Author: tramadora_q3o93j

  • Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército

     

    Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército

    acácio augusto

     

    O Espirito Santo é um dos estados mais violentos da federação. Há décadas figura nas primeiras posições em taxa de homicídios, taxa de encarceramento e assassinato de mulheres. Basta consultar os últimos Atlas da Violência, Mapa do Encarceramento e Mapa Violência. Essa violência, como não poderia ser diferente, remonta ao estilo de colonização da região. A colonização pela espada e pela cruz esteve orientada aqui para que o estado servisse de barreira de proteção às riquezas das minas gerais. E mesmo recentemente, quando no começo dos anos 2000, os índios Tupinikin e Guarani resolveram enfrentar a multinacional Aracruz Celulose (hoje FIBRIA), foram duramente reprimidos pela Polícia Federal e por tratores, no sangrento janeiro de 2006. Em resumo, a violência é regra e não exceção no estado. Há menos de um ano, o assassinato de um jovem em Jardim da Penha, Vitória, despertou alguns poucos que ainda se incomodam com isso [nota 2].

    Recentemente o estado tem sido lembrado como exemplo de superação em relação à política penitenciária. Após abrir os famosos “micro-ondas”, carceragens de zinco em formato de contêineres, e ser denunciado no CIDH, a política de superencarceramento do Espírito Santo ganhou aporte federal. Hoje, passados quase 10 anos e a propósito das cabeças que rolaram ao norte do país, a imprensa nacional olha para o Espírito Santo como modelo a ser seguido. Seu secretário de Justiça hoje, Walace Tarcísio Pontes, integrante da equipe de Paulo Hartung, mesmo governador da época dos contêineres, se gaba de ter zerado as mortes e controlado o “caos prisional” no estado. Em matéria da BBC Brasil, ele declara que sua palavra-chave é “arquitetura-prisional” e após investir mais de R$ 500 milhões, o estado passou de 13 par 35 unidades prisionais [nota 3]. Descentralizadas e inspirada em prisões estadunidenses que impedem a comunicação entre pavilhões e proíbe a entrada de comida e material de higiene trazidos pela família, essas modernas instalações substituem os chamados cadeiões com eficácia, como se orgulha o ilibado gestor. No entanto, pesquisadores que acompanham de perto essa política de aprisionamento da miséria no estado, mostram que nem tudo são flores e que a “arquitetura-prisional” foi erigida com violentos procedimentos de tortura sistematizada [nota 4].

    No entanto, mesmo com um histórico deste, o estado ficou de fora da farra orçamentária da segurança pública que circundou a realização dos megaeventos. Como se sabe, especialmente estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, tiveram uma volumosa renovação de equipamentos, treinamentos, contratação de pessoal, etc., como resposta às revoltas de junho de 2013 e adaptação às exigências internacionais para realização dos megaeventos. Pois bem, o Espírito Santo ficou fora disso tudo e tem hoje uma PM pré-Copa. Militares são constitucionalmente impedidos de fazer greve. Mas seus familiares decidiram prostrarem-se diante dos quarteis da Polícia Militar reivindicando ajuste salarial (alegam que a categoria não o tem há 7 anos), plano de saúde familiar (alegam que o Hospital Militar está abandonado) e auxílio alimentação, uma promessa não cumprida pelo governo do estado. A mobilização dos familiares começou na noite de sábado, 4/2/17, mas foi na manhã de segunda que o discurso de pânico e desordem produziu seus efeitos. Via aplicativos de mensagens e redes sociais digitais, os relatos e vídeos de lojas saqueadas, carros roubados e violência generalizada foram se avolumando desde o final de semana, até que na tarde de segunda, 6/2/17, a Região Metropolitana da Grande Vitória se tornou uma cidade fantasma.

                         

    Deste momento em diante as coisas se passam como se fosse um resumo em ato das ficções jurídicas que justificam o Estado nos livros jusnaturalistas do século XVII e XVIII. A ausência de autoridade instala a “guerra de todos contra todos” e é preciso uma autoridade centralizada e forte que estabeleça a lei e a ordem. Foi o que o secretário de segurança do estado, André Garcia, fez: convocou o Exército Brasileiro e a Força Nacional de Segurança para (re)estabelecer a ordem. Em pouco tempo, as mensagens com relatos e vídeos de lojas saqueadas foram sendo substituídas por imagens de abordagens dos homens do exército e imagens apavorantes de corpos empilhados no DML (Departamento Médico Legal de Vitória), que teve sua capacidade excedida. No entanto, o que foi anunciado como guerra de todos contra todos, logo se tomou uma caçada de homens armados e fardados contra quem se aventurou a não respeitar o toque de recolher. No DML, as imagens dos corpos mutilados eram de corpos, como diz a canção, todos pretos, ou quase pretos de tão pobres. Para um paulistano vivendo em Vila Velha/ES, a lembrança do maio de 2006 [nota 1] e o massacre de 500 pessoas pela polícia e grupos paramilitares de extermínio foi imediata. Aqui, até o momento, os números oficiais falam em mais de 60 corpos.

    No entanto, tudo isso, infelizmente, não é novidade quando se pensa na repressão regular dos dispositivos de segurança do Estado. O que mais me impressionou foi que, no final da tarde de segunda-feira, conforme os carros e caminhões do Exército Brasileiro (a Força Nacional de Segurança diz chegar durante o dia 7/2/17) foram ganhando as ruas desertas, as pessoas saíam nas sacadas dos prédios para saudá-los, batendo palmas e gritando vivas. No exato momento me veio à mente a cena do filme do grego Costa Gravas, Missing, que em português recebeu o nome de Desaparecido, um grande mistério, de 1982, baseado em história real contada no livro de Thomas Hauser, The Execution of Charles Horman: An American Sacrifice, de 1978, que conta o desparecimento de um jovem jornalista estadunidense durante o golpe de Estado do General Augusto Pinochet, no dia 11 de setembro de 1973, no Chile. Neste filme, cada vez que os caminhões do exército passavam nas ruas, logo após o golpe, as pessoas saíam nas sacadas das mansões para aplaudir os militares. É claro que não quero comparar, muito menos mostrar similitude entre momentos dispares no tempo e no espaço. Na forma de relato expresso apenas uma memória imagética e cinematográfica que me acorreu ao ver as pessoas em suas sacadas, nas quais antes se batiam panelas, agora aplaudindo o exército tomando as ruas da cidade. No entanto, em ambos os casos fica claro uma coisa: não se condena a violência em si, mas apenas aquela violência que parece não estar a serviço de sua segurança e felicidade.

     

    Outra relação um pouco aflitiva com o filme retomado em minha memória imagética é que o protagonista do filme, Ed, pai de Charles Horman, vai ao Chile e procura mobilizar as autoridades de seu país natal para saber o que aconteceu com o jovem jornalista desaparecido. Ed, junto à esposa de Charles, Beth, corre delegacias, hospitais, embaixadas até descobrir que seu filho foi “desaparecido” por agentes do exército e se encontra emparedado no Estádio Nacional de Santiago, junto à outros opositores do Golpe. Essa lembrança me leva a pensar nos pais, mães, irmãs, esposas, irmãos que começarão a mesma jornada de reconhecimento de corpos e esclarecimento dos fatos com os possíveis “desaparecidos” desta noite de estado sítio no estado do Espírito Santo. Com a diferença de que seus filhos, irmãos e companheiros não são nem jornalistas nem cidadãos da nação mais rica e poderosa do mundo.

    Por fim, sem a menor intensão de estar produzindo uma análise para além de um relato com impressões [nota 5], há uma última questão a ser levantada. Muito se falou que a partir da greve da PM no estado, a população do Espírito Santo ficou refém de “marginais” e da “criminalidade”, isso pode até ser verdade, durante algumas horas e/ou dias, mas podemos ver as coisas de outro jeito também. Quando aqui chegaram os colonizadores, eles diziam encontrar um povo “sem fé, sem lei e sem rei”. Pois bem, por meio da violência e de um brutal etnocídio instaurou-se aqui a fé, a lei e a autoridade centralizada (seja ela do rei, do povo ou da nação). Mais de 500 anos depois, uma simples greve daqueles que mantém a lei e a ordem pela violência, é capaz de instaurar a desordem, atiçar a ânsia em tomar na marra tudo aquilo que se repete a exaustão que se deve ter, mas não se pode comprar. Numa equação simples, se por horas ou dias a população ficou refém da criminalidade, por toda vida ela é refém da polícia. Assim, a força maior vem para pacificar e instaurar a ordem contra aqueles que ainda subsistem, aqueles que insistem em viver nessa civilização sem fé, sem lei e sem rei. O que mostra, a despeito de todas a explicações filosóficas, sociológicas e históricas, que vivemos sob uma autoridade que é tão brutal, na mesma medida em que é extremamente frágil, pois encontra-se em guerra permanente contra uma parte significativa da sociedade, enquanto a outra parte vive entre o pavor de ser expolida e a prontidão em aplaudir o massacre em nome de sua felicidade. Então, diante disso, eu pergunto: é de polícia que precisamos? Ou melhor: quem precisa de polícia? Para quê? Contra quem? Pra que serve a polícia? As respostas triviais não nos levarão a conclusões satisfatórias.

    De fato, como nos alertou Michel Foucault, “a política é a guerra continuada por outros meios”.

