convocatória.
Coordenado por Henrique Parra (Unifesp) e Alana Moraes (doutoranda no Museu Nacional – UFRJ), pesquisadores do Pimentalab – Laboratório de Tecnologia, Política e Conhecimento – da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membros da Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits),
o Laboratório Zona de Contágio é uma iniciativa de confluências, um
híbrido do coletivo Tramadora, Projeto Laboratório do Comum do
Pimentalab/Unifesp e Lavits. O Laboratório recebe o apoio da
Lavits/Fundação Ford. A equipe da Zona de Contágio conta com a
colaboração da antropóloga Bru Pereira e da cientista social Jéssica
Paifer.
Através da internet, os pesquisadores convidaram a todos que se
sentissem interpelados pelas questões apresentadas a participar de um
percurso coletivo de investigação e de criação, formas de expressão
sobre o experienciado, fragmentos coletados do mundo, situações vividas,
sentidas, relatos, hesitações que ajudassem a estabelecer conversações
sobre a pandemia. Além disso, o laboratório promove um ciclo de leituras
e “Conversações Febris” online. O primeiro encontro, realizado no dia
23 de abril de 2020, discutiu o livro No tempo das catástrofes, da filósofa da ciência Isabelle Stengers.
Fernanda Bruno, pesquisadora do MediaLab.UFRJ
e membra da Lavits, entrevistou Henrique Parra e Alana Moraes sobre a
iniciativa. O diálogo está transcrito a seguir e integra o quarto
episódio da série Lavits_covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância.
Diálogos com Alana Moraes, Henrique Parra e Fernanda Bruno
Fernanda Bruno: meu primeiro convite é que vocês apresentem brevemente a trajetória do Laboratório do Comum ao Zona do Contágio, e a partir daí começamos a conversa.
Henrique Parra: ano passado estávamos desenvolvendo o projeto Laboratório do Comum: tecnopolíticas, corpos e territórios,
focado em um conjunto de questões relacionadas às disputas no
território do Campos Elíseos, região central na cidade de São Paulo.
Estávamos observando um conjunto de reconfigurações nas formas de
exercício do poder – seja através das tecnologias digitais, mas também
em processos relacionados à gentrificação, à militarização, à
securitização da vida, atravessadas pelas formas de vida neoliberais – e
como isso está em tensão com as dinâmicas de vida existentes no
território.
A investigação também se debruça sobre o próprio desenho do
Laboratório. Como fazer uma pesquisa situada, coletiva e aberta, a
partir de um convite, uma convocatória aberta para pessoas interpeladas
por problemas comuns?
Desenvolvemos esse projeto ao longo de seis meses e, no início de
2020, ele teria uma nova fase, quando fomos atravessados pelo covid-19, o
que nos obrigou a repensar o cronograma de ações, mas ao mesmo tempo a
observar as questões que já se manifestavam no percurso anterior do
trabalho e que, em razão do coronavírus, ganham contornos mais intensos.
Como fazer pesquisa em tempos de pandemia?
Alana Moraes: o Laboratório do Comum e agora a Zona de
Contágio confluem nessa aposta epistêmica de convocar e insistir em uma
certa inteligência coletiva. É sempre um experimento de uma prática
científica que se pretende ao mesmo tempo aberta e coletiva. Então ela é
sempre precária por um lado, porque do ponto de vista institucional, de
algumas exigências acadêmicas, nós nos colocamos de uma maneira um
pouco mais livre. Ao mesmo tempo, essa instabilidade precisa ser o tempo
todo repensada, cuidada, sustentada de algum modo, ela só funciona a
partir de um engajamento entre todos.
Uma outra convergência importante e que a gente quer seguir
experimentando é essa ideia de uma transdisciplinaridade. Nossas
práticas acadêmicas foram se conformando em lugares muito especializados
e muito disciplinarizados. Então, a partir de uma chamada aberta, que
tem a ver com o território, com a vida no território, havia essa ideia
de que nós pudéssemos experimentar uma ciência que fosse mesmo
contradisciplinar, no sentido de que as questões que ela enuncia não são
propriamente da sociologia, ou da antropologia, ou da arquitetura e do
urbanismo, mas que seja uma esquina contradisciplinar.
Fernanda Bruno: a minha primeira questão tem a ver com essa
condição, com esse convite que vocês fazem, que é o de habitar o limite,
habitar uma certa zona de incerteza. Eu acho que no Lab do Comum já
tinha esse movimento, que se fazia, como destacou a Alana, a partir de
uma contradisciplinaridade, mas que também implicava um deslocamento
territorial, com a ocupação de espaços da cidade em que tradicionalmente
a universidade não estaria presente, ou não estaria presente de um
certo modo, que é o modo com que vocês seguem desejando habitar.
Então, me parece que já havia o desejo de habitar essa fronteira
entre a universidade, a rua, a cidade e o mundo, e agora essa fronteira
se desloca, se encerra um pouco nesse ambiente da casa, que é essa
célula individual, familiar e burguesa, onde a maioria dos
pesquisadores que estão na universidade agora habita quase que
integralmente. Vocês reinventam um movimento para retomar a própria vida
acadêmica, em um certo sentido, e também, de novo, a rua, a cidade, o
mundo. A contradisciplinaridade envolve também uma explosão de
fronteiras, que já estava presente no Lab do Comum, entre o próprio
saber acadêmico e os saberes que estão sendo produzidos pelas diversas
formas de habitar e viver a cidade.
A pergunta, enfim, é se vocês já têm algum germe de entendimento –
não de respostas, de explicações – do que é esse novo desenho do
laboratório que habita o limite de um outro modo. Uma coisa que acho
interessante é essa ideia de um laboratório que vai se fazendo, que é ao
mesmo tempo o ambiente onde se faz a pesquisa, se produz o pensamento,
mas ele também é objeto, no sentido de que vocês também estão tentando
entender ou desenhar o laboratório no próprio movimento de fazer a
pesquisa. Acho que isso mais do que nunca está presente.
Alana Moraes: eu queria voltar para uma questão que você
colocou no começo, Fernanda, que eu acho que também serve muito para a
gente pensar esse lugar de implosão das fronteiras, ou pelo menos para
gente experimentar um pouco mais essa suspensão das fronteiras
disciplinares, ainda que seja uma prática de pesquisa super difícil, que
nos exija o tempo todo um certo sentido de risco, de assumir esse risco
da suspensão de algumas bordas.
Mas esse risco do instável e do precário vem nos empurrando, desde o
Laboratório do Comum, a encontrar questões muito simples. As questões
com as quais a gente se depara, a partir desse encontro entre múltiplos e
heterogêneos saberes e corpos, são simples no sentido de que conseguem
enunciar problemas muito complexos, mas de um lugar reconhecível por
qual todos nós passamos.
Por exemplo, no Laboratório do Comum, a gente estava muito
interessado, inicialmente, em pesquisar esse tema das novas tecnologias
de vigilância, que hoje são muito presentes no território. Mas a gente
acabou se dando conta de que existia uma camada para além de todo o
arranjo técnico dos poderes que era o fato de as pessoas, nossos
vizinhos, desejarem ter uma câmera de vigilância nas suas casas. O fato é
que existe um certo desejo compartilhado de segurança, que é muito
simples, que é muito reconhecível para além de todo novo ordenamento
sociotécnico, pode ser constatado por qualquer um e no entanto ele nos
exige um esforço brutal de pesquisa e reflexão.
Ele faz a gente se perguntar o que significa vizinhança, o que
significa fazer um bairro, a partir de outros sentidos de pertencimento
que não seja esse da segurança. Esse problema, no fundo, a gente demorou
muito tempo pra chegar nele, mas ele é muito simples, né? Ele pode ser
compartilhado por qualquer pessoa que a gente encontrava em uma praça
quando estávamos fazendo um almoço aberto e coletivo. Encontrar essas
questões, que no fundo são questões simples, nos dizem sobre esse
encadeamento que está entre a casa, a rua, as relações de confiança, as
novas tecnologias e as novas mediações sociotécnicas.
Um desafio para a Zona de Contágio tem a ver com essa investigação
sobre como criar um desenho de uma pesquisa contradisciplinar; um
desenho que permita com que diversos saberes, experiências se contaminem
no processo de pesquisa coletiva, mas também tem muito a ver com essa
ideia persistente de encontrar esses lugares que são muito simples, mas
que também são os lugares em que se cruzam a casa, como uma tecnologia
da domesticidade, e essas novas mediações tecnológicas, o corpo, o que
entendemos como saúde coletiva. Esse lugar do cruzamento, da
encruzilhada, é um lugar importante nesse desenho agora do Laboratório
Zona de Contágio.
Henrique Parra: a situação que estamos vivendo evidencia um
conjunto de elementos relacionados ao funcionamento das infraestruturas
da vida ordinária, da vida cotidiana, que estão absolutamente
invisibilizadas, naturalizadas na paisagem.
Um elemento importante no desenho do laboratório é como criamos
estratégias de visibilização das infraestruturas da vida comum e que,
por diversas razões, tornam-se invisíveis à nossa percepção. Quando
experienciamos o acontecimento covid-19, surge de forma mais aguda uma
percepção sobre diversos mecanismos que participam da produção de
diversas assimetrias sobre, por exemplo, os nossos deslocamentos, as
infraestruturas de comunicação (qual a qualidade do meu acesso à
internet), como ficam as relações dentro da sua casa, a divisão do
trabalho, como a gente se alimenta, como trabalhamos, como cuidamos das
crianças, e tudo muito mediado pelas tecnologias digitais.
Se por um lado o acontecimento covid-19 permite uma intensificação,
um avanço dos mecanismos de produção de várias assimetrias de classe,
gênero, raça e de novas formas de controle, ao mesmo tempo a gente
consegue perceber esses elementos que estão inscritos na paisagem.
Outra dimensão importante do desenho do laboratório é tomar o ser
humano como sensor, um sensor de percepção que é sempre singular diante
do está sendo vivido. Partimos da ideia de um corpo-sensor. O corpo que
percebe, que sente e que produz a possibilidade de uma nova evidência,
um novo elemento que pode abrir ou instalar uma controvérsia sobre a
realidade.
Algo que nos atravessa a todos é a nova sensação e percepção de risco
e vulnerabilidade. A vulnerabilidade não como elemento negativo, da
falta ou da exclusão, mas como esse elemento que produz nossa
interdependência, e ao mesmo tempo que instala a possibilidade de ação
política a partir dessa vulnerabilidade, porque ela é reveladora da
nossa condição de interdependência na produção do comum.
Uma contraste teórico/político importante no desenho desse
laboratório é investigar como o acontecimento covid-19 instala uma
disputa em torno dos sentidos dessa experiência: por um lado temos as
enunciações, práticas e tecnologias que produzem um tipo de sujeito que
se imagina autônomo, autossuficiente, eficiente no trabalho, que só tem
uma “gripezinha”, versus outras possibilidades que sustentam uma
política do Comum, nossa condição de seres interdependentes (inclusive
com entes não-humanos) e de um risco comum.
Claro que as situações de risco são diferentes para cada um
(sobretudo numa sociedade altamente desigual em termos raciais, de
classe e gênero), mas a possibilidade de experienciar essa
vulnerabilidade como uma condição política permite interrogar a ideia do
indivíduo soberano, de cidadão que estão imunizado das relações com seu
entorno, em que o outro é visto como uma ameaça.
Fernanda Bruno: me parece que esse corpo-sensor passa a ser um
indicador ainda mais essencial. A conexão entre as formas de vida e as
possibilidades de pensar ganha uma nova urgência. Me parece que há
também uma outra vulnerabilidade: a pandemia muito rapidamente disparou
uma eloquência explicativa que, de alguma maneira, silenciava ou
resolvia muito rápido essa experiência de poder habitar essa zona de
incerteza por um tempo mais alargado, de uma forma um pouco distinta,
que vocês chamaram na convocatória de dimensão experiencial, que me
parece estar super conectada com esse corpo-sensor.
Agora eu gostaria de fazer uma outra associação, ainda sobre a
questão do risco e a dimensão da vulnerabilidade. Eu super me afino com a
ideia de pensar o risco não na chave ou contorno da atitude individual,
de uma prudência individual, tampouco de uma lógica securitária mais
ampla e coletiva, que pensa na segurança no sentido de uma eliminação do
risco e do perigo. Vocês estão trabalhando com a ideia da
vulnerabilidade como interdependência que supõe, também, suportar uma
certa margem de perigo, uma certa margem de risco.
Em vários momentos vocês falam em uma ciência do risco. Eu vou ler um
trechinho aqui sobre o qual me paira uma certa dúvida. Vocês dizem:
“uma ciência de risco é sempre uma ciência que hesita, uma ciência de
retomada de uma inteligência coletiva, que funciona apesar e contra os
chamamentos da pátria ou da grande ciência e seus regimes de autoridade e
de verdade”.
A provocação que eu queria fazer tem a ver com a “grande ciência” e
com esse momento singular que estamos vivendo. Se por um lado há essa
proposta de uma ciência do risco, nós (professores universitários)
estamos fazendo isso desde as nossas casas. Não estou sugerindo que não
deveríamos estar em casa, mas há um risco bem concreto que está sendo
vivido por muitas pessoas e também por parte da “grande ciência”, por
profissionais de saúde e pesquisadores que estão na linha de frente. Eu
fico me perguntando se essa oposição, nesse momento, não rateia um pouco
ou se ela não merece ser pensada com um pouco mais de cuidado.
Henrique Parra: você tem razão, não só com relação à “grande
ciência”, mas também com relação ao Estado. A provocação que a gente faz
não é contra a ciência. Não há “a grande ciência”, mas disputas em
torno dos modos de produção de verdades, em que, aparentemente, o que
está em jogo seria qual a evidência ou o dado “mais verdadeiro”. É um
debate que também se relaciona às discussões sobre fake news e pós-verdade.
A situação é que, diante de um mundo que parece desmoronar, onde as
versões não podem mais ser verificadas, há um movimento de tentar
restabelecer uma forma de produção de evidências, inclusive com a volta
de um argumento digamos, científico, como se as coisas passassem apenas
por uma questão de produção de informações ou evidências de melhor
qualidade, quando o que está em jogo, parece-nos, é uma guerra de
mundos.
Não é suficiente a gente falar em termos de dados e evidências. É
claro que elas são fundamentais para as tomadas de decisão, para
organizar a nossa ação no mundo, mas há uma preocupação em deslocar o
debate para além do falso e do verdadeiro, sair dessa dicotomia, e dizer
“olha, o que seriam as formas de produção de cuidado para a manutenção
da vida, para além do que está disponível como forma-Estado? (no sentido
de uma biopolítica maior)”.