    Nota 1: Ver “Um breve histórico da luta e vitória das comunidades indígenas contra a gigante Aracruz Celulose no ES”, in https://prazeresdeamelie.wordpress.com/2009/02/27/um-breve-historico-da-luta-e-vitoria-das-comunidades-indigenas-contra-a-gigante-aracruz-celulose-no-es/

    Nota 2: Ver http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2016/10/grupo-sai-da-ufes-e-protesto-contra-morte-de-jovem-no-bairro-da-penha.html

    Nota 3: Camilla Costa. “Como o Espírito Santo conseguiu zerar mortes em prisões – e o que ainda não funciona em seu sistema”, in BC Brasil em São Paulo, 17 de janeiro de 2017, em http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38657173

    Nota 4: Ver “Crescimento da população carcerária implica aumento da violação de direitos. Entrevista especial com Humberto Ribeiro Júnior” in http://www.ihu.unisinos.br/publicacoes/159-entrevistas/564467-aumento-da-populacao-carceraria-implica-aumento-da-violacao-de-direitos

    Nota 5: Veja também o relato de Lívia de Cássia Godoi Moraes. “Esta noite dormiremos temerosos: sobre o caos nas cidades capixabas” in http://www.esquerdadiario.com.br/Esta-noite-dormiremos-temerosos-sobre-o-caos-nas-cidades-capixabas

  • As 7 vidas do neoliberalismo

    Tatiana Roque

    Professora da Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ

    Presidente da ADUFRJ (Sindicato dos professores da UFRJ)

     

     

    A estranha não-morte do neoliberalismo. Essa é a tradução do título de um livro de Colin Crouch, mostrando que, ao contrário do que esperávamos após a crise de 2008, o neoliberalismo não morreu, ele renovou suas formas de governo. Um dos mecanismos que tornou possível essa virada está no tratamento preferencial dado a grandes organizações, no lugar das leis anti-truste que caracterizavam o projeto neoliberal em seu início. Isso só é possível pela aliança entre empresas e governos, que instituem os mecanismos necessários para que corporações globais dominem o mercado e o cenário político. O livro foi escrito em 2011, antes de Trump, que atualiza de modo surpreendente o projeto, colocando diretamente os CEOs das grandes corporações em cargos políticos do governo, em uma estratégia que Naomi Klein chamou de “eliminação dos intermediários”.

    Acontece algo parecido por aqui. Ainda que tenhamos um intermediário em posição mais que estratégica, na presidência da república, trata-se do intermediário perfeito, pois funciona como correia de transmissão direta dos interesses das corporações e do mercado financeiro. Não que esses mecanismos estivessem ausentes durante os governos anteriores, só que havia um nível razoável de disputa política intermediando o jogo de interesses. Agora está tudo escancarado.

    O jogo de interesses oligárquicos mantém a crise como instrumento de ampliação do poder político (tornado imediatamente econômico). Assistimos à vitória das grandes empresas multinacionais que exercem pressões contínuas sobre as autoridades políticas para se beneficiarem de subvenções, vantagens fiscais e trabalhistas que garantem a deflação dos salários. Esse fenômeno, que acontece em escala mundial, atuou fortemente para a política desastrosa de desonerações fiscais, que contribuiu para a derrocada da economia no governo Dilma.

    Para entender “esse pesadelo que não acaba”, Pierre Dardot e Christian Laval destacam o papel do Estado como agente ativo na implementação das políticas capazes de atender as demandas das empresas. Ao invés de funcionar como proteção aos direitos sociais, tentando um equilíbrio entre a lógica do capital e alguma justiça social, o Estado passa a ser um ator-chave na implementação de um ambiente fértil para os negócios. Assim, “as velhas receitas do nacional-estatismo são inoperantes, quando não chegam a usar a retórica da direita em um deslize perigoso”. O Estado é um dos atores em uma teia complexa que garante a instalação da racionalidade neoliberal em todo o tecido social, visando instalar a concorrência.

    Para dar um exemplo recente, a aprovação da PEC do teto de gastos busca, precisamente, instaurar a lógica concorrencial dentro das despesas públicas. Para ser possível respeitar o limite, mantendo os padrões atuais de investimento em saúde e educação, deve-se compensar essas despesas pela redução de outras (ainda que não exista margem para isso). A PEC visa submeter os gastos públicos a uma dinâmica concorrencial: saúde e educação pressionam os gastos com previdência e funcionalismo; ensino básico pressiona os gastos com ensino superior. A demanda de produtividade aumenta e a concorrência determina a racionalidade das despesas primárias do Estado, ao mesmo tempo em que as taxas de juros mantêm-se fora do cálculo. Na outra ponta, convoca-se o apoio da opinião pública, mobilizando sua correta percepção de que há problemas de gestão e injustiças no funcionamento da máquina estatal.

    Ainda que não tenha paralelo em outros países, essa PEC radicaliza uma política que, ao contrário das expectativas, vem sendo a tônica de governos socialdemocratas ao redor do mundo. É incerto afirmar que a onda não chegaria por aqui, ainda que sob formas mais suaves, com a manutenção dos governos do PT. Há algum tempo, a socialdemocracia tem agido como linha auxiliar dos mercados no desmonte da proteção social e dos direitos do trabalho, tornando-se cada vez mais incapaz de cumprir seu ideal de conciliar economia capitalista e justiça social. Ao invés de proteger a população dos efeitos do neoliberalismo, alia-se reiteradamente às suas formas de governo. No máximo, conseguem inserir medidas excepcionais no interior de governos atravessados por múltiplas contradições, como foi o caso, no Brasil, da expansão da universidade e do SUS. Não à toa, os setores que serão mais afetados pelo teto de gastos.

    O desmonte do Estado bem-estar social adquire proporções gigantescas no Brasil. Agora será a vez da reforma da Previdência e seguiremos perguntando por que a resistência organizada pela esquerda não consegue mobilizar a população mais pobre, que é sua própria razão de ser. As denúncias que vêm sendo feitas, apontando a intenção neoliberal de diminuir o tamanho do Estado, não parecem realmente suscitar a indignação necessária à mobilização. Pensando bem, por que as pessoas iriam defender um Estado de bem-estar social em abstrato, se não percebem os serviços públicos como proteção efetiva de seus direitos básicos de existência? Ao contrário, a maioria da população ou paga caro por planos de saúde e escolas privadas que funcionam mal ou precisa encarar quotidianamente a situação precária dos postos de saúde e das escolas públicas. Quando experiências tão distintas geram a mesma desconfiança em relação às promessas do Estado, deve-se procurar o erro nas promessas, e não em um suposto conformismo da população. Se levarmos a sério as percepções e escolhas da população, ao invés de enxergá-la como massa amorfa teleguiada pela mídia hegemônica, deveremos perguntar qual tem sido o papel do Estado em fornecer alguma garantia de segurança e acesso a direitos básicos de subsistência.

    A denúncia e a indignação podem ser sintomas de certo desencanto, como se pouca gente fosse capaz de ouvir e entender nossos clamores. Mas talvez esses clamores sejam slogans repetitivos esvaziados de sentido. Não à toa, toda essa discussão é perpassada pela dissolução da democracia liberal e pela necessidade urgente de repensarmos as bases de uma outra democracia possível. Mas esse será assunto de uma próxima conversa.

  • dos muitos golpes no Brasil: a situação atual da violência de Estado

    Acácio Augusto

    \"\"

    Imagem 1

    O principal agente da violência nas sociedades modernas é o Estado. Ele se define e mantém sua dominância pelo exercício dela. Ao contrário do que se imagina, devido ao estereótipo vinculado ao futebol e ao carnaval, o Brasil é um país extremamente violento. Esta violência está diretamente ligada a uma polícia com alto grau de letalidade. Só em 2015, foram 58.383 pessoas assassinadas[1], 160 mortos por dia. Isso, segundo dados oficiais do governo apurados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2016. Destas mortes, 3.345 são atribuídas diretamente à polícia, mas deve-se considerar uma série de fatores que ligam as outras mortes indiretamente à ação policial. Em geral, essa letalidade é aplaudida pela grande maioria da população, que há muito tempo se regozija com um populismo punitivo alardeado pelas mídias e outros setores da sociedade.

    Além da violenta e predatória história colonial e o fato do Brasil ser o último país das Américas a abolir a escravidão, fatores recentes contribuem para essa extrema letalidade e uma violência social letal praticamente naturalizada. Em 1964 o país sofreu um golpe civil-militar que inaugurou a série de golpes na América do Sul com ingerência dos EUA como forma de garantir a zona de influência em um contexto de Guerra Fria. No entanto, quando o regime civil-militar teve fim, em 1985, a chamada “transição lenta, gradual e segura” não extirpou da vida pública os diversos agentes sociais que sustentaram e se beneficiaram do período de exceção: de grandes conglomerados comunicacionais até setores das oligarquias regionais rurais, além de uma pequena elite urbana de hábitos colonizados. A chamada abertura política e/ou democrática foi resultado de um pacto entre as elites, ainda que atendendo às demandas da chamada sociedade civil organizada. Este pacto corresponde às novas diretrizes planetárias, sintetizadas pela ONU e suas agências, em contexto de derrocada do mundo soviético ao leste do planeta e sob o signo do que se chamou de “nova ordem mundial”.

    \"\"

    Imagem 2

    No ocaso do século XX, mais precisamente na abertura do século XXI, o Brasil viverá um ciclo de governos chamados progressistas. Inaugurado por dois mandatos de um sociólogo de tendências marxistas, vinculado a um partido de nome “socialdemocrata” mas de política neoliberal, e seguido por um ex-líder sindical e uma ex-guerrilheira vinculada à luta contra a ditadura civil-militar, ambos pertencentes ao PT (Partido dos Trabalhadores), que gaba-se em ser o maior partido de massas das américas. Essa sequência de governos em uma democracia formal e sem ingerência dos militares na vida política inaugurou um ciclo de prosperidade, despertando fortes esperanças tanto interna quanto externamente: um país que finalmente “estaria dando certo” ou no caminho de ser grande. O recente processo de impeachment, concluído no segundo semestre de 2016, que derrubou o segundo mandato da presidente eleita pelo voto direto e majoritário criou uma fissura, em alguma medida inesperada, que acabou interrompendo esse ciclo progressista de governos, mas não alterou a racionalidade governamental dominante. Isto faz com que muitos no Brasil, em especial os setores próximos ao governo deposto, gritem que foi um golpe! Seguido de algum adjetivo: parlamentar, midiático, judicial ou os três juntos.

    \"\"

    Imagem 3

    De fato, o processo que derrubou a presidente foi eivado de manobras jurídicas, jogos com a opinião pública e interesses mesquinhos dos representantes do poder legislativo e outros setores interessados. A operação de saneamento do Estado, encabeçada por um juiz de província elevado ao status de herói nacional, nomeada como Lava Jato foi o ponto de apoio dos setores da mídia e da massa conservadora da sociedade para colar no partido que até então ocupava o governo federal, o PT em aliança com o PMDB, o estigma de corrupto e tudo mais de abjeto que possa existir na política nacional. Somou-se a isso uma intensificação de posturas conservadoras e fascistas da sociedade, tanto nas classes médias quanto nas classes populares. Na última década, e junto ao histórico racismo de Estado, o ódio ao diferente tem ganhado campo amplo no país, se amplificando nas redes sociais digitais e encontrando representantes políticos que incorporam esse discurso. A ponto de se defender, abertamente, a volta dos militares ao comando do governo executivo. No entanto, seria equivocado, ou mesmo simplista, atribuir à deposição da presidente a culminância de uma escalada autoritária no país. Como se, após o chamado golpe, a democracia teria sido solapada e a política do país sofresse uma guinada de cento e oitenta graus. De uma perspectiva anarquista, o que se passa hoje no Brasil é consequência lógica de um regime democrático estatal representativo que só se mantém por uma extrema judicialização da vida e da política e uma prática de governo que se reduz cada vez mais a produção hiperbólica de segurança, a despeito de qualquer outro valor político e social, até mesmo em detrimento da democracia formal e dos valores elementares de uma sociedade moderna com o mínimo de liberdade individual, como amplo direito de defesa diante de um tribunal. A questão central é que isso não se iniciou com a deposição da presidente. Mesmo que a consumação desse fato tenha gerado, na linguagem dos constitucionalistas, uma insegurança jurídica e, com efeito, tenha legitimado setores conservadores que viam no governo do PT uma ameaça comunista, por mais absurdo que isso seja.

    \"\"

    Imagem 4

    Os 13 anos do governo desposto se vangloria de ter atingido uma série de metas estabelecidas pelos organismos internacionais, em especial a ONU e suas agências como PNUD e UNICEF. A principal delas seria a erradicação da miséria extrema por meio de complementação de renda aos mais pobres, cobrando contrapartida como obrigatoriedade de matrícula escolar dos filhos e vacinação regular, ou seja, ampliando o controle estatal sobre os corpos, em especial, das crianças. Além disso, propagandeia uma série de políticas sociais ligadas à ampliação do crédito no varejo, programas de financiamento de casas populares e programas de crédito estudantil. Em resumo, o governo democrático de esquerda no Brasil promoveu uma política de inclusão pelo consumo que produziu uma massa de novos endividados, algo que os bancos, estatais e privados, agradecem. Além de favorecer, por meio dessas políticas, os valores característicos da racionalidade neoliberal, metamorfoseando proletários em proprietários, pobres em empreendedores de si. Mas não só. Este governo esteve à frente de megaprojetos desenvolvimentistas, como a construção da Usina de Belo Monte, com prejuízo aos povos indígenas e ribeirinhos. E como toda socialdemocracia no mundo pós-Muro de Berlim, investiu fortemente em segurança, como mostrou Loïc Wacquant em suas pesquisas sobre as prisões e política de segurança nos EUA, Inglaterra e França. O governo federal do PT criou uma nova polícia repressiva em 2004, a Força Nacional de Segurança; levou adiante um programa de superencarceramento já iniciado no governo anterior; despejou rios de dinheiro para a política de pacificação das favelas no Rio de Janeiro, as UPP (Unidades de Polícia Pacificadora), face interfronteiras da MINUSTAH, intervenção militar da ONU no Haiti capitaneada pelo exército brasileiro; enfim, um dos últimos atos da presidente desposta foi a criação de uma Lei Antiterrorismo (lei 13.2060/2016) que abre precedentes jurídicos brutais para criminalização dos movimentos sociais. Além do fato de que hoje, há menos de um ano do chamado golpe, o partido que se diz golpeado se vê às voltas com alianças junto aos partidos que perpetraram o tal golpe. Uma retórica, no mínimo, pouco convincente.

    \"\"

    Imagem 5

    O ponit of no returne da política e das lutas no Brasil foram as jornadas de junho de 2013, manifestações inéditas e espetaculares em todo país. Iniciada em São Paulo, em meio aos protestos contra o aumento da tarifa do transporte coletivo, essas manifestações colocaram em xeque a narrativa do Brasil grande e do país que finalmente deu certo. Grandeza que seria confirmada com a recepção de megaeventos planetários como a RIO+20, da ONU, a Copa do Mundo de Futebol, da FIFA, e as Olimpíadas, do COI. Respectivamente programadas paras os anos de 2012, 2014 e 2016. Muitos do que foram às ruas alertavam que nesse Brasil grande pobres, pretos e indígenas seguiam sendo assassinados pelo Estado; que as desigualdades históricas seguiam reforçadas; que os antigos perseguidores do presidente sociólogo, do presidente sindicalista e da presidente guerrilheira, são agora seus aliados de governo. Metamorfosearam-se de perseguidos em perseguidores. A emergência do ingovernável nas ruas em junho de 2013, que seguiu adiante, principalmente contra a Copa e as Olimpíadas, expôs o intolerável de qualquer governo, a insuficiência da democracia, e abriu uma brecha para manifestações de revoltas antipolíticas que não cabiam em planos e planilhas dos atuais gestores da miséria no país.

    \"\"

    Imagem 7

    O governo, mesmo ungido pelo título de progressista, de esquerda e democrático, agiu como agiria qualquer Estado: reprimiu duramente os protestos, promoveu perseguições e investigações. Prontamente, a imprensa e diversos analistas políticos, à esquerda e à direita, produziram uma enxurrada de “análises”, diferenciando manifestantes “pacíficos” de “vândalos”, estes últimos identificados entre os anarquistas, autonomistas não ligados aos partidos e aos movimentos sociais não alinhados ao governo e, principalmente, praticantes da tática black bloc. Com os vândalos expulsos das ruas pelas bombas e cassetetes da polícia, e muitos respondendo a processos criminais, os chamados manifestantes pacíficos foram gradualmente ocupando essas ruas. Mas desta vez, vestidos com a bandeira do Brasil e pedindo maior moralidade dos governantes, maior punição a infratores da alta e da baixa política, e com demandas que iam da deposição da então presidente à pedidos de nova intervenção dos militares, além de regulares manifestações de ódio à gays, racismo institucionalizado e clamores por uma ordem mais rígida. Era comum entre esses manifestantes, ao invés do embate, a empatia com a polícia, tirando fotos para depois espalhar pelas redes sociais digitais. Enfim, a centralidade do Estado e sua violência foi reposta, após brutal repressão ao ingovernável e um conturbado processo eleitoral em outubro de 2014, começo da reação que visava conter a potência das ruas.

    \"\"

    Imagem 8

    De uma perspectiva anarquista, não há o que lamentar desse processo, a não ser seguir lutando contra a violência do Estado e as explorações do capitalismo. No entanto, se hoje, janeiro de 2017, o país se encontra às voltas com um presidente que não foi eleito diretamente pelo voto, com o crescimento assustador de um discurso de ódio contra negros, gays, mulheres e todo tipo de manifestação de diferença e de contestação política, além de uma violência que se alastra por meio da polícia em manifestações de rua até decapitações em presídios de todos país, isso se deve ao fato de que, no momento em que a violência de Estado foi colocada em xeque nas ruas, as forças de esquerda que então ocupavam o governo fez de tudo para repor sua centralidade. Funcionou como aparador e contentor da revolta para depois ser chutada por seus próprios aliados e sócios nos negócios e negociatas do Estado. Hoje chora a falência de um Estado de Bem Estar Social que, a bem da verdade, nunca existiu aqui. A operação estatal mais bem sucedida como reposta às revoltas de junho de 2013 foi justamente a diferenciação entre vândalos e pacíficos, esta abriu caminho para um processo de pacificação brutal, todo efeito institucional a ser lamentado é posterior. E essa distinção foi operada pelo governo democrático e de que esquerda, reforçada a todo tempo por seus chamados \”intelectuais orgânicos\”, chegando ao absurdo de dizer que anarquia e fascismo eram equivalentes.

    Chamem de golpe ou impeachment, a atual situação política de instabilidade no Brasil é a sequência dos históricos golpes perpetrados aqui por oligarcas, militares e dirigentes/gestores políticos, de esquerda e de direita, que nunca vacilam em repor e reafirmar a centralidade e a violência do Estado. A despeito de questões conjunturais extremamente preocupantes, o Brasil segue, como antes, tendo a polícia que mais mata no mundo. E como sabe qualquer anarquista, a polícia é o golpe de Estado permanente.