Nós estamos em uma situação de absoluta urgência, de perceber o que
temos disponível como formas de resposta a um problema de saúde
coletiva. Precisamos muito de toda a estrutura e de políticas
fortalecimento da saúde pública. Não é suficiente entrar em uma
investigação que está simplesmente preocupada em produzir mais evidência
da mesma forma, mas pensar também que a forma de produção dessa
informação está, de alguma maneira, situada e implicada na produção de
mundos, de formas de vida. Do contrário, não somos capazes de comunicar
outra experiência de vida, de dizer ao outro como ele participa da
produção da saúde coletiva.
Quando pensamos no debate sobre a produção de conhecimento
científico, quais são as formas de produção de conhecimento científico,
diante dessa situação, que interrogam as formas hegemônicas de
conhecimento tecnocientífico orientados por normatividades econômicas e
políticas de caráter privatista, corporativo e mercadológico?
Observamos, nesse momento, o fortalecimento de formas de produção
colaborativa/aberta que confrontam inúmeras limitações relacionadas ao
regime proprietário-autoral, organizado em torno de uma concepção do
conhecimento como propriedade intelectual e mercadoria.
Alana Moraes: essa convocatória parte, de fato, de um lugar
bem irrigado de controvérsia. Por mais ataque e ameaças que a prática
científica esteja recebendo agora, e por mais que tenhamos que defender
essas práticas, não queremos abrir mão de olhar criticamente para alguns
enunciados de uma ciência que sempre se sustentou a partir de um
privilégio epistemológico, a partir dessa ideia de que o enunciado de
autoridade do fazer científico bastava para que os fatos científicos se
convertessem em verdade.
A gente está colocando um pouco em suspensão esse pressuposto para
tentar experimentar uma ideia aberta e engajada de fazer ciência. Então
não queremos abrir mão de fazer ciência, de pensar junto, de pensar uma
prática investigativa que produza conhecimento objetivo sobre a
realidade. Não tem a ver com uma luta da experiência contra a teoria.
Muito pelo contrário, a gente acha que esses dois lugares não são
opostos e não devem ser opostos. Queremos experimentar o que seria essa
prática científica que se sustente a partir das relações de implicação
que ela tem com o mundo, uma ciência que está no mundo.
Eu tenho dado um exemplo que tem a ver com o embate sobre isolamento
horizontal ou vertical. Muito do pensamento progressista tem respondido a
esse embate afirmando que o isolamento horizontal deve ser feito porque
ele é um fato científico e o isolamento vertical não é um fato
científico. No entanto, quando a gente defende o isolamento horizontal,
nós estamos defendendo porque ele pressupõe uma certa concepção de vida a
ser defendida, porque nos importa viver em companhia no mundo em que a
gente habita, porque ele contém uma ideia sobre o que é saúde coletiva.
Obviamente que ele é um fato científico, mas ele é um fato científico
que mais pode ter efetividade a partir do momento em que ele se mostra
em sua construção ética, a partir dos seus lugares de implicação.
Fernanda Bruno: quando vocês estavam falando, eu lembrei
daquele texto da Donna Haraway, que é uma inspiração para todos nós, dos
saberes localizados. Agora está muito ativa essa ideia de um saber que
pode responder pelo mundo que cria. É um pouco nesse sentido, me parece,
que você está falando, Alana. Para além da verdade científica, que
mundo a gente cria quando a gente propõe um determinado modelo de
controle epidemiológico?
Eu queria voltar um pouco no tema da vigilância e do controle, que
também aparece na chamada de vocês e está presente desde o Laboratório
do Comum. Estamos vendo como uma série de tecnologias de biovigilância
começam a entrar em obra. A minha pergunta é menos sobre elas e mais
sobre ao que você estão atentos nesse campo. Quais são as perguntas que
estão se fazendo? No que vocês estão prestando atenção nesse espectro
das tecnologias de vigilância, dentro do acontecimento covid-19?.
Henrique Parra: há alguns temas em que estou mais envolvido.
Um deles é sobre as práticas de educação tecnicamente mediada. Há uma
aceleração na adoção, por parte de secretarias estaduais da educação e
universidades (públicas e privadas), e na incorporação de tecnologias
digitais para a educação à distância. Elas são permeadas por inúmeros
problemas que estão relacionados à vigilância, à economia informacional,
a precarização do trabalho docente, etc. Como essas questões estão
presentes na Zona de Contágio, a partir da experiência de cada pessoa
com o conhecimento, a informação e a educação nessa situação de
isolamento?
Outro tema é sobre a relação das tecnologias de comunicação digital
com as formas de rastreabilidade, monitoramento, quantificação e o que
emerge como possibilidade de Big Data e governamentalidade
algorítmica. Há um enorme campo de perguntas que ganham novos contornos
porque, de certa medida, há um desejo, amparado na urgência sanitária,
de fazer uso de tudo que estiver disponível. Outra entrada é no universo
do trabalho: como as tecnologias do trabalho remoto introduzem novas
possibilidades de vigilância e controle sobre as atividades do
trabalhador?
Alana Moraes: retornando aos problemas das plataformas e das
mediações tecnológicas no que tem se chamado de “educação à distância”, o
que elas inserem de mais importante são novos sistemas de metrificação e
controle. Agora, para dar aula, você liga um cronômetro, muitas vezes
você grava a sua aula para deixar para os alunos que não puderem entrar online
no momento em que você está dando a aula. Você perde uma relação muito
importante no que diz respeito ao ensino e aprendizagem, que é relação
de confiança entre professor e aluno dentro daquele espaço da sala de
aula. As plataformas de EaD estão sendo inseridas como se não houvesse
outras formas possíveis, “temos que nos acostumar, daqui pra frente vai
ser assim”. A partir do momento em que você grava sua aula e ela circula
por lugares que você não sabe muito bem, esse pacto, essa confiança,
que tem a ver com essa experiência da sala de aula, ela se perde também.
Vemos ainda como o capitalismo da biovigilância é também o do
biodesempenho e como ele atua produzindo uma certa culpa pelo tempo fora
do trabalho. A gente está em casa, mas ao mesmo tempo em que está
culpado por não estar trabalhando do jeito que a gente deveria
trabalhar. Precisamos dar provas cotidianas de que não estamos
“aproveitando” o tempo livre.
Eu acho que tem um último aspecto que merece uma reflexão nossa, que é
pensar como habitar em companhia esse problema, que também é o outro
lado da moeda. Existe uma recusa por parte das pessoas que estão nesse
campo progressista, de modo geral, em debater o problema da tecnologia e
os seus usos. Uma recusa da esquerda de entrar nesse debate, como se
toda tecnologia fosse uma tecnologia predadora, que fosse sempre piorar
as experiências de aprendizagem ou intensificar a subjetivação
neoliberal. Outras vezes a esquerda se interessa por esse debate mas
sempre na chave da “resistência” e contenção, o que é importante, mas
nos deixa sempre muitas casas atrás.
Na verdade, acho que há toda uma questão que é como a gente pensa,
primeiro, as tecnologias para além das tecnologias digitais, como é que a
gente recupera as tecnologias menores (ou tecnologias de desaceleração,
tecnologias de encontro, tecnologias de pertença), pensar como a gente
pode produzir outros tipos de associação mais potentes das nossas
relações, das nossas experiências de aprendizagem e pesquisa, dos nossos
desejos de revolta se associando também às formas tecnológicas. Superar
essa recusa também vai ser importante para a gente construir caminhos
mais interessantes, disputar os rumos, fazer funcionar nossa
inteligência coletiva.
Henrique Parra: para complementar, um outro ponto que talvez
seja mais transversal nas discussões sobre vigilância e que ganha relevo
na experiência da Zona de Contágio, é poder pensar e investigar de que
maneira essa situação propicia um tipo de experiência tecnomediada em
que ocorre a produção de um modo de subjetivação, onde uma certa
experiência cultural de vigilância passa a participar de diferentes
instâncias da nossa vida.
Basta pensarmos no modo, por exemplo, com que passamos a olhar para o
outro como uma possível ameaça de contágio. Quais são os mecanismos que
passo a adotar para me proteger de um possível risco de contágio? Como
dentro da casa, na família, passamos a adotar procedimentos e protocolos
que podem gerar mais segurança?
Há uma certa ideia de segurança, de reações imunitárias que colocam
em movimento uma cultura de vigilância, que pode ser economicamente
vantajosa e politicamente eficiente para uma certa produção de mundo
(neoliberal, racista, machista, antropocêntrico, etc). Quando essas duas
dimensões se entrelaçam através de uma mediação tecnológica que se
apresenta como a solução neutra, mais “eficiente” e mais desejada, esse
dispositivo ganha muita força.
Preocupa a todos nós a maneira como a experiência de autoconfinamento
e do isolamento social nos prepara e educa para uma vida sob estado de
sítio. Acho que essa é uma condição muito transversal. Como, diante
disso, estamos a criar e experimentar outras formas de vida que,
orientadas por princípios de solidariedade e emancipação, criem linhas
de fuga da alimentação deste regime da dominação?
É muito interessante ver nas redes de consumo de alimentos, por
exemplo, como vão aparecendo outras iniciativas que criam novas cadeias
de distribuição para a produção da agricultura familiar, da produção do
MST. Como é possível fazer isso em outras áreas de nossas vidas,
utilizando tecnologias que não potencializam as formas de controle sobre
os usuários?
Fernanda Bruno: vou passar para a última questão, que tem a
ver com o coletivo, com o “nós”, o habitar junto esse acontecimento,
essa situação limite, e que é, de novo, um tema recorrente no trabalho
de vocês dois, e se torna absolutamente urgente em uma situação de
isolamento, ao mesmo tempo em que há grupos que estão extremamente
vulneráveis e onde as possibilidades de ação comum estão bastante
ameaçadas pelo fantasma do contágio e pelas medidas efetivas da
contenção da pandemia.
Hoje fiz uma contribuição no site da Zona de Contágio e vi que já há
um material bastante rico. Tem música, poesia, relato, fotografias, e
uma série de expressões da experiência desse tempo. E a conversa sobre o
livro da Isabelle Stengers, que rolou na semana passada, sobre o livro No Tempo das Catástrofes,
foi extremamente diversa. O fluxo da conversação febril tocou em muitos
temas: educação, China, autonomia, sabão de coco, moradia de albergues,
coletivos artísticos na Bolívia, receitas, acupuntura, tecnologias
sociais, poesia, etc.
Que primeira impressão vocês têm desses dois movimentos: a chamada de
envio de materiais em torno de experiência da pandemia e o grupo de
estudos? Gostaria de ouvir vocês sobre o primeiro contorno que esse
“nós” ou esse coletivo ganhou.
Alana Moraes: a nossa pergunta inicial, que tem sido uma
pergunta que acompanha todo o processo da investigação no Laboratório do
Comum e também agora na Zona de Contágio, é como constituir um grupo de
pesquisa. Como é que a gente faz esse “nós” que está pensando junto e
que está pesquisando junto. Esse é um tema que segue com a gente durante
todo o percurso. Obviamente que ele tem um risco, que pode ser a
própria dissolução do grupo. O risco justamente é esse, de ser tão
heterogêneo, tão particular e tão singular, que se torna incapaz de
construir um lugar mais estabilizado.
Pensando um pouco a partir desse desafio sobre que tipo de desenho de
pesquisa seria possível, a gente propôs um primeiro movimento, que
talvez seja um movimento de abertura total que começa assumindo o fato
de que toda produção de pensamento é também uma produção de experiência a
partir de corpos sensores. Queremos saber de que forma as pessoas estão
sendo afetadas por esse acontecimento e como elas elaboraram formas de
narrar esse acontecimento, seja em um forma mais poética, uma imagem, um
texto, um áudio…a gente está experimentando essa abertura completa.
A gente queria entender de onde as pessoas estavam falando e como
elas queriam falar, ou seja, talvez tentar experimentar esse parlamento
de corpos-sensores, que também é uma abertura radical. A partir de
agora, nos próximos movimentos do laboratório, o que a gente vai tentar é
justamente produzir certos contornos, algumas bordas, vamos dizer
assim, que são zonas de confluência.
Essas zonas de confluência vão tentar desenvolver temas que estão
dentro dessa pesquisa e que tem a ver com a biovigilância, com a ideia
do desempenho, com esse cruzamento entre tecnologias da domesticidade e
as tecnologias digitais em suas inúmeras formas de mediação, e tem a ver
com esse pano de fundo maior que é pensar o que significa isso de
biopolítica e de biopoder na situação como essa que a gente está
atravessando agora.
Henrique Parra: acho há um diálogo entre a experiência do
site, esse grupo de estudos e algumas iniciativas que foram lançadas de
maneira relativamente independente. É legal ver como a Zona de Contágio
vai acontecendo. Acho que a gente tinha algumas ações organizadas,
colocamos elas “na rua”, começamos a praticá-las e começamos a
visualizar como elas estão acontecendo e como elas podem criar linhas e
tramas entre elas.
No próprio site Zona de Contágio, o primeiro movimento que a gente
fez foi passar a publicar coisas que nos interessavam, ler e
compartilhar com outras pessoas, textos que já estavam em circulação,
textos que servem de inspiração e que, de alguma maneira, ajudam a
nortear um pouco a forma como a gente está querendo habitar esse
problema.
A gente tinha também uma vontade, que estava organizada para esse
semestre, que era fazer um ciclo de estudos, que estávamos chamando de
ciclo de estudos insurgentes. Com a Zona de Contágio virou um ciclo de
conversações febris, que a princípio poderia correr paralelo ao processo
de investigação, mas a medida que as coisas acontecem, nós repensamos. A
gente lança um texto para conversar, mas a coisa que acontece a partir
desse texto traz uma outra diversidade de debates, o que faz com que a
gente tenha um inflexão para ver como vai alinhando e tramando essas
coisas. É muito a partir do retorno que a gente recebe, que nós
compreendemos melhor a maneira como a gente está elaborando e e
comunicando um problema de pesquisa. O fato de que a gente tenha
recebido muitas respostas de pessoas que fizeram uma produção poética é
um dado importante.
A proposta de que um Laboratório do Comum deve ser permeada por um
conjunto heterogêneo de perspectivas é outro elemento importante. Claro
que quando a gente divulga algo pela internet, isso já exclui um monte
de gente. Claro que a maneira como escrevemos um texto faz com que
algumas pessoas se sintam mais interpeladas que outras. Ainda assim,
parece importante produzir um problema que possa ser transversal e
experimentar criar um espaço em que pessoas de diferentes perspectivas
possam estar juntas.
A partir daí surge um outro problema que é como a gente constitui um
coletivo de investigação e como que a gente vai criando protocolos,
infraestruturas, acordos, perguntas, que podem dar sustentação a uma
prática coletiva. Há uma preocupação na criação de um laboratório do
Comum, que é como que a gente desenvolve essas tecnologias de
pertencimento em torno de uma mesma prática, uma saber-fazer habitar.
Saber qual é o conjunto de perguntas e implicações que atravessam
essas diferentes histórias e interesses dessas pessoas, mas que podem,
gradualmente, ir ganhando um contorno que também nos interessa
(“interesse” como aquilo que diz respeito a “estar entre”. Então não é
que a gente não tenha perguntas que organizam isso. Temos e, de alguma
forma, elas participam da criação dessa borda.