    Não há solução diante disso, apenas a luta contínua, ou a pequena guerra (petite guerre), como chamava Proudhon a atividade de luta rebelde contra a miséria das guerras de Estado, travada além das fronteiras e contra aqueles declarados inimigos internos. Desde junho de 2013, as lutas autônomas e o interesse pela anarquia cresceu no Brasil, mas também surgiu um movimento conservador que, diferente de outros momentos da história do país, vai para rua e se organiza aos moldes de um “movimento social”, reivindicando seu espaço no espetáculo político da chamada opinião pública, esse consenso fabricado que acaba incidindo como ditadura da maioria em favor dos interesses da mesma minoria (neste caso, numérica, e não no sentido dado por Deleuze). Estes grupos, a partir do pedido de deposição da presidente eleita, conseguiram dar vazão à todo conservadorismo da sociedade brasileira.

    Os anarquistas seguem com suas lutas, enquanto a esquerda institucional luta por hegemonia, tentando reorganizar-se em torno da sua zona de influência juntos aos movimentos sociais domesticados e inscritos na gramática da luta política estatal por reconhecimento e direitos. Nós, anarquistas, seguimos nas ruas, com bandeiras e blocos negros, e nas universidades, com pesquisas e publicações que desafiam a ordem, enquanto minoria potente (essa sim, no sentido dado por Deleuze). Desacatamos a ordem durante o governo de esquerda que agia segundo a governança global da racionalidade neoliberal. Não será diferente agora, diante da nova conformação governamental dessa mesma racionalidade neoliberal que anuncia um ajuste conservador em todo planeta. Não nos interessa a conservação de direitos ou a defesa de um Estado de Bem Estar Social, que ao Sul nunca existiu e ao norte significou a contenção e normatização das lutas. Sabemos que todo direito implica dever para com o Estado, seja ele de que cor for. E quando dizem que a autogestão (mutualismo econômico) e a ação direta (associativismo e federalismo político) são utopias, o que temos a dizer é: utopia é essa busca por paz e segurança projetadas no Estado que habita os corações e as mentes desde a emergência da era moderna. O trabalho de um anarquista é outro. O anarquista é o artífice na construção da vida outra. A luta, para ele, é feita na transformação de si, na luta contra o que somos e em guerra contra a sociedade e o Estado.

     

    \"\"

    Imagem 9

     

    nota: Este breve registro foi escrito originalmente para a edição #123, de fevereiro de 2017, do periódico Slingshot Collective de Berkeley, EUA (http://slingshot.tao.ca/). Não se trata de uma análise de conjuntura, mas um curto diagnóstico histórico-político da situação das lutas no Brasil para anarquistas de outros países. Reproduzo, com pequenas modificações, por dois motivos: 1. Me parece que há algumas questões pouco consideradas aqui sobre a situação política do país, vistas de uma perspectiva anarquista; 2. O periódico circula impresso e em outra língua, logo de difícil acesso ao leitor brasileiro.

     

    Legenda de imagens:

    Imagem 1 (Arquivo “ataque à polícia”): Um manifestante black bloc ataca a polícia em manifestação de junho de 2013 na cidade de São Paulo. Autor: Revista Vice Brasil.

    Imagem 2 (Arquivo: “antifa SP”): concentração para o Ato contra a tarifa do MPL, em janeiro de 2016, em frente ao Teatro Municipal de São Paulo. No destaque a bandeira do grupo Antifa SP. Autor: W. Raeder.

    Imagem 3 (Arquivo “BB Copa”): grupo de black blocs perfilados contra a polícia em Ato contra a Copa do Mundo de 2014 na cidade do Rio de Janeiro. Autor desconhecido.

    Imagem 4 (Arquivo “BBs”): grupo de black blocs com escudos em ato no centro da cidade de São Paulo em junho de 2013. Autor desconhecido.

    Imagem 5 (Arquivo “estudantes RJ”): Dois estudantes em uma escola ocupada do Rio de Janeiro em fevereiro de 2016, com a placa “Foda-se a PM” (polícia militar). Autor desconhecido.

    Imagem 6 (Arquivo “contra a olimpíada”): black blocs com sinalizadores em ato contra a abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro 2016 no centro da cidade em agosto de 2016. Autor desconhecido.

    Imagem 7 (Arquivo “flávio galvão”): grupos de black blocs destroem carro da polícia civil de São Paulo, na região da República em junho de 2013. Autor: Flávio Galvão, da ADVP (Ação Direta de Vídeo Popular).

    Imagem 8 (Arquivo “imagem oficina”): grupo de black blocs em junho de 2013 contra a polícia do Rio de Janeiro. Autor desconhecido.

    Imagem 9 (Arquivo “leviatã”): Tropa de Choque da PM de São Paulo perfilada para defender a vidraça de um cinema na Avenida Paulista, janeiro de 2016, ao fundo cartaz do filme “Leviatã”. Autor desconhecido.

    [1] Dados do 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado em 3 de novembro de 2016, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Disponível em http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/wp-content/uploads/2015/10/9-Anuario-Brasileiro-de-Seguranca-Publica-FSB_2015.pdf

     

     

     

  • O Brasil é uma hipótese improvável: Mc Beijinho e as faíscas de redenção

    Por: Alana Moraes

    fonte: http://vaidape.com.br/2017/01/o-brasil-e-uma-hipotese-improvavel-mc-beijinho-e-as-faiscas-de-redencao/

    Foto: Divulgação

    Um menino foi preso em Salvador – e os meninos presos são quase todos pretos, como diz a canção. Do outro lado, um programa de televisão “cobre” a ação policial. Mais do que transmitir a cena, o que esses programas fazem diariamente é produzir doses diárias de fé na punição, de medo do outro, de racismo e cumplicidade com o genocídio da população negra e com a explosão do encarceramento. Ódio, medo, punição e violência compõem o roteiro da oração diária dessas encenações midiáticas feitas para os homens de bem e para que a máquina de pacificação dos pobres não pare nunca de girar.

    Desse enquadramento anestesiado de todos os dias, emerge a hipótese improvável. Um verdadeiro acontecimento. O menino escapa da cena esperada, rasga o roteiro, improvisa e começa a cantar uma música. É a sua música. O menino agora tem um nome. Ele se chama Ítalo. Seu canto é um ato de descumprimento. Ele canta apesar do massacre em Roraima. Ele canta apesar do Massacre em Manaus. Ele canta também apesar da morte brutal de Luiz Carlos Ruas, assassinado pelos cumpridores dessa mesma ordem. Ele canta evocando os tambores do Pelô e sua canção de liberdade escapa para todos os lados.

    O repórter não entende a dignidade do ato. É mais que dignidade: é a ruptura com esse lugar da humilhação. É também a potência do Brasil em sua insurreição perpétua e subterrânea: a casa grande nunca foi capaz de ouvir o barulho das insubmissões cotidianas, do que nunca foi possível de governar.

    A revolução será feita também dos ritmos imponderados, dos corpos em festa e desses momentos improváveis capazes de paralisar a miséria fascista que só deseja prender e exterminar. Desviar dos enquadramentos e multiplicar nossa possibilidade de fuga: o sistema não apenas encarcera, mas também age para tornar dóceis nossos corpos. Me liberar, nos liberar.

    Assim é o hit do verão em Salvador.

    MC Beijinho agora está ecoando em todos os lugares – até no violão de Caetano. Porque tudo o que temos são canções de redenção.

  • O \”MEME\” NO POOL DE MEMES – origem do termo

    RESUMO/FICHAMENTO
    CAPÍTULO 11: \”MEMES, OS NOVOS REPLICADORES\”
    LIVRO: \”O GENE EGOÍSTA\” 1976
    ESCRITOR: RICHARD DAWKINGS (ETÓLOGO)
    * TEXTO INTEGRAL AQUI: http://migre.me/vOjJb (pág 121)

    OBSERVAÇÕES PRÉVIAS
    :
    FOI NESSE LIVRO/CAPÍTULO
    EM QUE O TERMO
    \”MEME\”
    FOI INSERIDO NO
    \”POOL DE MEMES\”
    DA HUMANIDADE
    ,
    QUANDO E ONDE
    \”MEME\”
    COMEÇOU A VIRAR
    MEME
    .
    (
    50 ANOS DEPOIS, 2016
    PODE-SE DIZER
    QUE VIROU
    MEME
    MESMO
    )

    TRECHOS SELECIONADOS
    E TRANSCRITOS POR DANSCAN
    EM 2016
    VIA
    PROSA
    POROSA
    (COMO É COMUM NOS CHATS)
    LÁ VAI
    :

    <
    CAP 11. MEMES, OS NOVOS REPLICADORES

    haverá motivo para supor que a nossa espécie seja única
    ?
    acredito que a resposta é sim

    a maior parte daquilo que o homem tem de pouco usual
    pode ser resumido em uma palavra
    :
    CULTURA

    a transmissão cultural é análoga
    à transmissão genética
    no sentido de que
    apesar de ser essencialmente conservadora
    pode dar origem a uma forma de evolução
    ,
    a linguagem parece evoluir por meios não genéticos
    a uma velocidade que é várias ordens de grandeza superior
    à velocidade da evolução genética

    a linguagem é um exemplo entre muitos
    :
    a moda no vestuário e na dieta
    as cerimônias e os costumes
    a arte e a arquitetura
    a engenharia e a tecnologia
    ,
    tudo isso evolui no tempo histórico de uma forma
    que se assemelha à evolução genética altamente acelerada
    mas que
    na realidade
    nada tem a ver com ela

    a seleção de parentesco e
    a seleção a favor do altruísmo recíproco
    podem ter atuado sobre os genes humanos
    para produzir muitos dos nossos atributos
    e tendências psicológicas básicos
    ,
    tais ideias são plausíveis até certo ponto
    no entanto elas não chegam a fazer frente
    ao enorme desafio de explicar a cultura e sua evolução
    bem como as acentuadas diferenças existentes entre
    as diversas culturas humanas ao redor do planeta

    para compreender o homem moderno
    devemos começar por abandonar a idéia do gene
    como a única base das nossas idéias a respeito da evolução
    ,
    sou um adepto entusiasmado do darwinismo
    mas penso que se trata de uma teoria demasiado ampla para ficar confinada
    ao contexto limitado do gene
    ,
    o gene entrará na minha teoria
    como uma analogia
    e nada mais
    ,
    afinal de contas o que os genes têm de tão especial
    ?
    a resposta é que eles são REPLICADORES

    mas existirá alguma coisa que tenha de ser válida
    em relação a qualquer forma de vida
    onde quer que ela se encontre e
    qualquer que seja a base da sua constituição química
    ?
    trata-se da lei segundo a qual toda a vida evolui
    pela sobrevivência diferencial de suas entidades replicadoras

    o gene
    (a molécula de DNA)
    é
    por acaso
    a entidade replicadora mais comum no nosso planeta
    pode ser que existam outras
    se existirem
    desde que algumas condições sejam satisfeitas
    elas tenderão
    quase inevitavelmente
    a tornar-se a base de um processo evolutivo

    será que temos de viajar até mundos distantes
    para encontrar outros tipos de replicador
    e em consequência
    outros tipos de evolução
    ?

    penso que um novo tipo de replicador
    surgiu recentemente neste mesmo planeta

    está bem diante de nós

    está ainda na infância
    flutuando ao sabor da corrente no seu caldo primordial
    porém já está alcançando uma mudança evolutiva
    a uma velocidade de deixar o velho gene
    ofegante
    muito para trás

    o novo caldo é o caldo da cultura humana

    precisamos de um nome para o novo replicador
    um nome que transmita a idéia
    de uma unidade de transmissão cultural
    ou uma unidade de imitação

    mimeme provém de uma raiz grega adequada
    mas eu procuro uma palavra mais curta
    que soe mais ou menos como \”gene\”

    espero que os meus amigos classistas me perdoem
    se abreviar mimeme para MEME

    se isso servir de consolo
    podemos pensar
    que a palavra \”meme\” guarda relação com \”memória\”
    ou com a palavra francesa même

    devemos pronunciar de forma a rimar com \”creme\”

    exemplos de memes são
    melodias
    idéias
    slogans
    as modas no vestuário
    as maneiras de fazer potes ou de cosnstruir arcos

    tal como os genes
    os memes se propagam em um pool
    no caso
    o pool de memes

    saltando de cérebro para cérebro através de um processo que
    num sentido amplo
    pode ser chamado de imitação

    se um cientista ouve ou lê sobre uma boa idéia
    transmite-a aos seus colegas e alunos
    ele a menciona nos seus artigos e nas suas palestras
    e
    se a ideia pegar
    pode-se dizer que ela propaga a si mesma
    espalhando-se de cérebro para cérebro

    sempre que surgirem condições
    para que um novo tipo de replicador
    possa produzir cópias de si mesmo
    o novo replicador tenderá a tomar as rédeas da situação
    e a iniciar um novo tipo de evolução
    ,
    uma vez começada essa nova evolução
    ela não terá em nenhum sentido
    de se submeter à antiga
    ,
    quando a evolução antiga
    por seleção de genes
    produziu os cérebros
    ela forneceu o \”caldo\” em que se originaram os primeiros memes
    ,
    no momento em que os memes auto-replicadores surgiram
    a sua própria evolução
    de um tipo muito mais veloz
    teve início

    nós
    biólogos
    assimilamos tão profundamente a ideia da evolução genética
    que tendemos a esquecer que ela é apenas um
    dos vários tipos de evolução possíveis
    .

    até agora
    falei dos memes como se fosse óbvio aquilo em que consiste um meme unitário
    mas isso está
    evidentemente
    longe de ser óbvio

    afirmei que uma melodia era um meme
    no entando
    quantos memes haverá numa sinfonia
    ?
    será que cada movimento é um meme
    ou cada frase reconhecível de uma melodia
    ?
    ou ainda
    será que cada compasso é um meme
    ?
    cada acorde
    ou o quê
    ?

    um \”meme-ideia\”
    pode ser definido como uma entidade
    capaz de ser transmitida de um cérebro a outro

    o meme da \”teoria de darwin\” é
    portanto
    a base essencial da ideia compartilhada por todos os cérebros
    que compreendem tal teoria

    no entanto
    se contribuirmos para o patrimônio cultural do mundo
    ou seja
    se tivermos uma boa idéia
    compusermos uma canção
    inventarmos uma vela de ignição
    escrevermos um poema
    pode ser que a nossa contribuição sobreviva
    intacta
    muito depois que os nossos genes tiverem se dissolvido no pool comum de genes

    pode ser que sócrates tenha um ou dois genes vivos no mundo de hoje
    mas
    que interesse isso tem
    ?

    em contrapartida
    os complexos memes de
    sócrates
    leonardo da vinci
    copérnico e marconi
    continuam em pleno vigor

    uma característica exclusiva do homem
    que poderá ou não ter evoluído memicamente
    é sua capacidade de previsão consciente
    ,
    os genes egoístas (e
    se forem permitidas as especulações deste capítulo
    também os memes egoístas)
    não têm essa capacidade
    ,
    eles são replicadores cegos e inconscientes

    é possível que ainda outra qualidade exclusiva do homem
    seja a capacidade para o altruísmo verdadeiro
    genuíno e desinteressado
    espero que sim
    mas não irei defender nem atacar tal hipótese,
    e tampouco especular sobre sua possível evolução mêmica

    o ponto que quero salientar é que
    a despeito de sermos pessimistas
    e de assumirmos o pressuposto de que o ser humano
    é fundamentalmente egoísta
    a nossa previsão consciente – a nossa capacidade de
    simular o futuro
    usando a imaginação –
    poderia nos salvar dos piores excessos egoístas dos replicadores cegos

    pelo menos
    dispomos do equipamento mental
    para promover nossos interesses egoístas de longo prazo
    a participar de uma espécie de \”conspiração de pombos\”
    e podemos nos reunir para discutir maneiras de fazer
    com que essa conspiração venha a funcionar

    temos o poder de desafiar os genes egoístas que herdamos e
    se necessário
    os memes egoístas com que fomos doutrinados

    podemos até discutir maneiras de estimular e ensinar
    deliberadamente
    o altruísmo puro e desinteressado
    – algo que não existe na natureza e que
    nunca existiu antes na história do mundo

    somos construídos como máquinas de genes
    e educados como máquinas de memes
    mas temos o poder de nos revoltar contra nossos criadores

    somos os únicos no planeta terra com o poder de nos rebelar contra
    a tirania dos replicadores egoístas
    >

    * TEXTO ORIGINAL NA ÍNTEGRA AQUI: http://migre.me/vOjJb (pág 121)

    OBSERVAÇÕES POSTERIORES:

    considero importante a divulgação dessa raizdapalavra
    pois me soa reveladora a noção dessa relação dos memes com os genes

    quero dizer
    o termo traz darwin e o anti-criacionismo para o campo da evolução cultural
    !

    após a leitura
    um meme nunca mais será
    apenas uma imagem cômica
    divulgada nas redes sociais
    o termo é de 1976
    mto antes da internet nascer
    !

    trazer a tona o significado da palavra
    já tão maciçamente utilizada por gente de todas as ideologias
    pode colocar em posição de desconforto os que utilizam o termo e são
    por exemplo
    homofóbicos
    ou são daqueles que acreditam que vão para o céu
    ou para o inferno

  • Resposta a Emir Sader (Verónica Gago)

    Resposta a Emir Sader (Verónica Gago)

    \"\"

     

    A acusação de Emir Sader  aos que assinamos o manifesto impulsado contra a desposessão da comunidade Shuar a mãos de projetos de mineração megaextrativa e à perseguição dxs militantes de Ação Ecológica é útil: explicita muitas das razões que contribuem ao que ele diz querer evitar: a fraqueza -envolvida em soberbia; do que foi ou é chamado de \”governos progressistas\” e de muitos dos intelectuais que são considerados orgânicos a eles. Vejamos os pontos:

     

    1) O lugar em que localiza às lutas sociais pelo território e pela vida. Ele diz: \”Para além da justiça ou não da reclamação, para além da maior ou menor importância n oassunto\”. O menosprezo que implica esse \”para além da justiça\” e o lugar no qual intelectuais como Sader acreditam ocupar para marcar esse para além, que não é nem mais nem menos que o lugar do calendário eleitoral localizado comoinstância superior, reitera mais uma vez como os conflitos e as lutas concretas só aparecem nomeadas ou convocadas ad referendum da legitimidade de um governo. E quando não contribuem a tal propósito, além de pôr em dúvida sua \”justiça\” ou de relativizar o peso dessa \”justiça\” em relação a uma cena supostamente \”maior\”, são reduzidas a um mero \”assunto\”. De novo: o desprezo às lutas concretas não é mais que uma pirueta para não discutir a articulação dos governos com a trama de negócios com as multinacionais e o modo em que isso se traduz em violências concretas para comunidades concretas. Não se pede um purismo aos governos chamados progressistas, mas um balanço político sobre os efeitos concretos que se escondem uma e outra vez em nome da \”soberania nacional\”.