Uma preocupação nossa, desde o início, em fazer uma chamada de
pesquisa que está acontecendo nessasituação de pandemia, em que as
pessoas estão em isolamento e parte dessa interação vai acontecer a
partir de uma mediação tecnológica, é como a gente evita uma certa
prática de pesquisa tecnicamente mediada, que é de ordem extrativista,
em que a gente elabora a pergunta, define os problemas e quer saber como
as pessoas estão dialogando com essa pergunta que a gente tem.
No fundo, a gente também está atrás da criação de outras perguntas,
outros problemas para olhar para essa situação. Evitar também uma
prática de uma pesquisa que desconhece ou não se relaciona com o
contexto dessa pessoa que está respondendo também nos parece importante.
Por isso que um ponto de partida na arquitetura do laboratório e na
ideia do corpo-sensor, é como criar uma infraestrutura de pertencimento.
Isso se tornar uma parte do problema da pesquisa, pensar como a gente
vai dando sustentação coletiva a uma prática de investigação. A ideia de
um Laboratório do Comum funda uma certa comunidade, não no sentido do
unitário e homogêneo mas no sentido de um coletivo de afetados por
aquelas mesmas questões.
Fernanda Bruno: essa questão do pertencimento me parece
essencial. Hoje, dando uma olhada nas contribuições enviadas ao site, vi
algo comum: me pareceu que quase todo mundo desejou expressar algo que
era da ordem de uma interrupção, um intervalo, uma brecha, algo que
estava fora das respostas imediatas que esse momento nos exige, seja de
trabalho, seja de pensamento articulado ou de segurança.
Me pareceu que estavam todos tentando expressar momentos de respiro,
de interrupção de um certo automatismo cotidiano ou de fuga dessa culpa
de não estar trabalhando, não estar produzindo. Capacidade de criação
mesmo. Tudo que apareceu ali, apareceu um pouco como brecha, respiros,
invenções dentro desse contexto que é muito asfixiante. Essa foi a minha
sensação e também o meu desejo. Não quis enviar nada que fosse, por
exemplo, uma reflexão intelectual que pudesse ser confundida com
trabalho, no sentido mais convencional, mas sim algo que escapasse das
demandas que estão colocadas, as demandas dos nossos aparatos de
trabalho, de saúde, de poder, de vigilância. Enfim, a impressão foi de
um tom recorrente, apesar da heterogeneidade dos materiais.
Henrique Parra: voltando um pouco nesse comentário que você
fez, acho que esse é um desafio dessa proposta de laboratório: como a
gente vai modulando e incorporando novos elementos. Uma coisa que chamou
atenção no perfil das pessoas que entraram em contato conosco é que
quase todas estão desenvolvendo, de alguma forma, ações de pesquisa,
seja de maneira informal ou não, mas elas estão interessadas, estão
praticando uma forma de reflexão sobre o que está sendo vivido.
Também surge para nós a pergunta sobre de que maneira a Zona de
Contágio pode ser tanto uma investigação coletiva, a partir de um
conjunto de questões que a gente constitui como borda desse percurso
mais coletivo de investigação, mas também uma zona de confluência entre
essas diferentes iniciativas de pesquisa (informal ou formal) que as
pessoas estão fazendo.
Estou imaginando como é que a Zona de Contágio pode ser as duas
coisas: ela cria a possibilidade de realizarmos o percurso coletivo de
investigação, a partir de perguntas que estão balizando e da
“arquitetura” da forma laboratório, mas ao mesmo tempo ela pode ser
atravessada pelas novas perguntas e investigações que as pessoas estão
criando e que podem compartilhar, fazendo da Zona de Contágio uma caixa
de reverberação.
Fernanda Bruno: esse atravessamento me pareceu acontecer mais
vigorosamente na conversa em torno do texto da Isabelle Stengers do que
na chamada. Na chamada, talvez tenha que haver uma segunda onda, novos
movimentos para que essa dimensão da pesquisa apareça mais. O que senti,
muito de fora, foi um desejo de fuga de um certo lugar da pesquisa. Não
da pesquisa em si, mas de um certo lugar de pesquisa.
As pessoas estão querendo habitar um outro lugar nesse momento e
alimentar outros fluxos de pensamento, de expressão, de narrativa etc. É
fundamental que esse cruzamento com a pesquisa, para usar a imagem da
encruzilhada que vocês utilizam também, seja feito. Vai ser muito rico
quando isso acontecer e vai acontecer, com certeza.
Alana Moraes: eu queria agradecer pela conversa. Achei muito
importante sua observação final desse primeiro material que a gente
recebeu na Zona de Contágio. Ela conflui muito para uma coisa que nós
estamos pensando juntos, que talvez seja justamente sobe pensar essas
tecnologias de frenagem ou como a gente produz infraestruturas que
possam sustentar coletivamente esses momentos de frenagem, esses
momentos de respiro.
Nos últimos anos eu tenho estudado com os sem-teto as ocupações de
terreno também como tecnopolíticas de habitar a exceção. Uma coisa que
aparece muito, nessa experiência, é como as pessoas chegam nos
acampamentos, nas periferias aqui de São Paulo, a partir desse relato de
cansaço e de esgotamento. As pessoas falam muito que a ocupação é um
lugar de descanso, um descanso da casa, da domesticidade, mas um lugar
de descanso em relação ao trabalho, às virações, à essa ideia de que
você tem que estar sempre trabalhando ou procurando um trabalho. Ela se
torna potente justamente porque ela se constitui como uma tecnologia de
frenagem, de respirar junto e de pensar em companhia.
Série Lavits_Covid19
A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.
Seguindo nosso percurso nessa trama entre investigações e conversações, abrimos mais um espaço de troca para habitarmos em companhia os limites destes tempos.
A segunda Conversação Febril se dará no dia 7 de maio, 19h. Pelos links:
Nessa conversa, queremos olhar para a ambiguidade presente no acontecimento Covid-19 entre a suspensão do tempo, um respiro (a paragem brusca da qual falou Latour aqui: https://bit.ly/2SltcU4) e, por outro lado, uma experiência de tempo acelerado, asfixia, produzida pelos novos dispositivos de produtividade, desempenho, mobilização permanente na reacomodação do capitalismo.
As fronteiras entre vida, prazer, trabalho encontram-se esfumaçadas. O tempo da domesticidade, aliás, é caracterizado pelo embaralhamento dessas fronteiras; os novos dispositivos do teletrabalho atuam também diante da nossa culpa civilizacional de experimentar o tempo livre; precisamos nos mostrar produtivos, disponíveis, enquanto as tecnologias digitais ampliam a mensurabilidade, o controle e a mobilização total de nossas vidas. A oferta ampla de entretenimento virtual parece querer nos salvar do desconforto do tempo suspenso e da catástrofe que estamos vivendo: “Tenemos que escoger si queremos seguir siendo un terminal del algoritmo de la vida que organiza el mundo o bien un interruptor de la pesadilla que nos envuelve”. O que significa “parar”? O que significa não poder parar, nunca? ” los lentos son perdedores!”.
Como pensar a rivalidade entre desempenho e experiência, conexão e relação, sacrifícios individuais e o prazer do encontro como imagem da luta de classes no capitalismo contemporâneo?
Sugerimos também a companhia dos dois textos para essa Conversação Febril (a seguir).
Identificamos basicamente dois tipos de estratégias preventivas no enfrentamento dessa epidemia: a que chamamos de “testagem agressiva e sustentada” e aquela baseada na adoção de diferentes graus de “distanciamento social”. A primeira, uma estratégia focada nos indivíduos de “alto risco” – aqui entendido como “alto risco de transmissão”, já que o que está em foco é a prevenção da propagação epidêmica. Nessa estratégia, são esses indivíduos que precisam ser detectados, isolados, monitorados, sendo uma estratégia de menor impacto na mobilidade geral da população. A segunda é uma estratégia propriamente populacional, que busca reduzir a mobilidade geral da população, podendo ser aplicada em diferentes intensidades.
A
primeira foi implementada em sua versão mais plena na Coréia do
Sul, com os resultados que conhecemos. Lembrando que o resultado
centralmente esperado dessas estratégias preventivas é o chamado
“achatamento da curva de contágio”, a desaceleração da
propagação epidêmica, com o intuito de preservar a capacidade de
resposta dos sistemas de cuidado, reduzindo a letalidade do agravo e
ganhando tempo para o desenvolvimento de vacina ou terapia. A Coréia
do Sul é o país mais bem sucedido no uso dessa estratégia até
aqui e, talvez, não seja superado. Além de possuir um sistema de
saúde público e gratuito, o mais bem avaliado entre os países
membros da OCDE, já dispunha de toda a infraestrutura logística
necessária para a implementação dessa estratégia quando a
epidemia eclodiu. Uma infraestrutura que integra os dispositivos
tradicionais da vigilância epidemiológica a dispositivos de
vigilância digital capazes de monitorar os movimentos e
comportamentos individuais de cada cidadão. Essa infraestrutura
representa uma articulação sem precedentes entre biotecnologias
(como RT-PCR, sensores de temperatura corporal em pontos de fluxo
etc.) e ferramentas de vigilância algorítmica. Possivelmente, a
mais acabada infraestrutura de um biopoder jamais construída.
A
segunda estratégia (distanciamento social) foi fortemente adotada
pela China. Importante destacar que, segundo o relatório conjunto
OMS-China
(https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/who-china-joint-mission-on-covid-19-final-report.pdf),
a resposta chinesa se deu em 3 etapas: inicialmente, isolando a
província de Hubei (onde se encontra Wuhan) para impedir a
exportação de casos; numa segunda etapa, promovendo o
distanciamento social intensivo para desacelerar a propagação
epidêmica; e, por fim, com uma estratégia para reduzir os
“clusters” de casos, em tudo semelhante à estratégia coreana,
com ampla utilização de “big data” e inteligência artificial.
Contudo, ainda que na etapa atual a estratégia principal também
seja a testagem agressiva e sustentada com controle cerrado dos
positivos e contactantes, a China chegou a zerar os casos novos por
alguns dias, com medidas radicais de distanciamento social em níveis
de “supressão”, recuperando sua capacidade de controle da
epidemia por outros métodos. Um resultado que também parece difícil
de ser igualado por outro país. Como no caso da Coréia do Sul, há
condições “facilitadoras” da efetividade da resposta chinesa:
um Estado autoritário que encontra poucos limites ao exercício do
poder soberano; uma sociedade civil que, do ponto de vista ocidental,
inexiste ou é muito fraca e subordinada ao Estado; um povo para quem
a disciplina e obediência é um traço cultural milenar, em que
impera o coletivismo e não está presente a noção ocidental de
vida privada.
No
Brasil, como em quase todo mundo, o que temos visto no enfrentamento
da epidemia são diferentes combinações dessas duas estratégias,
com variações na intensidade de cada uma delas. Mesmo olhando para
um único continente, como a Europa, há uma grande variedade de
respostas sendo produzidas por cada nação. O que nos leva a fazer
uma primeira grande observação sobre a resposta mundial: a despeito
de estarmos diante de uma pandemia, de uma ameaça colocada em escala
global, assistimos a um recrudescimento das soberanias nacionais, que
se fecham dentro de suas fronteiras e passam a produzir respostas
exclusivas para suas populações, com baixíssima solidariedade
internacional, a ponto de haver uma corrida mundial para aquisição
de insumos em relativa escassez no mercado global, como ventiladores,
máscaras e testes (valendo atos de pirataria!), num cenário em que,
obviamente, as nações mais ricas levarão larga vantagem. Não há
um plano global de enfrentamento da pandemia. Desde que a emergência
foi decretada, o G7 reuniu-se uma única vez, por videoconferência,
e nada deliberou. As desigualdades se acentuam, em todos os níveis,
na resposta à pandemia de coronavírus…
Assim,
o que percebemos, olhando para o mundo, é um mosaico de respostas,
em que sempre se identifica algum grau de distanciamento social (do
mais leve ao “lockdown”) combinado às estratégias de testagem
(das mais restritas, fazendo apenas algumas confirmações
diagnósticas, sem busca ativa e outras medidas de vigilância
epidemiológica, às mais agressivas e sustentadas).
Avaliando
os relatórios de mobilidade para várias regiões do mundo que vêm
sendo disponibilizados pela Google
(https://www.google.com/covid19/mobility/),
observamos países, como a Coréia do Sul, em que a redução da
mobilidade é mínima e que, nos últimos dias, vem mesmo aumentando
em determinados espaços, como parques, praias e jardins públicos.
Embora a Google não tenha dados de mobilidade da China, sabemos que
as medidas de distanciamento social também estão sendo relaxadas
neste país
(https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/07/acaba-o-confinamento-em-wuhan-primeiro-epicentro-da-covid-19.ghtml).
Tanto na Coréia do Sul, quanto na China, a mobilidade social vem
sendo reconquistada, na medida em que os dispositivos de vigilância
digital, que permitem um monitoramento e controle individualizado de
cada cidadão, vão sendo implantados. Observamos também que alguns
países que vêm apostando na realização de testagem agressiva e
sustentada, como a Alemanha e a Suíça, têm feito um distanciamento
social mais leve. Outros países, como a Argentina e Portugal, mesmo
também investindo na testagem, estão adotando um distanciamento
social bastante intenso, em níveis de “supressão”. Cabe ainda
mencionar, neste panorama mundial, os países que têm feito o
distanciamento social máximo, como a Itália e a Espanha. Nesses
países, os indicadores de queda da mobilidade em espaços públicos,
comércios e locais de trabalho são impressionantes! E a impressão
é de que quedas tão drásticas na mobilidade só são atingidas em
países que não conseguiram achatar a curva de contágio e tiveram
seus sistemas de saúde gravemente colapsados. Ainda que o
distanciamento social adotado em qualquer etapa anterior à
constituição da chamada “imunidade de rebanho” possa ter
efeitos de desaceleração do contágio e evitar ainda mais
sobrecargas ao sistema, a adesão massiva da população desses
países a esse comportamento parece menos representar uma estratégia
preventiva e mais o resultado do terror diante do caos sanitário
instalado, secundado, evidentemente, por medidas de repressão da
circulação de pessoas, características de um “estado de
exceção”. É menos uma
medida para tentar minimizar os efeitos da epidemia e mais um efeito
da derrota para a epidemia. Como
diria Camus, representa o triunfo da Peste sobre a Cidade.
Avaliando
os dados de testagem (que se alteram rapidamente:
https://www.worldometers.info/coronavirus/),
descobrimos que a Coréia do Sul, referência nessa estratégia,
realizou até aqui (16/04) cerca de 10 mil testes/milhão de
habitantes. Ou seja, já realizou uns 500 mil testes, conseguindo
testar aproximadamente 1% da sua população. A Alemanha e a Suíça
estão em patamares de testagem mais elevados, em torno de 20 mil
testes/milhão de habitantes. Portugal, além do distanciamento
social intenso, apresenta um índice de testagem na mesma faixa (18
mil). Entre os 15 países com o maior número de casos no mundo, os
índices de testagem variam de 3,5 a 22 mil/milhão de habitantes,
excetuando o Brasil (que se encontra na 11ª posição no número
total de casos) e realizou apenas 296 testes/milhão de habitantes.
Excessivamente atrás, não apenas das nações mais ricas do
planeta, mas também do Irã (3.562 testes/milhão de habitantes) e
da Turquia (5.664 testes/milhão de habitantes). Não nos parece, de
modo algum, que o baixíssimo número de testes realizados no Brasil
possa se dever a qualquer limitação de ordem econômica. A ausência
de uma estratégia consistente de testagem, combinada a um
distanciamento social pouco intenso, vacilante, errático e que,
ainda por cima, vem sendo relaxado nas últimas semanas, não tem
como não colocar nosso país entre aqueles de pior prognóstico. A
despeito de estarmos adentrando uma violenta tempestade em “voo
cego”, sem dados mínimos sobre as reais taxas de incidência neste
momento, temos todos os elementos para saber que a curva de casos
novos está em franca ascensão. Relaxar as medidas de distanciamento
social, nesse momento, e continuar negligenciando a testagem,
certamente acelerará a curva de contágio e a sua velocidade de
disseminação entre as comunidades mais pobres, ainda imensamente
despreparadas para o impacto. Além do colapso do sistema de saúde,
é de se temer muitos outros colapsos no Brasil: dos serviços
funerários ao colapso de qualquer coisa que se assemelhe a um
“contrato social”…
No
artigo, procuramos
fundar nossas análises nas melhores informações técnicas e
científicas disponíveis, mas deixando claro que as grandes decisões
que temos que tomar são políticas.
De forma bem simples, identificamos uma grande bifurcação política
nas possíveis respostas do Estado diante da crise: as respostas se
darão garantindo e expandindo direitos ou se darão reduzindo e
suprimindo direitos? Se darão no sentido do reconhecimento do
direito universal à vida, acionando mecanismos de proteção social
para garanti-lo com equidade, fomentando o espírito de solidariedade
e uma forte cooperação social (o que cria e expande novos direitos,
como, por exemplo, quando se suspendem patentes e propriedades
intelectuais, quando se retiram pay-walls
e “catracas”, evidenciando a existência de toda uma série de
bens comuns – commons
– que escaparam do controle público e foram submetidos ao controle
e à exploração por grupos privados), ou as respostas se darão
pela repetição da histórica omissão em relação aos mais
vulneráveis, adotando linhas de ação que levam muito pouco em
consideração a real desigualdade do “direito à vida”, o que
pode, diante de uma situação extrema de ameaça à vida, levar a
reações desesperadas e à convulsão social, abrindo terreno para a
supressão de mais direitos e a imposição de mais medidas “de
exceção”? Mesmo dispondo de todo aparato necessário para
produzir o primeiro tipo de resposta (o que inclui esse gigantesco
trunfo, que poucos países possuem, que é o SUS), é muito forte a
impressão de que estamos cumprindo o enredo do segundo tipo de
resposta.
Faço
uma rápida reflexão partindo da questão do distanciamento social.
É uma questão muito delicada, não apenas de um ponto de vista
econômico ou psicológico, mas, antes de tudo, de um ponto de vista
antropológico. O que pode significar para um coletivo humano
auto-impor-se um distanciamento social? Não é uma questão simples:
envolve um enorme paradoxo! O distanciamento social ameaça
objetivamente nossa existência social e não há outra existência
para nós, humanos. Desse ponto de vista, a pergunta que se coloca é:
em que condições nós poderíamos concordar que o melhor, para
todos, seria mantermos um distanciamento social temporário? Entendo
que seja necessário preencher alguns requisitos cognitivos e
políticos para que um coletivo humano possa deliberar,
coletivamente, que seus indivíduos se mantenham distanciados um dos
outros por um certo tempo. É preciso que haja nesse coletivo, no
mínimo, o domínio compartilhado de uma noção relativamente
abstrata que é a de “população”, de que fazemos parte de uma
população de humanos em convívio com incontáveis outras
populações de seres vivos. De que fazemos parte de uma dimensão
comum da vida que nos ultrapassa, que possui dinâmicas próprias,
sobre as quais é possível intervir. E nesse último caso, quando
deliberamos coletivamente intervir no nível da população, tal como
se dá quando decidimos adotar medidas de distanciamento social, não
estamos mais diante apenas de uma questão antropológica, mas
política.
Para
compreender melhor esse ponto, contribuem muito as análises de
Foucault sobre os mecanismos de poder. Em especial, quando trata do
biopoder, do nascimento de uma biopolítica, de uma nova
racionalidade e tecnologia de governo que investe a vida não apenas
enquanto corpo individual (como já faziam os mecanismos
disciplinares), mas enquanto “corpo coletivo”, enquanto
população, enquanto espécie. O biopoder é essa técnica de poder
que destaca um plano dos fenômenos populacionais, sobre o qual se
irá deliberadamente intervir, uma vez que são estes os fenômenos
que se pretende regular, controlar, conduzir, governar, com o
objetivo de mantê-los dentro de um “intervalo de confiança”,
dentro de uma faixa de variação considerada segura. Foucault nos
mostra que é o Estado que se constituiu historicamente como grande
aparato capaz de governar fenômenos de população, seja pelo
exercício do poder soberano incrementado por mecanismos de poder
disciplinar (representados pelos aparatos jurídicos e policiais),
seja através dos mecanismos biopolíticos de indução da conduta
humana e do comportamento social (representados pelos múltiplos
dispositivos pelos quais se faz política
econômica e social). É o monopólio dessas “técnicas de poder”,
o que faz com que apenas o Estado detenha os meios para produzir as
respostas exigidas para se enfrentar uma trombada do tamanho dessa
que estamos vivendo. E o que essa perspectiva foucaultiana, de modo
oportuno, evidencia, é o fato de que o que chamamos de resposta
técnica à pandemia é sempre uma resposta política, que se faz
através de técnicas políticas, técnicas governamentais.
Nesse
ponto, cabe um comentário sobre a compreensível exaltação, em
tempos de “anti-ciência”, da “soberania da ciência” nas
tomadas de decisão política diante dos desafios maiores postos hoje
para a sobrevivência da humanidade e de outras formas de vida no
planeta, especialmente quando se busca a comunicação com uma
“opinião pública desinformada”. Mas, entre os próprios
cientistas, essa discussão sobre o papel da ciência poderia
melhorar. A hegemonia de um dado paradigma de ciência é tamanha que
é como se não existisse, de fato, uma “guerra das ciências”,
conforme a expressão de Bruno Latour. No entanto, ela está aí,
claramente colocada, como sempre esteve, jamais inteiramente
sufocada, porque é a expressão de um embate real entre forças
políticas presentes no campo social e não veleidades
epistemológicas. O campo da Saúde Coletiva deveria ser
especialmente sensível a essas questões, já que ele se funda num
ato de disputa de paradigma científico no campo da saúde…
Nesse
sentido, a discussão atual em torno do que seria uma resposta
técnica e cientificamente embasada à pandemia abre um amplo espaço
para uma retomada das premissas político-epistemológicas da
Medicina Social – que também estavam presentes nas origens da
medicina científica no século XIX, disputando qual seria o
verdadeiro “problema” posto para a medicina e as práticas de
saúde de uma forma geral. É notável como essa antiga fórmula de
Rudolph Virchow ganha especial eloquência no cenário atual: “os
avanços na medicina podem eventualmente prolongar a vida humana, mas
as melhorias das condições sociais podem alcançar esse mesmo
resultado de maneira mais rápida e bem-sucedida”. Sabemos como são
urgentes e fundamentais todo os esforços que vêm sendo feitos para
ampliar a capacidade de resposta do sistema de saúde aos casos
graves da doença, com ampliação emergencial dos leitos
hospitalares e de terapia intensiva. Mas também são fartas as
evidências de que sem medidas preventivas visando o achatamento da
curva, mesmo com essa ampliação, não há cenário em que o sistema
seja capaz de dar conta do número de casos. Do mesmo modo, é
desejável e indispensável todo esforço que vem sendo feito na
busca de um medicamento eficaz para a COVID-19, mas é importante
lembrar que o acesso a qualquer tratamento ficará dificultado se o
sistema de saúde colapsar. Assim, permanece sendo urgente a decisão
técnica e cientificamente embasada de acelerar a combinação da
testagem agressiva e sustentada e o distanciamento social intenso,
medidas que precisam ser implementadas de modo orientado pelas
singularidades da nossa estrutura econômica e social e pelos valores
que estão na base de uma sociedade democrática e solidária.
Para
aumentar nossa capacidade de testagem, é indispensável que, para
além dos hospitais, também haja um investimento emergencial
significativo na atenção básica e na vigilância epidemiológica e
sanitária do SUS, possibilidade aberta pela decretação do estado
de calamidade pública que flexibilizou o cumprimento das regras
fiscais. É preciso determinação técnica combinada a vontade
política para se fazer esse urgente e necessário investimento
massivo de recursos no SUS. Mas, em relação a isso, o que temos
observado, até aqui, é um Estado passivo, com os representantes do
Ministério da Saúde se restringindo a comemorar, nos últimos dias,
o aporte de recursos, sobre os quais sequer terão controle, advindos
da filantropia do alto empresariado e dos bancos.
Para
tornar efetivo o distanciamento social, precisamos ampliar a
mobilização social para o autoconfinamento voluntário. E que ele
seja voluntário, é um princípio ético-político fundamental!
Princípio que assume que o papel principal do Estado não deve ser o
de obrigar e coagir, mas o de educar e procurar convencer sobre a
razoabilidade das medidas que se orientam para o bem comum,
sobretudo, para o bem comum maior, que é a defesa da vida de todos e
de cada um, provendo solidariamente os meios para que todos possam
efetivar essas medidas. É preciso deixar bem claro, entretanto, que
se trata de um princípio ético-político de atuação do Estado, um
princípio de respeito à autonomia de agência dos indivíduos, não
se confundindo com qualquer tipo de concepção ingênua a respeito
do livre-arbítrio ou de um suposto “império da vontade” a reger
nossas condutas. Não basta, para o autoconfinamento acontecer, uma
deliberação da vontade. Não basta querer, é preciso poder
praticar o distanciamento social. Por isso, é preciso acionar
medidas de mitigação das consequências indesejáveis desse
confinamento, em especial, para as populações mais vulneráveis.
Medidas que são, de fato, pré-requisitos para que essas populações
possam aderir voluntariamente ao distanciamento social. Em outras
palavras, é preciso, primeiramente, uma orientação firme e
inequívoca das autoridades sanitárias para que o distanciamento
social massivo seja praticado. Mas, como sabemos, é na implementação
dessa medida que se expressam as mais brutais desigualdades perante
essa epidemia. Como afirmamos no artigo, “somos todos suscetíveis,
mas a vulnerabilidade é profundamente desigual”. São milhões e
milhões de brasileiros que vivem do ganho diário para sobreviver,
seja como empresários de pequenos negócios, seja como trabalhadores
precarizados, sem proteção social, vivendo sem condições
adequadas de moradia e de saneamento urbano, quando não vivendo nas
ruas. Fundamentalmente, são estes brasileiros que não poderão
aderir às medidas de distanciamento social, não porque não
queiram, mas porque não podem. Só o Estado dispõe dos instrumentos
políticos capazes de fazer com que o distanciamento social
voluntário se efetive e poucas vezes ficou tão agudamente evidente
o quanto a política econômica e social pode ser a mais poderosa
ferramenta de intervenção médico-sanitária.
O
Estado brasileiro, graças à atuação decisiva do poder
legislativo, tomou algumas medidas importantes nessa direção, como
a provação do “auxílio emergencial” e algumas outras medidas
de mitigação das consequências econômicas e sociais nefastas do
confinamento. Importantes, porque na direção correta, mas
insuficientes. Insuficientes no tamanho do auxílio, considerando as
reais necessidades vitais das famílias, e não apenas sua dimensão
de “remédio econômico” para mitigar o tamanho da recessão.
Essa questão do “auxílio econômico” é um ponto crucial no
enfrentamento da pandemia, porque nele, a dicotomia entre as medidas
de proteção da vida e de proteção da economia se desfaz. Uma
economia cuja proteção se oponha à proteção da vida é uma
economia de morte. Não merece ser salva. O debate sério sobre o
assunto indica que a “estatização da renda das pessoas” (como
dizem os economistas liberais) parece ser um componente inescapável
da resposta econômica para se evitar uma depressão. Dessa vez,
parece que não será suficiente salvar apenas os bancos, sem
garantir um mínimo do poder de compra das famílias. Os recursos
para financiar essa grande operação biopolítica de defesa da vida
e da economia existem e sabemos onde estão. Levantá-los, contudo,
exige a quebra de resistências políticas históricas na sociedade
brasileira. Resistências tão duras de serem quebradas, que têm
garantido, por exemplo, que nossa estrutura tributária absurdamente
regressiva se mantenha inalterada, a despeito de ser uma flagrante
máquina de aprofundamento da desigualdade social num país
profundamente desigual. Além disso, as medidas tomadas também são
insuficientes porque não conseguem vencer os entraves burocráticos
e a ausência de mecanismos eficientes para que o auxílio chegue
efetivamente até as pessoas. Daí que o objetivo visado por essa
política (viabilizar um distanciamento social mais intenso) não
venha sendo alcançado. E, sem a efetivação dessa política,
atribuir a não adesão ao distanciamento social de amplos setores da
população a uma suposta “falta de consciência” dos indivíduos,
é uma análise bastante pobre da determinação do comportamento e
uma “moralização” do problema.
Na
medida em que esse caminho político permanece, na prática,
interditado, o campo das respostas técnicas à pandemia se vê
restrito a um conjunto de medidas, igualmente científicas, mas de
impacto muito mais limitado. Limitação que se medirá no número de
mortes que ocorrerão e poderiam ter sido evitadas. E na medida em
que determinadas políticas não se efetivam com a força exigida, o
que se impõe, na prática, aos mais vulneráveis, é aquilo que a
filósofa Isabelle Stengers chamou de “alternativas infernais”: a
fome ou a peste. E para coroar o espetáculo dantesco, ainda
descobrimos, estarrecidos, que essa opção de “deixar morrer” é
uma opção consciente e deliberada de alguns atores de peso nas
tomadas de decisão política no país, como o presidente do Banco
Central, que numa fala a investidores, no início de abril, declarou
que o colapso do sistema de saúde, obrigando os médicos a terem que
decidir entre quem atender e quem deixar morrer, é um preço
razoável para evitar uma recessão econômica maior
(https://theintercept.com/2020/04/16/banco-central-presidente-coronavirus-economia/).