     

    2) O tempo no qual se localiza as lutas sociais pelo território e pela vida. Diz Sader que nas iminentes eleições presidenciais no Equador do que \”se trata é do futuro do país\”. Temos que entender que as lutas que pedem acompanhar e fazer um pronunciamento público completam contra o futuro? Culpar aos movimentos e organizações que não se quadram é complicado: justifica a sua criminalização em nome de uma soberania abstrata e um futuro, justifica no presente a avançada neoextrativa depredadora. Mas ainda de modo mais irônico, Sader diz que a eventual vitória do candidato opositor ao oficialismo representará \”a devastação da Amazônia e dos povos que a habitam\”. É chamativo como esse \”assunto\” lhe interessa apenas no futuro e como argumento a favor do voto do candidato que apoia Correa (é engraçado incluso que chame atenção sobrea ameaça que vem com a palavra \”desmonte\” de todo o conquistado).

     

    3 )A acusação da construção de alianças e redes de apoio. Sader falar para os intelectuais (em masculino, por sinal). Com isso, primeiramente desprecia às organizações e lutas que são impulsoras do manifesto. Logo, explica que xs assinantes ou estamos enganadxs ou temos má fé ou somos hipócritas porque a equação é simples: apoiar as luras nos territórios é fazer o jogo da direita e enfraquecer ao governo (a escala regional). Na América Latina, esse binarismo conseguiu congelar durante muitos anos as possibilidades de discussão, impossibilitou a muitas litas ter um lugar sem ficar subsumidas na questão de se eram favoráveis ou não aos governos. A ofensiva conservadora e neoliberal da região que estamos presenciando se deve em parte ao modo em que esses espaços de debate internos, de escuta aos movimentos, de crítica não canalha foram desconhecidos, despreciados e, muitas vezes, perseguidos. Ao modo em que se disciplinou desde cima toda crítica às articulações problemáticas entre neodesenvolvimentismo, neoliberalismo e neo-extractivismo. Que agora se insista de novo em culpar à crítica das derrotas eleitorais é, nem mais nem menos, o que permite uma vez mais ficar a salvo e deixar intocado um modo de pensamento político que tem mostrado já seus limites.

    4) A \”ultra-esquerda\” como causa da derrota progressista. Esse argumento, que acusa de complot e de instrumentalismo às alianças entre movimentos e intelectuais críticos, com o só propósito de uma posição \”aventureira\” que procura conseguir um lugar no campo político, não apenas é mesquinha (se atribui a famosa hegemonia do espaço político), mas que por cima de tudo põe à crítica como \”causadora\” de uma ampla rejeição -que ainda não se termina de discutir a fundo- da legitimidade dos governos progressistas, evitando assim problematizar em sério as causas das sucessivas \”derrotas\”. Isso implica não só a infantilização do eleitorado de distintas classes sociais, mas também o desconhecimento de como operam forças bastante mais complexas: as igrejas contra a chamada \”ideologia de género\”, as finanças como formas de exploração das economias populares, as concessões às multinacionais como expropriações diretas às comunidades, etc.

    5) O que Sader chama de \”a disputa maior do continente\” é claramente o modo retórico de defensa abstrata de alguns governos. Que para fazê-lo tenha que despreciar as lutas concretas e se atribuir o \”ser de esquerda\”(nesse caso como sinônimo de defender a situação do Equador) revela um dos maiores problemas do progressismo: o desprezo das forças sociais que não se enquadram e que questionam os cimentos neoliberais que o progressismo no poder não se animou a confrontar. O testo de Sader revela um modo de argumentar mais amplo que é incapaz de dar lugar a uma verdadeira discussão sobre os efeitos perversos e violentos das formas de articulação entre capital e Estado no ciclo dos governos chamados progressistas. Esse fechamento revela bastante de suas recentes derrotas.

     

     

    Texto original de Verónica Gago http://anarquiacoronada.blogspot.com.br/2016/12/respueta-emir-sader-veronica-gago.html

    Artigo do Sader https://www.pagina12.com.ar/11094-a-los-intelectuales-latinoamericanos

     

    Outros textos relacionados com a polêmica:

    http://montecristivive.com/emir-sader-o-la-mendicidad-intelectual/

    Manifesto em defesa da comunidade Shuar: http://anarquiacoronada.blogspot.com.br/2016/12/el-gobierno-ecuatoriano-y-la-doble.html

    http://anarquiacochabamba.blogspot.com.br/2016/12/a-proposito-de-un-articulo-de-emir.html?m=1

  • Back to Basic

    \"\"

    É curioso como neste novo momento de crise, entramos em contato com as memórias de outros períodos críticos da história. Diante de algumas situações nos últimos meses, tenho uma estranha sensação de que estamos passando por um novo giro na história, e como numa espiral algumas coisas parecem uma repetição. Porém, já estamos noutro lugar, tudo é diferente.

    Nessas rememorações tenho pensado muito do final dos anos 90. Governos neoliberais e suas políticas avançavam em toda parte, mas encontravam alguma resistência social. Quem se lembra das lutas contra a ALCA? Dos primeiros Forum Sociais Mundiais (antes de se tornarem uma grande feira)? Dos diversos movimentos sociais que se multiplicavam Brasil afora…Onde foi parar toda aquela energia?

    Naquele momento, a memória da derrocada da experiência soviética ainda era um tema na pauta, fala-se muito de crise sistêmica do capitalismo e proliferavam em toda parte iniciativas de economia social, autogestão econômica, cooperativismo, entre outras. Havia todo um debate sobre alternativas práticas ao capitalismo que curiosamente parece que perderam a força diante de governos que em toda America Latina executaram uma agenda paradoxalmente \”progressista\” (péssimo termo). Porém, ainda que silenciosamente, tudo aquilo segue sendo feito.

    Dentre esses reencontros que tive nos ultimos meses, um deles é com as discussões sobre autogestão, economia social/solidária, moedas alternativas. Tema com o qual estive muito envolvido e que por diversas razões fui me distanciando. Acho curioso ver como ele retorna agora. Seria apenas mais um sintoma da crise? E para mim, é aqui que este reencontro dá uma reviravolta interessante pois se recombina com outros temas com os quais estou envolvido hoje em dia. Mas o vocabulário agora é outro. Falamos em soberania tecnológica, produção do comum, tecnopolíticas, ecologia de práticas e saberes…

    Só para citar um exemplo. Recentemente, comecei a acompanhar a criação de um nó-regional da FairCoop (https://fair.coop). A discussão que eles fazem sobre moedas alternativas é bem interessante. Utilizam uma criptomoeda inspirada no bitcoin porém modificada por protocolos sociais que inserem a colaboração como variável na geração de valor. Há toda uma discussão ali sobre autonomia, autogestão, desenvolvimento local/comunitário, sustentabilidade, internacionalismo.

    Em seguida, vou atrás de alguns sites antigos e redes sociais abandonadas. Numa deriva no ciberespaço, como nos tempos em que a livre navegação era possível (quem se lembra que utilizavamos o termo \”navegar\” e éramos internautas, antes de virarmos usuários), encontro alguns grupos interessantes, como o bom e velho Znet (https://zcomm.org). Que emoção! Site simples, wordpress com cara de puro html.

    Fiquei me perguntando, será que os outros grupos ainda estão por aí? Os meios  de comunicação entre os movimentos que pegaram o início da internet transformaram-se drasticamente nesses ultimos 10 anos (o Youtube é de 2006!). Tivemos um processo paradoxal. De um lado a mulitiplicação dos canais (email, redes sociais, sms, whatsapp, telegram, e em cada um deles grupos e subgrupos) dando a impressão que construíamos um rizoma, com arquitetura distribuída. Mas não, era pura dispersão. De outro, novas camadas de hierarquização e centralização que modulam algoritmicamente toda nossa interação, submetida a critérios mercantis e à vigilância estatal e corporativa. É o capitalismo de vigilância (Shoshana Zuboff); a sociedade de controle (Deleuze)….enfim, formas renovadas de sujeição social e servidão maquínica.

    Ao invés de nos organizarmos de maneira distribuída, somos organizados em nossa aparente dispersão pela capacidade de centralização desses serviços. É incrível como o Facebook destrui nosso ecossistema digital. Pra ser sintético: o Facebook e todos os condomínios digitais correlatos, destruiram a internet como uma possível cidade cosmopolita. Essas corporações são hoje parte do nosso problema.

    Por fim, neste pequeno passeio fui me dando conta de tantas coisas, de tantos mundos que foram ficando para trás. Tal sensação é reforçada por todos os acontecimentos políticos de 2016 (golpe parlamentar etc), que de maneira muito direta chamaram nossa atenção para transformações profundas que estão ocorrendo em nossas sociedades muito abaixo do nosso radar. A barbárie é só o cotidiano mesmo. Mas é ai tambem que surgem as criações e as longas ondas com grande capacidade de propagação. Nos ultimos tempos, apenas ficou mais visível uma nova e assustadora topografia que estava sendo lentamente construída.