A projeção futura do quadro que pode derivar desse tipo de escolha
política, no momento em que o caos sanitário estiver instalado –
uma projeção que não pode ser ignorada por esses atores políticos
–, nos faz supor que eles contam com uma “fase 2” da
estratégia, baseada na força do Estado judiciário-policial, que
poderá atuar para impor um distanciamento social forçado, com
suspensão de direitos e imposição de todos os danos colaterais
dessa medida aos mais vulneráveis. Deveria ser desnecessário dizer
– mas não é! – que se trata de uma abominação moral que a
admissão de mortes evitáveis possa entrar nos cálculos que embasam
decisões políticas. Em tempos de embrutecimento dos espíritos,
também precisamos estar muito vigilantes em relação ao que
enunciam coletivamente as decisões que estão sendo tomadas, sob
pena de fazermos escolhas que podem trazer maior ameaça à nossa
sobrevivência como “espécie” do que o próprio vírus.
Perguntemo-nos, por exemplo, o que
enuncia politicamente que 15 bilhões de reais tenham sido liberados
para empresas de saúde privada que atendem, com grandes limitações
de cobertura, apenas 25% da população, supostamente a menos
vulnerável, enquanto para o restante 75% da população que depende
apenas do SUS, foi repassado muito menos que isso
(https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/04/a-insensatez-dos-planos-de-saude.shtml).
Mas
também nos perguntemos o que enuncia coletivamente o fato de dois
bilhões de seres humanos estarem confinados em suas casas, num
momento de grande crise da democracia em todo mundo. O que enuncia
coletivamente o fato de que, nesse momento, várias das principais
nações europeias se encontrem sob “estado de exceção”, com o
exército nas ruas? A linguagem é um vírus (conforme a fórmula
poética de William Burroughs). E não é muito animadora a
“linguagem” que circula nesse momento! Esse discurso de
mobilização de guerra, do vírus como inimigo, de exaltação da
“cidadania sacrificial” dos trabalhadores de saúde, é muito
preocupante! É o tipo de discurso político que se presta a
justificar suspensão de direitos e adoção de medidas “de
exceção”. Do mesmo modo que serve para justificar e banalizar as
consequências da instauração de mecanismos permanentes de
vigilância digital securitária e totalitária, como se fosse um
preço razoável a se pagar pela “liberdade”. Há tantos ou mais
perigos em algumas das respostas a esta pandemia, quanto na própria.
Precisamos saber escapar das “alternativas infernais”, o que
implica vencer o medo que nos paralisa e abrirmo-nos à emergência
de novos modos de vida e de relação com os conhecimentos e as
tecnologias…
3 – O editorial da última edição da revista Saúde em Debate(http://revista.saudeemdebate.org.br/sed/issue/view/37/v.%2044%2C%20n.%20124%2C%20jan-mar%2C%202020),do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), ressalta o impacto de medidas neoliberais na saúde como origem do cenário da pandemia na Itália e chama a atenção para as medidas de austeridade brasileiras,como a Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos). De que forma as consequências da falta de prioridade da saúde pelos governos e do subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde (SUS) são sentidas no cenário atual?
As
relações entre as medidas de austeridade neoliberais e o impacto
humano que terá essa pandemia são demais evidentes, já que essas
políticas foram diretamente responsáveis pelo sucateamento do
principal escudo de proteção que os países podem ter nessa crise,
que é um sistema de saúde público, robusto e de qualidade. Nesse
momento de crise aguda, fica palpável o quanto o sucateamento do
nosso SUS representa diretamente o sucateamento da vida dos
brasileiros. O quanto o desmanche desse e de outros sistemas de
proteção social precariza a vida e amplia a vulnerabilidade social.
Mas não é apenas por esses aspectos que os efeitos das políticas
neoliberais são sentidos no cenário atual. Elas representam mais do
que um receituário econômico e fiscal, elas definem todo um modo de
vida cujo esgotamento, pela insustentabilidade ambiental, social e
subjetiva, está cada vez mais patente. A pandemia feriu de morte
esse modo de vida e precipitou um colapso econômico que já estava
anunciado. Ela marca nossa entrada na era dos fenômenos naturais
extremos previstos na “emergência climática” e coloca uma
enorme pedra sobre o mito do crescimento ilimitado. O que não quer
dizer, nem de longe, que o capitalismo acabou, foi derrotado e
despertaremos agora para um mundo frugal e igualitário. Especula-se
muito sobre um suposto mundo pós-viral, sobre um mundo transformado
que emergirá dessa pandemia. O meu argumento é de que esse mundo
pós-viral já começou ou, de qualquer forma, o mundo transformado
por essa pandemia já se encontra em disputa nesse momento, já está
sendo construído nas respostas concretas que estão sendo
produzidas. O vírus não é capaz por si só de provocar uma mutação
social; nenhuma nova ordem mundial emergirá “naturalmente” desse
acontecimento. O mundo pós-viral já começou e está sendo
disputado, antes de mais nada, nas respostas que estamos produzindo
no próprio enfrentamento da pandemia. Por isso me estendi
consideravelmente nas primeiras questões desta entrevista, por isso
me pareceu importante procurar fazer uma análise (bio)política das
respostas que estamos produzindo. São dimensões importantes da
produção desse mundo pós-viral e não se pode dizer que, desse
ponto de vista, estejamos indo bem em toda parte. Estamos
especialmente mal posicionados nessa crise, uma vez que, do Brasil,
temos dificuldades de ver pela frente um cenário menos que sombrio.
Mas há questionamentos e movimentos importantes se dando em muitas
partes, que vão na direção de uma transformação profunda na
organização política e econômica de nossas vidas…
4 – Como pensar comunicação e saúde nesse contexto de pandemia e disseminação de fake news? Quais elementos são importantes paradifusão de informações relacionadas (epidemiológicas, políticas,econômicas) ao Covid-19 de forma segura?
O
tema do meu mestrado, há quase 30 anos, foi justamente o das
epidemias, trabalhado numa perspectiva semiótica e comunicacional.
Procurei desenvolver um único
esquema
interpretativo para a análise, tanto de fenômenos epidêmicos (de
doenças), quanto comunicacionais (de comunicação social), com o
intuito de analisar a epidemia de HIV/AIDS em seus primeiros anos,
considerando a relação entre a dinâmica de propagação viral e a
dinâmica de propagação da informação. Identifiquei a existência
de dois “esquemas epidêmicos”, que correspondem a duas dinâmicas
comunicacionais distintas, observáveis tanto na propagação de
agentes infecciosos, quanto de informação: o “contágio” e a
“irradiação”. As epidemias de contágio, que se propagam ao
sabor dos contatos sociais, são mais lentas (os casos se distribuem
ao longo do tempo) do que as epidemias irradiadas, tipo fonte comum
(em que muitos casos se apresentam simultaneamente). A ideia geral é
que uma epidemia de contágio (de doença) pode ser combatida com uma
contraepidemia irradiada (de informação). É uma questão
“dromológica” (como diria Paul Virilio), uma questão de
velocidade, de corrida entre “informações”: o objetivo é que
determinadas “informações” consigam chegar nas pessoas antes do
vírus (seja na forma de uma vacina, enquanto uma “informação
imunobiológica”, ou na forma da informação necessária para se
praticar a proteção individual e coletiva).
Do
ponto de vista da comunicação social, o grande modelo de
comunicação irradiada que dispúnhamos, no início dos anos 1990,
era o chamado “broadcasting”, o modelo fornecido pelas grandes
mídias de massa que dominaram o século XX, como o rádio e a
televisão. Ainda que se reconheça (e se preconize como estratégia)
que os modelos de comunicação irradiada e por contágio estejam (e
devam ser) quase sempre hibridizados, a lógica do “broadcasting”
possui duas características fundamentais para as estratégias de
comunicação em contexto de epidemia: a rapidez de difusão e o
controle centralizado da informação pelo polo emissor. Ora, o
cenário das tecnologias de comunicação e informação passaram por
uma verdadeira revolução nos últimos 30 anos, capitaneada pelo
crescimento e pela popularização da internet e o advento das mídias
sociais. Produziram-se profundas alterações na “ecologia
comunicacional” humana, que acabaram abalando alicerces importantes
das estratégias comunicacionais em contexto de epidemia. O advento
das mídias sociais produziu duas mudanças importantes na dinâmica
comunicacional por “contágio”: primeiramente, imprimiram uma
velocidade sem precedentes à “epidemia de contágio”, produzindo
uma dinâmica apropriadamente chamada de “viral” na propagação
da informação; além disso (e em função dessa lógica viral, que
transforma cada um numa central de “broadcasting”, produzindo um
dilúvio informacional), a dinâmica de propagação da informação
por contágio passa a obedecer não apenas à lógica que governa,
por exemplo, os encontros/contatos que se dão entre os corpos num
território, mas a uma outra lógica que passa a governar os
contatos/conexões que se dão na rede eletrônica. Essa outra lógica
é introduzida pelos algoritmos que, nesse sentido, estruturam as
“redes de contágio” (segundo interesses comerciais e estratégias
de marketing) de um modo que acaba contribuindo para a constituição
de uma socialidade em “bolhas”, com enormes repercussões
subjetivas e políticas. Em síntese, as mídias sociais aumentaram
desenfreadamente a difusão da informação, mas de qualquer
informação, reduzindo as possibilidades de serem controladas
centralmente por um polo emissor autorizado. Ao mesmo tempo, as
“redes de contágio” não são aleatórias e, sim, estruturadas
para promoverem a constituição de “clusters” que expressam,
segundo uma lógica “mercadológica” que organiza o espaço
social em “nichos”, a distribuição dos múltiplos novos centros
irradiadores de autoridade. Essa nova “ecologia comunicacional”
instaurada pelas mídias digitais é bastante crítica para as
estratégias comunicacionais tradicionais de enfrentamento de
epidemias…
Em
outubro do ano passado, o Johns
Hopkins Center for Health Security (em parceria com o Fórum
Econômico Mundial e a Fundação Bill & Melinda Gates) realizou
um exercício de simulação de uma severa pandemia de coronavírus,
com o objetivo de identificar os grandes problemas que teríamos hoje
para produzir as respostas necessárias para minimizar seus graves
efeitos sociais e econômicos, avaliando o quanto estaríamos ou não
preparados para produzi-las (o tamanho do “preparedness gap”): o
Event 201 (https://www.centerforhealthsecurity.org/event201/).
Nesse exercício, um dos segmentos de discussão foi inteiramente
dedicado às questões de comunicação
(https://youtu.be/LBuP40H4Tko)
e o principal ponto crítico levantado foi o problema da “epidemia
de desinformação” ou o problema da “preservação da
integridade da informação”. A nossa incapacidade de lidar com o
fenômeno contemporâneo das chamadas “fake news”, na visão dos
experts que participaram do exercício, foi, de longe, o maior
“despreparo” identificado para o enfrentamento de uma pandemia,
no que tange as questões de comunicação.
Para
os especialistas que participaram do Event 201, as respostas para uma
situação de desinformação epidêmica desenfreada, num cenário de
pandemia severa (a epidemia de coronavírus imaginada no exercício
teria matado 65 milhões de pessoas), poderiam chegar ao “internet
shutdown”. Nesse caso, teríamos a imposição de uma situação,
de fato, de “isolamento social” e não apenas distanciamento. Uma
situação em que a interrupção dos contatos físicos não seria
suficiente, em que seria também preciso deter o espalhamento da
“peste” através das mídias virtuais. Os especialistas ponderam
o pânico e outros prejuízos colaterais que um “shutdown”
causaria, mas o concebem como um cenário limite com mídia
social desenfreada, governos em colapso e cidadãos se revoltando.
Diante de um cenário menos severo (que, talvez, corresponda ao
nosso), o que propõem? Fundamentalmente, propõem que, de algum
modo, se reconstitua uma fonte confiável de informação. O
diagnóstico que fazem da “crise comunicacional” (com o qual, em
linhas gerais, concordo) é de que se trata, em última instância,
de uma “crise de confiança”. Há uma desconfiança generalizada
em relação às instituições (ao chamado “sistema”) como fonte
confiável de informação. Principalmente, em relação à mídia
tradicional e à ciência, mas também em relação aos governos. Os
governos sempre suscitaram alguma desconfiança, mas a situação se
agrava quando alguns governos passam a atuar abertamente no ramo das
“fake news”, ampliando ainda mais a crise de credibilidade da
instituição que representaria o poder público. Numa dimensão
afetiva, instaura-se um problemático mundo social fundado em
relações de desconfiança; numa dimensão cognitiva, abre-se o
caminho para o chamado mundo da “pós-verdade”. Ainda não
entendemos bem o que significa esse fenômeno, suas causas, seus
sentidos, mas há pistas interessantes trazidas por alguns estudiosos
de que não se trata tanto de uma oposição à “verdade”, quanto
de uma oposição aos “sistemas de produção da verdade”, em
geral, opacos nas suas “regras de produção da verdade” e, via
de regra, arrogantes e autoritários na sua comunicação social.
Esse entendimento é importante, porque nos sinaliza que há
tentativas de se reconstituir o valor das “verdades”, há
estratégias que buscam se opor ao mundo da “pós-verdade”, que
podem, de fato, exacerbá-lo. Não seriam muito promissoras, por
exemplo, as estratégias assentadas na ridicularização da
ignorância ou na afirmação do poder absoluto e infalível de
qualquer discurso de verdade. Se aceitamos a tese de que o problema
não seria tanto uma “crise da verdade”, quanto uma “crise de
confiança” nos “donos da verdade”, então, a questão
primordial permanece sendo como restaurar um regime de socialidade
fundado em relações de confiança. Nesse sentido, o que seria
logicamente mais favorável a este restabelecimento: estratégias
comunicacionais que buscam afirmar a superioridade indiscutível de
determinadas fontes sobre outras ou estratégias comunicacionais mais
dialógicas? De todo modo, a questão da crise de confiança nas
instituições de saber-poder ainda precisa ser muito mais
aprofundada, indo às origens fundamentalmente políticas dessa
crise, para podermos realmente avançar nessa questão das
“estratégias comunicacionais”…
Elidindo
completamente o problema da raiz política dessa crise, os experts
recuperam velhas fórmulas das teorias da comunicação de massa,
como o “two steps flow of information”, adaptadas ao mundo da
comunicação em rede. Essa estratégia busca hibridizar os dois
modelos comunicacionais/epidêmicos: a irradiação e o contágio.
Por um lado, garantindo a centralidade de uma fonte de informação
confiável, por outro, reconhecendo que as fontes efetivamente
confiáveis para as pessoas são os sujeitos identificados como
“líderes de opinião” para suas comunidades. Com esse intuito,
fazem um exaustivo mapeamento de possíveis “lideranças”, que
poderiam se constituir em fontes de informação confiáveis, mas não
fica claro como elas poderiam efetivamente desempenhar esse papel em
meio ao regime geral de desconfiança em relação a todas elas:
organismos internacionais (OMS), governos, mídia tradicional,
corporações, empresários, cientistas, médicos, trabalhadores da
saúde etc. E diante da dificuldade em se resolver uma “crise de
confiança” com estratégias meramente comunicacionais, voltam-se
para as tentativas de controle dos meios, das plataformas
tecnológicas de comunicação, e passam a depositar esperança nos
algoritmos que permitiriam a identificação de campanhas ou
“clusters” de desinformação, acionando mecanismos de “bloqueio
epidêmico”, que poderiam variar de uma “advertência” de que a
informação foi checada “falsa” (já em funcionamento em algumas
plataformas sociais) à remoção automática do conteúdo da rede
e/ou punição para os responsáveis.
É
interessante notar como o enfrentamento das duas epidemias (de
coronavírus e de “fake news”) acaba recebendo abordagens
inteiramente homólogas: nas situações extremas, pode-se apelar
para o “shutdown” da rede; mas a tendência mais promissora,
porque preserva o funcionamento da rede, é a instalação de
mecanismos de vigilância algorítmica de todas as informações
circulantes. As mesmas preocupações já levantadas em relação às
estratégias de enfrentamento da pandemia se recolocam, com redobrada
preocupação, nesse terreno, sobre o risco que há em se banalizar
a instauração de mecanismos permanentes de vigilância algorítmica
como se fosse um preço razoável a se pagar pela suposta garantia da
“veracidade” do que circula na rede. Aqui também as grandes
escolhas não são técnicas, mas políticas.
5 – Qual a sua opinião sobre o desenvolvimento da área de Comunicação Social e Saúde no campo da Saúde Coletiva no Brasil nas últimas três décadas?
Sem
dúvida, nessas últimas décadas, houve um desenvolvimento
importante dessa área no campo da Saúde Coletiva, expresso na maior
presença da pesquisa específica em Comunicação e Saúde nos
periódicos do campo (além da criação de uma revista
especializada, com mais de 20 anos de existência), mas também na
multiplicação de temas e focos de investigação envolvendo
problemáticas “comunicacionais” ou passíveis de uma abordagem
“comunicacional”, em outras áreas da Saúde Coletiva. A
micropolítica do trabalho vivo em saúde e as “tecnologias leves”,
o acolhimento como trabalho afetivo e técnica de conversa, as
dimensões intersubjetivas do cuidado em saúde, a humanização do
cuidado e da gestão, o desafio da cogestão, o desafio da
interprofissionalidade, do trabalho em equipe, da articulação do
trabalho em rede, a coordenação do cuidado, o apoio matricial, a
educação permanente, a educação popular em saúde, são apenas
alguns exemplos que dão testemunho desse crescimento das abordagens
e temas envolvendo uma problemática “comunicacional” no campo da
Saúde Coletiva. Todas pautas de pesquisa em estreita relação com
desafios concretos postos no cotidiano dos serviços e nos processos
de construção do SUS.
Mas
há outro modo de se compreender o desenvolvimento da área nas
últimas décadas, que leva em consideração os deslocamentos de
paradigmas que se deram nesse período. Uma análise mais fina e
detida poderia identificar ainda outros deslocamentos, mas vou
destacar, neste momento, dois principais, sintetizados em dois
acontecimentos epocais marcantes e decisivos: a epidemia de HIV/AIDS
e a internet.
De
novo, uma epidemia. Uma epidemia que, em meio à profusão de efeitos
produzidos no mundo contemporâneo, veio colocar em xeque concepções
arraigadas e estratégias tradicionais de comunicação em saúde. O
enfrentamento de uma epidemia que, em seus primeiros anos, contava
apenas com formas de prevenção baseadas em mudanças de
comportamento (sobretudo, na esfera sexual), forçou uma revisão
profunda das concepções a respeito da determinação do
comportamento que, até então, orientavam as estratégias
convencionais de comunicação em saúde. Pode-se dizer que a
epidemia de HIV/AIDS colocou em crise os modelos de comunicação
transmissionistas, fundados em esquemas “behavioristas” de
compreensão da determinação do comportamento, convocando modelos
mais dialógicos e esquemas de compreensão da determinação do
comportamento que concebem uma forte influência de determinantes
estruturais, coletivos e institucionais. Esse importante deslocamento
de paradigma está bem representado em todos os desenvolvimentos
teórico-práticos produzidos no campo pelo conceito-operante de
vulnerabilidade, cuja operacionalidade tem sido exercitada nas
análises e proposta de enfrentamento da epidemia atual…
A
importância do segundo acontecimento – o crescimento e a
popularização da internet e das mídias sociais – também já
foi, não casualmente, ressaltada nos comentários que fiz sobre as
dimensões comunicacionais envolvidas na epidemia atual, sobre as
profundas mudanças produzidas pelas tecnologias digitais de
comunicação em rede em nossa “ecologia comunicacional” e seus
impactos para a comunicação em saúde. No meu entendimento, o
deslocamento de paradigma, nesse caso, também golpeia o
“transmissionismo” tradicional, pois, cada vez menos, a
experiência de comunicação coletiva se comporta como no modelo do
“broadcasting” e, cada vez mais, como um fenômeno de “produção
de comum”; cada vez menos, comunicação como transmissão
“telefônica” ou “televisiva” de mensagem e, cada vez mais,
como produção em “redes” de diferentes formas de “inteligência
coletiva”.
São
deslocamentos importantes, com consequências profundas para os modos
de se colocar problemas teórico-práticos no campo da Saúde
Coletiva, cujos impactos na produção científico-tecnológica da
área ainda estão se fazendo sentir, mas devem dar um grande salto
no chamado mundo pós-coronavírus. De fato, as novas tecnologias de
comunicação e informação fundem, no mais alto grau, suas
potencialidades de emancipação e de controle dos coletivos humanos.
Por um lado, a potência de produzir inteligência coletiva, enquanto
expressão das dinâmicas multitudinárias imanentes a todo corpo
coletivo, capazes de produzir potência de ação coletiva. Por outro
lado, o sequestro dessa “inteligência” e de nossa potência de
ação coletiva, não mais apenas pelo Estado (talvez, por isso,
possamos perceber com maior nitidez a expressão de uma inteligência
coletiva em resposta ao que se impõe como um desafio coletivo de
proteção da vida, lá onde o Estado está mais ausente:
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/04/11/favela-de-sao-paulo-vira-exemplo-em-acoes-contra-o-coronavirus.ghtml),
mas também, cada vez mais, por determinadas aplicações de
inteligência algorítmica que vêm construindo a infraestrutura do
chamado “capitalismo de vigilância”. São questões que me
parecem capitais na encruzilhada biopolítica em que nos encontramos
e que devem assumir um lugar bem maior e bem mais central nas
discussões da Saúde Coletiva nos próximos anos.
Por
fim, cabe ainda um comentário sobre a comunicação em saúde, para
além das dimensões tecnológicas, lembrando que essa problemática
é a que mais aproxima as questões de saúde das fronteiras da arte
e da cultura. Trata-se de lembrar e reconhecer o quanto os principais
fenômenos vitais de importância para a saúde humana no mundo
contemporâneo dizem respeito a processos de comunicação e cultura.
É nesse terreno, por exemplo, que poderíamos situar todas as
investigações e experimentações práticas que têm buscado
explorar as tensões e eventuais sinergias existentes entre a saúde
e a grande mídia, em particular, entre o sistema público de saúde
e a sua presença, a sua representação, na produção cultural
brasileira. Há muitas formas possíveis de se argumentar sobre a
relevância para o campo da Saúde Coletiva das intervenções e
pesquisas que se realizam nessa fronteira com a arte e a cultura, mas
podemos, mais uma vez, apoiarmo-nos na experiência presente da
pandemia para ressaltar essa relevância. Em tempos em que se coloca
uma ameaça à saúde individual e coletiva, em escala global,
fortemente tendente a reforçar concepções mais reducionistas de
saúde, mais focadas nos elementos biológicos e organicistas e nas
ameaças portadas por um agente infeccioso; em tempos que nos induzem
a uma visão de saúde mais reduzida, mais circunscrita à
problemática da preservação da vida e da garantia de uma certa
segurança de que nós sobreviveremos às ameaças biológicas que
nos cercam; em tempos, enfim, em que se abre uma certa oposição
entre a saúde e a qualidade de vida e o bem-estar, já que a
preservação da primeira, neste momento, parece depender de
abdicarmos destas últimas, já que a preservação da vida e da
saúde, neste momento, parece mesmo nos obrigar a atravessar um
processo de profundo mal-estar e de afastamento de tudo que
configurava nossos ideais de qualidade de vida, incluindo a
possibilidade do convívio social; é justamente neste momento que as
riquezas maiores que encontramos nas fronteiras entre a saúde, a
arte e a cultura, ganham ainda mais relevância. Vivemos tempos não
apenas para serem padecidos, mas enfrentados. Tempos não apenas para
enfrentamento do vírus e da epidemia, mas também de todas as
tendências regressivas que esses tempos podem imprimir em nosso modo
de vida e nossas concepções sobre a saúde. Enfrentar esses tempos
exigirá, e muito, o exercício irrequieto da arte e da cultura, em
sua função de abrir o campo de possibilidades, de excitar a
imaginação de outros mundos possíveis e de nos permitir esperançar
a sobrevivência de formas de vida que digam sim à vida! Trata-se do
reconhecimento da arte e da cultura como produtoras de saúde
enquanto potência de vida, mas também como produtoras de uma
“cultura da saúde” em que a saúde não se reduza à mera
sobrevivência de “vidas nuas”. É desse modo também que vejo as
potencialidades da área da Comunicação e Saúde para o
desenvolvimento do nosso campo e o tipo de contribuição que pode
vir a dar para alguns de nossos maiores desafios atuais…
Após lançarmos uma convocatória para pessoas interessadas em integrar um percurso coletivo de investigação sobre o acontecimento Covid_19, realizamos uma primeiro movimento de aproximação entre nós. Criamos uma lista de email; fizemos um encontro virtual entre os que haviam se inscrito na lista para conversar a partir de um texto, trocar experiências e algumas expectativas e convidamos as pessoas a reagirem às algumas proposições na forma de um produção livre que foi compartilhada no site da Zona de Contágio.
>> Para quem quiser ainda embarcar na investigação coletiva como praticante, mande um email para: conspire [@rrob@] tramadora.net
Quando pensamos numa prática de laboratório partimos de algumas referências que informam o desenho e as práticas desse laborátório. Ele não é uma noção abstrata ou indeterminada. Referimo-nos a uma certa arquitetura, uma ética-política, uma prática experimental, uma perspectiva ontoepistêmica: uma ciência implicada de uma pesquisa-luta. Elementos esses que esperamos explorar nesse percurso investigativo.
Diante do que experienciamos nessa última semana, a partir da momento em que a Zona de Contágio foi ativada pela presença e participação de muitos de vocês, consideramos importante olhar para o que emergiu e tramar os próximos passos dessa investigação. O momento nos convoca a indicar algumas delimitações para a investigação e também a sugerir alguns protocolos para nossa cooperação. Essa mensagem está dividida em 3 tópicos:
1. Bordas e confluências de um percurso de pesquisa – onde indicamos as questões gerais da pesquisa e indicamos um próximo passo de perguntas e atividades para a pesquisa.
2. Conversões febris – sugestão de bibliografia para o próximo encontro no dia 7 de maio, as 19:00hs.
3. Protocolo Investigativista: ensaio de um conjunto de princípios e acordos pra organizar as formas de participação e as condições de colaboração.
1. Bordas e confluências de um percurso de pesquisa
Todas nós estamos aqui por algo que nos toca; quase todas estamos também já inseridas em percursos de investigação. Carregamos experiências, corpos e desejos singulares, heterogêneos. O desafio do laboratório é constituir uma composição entre singularidades apontando, entretanto, para algumas zonas de confluência comum para que assim possamos, de fato, experimentar um encontro – uma ciência-dança de contato e improvisação. Para dar consistência a essas zonas de confluência sugerimos algumas ações temáticas nas quais podemos pensar juntas, investigar, nos fazer melhores perguntas.
De forma simples: propomos rodadas investigativas em torno de problemas comuns. A produção do material a cada rodada será um cruzamento entre experiências, percepções localizadas, intuições sobre o mundo no qual estamos implicadas em uma conversa com reflexões trazidas por textos e outros pensamentos. Ao fim de cada rodada, poderemos então visualizar a constelação de novos problemas que surgem, novas pistas, outras encruzilhadas.
A Zona de Contágio se constitui a partir de duas tramas de investigação: Ciência dos dispositivos; Ciência de Retomada.
Por um lado, gostaríamos de praticar uma \”ciência dos dispositivos\” atenta aos rastros das formas de poder e como ele organiza nossas vidas; dispositivos de desempenho, controle, biovigilância; os arranjos e mediações sociotécnicas que conduzem nossas condutas. Os dispositivos de governo que prometem nos \”salvar\” de nós mesmos e de nos livrar da possibilidade de pensarmos juntos o que fazer com as nossas vidas e corpos. Uma ciência dos dispositivos parte da constatação de que o poder não está dando ordens desde os lugares mais espetaculares e evidentes, mas ele, sobretudo, está \”fazendo funcionar\”: os corpos, desejos, as formas de nos relacionar. Aqui podemos pensar sobre a expansão do \”capitalismo de plataforma\” no acontecimento-Covid; das tecnologias educacionais aos inúmeros dispositivos que organizam nossas cidades, a circulação de mercadorias e alimentos; pensar quem são os teletrabalhadores, os circuitos do \”cognitariado\”, os intercâmbios entre ideias de \”livre iniciativa\” e \”empreendedorismo\” com os discursos da economia de \”startup\” e de \”inovação\”; a maneira reticular como as tecnologias digitais compõem e organizam a vida ordinária, contrabandeando e alimentando um racionalidade econômica e uma ordem política.
Na mesma trama, também queremos praticar uma \”ciência da retomada\”: \” É precisamente porque nossos corpos são os novos enclaves do biopoder e nossos apartamentos as novas células da biovigilância é que se torna mais urgente do que nunca inventar novas estratégias de emancipação cognitiva e resistência e lançar novos processos antagônicos. Ao contrário do que se possa imaginar, nossa saúde não virá da imposição de fronteiras ou separação, mas de um novo entendimento da comunidade com todos os seres vivos, de um novo equilíbrio com outros seres vivos do planeta.\”
Uma ciência de retomada pensa pelos saberes que nos foram expropriados. Como emerge nesse interstício e suspensão do mundo a percepção do Comum sequestrado – o que é (e pode ser) \”saúde coletiva\” e como essa \”volta ao corpo\” nos faz pensar sobre um mundo que já estava antes saturado por muitos lugares de asfixia? Como respirar juntos novamente? Um ciência que pense sobre o que pode ser retomado, tecnologias menores que potencialize nossa capacidade de agir e sentir o mundo vivo; formas não proprietárias, reapropriação das formas de reprodução da vida – da casa à infraestrutura urbana. Uma ciência que sustente formas de vida não-fascista e que investigue novos problemas porque não se contenta em apenas responder os problemas que nos colocam.