    Isso me faz pensar na cozinha, no trabalho de manutenção e sustentação da vida. Talvez, a tecnologia mais necessária neste momento seja mesmo as tecnologias organizacionais e toda a lentidão necessária para fazer comunidade, para produzir o comum em comum. Mas não o antigo comunitarismo, nem os comunismos e socialismos. Serão outras criações capazes de aprender com todas essas formas, e também com o capitalismo.

    Fico com uma sensação de \”back to basic\”. Não confundir com \”um retorno às bases\”. É outra coisa, é cuidar do básico mesmo, a começar pela capacidade do encontro com o outro. Quais são as infraestruturas que precisamos para dar suporte às formas de vida que desejamos?

    fonte do artigo: http://prototype.pimentalab.net/?p=187

  • O municipalismo será internacionalista ou não será

    \"Resultado
    
    
    

    Texto de Kate Shea Baird, Enric Bárcena, Xavi Ferrer e Laura Roth (membros de Barcelona En Comú)

    Os Movimentos municipalistas do Estado espanhol não podemos ignorar a crise do neoliberalismo global. É nossa vez de dar a cara para defender nossa aposta pela mudança “bottom up” (de baixo pra cima), feminista e radicalmente democrática. O \”assalto municipalista\” que temos vivenciado nos últimos dois anos em muitas cidades do Estado Espanhol dá vertigem. Assembleias de bairro. Programas eleitorais. Códigos éticos. Negociações confluentes. Crowdfunding. Campanhas eleitorais. Pactos de governos. Despachos. Rua. Gestão. Sucessos. Contradições. Erros. Aprendizados. Seria fácil nos perder nas vitórias e derrotas do dia a dia se não fosse pelo turbulento contexto global no qual nos encontramos. A Revolução dos Paraguas. Oxi. Refugiadas. Nuit Debout. Brexit. Dilma Rousseff. O acordo de Paz na Colômbia. Trump. Referendo na Itália. Le Pen. Por muito que as tarefas cotidianas dos nossos bairros nos demandem com urgência, é responsabilidade do movimento municipalista refletir sobre nosso papel para além das nossas cidades e das fronteiras do Estado.

    Faz pouco mais de um ano desde Barcelona Em Comú começamos a dar voltas com essa questão. Primeiro de forma reativa, provocada pelo enorme interesse que gerou nossa vitória eleitoral nos âmbitos mais diversos da esquerda europeia e internacional. Desde os centros autogestionados de Nápoles e Roma até os think tanks de Londres e Berlim, percebemos rapidamente que a nossa experiência tinha se convertido num referente de transformação política. A figura de Ada Colau com a sua trajetória de ativismo, o processo profundamente coletivo que representa Barcelona En Comú e a projeção internacional que tem Barcelona como cidade tem ajudado para captar a atenção de muitas pessoas que buscam novas respostas à crise econômica e política. Somado a isso, muitas das lutas nas quais o Ayuntamiento (Prefeitura) está colaborando com a cidadania organizada de Barcelona estão acontecendo também em outras cidades, como por exemplo frear a massificação turística, garantir o direito à moradia e remunicipalizar os serviços básicos. Pensando no papel que atualmente joga o movimento municipalista surgido em 2014, por isso, para muitos o movimento municipalista é a possibilidade de uma alternativa real.

    Embora nos tenham interpelado de muitos lugares, o que tem nos dado mais energia para continuar construindo são as trocas que tivemos com outros movimentos municipalistas, estejam ou não no governo. Além de compartilhar nossos objetivos, esses movimentos compartilham nossas formas de fazer. Colocam os objetivos na frente das siglas partidárias, se baseiam no fazer e não em debates teóricos estéreis, se comunicam com uma linguagem mais próxima e emotiva; são feministas e procuram feminizar a política, colocando as práticas cotidianas e os cuidados no centro; e constroem desde baixo, a partir da inteligência coletiva. A final, nos movimentos municipalistas temos achado pessoas radicais mas ao mesmo tempo pragmáticas, com as quais nos sentimos capazes de imaginar e construir o futuro.

    Nesse sentido, a partir de Barcelona, estamos fazendo um mapeamento contínuo de experiências municipalistas afins ao redor do mundo e tratando de pensar conjuntamente com elas como nos articulamos e nos apoiamos mutuamente. Graças a esse processo temos desenvolvido uma hipótese que busca inserir a dimensão internacional no centro dos debates municipais e o municipalismo no centro dos debates globais. E temos chegado à conclusão que a via a seguir é a de trabalhar o municipalismo em rede a nível global.

     

    Por que uma rede municipalista global?

    É importante dizer que falamos de \”rede\” como uma forma de trabalhar e não como uma estrutura formal; e explicitar que não nos referimos a uma rede institucional, mas a um espaço de afinidade política, formada por movimentos e organizações que possam estar no governo, na oposição ou também fora das instituições. É evidente que nossas prefeituras devem continuar trabalhando com seus homólogos de outras cidades na base de objetivos comuns. O acordo de colaboração entre Barcelona e Paris em torno ao turismo, a gestão pública da água ou da memória histórica é um bom exemplo, assim como a rede de cidades refúgio ou a dos governos locais que estejam contra o TTIP. Mas a verdade é que atualmente existem poucas prefeituras fora do Estado espanhol que estejam governadas por forças afins à nossa metodologia e nossos objetivos. Esse é o principal motivo pelo qual nos urge um espaço político. Em aliança com outras organizações poderemos fazer frente com mais força e a partir de mais espaços à falta de democracia imposta pelos estados e os mercados.

    Se existia alguma dúvida a respeito, o primeiro ano e meio de governo das chamadas \”cidades da mudança\” tem mostrado que a capacidade de intervenção local está fortemente marcada por poderes e tendências globais. Vemos como os aluguéis de nossa cidade sobem de forma exorbitante como consequência direta de empresas como Airbnb que promovem especulação com a moradia, ignorando às normativas locais. Nos preparamos para acolher pessoas refugiadas que nunca chegam. Tentamos promover a economia social e solidária em meio ao capitalismo global na sua fase mais voraz. Dado que enfrentamos à adversários que cruzam fronteiras, nossa resposta também tem que ser transnacional. Temos que ser conscientes de que nossa margem de manobra para frear os abusos de multinacionais gigantes como Airbnb em Barcelona dependerá do sucesso das lutas pelo direito à moradia em San Francisco, Amsterdam, Nova Iorque e Berlim.

    Por outro lado, o colapso dos partidos socialdemocratas e a incapacidade dos partidos da esquerda tradicional em se repensar estão deixando um grande vazio no espaço político europeu. Se os movimentos \”bottom up\”, feministas e radicalmente democráticos não damos um passo para frente para ocupar e articular esse espaço, serão outros que o farão. O tentará fazer a esquerda intelectual machocêntrica de sempre, se apropriando do capital simbólico dos processos de construção desde baixo e sem adotar as práticas que nos definem. A outra opção, que é mais provável e ainda pior, é que quem capitalize essa oportunidade seja a extremadireita autoritária, utilizando suas ideias excludentes e etnicistas de soberania e de povo. No entanto, cabe dizer, com o risco de provocar, que o slogan \”Take Back Control\” (recuperemos o controle) da campanha pro-Brexit, ou o \”Forgotten Man\” (o homem esquecido) ao que apela Trump, não são conceitos tão afastados do \”Democracia Real\” do 15M ou o \”99%\” de Occupy: todos remetem ao mesmo desejo de ruptura com um establishment político e um sistema económico injusto com a maioria. O fato é que expressar essas demandas no mesmo marco do estado-nação permite que se vinculem elementos racistas ou xenófobos com mais facilidade. No entanto, localizar as soberanias a nível local dificulta essa associação e abre outras possibilidades: as cidades são lugares mestiços, de encontro e de troca cultural; e se os sistemas políticos e econômicos alternativos se constroem desde o local, desde as identidades de vizinhança e não étnicas, no olho no olho, poderemos gerar um espaço desconfiança que não vincule os nossos direitos às nossas origens.

     

    Pistas de ação global para o movimento municipalista

    Uma vez que nos propusemos esse desafio, quais são os passos a ser seguidos? Temos identificado quatro linhas de ação.

    A primeira se baseia em reforçar a narrativa do municipalismo internacionalista a través da comunicação e da formação. Para internacionalizar nosso movimento temos que nos comunicar com o mundo, explicando nossos valores e práticas, e as políticas que se estão conseguindo levar à frente desde o Ayuntamiento de Barcelona. Isso implica produzir materiais em outras línguas dirigidos ao público internacional, como podem ser os nossos posts dominicais no Facebook – #InternationalSundays -, nossa conta internacional de Twitter – @BComuGLobal – ou nossa guia municipalista. Mas também temos que introduzir a dimensão internacional dentro de nossas organizações abrindo espaços de formação e reflexão para que as Assembleias de bairro, comissões e eixos temáticos participam dos debates globais.

    A segunda linha de ação consiste em trabalhar propriamente em fortalecer a rede. Quantas mais sejamos e quantas mais capacidades tenha cada nodo da rede, mais potentes vamos ser. Assim é que devemos continuar identificando experiências afins, nos conhecendo entre a gente e construindo relações de confiança, com o objetivo de crescer e aprofundar nosso trabalho comum. Os que estamos nas plataformas do Estado espanhol, pela experiência deconstrução organizativa e de representação institucional, podemos ser especialmente úteis nesse processo: as lições aprendidas, tanto nos acertos quanto nos erros, podem servir muito para quem agora está se propondo empreender o mesmo caminho.