\”Si lo vemos bien, la biopolítica nunca ha tenido otro propósito: garantizar que nunca se constituyan mundos, técnicas, dramatizaciones compartidas, magias, en el seno de las cuales la crisis de la presencia pueda ser vencida, asumida, pueda devenir un centro de energía, una máquina de guerra\”.
Proposição: Nessa rodada, a zona de confluência investigativa se dará em torno da experiência temporal e dos sentidos da presença.
Queremos olhar para a ambiguidade presente no acontecimento Covid19 entre a suspensão do tempo, um respiro (a paragem brusca da qual falou Latour aqui: https://bit.ly/2SltcU4) e, por outro lado, uma experiência de tempo acelerado, asfixia, produzida pelos novos dispositivos de produtividade, desempenho, mobilização permanente. As fronteiras entre vida, prazer, trabalho encontram-se esfumaçadas. O tempo da domesticidade, aliás, é caracterizado pelo embaralhamento dessas fronteiras; os novos dispositivos do teletrabalho atuam também diante da nossa culpa civilizacional de experimentar o tempo livre; precisamos nos mostrar produtivos, disponíveis, enquanto as tecnologias digitais ampliam a mensurabilidade, o controle e a mobilização total de nossas vidas. A oferta ampla de entretenimento virtual parece querer nos salvar do desconforto do tempo suspenso e da catástrofe que estamos vivendo: \”Tenemos que escoger si queremos seguir siendo un terminal del algoritmo de la vida que organiza el mundo o bien un interruptor de la pesadilla que nos envuelve\”. O que significa \”parar\”? O que significa não poder parar, nunca? \” los lentos son perdedores!\”.
Como pensar a rivalidade entre desempenho e experiência, conexão e relação, sacrifícios individuais e o prazer do encontro como imagem da luta de classes no capitalismo contemporâneo?
Para essa primeira rodada, sugerimos também a companhia dos dois textos da próxima Conversação Febril (a seguir).
Novamente, sugerimos que o material seja publicado como \”comentário\” no post do site: https://www.tramadora.net/?p=1823 até o dia 7 de maio. Sugerimos o movimento de ler com atenção aos comentários de outras praticantes, talvez algo te convoque para novos lugares, talvez haja o desejo de comentar, iniciar uma conversa.
Nessa experimentação, o próprio desenho do laboratório (infraestruturas, protocolos, métodos, documentos, artefatos etc) é parte da investigação. Encontrar a melhor forma de caminhar junto, de habitar problemas comuns e constituir um coletivo que sustente uma prática no tempo, exige muita mediação, cuidados, práticas e conhecimentos, uma verdadeira arte do pharmakon. Como evitar as práticas de pesquisa que convertem a participação em mecanismos de captura e extração? Como lidar com as armadilhas dos dispositivos autorais, sua economia e as divisões do trabalho que ela engendra? Como lidar com os regimes de propriedade, acesso e posse do conhecimento produzido? Muitos aqui estão habituados às iniciativas de colaboração, no campo científico ou artístico e sabem que essas perguntas não são triviais. A experiência indica que um boa estratégia para enfrentá-las é evitar os princípios abstratos e verificar na prática, caso a caso e de forma situada, qual é o desenho dos protocolos que desejamos estabelecer. Este protocolo de pesquisa coletiva também almeja atacar o problema de identidade e de fronteira que delimitam a Zona de Contágio: como evitar o fechamento identitário e bloquear a chegada do novo? Como manter a continuidade, o acúmulo das experiências, o reconhecimento e as mutualidades? Novamente, estamos diante de um problema das composições e pertencimentos, ligas e alianças. O Laboratório, nesse sentido, é também um experimento de uma tecnologia social de pertencimento. Desejamos conversar sobre este tema e vamos abrir uma página wiki pra edição colaborativa desse protocolo. Vamos publicar uma versão 1.0 e enviaremos outra mensagem com o link.
“O ressentimento está definido muito bem por Scheler como uma auto-intoxicação, a substância nefasta, em copo fechado, de uma impotência prolongada. A rebelião, ao contrário, fratura o ser e o permite transbordar. Libera ondas que, de estancadas, se fazem furiosas (…) O ressentimento é sempre o ressentimento contra si mesmo. O rebelde, ao contrário, se nega a ser o que é. Luta pela integridade de uma parte do seu ser. (Camus)
Máscaras Coloridas
A verdade é que estamos todxs aqui diante de uma ou duas telas, atravessadxs pelos prazos que ainda não foram suspensos, acompanhando o fluxo interminável dos noticiários que nos dizem o que fazer, nos estimulando de assombros como arqueólogos miseráveis de neurotransmissores, qualquer um que sirva. A catástrofe rapidamente é convertida em rotina – vamos nos adaptando à qualquer pequena fresta de luz e de repente o comando neurótico de não nos deixar contaminar de mundo adquire inigualável exuberância. Personagens infames de uma cena beckettiana, uma voz acontece diante de nós: “Para onde eu iria, se pudesse ir, o que seria, se pudesse ser, o que diria, se tivesse uma voz, quem é que fala assim, dizendo que sou eu?”
Lavamos bem as mãos, todas vezes. Costuramos máscaras coloridas com nossas crianças, damos os bons exemplos. Somos corretos, cooperamos, batemos as panelas na hora certa. Merecedores de uma vida qualquer estamos dispostos ao sacrifício para sobreviver com nossas máscaras coloridas. Os dispositivos empenham-se agora em nos oferecer a maior sensação de conforto possível: lives, festivais, peças de teatro, filmes, descontos, hashtags, centenas de tutoriais de como fazer. Toda uma arquitetura para que não tenhamos que experimentar a sensação brusca de perder o mundo – estamos atravessando a maior crise do capitalismo talvez desde o fim da segunda guerra mundial, mas tudo se passa para que nada aconteça. Alguém cita a frase de Gramsci pela milésima vez – \”o velho está morrendo, o novo não pode nascer\” – como um bote salva-vidas desesperado, uma prótese que nos impede de sentir um pouco mais o sufoco desse afogamento. Os rapazes marxistas agora ao menos vão precisar lavar a louça enquanto preocupam-se com o calendário eleitoral.
Somos retidos como mercadorias alfandegárias em um mundo de fronteiras alteradas. Tudo se passa como se fôssemos bem conduzidos como espectadores epidêmicos, bons organismos hospedeiros esperando o momento certo de reagir, de apresentar algum sintoma. Queremos explicações: um especialista, uma autoridade, ou um intelectual complacente e crítico talvez possa nos salvar. Consideramos a vigilância, o controle, a denúncia. \”Todas as razões estão reunidas, mas não são as razões que fazem revoluções, são os corpos\”. Espoliadas do prazer do encontro, habitamos confortavelmente o deserto erógeno hetero-pacificador da domesticidade; habitamos comodamente o deserto da experiência administrando nossos avatares, potenciais de \”engajamento\”, nossas performances algorítmicas. Youtubers desesperados por um bom slogan, uma ortodoxia repaginada: os \”rebeldes\” agora atuam impecavelmente como empresários de si, como marcas docilizadas, capturados narcisicamente por polêmicas desubicadas, mas que podem, quem sabe, render views, um melhor desempenho nas redes. Contornamos com destreza esse momento de interrupção. Dedicados como somos em querer explicar o mundo deixamos escapar a carne viva, o desejo aberrante. Contamos os corpos, transformamos em estatística, desejamos previsões, até lamentamos, ressuscitamos velhos esquemas conceituais, mas o que estamos fazendo com as nossas vidas?
2. Renunciemos à renúncia
Ailton Krenak tem dito que a democracia liberal nos exige formas renovadas de renúncia. A grande renúncia de retomar a inteligência estratégica do presente, uma renúncia das práticas investigativas que sejam também experimentações, ainda que precárias, de modos de vida não fascistas. Renúncia porque não sabemos mais pensar e fabricar os nossos contra-dispositivos, não sabemos mais produzir experiências políticas nas quais verdadeiramente algo nos aconteça, algo nos toque. Depois de Seattle, de Chiapas, de Junho de 2013 parece que fomos finalmente neutralizados pela política progressista que toma o ponto de vista do Estado e as suas encenações em retroescavadeiras como fundamento do que seria uma imagem de \”transformação\”. Fora isso, tudo seria \”inconsequência\”, \”irresponsabilidade\”, \”falta de visão estratégica\”. A \”política\” no progressismo foi reconfigurada arduamente, nos termos modernos humanistas de uma esquerda iluminista, como a habilidade de enxergar um mundo estando fora dele. A língua do progresso já estava aqui, desde antes, atualizando o refrão do \”desenvolvimento\” e envenenando as formas relacionais que exigem tempo, hesitação, misturas e que resistem às idéias de desempenho, rendimento e que convocam para as cenas de decisão uma multiplicidade de criaturas e viventes.
A exceção viral, entretanto, nos deixa agora uma constatação epidêmica: \”Nós não obtemos conhecimento permanecendo fora do mundo; conhecemos porque “nós” somos do mundo. Somos parte do mundo em seu devir diferencial. A separação entre epistemologia e ontologia é a reverberação de uma metafísica que supõe uma diferença inerente entre humano e não humano, sujeito e objeto, mente e corpo, matéria e discurso\” (Barad, 2017:32). O \”pensamento crítico\” deslocalizou-se, a \”política de esquerda\” conforma-se hoje em um lugar desimplicado, enunciativo, \”esclarecedor\” – também embranquecedor porque neutraliza as outras muitas formas de ser e pensar em companhia, as muitas outras formas de habitar encruzilhadas – se pensam assim guardiãs de um certo privilégio epistemológico e soberano sobre a realidade. Olhos fora da carne. O que o \”esclarecimento\” perde, no entanto, é a possibilidade de dar à essa situação o poder de nos fazer pensar.
A partir dessa constatação epidêmica é possível agora perceber o quanto de autoritarismo (e de fantasia de autogênese) contém a hashtag #ficaemcasa, nossa única aposta até agora. Imperativa, compulsória, ordenadora. Quando a urgência do isolamento social se impôs pensei no meu pai, motorista de aplicativos, como tantos outros. Não podia ligar para ele e exigir \”Fica em casa\” porque sei o que isso significa para quem não tem nenhuma garantia ou proteção social. No ano de 2019, o Brasil já possuía 38 milhões de trabalhadores na informalidade, segundo o IBGE, um número recorde. Pensei então em como poderíamos tomar essa decisão em companhia, como poderíamos sustentar uma decisão acionado uma rede de relações, de acordos e novos arranjos. Pensar em um mundo no qual estamos implicados no que desejamos viver e sustentar.
Diante da pandemia podemos escolher
os enunciados imperativos de governar condutas como tem feito muitos governos
nacionais e a \”ética militante\”, mas também podemos arriscar
investigando as novas composições que somos obrigadas a fazer, experimentações
tateantes; alianças emergentes entre trabalhadoras da saúde, gente que cuida e
se importa, vizinhança, amigos, amores, criaturas. Retomar o problema da
precariedade, não como uma falta a ser gerida, mas como uma matriz relacional,
tudo isso nos parece indispensável em um momento no qual a frustração, a
impotência e o ressentimento diante das promessas não cumpridas do
neoliberalismo convertem-se facilmente em um ódio direcionado ao outro como
ameaça. \”A precariedade é um estado de reconhecimento de nossa
vulnerabilidade à outras pessoas\” (Tsing, 2015:29).
Enquanto proposição ontológica, a hipótese epidêmica nos abre a possibilidade de pensar um mundo não como ele \”deveria ser\”, mas a partir de suas próprias proposições imanentes, febris. Podemos agora imaginar e experimentar como a vida e a política na vida poderiam ser de outra maneira. Reativar essa \”inteligência coletiva\” como trabalho primordial na dobra de cumplicidade entre ciência e luta: \”cada um aprendendo a pensar pelos outros, graças aos outros e com os outros\”, como vem falando Stengers, como prática de retomar \”o tempo e a liberdade para se colocar problemas que valham a pena\”[1]. Nossa ciência sempre foi uma ciência de risco.
3. Uma política em carne viva
o caminho da luta me faz encontrar a carne. Mesmo humilhada, a carne é minha única certeza. Só posso viver nela. A criatura é minha pátria. (Camus)
Minhas amigas sem-teto que sustentam o mundo da cidade-acampamento nas ocupações de terrenos baldios nas bordas da cidade de São Paulo me ensinaram muito sobre práticas de habitar a exceção. Desde a primeira hora na madrugada de uma nova entrada em um terreno baldio, somos interpeladas a pensar e experimentar como podemos habitar um mundo em ruínas assumindo o inesperado com os pés na terra. Se por um lado, as ocupações podem ser lidas como eficientes tecnologias políticas de barganha de acesso às políticas habitacionais – ocupação como \”tática de mobilização\” – por outro lado, as ocupações são vividas como uma prática de travessia, como um arranjo tecnopolítico de desaceleração \”aqui eu descanso minha cabeça\”, como ouvia tantas vezes. Um mundo sustentado em práticas existenciais no qual se vive a vida através da vida dos outros, como na definição ampla de parentesco feita por Sahlins (2011). Uma definição expandida das práticas relacionais que assume a \”coexistência e o devir-com como o habitat das práticas” (MASSUMI apud STENGERS, 2005:183), uma política que emerge da cozinha coletiva.
A condição de precariedade
generalizada imposta aos mais pobres nos últimos anos converte-se um poderoso
instrumento de disciplinamento da vida já que, a todo tempo, as pessoas precisam
se desdobrar entre trabalhos mal pagos, os corres,
as virações, uma disciplina que \”exige, não que os
trabalhadores trabalhem o tempo todo, mas que estejam constantemente
disponíveis para o trabalho\” (Negri, Hardt, 2016:169). As mulheres chegam
às ocupações conduzidas por relatos sobre
corpos que não aguentam mais, medicalizados, mas que no entanto apontam
para questões ontológicas sobre as saturações do tecido biopolítico neoliberal.
As ocupações são experimentadas muitas vezes como um terreno compartilhado de
cumplicidade da dor e de experimentação de curas. \”As pessoas chegam aqui
em carne viva\”, sintetizou certa vez Luciana enquanto comíamos juntas. Ela
mesma diz ter passado por uma \”depressão braba\”, mas depois de
experimentar essa vida baldia, se curou.
O mundo baldio dos acampamentos nos exige desde o princípio, como fala Donna Haraway desde sua Mixotricha paradoxa[2], uma simbiose obrigatória: vulnerabilizarmo-nos em companhia. Entre barracas, córregos, cozinhas e fogueiras nos interstícios baldios das bordas da metrópole e, sobretudo, na confusão de fronteiras (o risco-exu) produzida nessas experiências (\”cidade\” ou \”mato\”, \”casa\” ou \”rua\”, \”política\” ou \”vida\”) entrevemos uma incontornável insuficiência da categoria de \”política\” compreendida como exterioridade, ordenamento, separação, depuração. Os acampamentos sem-teto nos fazem observar um conjunto de práticas que se revela também como uma forma de conhecer encarnada na vida, uma ciência do engajamento no mundo relacional; ciência menor na qual conhecer depende então do \”movimento do praticante habilidoso de responder contínua e fluentemente a perturbações do ambiente percebido\” (Ingold, 1993: 462). \”Aqui eu me sinto mais viva\”, foi o que eu ouvi de muitas mulheres em ocupações da Zona Norte, Zona Sul, Zona Leste de São Paulo: \”Quando estou longe da ocupação fico até nervosa\”.
Daniel Souza (2019) nos lembra do trabalho de Jeanne Marie Gagnebin que ao
escrever sobre o \”rastro e a cicatriz\”, recupera uma cena emblemática
de \”Odisséia\”. Na volta para casa, o \”herói\” encontra sua
ama Euricleia e é ela quem lava suas feridas, tocando uma cicatriz, a marca
deixada por um Javali. Para Gagnebin, “na história da ferida que vira cicatriz
encontramos, então, as noções de filiação, de aliança, de poder da
palavra e de necessidade de narração” (2009:109 apud Souza, 2019). A ferida é
o rastro, a testemunha viva da história que encontra no corpo sua superfície
atualizada, nas fogueiras noturnas que abrem nas ocupações momentos de
narração, mas também de cumplicidade e aliança. Assumir a ferida, tocá-la com
outros, como presenciei tantas vezes, me parece também a imagem da política do
avesso do ressentimento.
Pensar com a ferida aberta é abrir-se para \”agenciamentos que geram transformações metamórficas em nossa capacidade de afetar e sermos afetados – e também de sentir, pensar e imaginar\” (Stengers, 2017:3) ou como sugere Denise Ferreira da Silva: \”precisamos encarar a escravidão “como crimes sórdidos contra a carne, porque a pessoa das Mulheres Africanas e Homens Africanos registrou o ferimento” é “pensar sobre a ‘carne’ como a narrativa primordial”. (Ferreira da Silva, 2019:110). Se em Hegel o homem (sic) vive assumindo a ferida, o dilaceramento como obstáculo que precisa atravessar para se restituir, em Nietzsche, vivemos porque a ferida nos constrange a viver. (López Petit, 2014), assim como nas ocupações. Na cidade-acampamento desmetropolizada não há política que não seja a dos corpos, sobre os corpos, através dos corpos (Esposito, 2004:125), \”porque o corpo na sua contínua instabilidade, não é senão o resultado, sempre provisório, do conflito de forças de que é constituído\” (Esposito, 2004:125).
4. Atravessar a pandemia como Medusas e contra os Heróis
No já clássico estudo de Chalhoub
(1996) sobre a \”revolta da vacina\”, o historiador descreve a \”guerra contra os cortiços\” na virada do
século XIX para o XX no Rio de Janeiro como paradigma da
\”purificação\” que os novos tempos de crise sanitária e epidemiológica
exigiam. O então prefeito médico modernizador
Barata Ribeiro ordenou destruir com todo o espetáculo de violência um dos
últimos e mais simbólicos cortiços da cidade nesse período. Em sua tese de
doutorado, defendida em 1877, Barata Ribeiro afirmava que os cortiços
\”faziam da ociosidade um trono\” e lá se encontrava \”de
tudo\”, como a \”meretriz impudica que se compraz em degradar corpo e
alma\” e por isso, sua tese \”aconselha\” a demolição de todos eles
(Chalhoub, 1996:51).
Chalhoub conta como a ação de destruição do grande cortiço conhecido como Cabeça de Porco foi narrada com entusiasmo pela imprensa da época, quase sempre associando a imagem de Barata Ribeiro à Perseu e o cortiço destruído à Medusa, uma imagem que evoca uma encenação da masculinidade heróica que destrói uma vida feminilizada, promíscua, contaminada e perigosa. Se até o século XVII, as mulheres eram representadas como queria Aristóteles como uma \”forma imperfeita\” do homem, a partir do século XVIII as mulheres e todas as criaturas feminilizadas passam a expressar a imagem do \”Instável, impregnada de fluidos sexuais, criatura do mundo de penumbras que é a vida privada, onde os homens recuperam a energia para retomar os embates da esfera pública e as guerras\” (Correa, 2016:2017).
A produção da feminilidade fabricada também pela
biomedicina no período de transição para a modernidade se inscrevia mais tarde
de forma fundacional na produção do espaço urbano e se reproduz ainda hoje nos
investimentos de criminalização das ocupações urbanas e nos espaços de
compartilhamento da vida nos quais as fronteiras entre o \”público\” e
o \”privado\” tornam-se esfumaçadas e \”perigosas\”. Não à toa,
Bolsonaro reencena a história convocando ao \”enfrentamento\” da
pandemia \”como um homem\” e \”sem histeria\”. A pandemia faz e é feita também por
tecnologias de gênero.
Punida por ter uma relação sexual
com Poseidon (algumas versões do mito dizem, no entanto, que foi um estupro)
Medusa assume um corpo monstruoso e tentacular para ser depois finalmente
decapitada pela crueldade do herói Perseu (a crueldade é, na verdade, a fonte
do heroísmo masculino diante da mulher bestializada); Em suas representações
como mulher castrada, ela apresenta serpentes fálicas devoradoras,
tentaculares. Medusa, enquanto figura contrassexual, pode ter como tarefa
\”identificar os espaços errôneos, as falhas da estrutura do texto (…) e
reforçar o poder dos desvios e derivações com relação ao sistema
heterocentrado\” (Preciado, 2014:27).
Haraway intui que Medusa talvez
possa nos ajudar a arremessar os navios dos Heróis Conquistadores (incluindo os
que trabalham para uma ciência conquistadora) do século XXI. Ela lembra que tentacle vem do latim tentaculum,
que significa “apalpador” e tentare, que
significa “sentir” e “tentar” – o que nos leva novamente à afirmação do
erótico, da experiência estética, da cozinha aberta e coletiva e da forma
experimentação como forma de conhecer e nos relacionar com o mundo.
Medusa nos faz olhar para as
existências tentaculares que escapam ao mesmo tempo em que são ávidas para
fazer novas alianças e arranjos (inclusive os químicos) assustando os muitos
altares dos Olimpos que ainda nos restam e suas histórias de família, casa e
punição; sua língua de ordenamento, de governo da vida, seu medo do abismo. \”O Chthuluceno é feito de processos
narrativos de multiespécies e de práticas de se-tornar-com que permanecem em
jogo, em tempos precários, onde o mundo não tenha terminado e o céu não tenha
caído – ainda\” (Haraway, 2016).
\”Parece que de repente eu
acordei\”, é a imagem acionada frequentemente por muitas mulheres para
relatarem a experiência de entrar em uma ocupação, \”isso aqui entrou no sangue\”,
elas repetem. Medusa em grego se refere a \”guardiã\”, embora nunca
ninguém tenha falado sobre o que Medusa guarda – um segredo, uma conspiração? A
criatura terrana, única górgona mortal, nos
aponta para uma bifurcação fundamental entre as ciências da purificação
e as do contato; os modos de erguer fronteiras e as muitas coreografias que
praticam a confusão ontológica de se pensar porque somos do mundo. Como
criatura anômala, hesitante, Medusa nos faz convocar outros personagens
conceituais de encruzilhada: o jogo de
cintura insistente desviando das formas de governo da vida do qual falava Lélia
Gonzalez (1988), o Xondaro Guarani, dança-luta da esquiva (Keese, 2017), os
corpo baldios que assumem sua vulnerabilidade e que por isso se abrem para
composições e variações inusitadas. Os olhos de Medusa que nos pedem
\”Renunciar, por um tempo talvez, a essa velha assombração da representação
e linearidade da narrativa e surpreender-se com o profundo das incertezas\”
(Mombaça; Mattiuzzi,
2019) e criar, de uma vez por todas, uma vida que realmente desejamos viver.
conspirar quer dizer respirar junto e é disso que somos acusadas
Referências Bibliográficas:
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como a matéria chega à matéria. Vazantes. N.1 V.1, 2017
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CORREA, Sonia. A CATEGORIA MULHER NÃO SERVE MAIS PARA A LUTA
FEMINISTA. Entrevista feita por Por Laura Daudén e Maria A.C. Brant. SUR 24 – v.13 n.24 • 215 – 224 | 2016
ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Giulio
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FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo.
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KEESE, Lucas. A esquiva do xondaro: movimento e ação política
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STENGERS, Isabelle. Introductory Notes on an Ecology of
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Tsing, A. L. The Mushroom at the end of the world: on the possibility of life. Princeton: Princeton University Press. 2015
[2] A Mixotricha paradoxa é um organismo
unicelular microscópico que vive no intestino posterior do cupim da Austrália
setentrional.\” Aquilo que conta como “ele” é complicado, pois ele vive em
simbiose obrigatória com outros cinco tipos de entidades\”. Mixotricha quer dizer \”Fios misturados\”.
Contexto: na última semana após projetar a possibilidade de 250 mortes por dia em um cenário epidemiológico para a cidade de Fortaleza, o Secretário de Saúde do Estado, Carlos Roberto Sobrinho, anunciou providências com relação à compra de 15 mil túmulos, face às preocupações do Governo do Estado (Governador Camilo Santana) com possíveis mortes em consequência da pandemia. A semana já havia sido tensa em função das pressões políticas especialmente exercidas pelo setor empresarial da construção civil. O Secretário havia participado de uma reunião remota com o grupo de empresários e a disparidade das posições ficaram evidentes e acirradas. Todo o setor dito produtivo vêm se posicionando a favor de uma flexibilização das medidas de isolamento social. O governo do Estado do Ceará é acusado de ter sido leniente na compra de equipamentos de proteção individual (EPIs) e de não ter se preparado para tragédia. Há também uma forte oposição da atual diretoria do sindicato do médicos à posição do secretário e do governo do estado. O argumento é que isolamento social é coisa de elite. Tal conjuntura é agravada pelas dificuldades enormes criadas por um Governo Federal que vem trabalhando para o desmonte de todas as políticas sociais, inclusive àquelas relativas ao SUS e à SUAS. Todavia, esses fatores são deixados de fora na composição dessas críticas.
Por que atacamos a dignidade daqueles que colocam em jogo a dimensão do cuidado ao próximo em nosso Estado?
No começo do século XIX, o baiano Rodolfo Teófilo afirmava “Sou cearense, porque quero\”. Ao inventar a cajuína, que muitos pensam ter origem piauiense, o farmacêutico que adotou o Ceará para sua luta e vida, conseguiria suavizar o travo do caju, adocicando-o, mas, os dias de hoje confirmam, não conseguira adoçar as elites cearenses que agora atacam as políticas de saúde do Estado, nominando-as de mentirosas, aproveitadoras e corruptas. Há uma peste no poder. Mas a linha do ódio não me interessa aqui repetir. O rosário [me perdoem o sacrilégio] de palavras produzida nos canteiros de obras do ódio é ilimitada, mas é certo: uma pá de cal é definitivamente colocada sobre a importância da vida do pobre.
Silenciosos, alguns seguem.
Temos vergonha da nossa miséria e da nossa pobreza. Envergonhados nos cobrimos com os véus da indiferença e da culpa e planejamos o extermínio daqueles que ousam enfrentar a hegemonia do poder econômico. Ao longo da última semana, o médico Carlos Roberto Sobrinho violou um tabu, o nosso tabu, ao confessar que havia comprado 15 mil túmulos para dar cova digna àqueles que possam morrer em nosso Estado, em consequência da pandemia. Destaco particularmente esse recorte da fala do secretário estadual de saúde posto considerar que ele incide sobre um ponto de opacidade da nossa história, uma espécie de segredo que mora na cripta do nosso inconsciente histórico e cultural e que diz respeito as narrativas sobre as políticas públicas de extermínio adotadas nos idos da Belle Epóque fortalezense.
A prática dos currais humanos, como também eram conhecidos os campos de concentração cearenses, já havia servido ao isolamento dos retirantes de 1877-1878, quando a seca trouxe para capital, então com 30.000 habitantes, cerca de 100.000 homens. Esta seca ficou para a história do Estado como uma emblemática catástrofe humana. Naqueles dias, a fome e as pestes, em especial a varíola, chegaram a matar na capital, em um só dia, nada menos que 1004 pessoas. Dez de dezembro de 1878 ficou conhecido como o “Dia dos Mil Mortos”. Os doentes, quando sobreviviam, eram removidos pela força policial para os abarracamentos afastados do centro da cidade e urrando de dor com suas feridas, eram conduzidos pelas ruas em redes de panos grossos por homens pagos à base de ração de carne seca, farinha e pinga. Sertanejos trôpegos caminhavam por mais de três quilômetros carregando os corpos de velhos, crianças, homens e mulheres seminus. Corpos se amontoavam pela cidade e ao longo de todo o trajeto da estrada de ferro, a indiferença do poder público de então ofendia a dignidade não apenas da vida, mas, também, da morte. Na biografia de Rodolfo Teófilo e de reconto desses dias, o sociólogo e escritor Lira Neto, em livro homônimo a esse texto, descrevera a vergonha sentida pelo farmacêutico com o transporte público dos moribundos.
A verdade histórica sobre os campos de concentração cearenses pode ser considerada um símbolo perdido da experiência da fome, da doença e do horror à morte que foram apagados desde a nossa cultura. Todavia, o que não pode ser esquecido, e menos ainda lembrado, cedo ou tarde faz a sua aparição.
Dar dignidade à morte é uma preocupação reveladora do valor dado à vida. A formação humanista de muitos de nossos médicos, de nossas equipes de saúde e políticas de Estado têm o dever e a oportunidade de escreverem hoje um capítulo outro de nossa História.
Lembrete deixado pela cearense Raquel de Queiroz:
No ceú entra quem merece
No mundo vale quem tem…
………………………………….
Como tenho vergonha
Não peço nada a ninguém…
Que me parece quem pede
Ser cativo de quem tem…
(O Quinze)
Fortaleza, 18 de abril de 2020
Karla P. Holanda Martins. Psicanalista. Membro do GBPSF. Professora Associada da Universidade Federal do Ceará Autora do livro Sertão e Melancolia: espaços e fronteiras (Appris, 2014)
Neste dia teremos como convidadxs tramadorxs pra disparar a nossa conversa a Bru Pereira (antropóloga e educadora, mestre em Ciências Sociais pela UNIFESP) e o Jean Tible (ativista e professor de Ciência Política da FFLCH/USP). No mesmo dia divulgaremos o link pra sala de videoconf, aqui neste post e também nos canais abaixo [1].