    A terceira linha é o trabalho temático. Sendo movimentos municipalistas, os temas que tem a ver com democracia local e com o entorno urbano são prioritárias para todos. Em âmbitos como o direito à moradia, o uso do espaço público ou a gestão dos bens comuns, temos a oportunidade para aprender umas das outras, refletir juntas, e desenvolver estratégias compartilhadas que nos fortaleçam.

    A última, talvez a função mais importante de uma rede política, é a de proporcionar um espaço de apoio político, um \”colchão protetor\” tanto para celebrar nossos sucessos, como para nos arroupar mutuamente nos momentos difíceis. Neste sentido, desde Barcelona Em Comú já temos nos implicado em dar apoio à luta contra a especulação urbanística em Belgrado, aos prefeitos e prefeitas curdos detidos pela Turquia e na campanha pelo Não no referendum constitucional italiano; nos três casos respondendo a solicitação de nossos referentes municipalistas do lugar.

    É verdade que temos muitas frentes abertas e que sem olhar no âmbito internacional implica uma inversão importante de energia e tempo. Mas tem um colete salva-vidas: \”o internacional\” motiva, gera espaços de solidariedade e abre o horizonte de transformação. Até hoje, a Comissão Internacional de Barcelona En Comú conta com mais de 70 ativistas inscritas, entre eles muitas que tem se somado nos últimos meses. Não cabe nenhuma dúvida de que nossas bases são internacionalistas convencidas; sabem que não podemos fugir sem mais da responsabilidade que assumimos ao nos presentar nas eleições. E somos, para o bem ou para o mal, foco de atenção internacional. Frente a muitos interesses desejantes de que nosso exemplo não frutifique, tem muita mais gente que, não só deseja, mas precisa que constatemos que uma alternativa democrática é possível. Nosso exemplo pode e tem que servir para motivar e animar a mais movimentos municipalistas a dar o salto e construir desde o local uma imparável revolução global.

     

     

    Publicado originalmente em: http://blogs.publico.es/dominiopublico/18820/el-municipalismo-sera-internacionalista-o-no-sera/

     

  • Organizando pra desorganizar pela Ação Direta

    Um relato e análise do ato contra a PEC de 29/11/2016

    por Nigganark

    “Posso sair daqui para me organizar;
    Posso sair daqui para desorganizar”
    Chico Science, Da Lama ao Caos

    Quem não se organiza será organizado por outros. Se um grupo não se organizar e lutar para gerir sua vida, comunidade, sociedade, será organizado por outros setores que definirão os seus rumos, horizontes e perspectivas. É mais ou menos isso que o anarquista e revolucionário Errico Malatesta disse em um famoso texto chamado “A Organização das Massas Operárias Contra o Governo e os Patrões”, de 1897. Como atualmente estamos em tempos de retrocessos políticos, intuo que esta afirmação é mais atual do que nunca: não temos decisões efetivas sobre a forma e conteúdo de nosso trabalho; nossa alimentação é toda pré-definida por interesses do agronegócio; nossa educação é determinada por interesses capitalistas e coloniais, com uma pedagogia autoritária; nossa saúde é destroçada por um ritmo de sociedade que não escolhemos e nosso tratamento é hierarquicamente decidido por uma medicina que, quando nos atende, nos enche de químicos que não compreendemos bem; mesmo nossos desejos, gostos, sexualidades são definidos por interesses de cima – e a quem disso divergir está destinada uma bela repressão.

    Esta organização da sociedade nos prejudica coletivamente; trás privilégios, riquezas e pleno gozo a uma parcela mínima dos bilhões de humanos habitantes do globo. Menos de um por cento. Há muito tempo as coisas estão organizadas assim. Mas há muito tempo também há luta e mecanismos de resistência. A Ação Direta, por exemplo, é um princípio revolucionário – herdeiro principalmente do movimento operário anarquista – que foi constituído como forma direta e imediata de simultaneamente resistir e atacar esta organização social; de fazer da destruição um ato criador.

    Falo da Ação Direta porque no ciclo de mobilizações contra a recentemente aprovada Proposta de Emenda Constitucional do teto de gastos (PEC 241/55) ela foi utilizada como principal metodologia de luta: seja nas ocupações de escolas/universidades, nos atos de rua, nos ensejos de organização democrática e participativa. Falo também porque a Ação Direta nos trouxe algumas lições durante o ato contra a votação final da PEC da morte (outro nome carinhoso para esta medida ridícula) , ocorrido em Brasília no dia 13/12/2016. Gostaria de pedir, sabendo das dificuldades de ler longos textos presentes em nosso tempo, que você me acompanhe neste logo texto. Talvez ele contribua para a nossa reflexão.

    Vamo que vamo.

    * Entreatos: da baderna do 29/11 à preparação do 13/12

    As manifestações do dia 29/11 referentes à votação do primeiro turno da PEC 55 no senado tiveram enorme repercussão. Tanto as cenas da repressão policial como, principalmente, a das táticas de resistência empregadas por determinados grupos presentes no ato abriram um amplo leque de análises. Por um lado, o conjunto das avaliações da esquerda foram consensualmente críticas e de alerta à violência estatal generalizada contra manifestantes. Por outro lado, as análises sobre a composição e forma da manifestação foram mais diversas e críticas em relação aos métodos empregados pelos agentes em luta. Defensores e críticos do método da ação direta tiveram um duradouro embate sobre qual o significado do ocorrido, protagonizando uma real \”disputa de narrativas\”. O debate girou em falso sobre a mítica figura dos \”infiltrados\” – se eles existiram ou não, foram protagonistas ou mesmo desencadearam todo o clima de repressão. As diferentes posições sobre infiltração derivavam das diferentes concepções sobre ação direta.

    A mídia hegemônica, como tradicional, criminalizou as manifestações. Houve uma ação de \”reparo\” às pichações contra a PEC que estavam no Museu Nacional de Brasília, capitaneada por grupos conservadores da cidade. As repercussões institucionais também foram relevantes. Tanto no plano federal como no governo local diversas reuniões e procedimentos ocorreram para dar resposta do estado ao ocorrido no dia 29/11. Obviamente, nenhuma movimentação foi no sentido de apurar abusos, violações de direitos humanos ou truculências. O problema que esquentava na mesa dos gestores estatais era de que aquela mobilização, mais do que demonstrar a força policial, abriu dúvidas sobre a capacidade do estado manter a ordem em manifestações radicalizadas. Havia muito medo sobre o que poderia ocorrer na iminente manifestação contra a PEC 55 que ocorreria na data do segundo turno da votação da proposta. Era necessário, assim, uma resposta incisiva e definitiva da capacidade de controle.

    Por outro lado, para o conjunto dos participantes da manifestação, igualmente, as lições de uma polícia simultaneamente violenta e organizada; que age de forma incisiva e quase letal; que demonstra algum planejamento bem como determinação em desestruturar totalmente as táticas de manifestação também foram sentidas. Muitas avaliações projetaram sobre como teria sido o ato de 29/11 caso muitas pessoas estivessem de fato preparadas para o embate – não apenas nas intenções, mas nas ferramentas e organização. Cogitava-se inclusive que com uma tática melhor preparada poder-se-ia ter mudado os rumos da maldita aprovação da PEC 55. A vexatória e esdrúxula performance do senador petista Jorge Viana – quando houve possibilidade de assumir a presidência do Senado e barrar a votação da PEC 55 – foi como um ultimato da chance de, por meio das instituições, conquistar alguma mudança nesta conjuntura sombria de aprofundamento neoliberal. Após um ministro do Supremo Tribunal Federal determinar afastamento do presidente do senado Renan Calheiros, o senador petista poderia assumir a presidência da casa e postergar a data da votação para o próximo ano, dando um fôlego aos movimentos sociais em luta. Preferiu, ao contrário, se acovardar ao enfrentamento e inclusive atuar para que o STF revertesse a decisão anteriormente tomada. Ou seja, deu de ombros à luta e abraçou a ordem estabelecida. A sensação a quem lutava era: ou éramos nós por nós ou nada.
    * Preparação, indefinição e tensão
    Se no dia 29/11 os chamados foram difusos, simultâneos e realizados por diferentes coletivos, para o dia 13/12 os chamados foram muito mais esparsos. Até alguns dias antes do segundo turno da votação da PEC pouco se sabia sobre a realização ou não de um ato. Comentava-se que as entidades haviam gasto muito dinheiro na manifestação anterior, sem capacidade de reposição com a mesma monta; que outras entidades não queriam apoiar as mobilizações por receio de que ela saísse do controle novamente. Simultaneamente havia notícias da constituição de atos locais simultâneos em diferentes cidades esvaziando um possível ato central na Esplanada dos ministérios.

    Esta indecisão sobre a mobilização colocava à vista os próprios conflitos internos dos setores da luta. Por exemplo: ao contrário do que se supõe acerca de uma avassaladora hegemonia burocrática nas lutas sindicais, há um crescente setor independente, autônomo, classista que realiza lutas sindicais e disputas internas. Este setor tem conquistado espaço junto a algumas direções de sindicatos e, principalmente, constituiu – por meio das greves e piquetes – um foco de ação classista em oposição à política de austeridade. Sua intervenção nos Comandos de Greve – especialmente do campo da educação – forjou o contraponto sindical à criminalização (realizada pelas centrais sindicais) da ação direta de 29/11 e o impulso para a realização de uma nova mobilização em Brasília no dia 13/12.

    Assim, o bloco inicial que constituiu a mobilização para os segundo turno da PEC 55 foi este setor que denominarei aqui como o Setor de Ação Direta: sindicalismo classista e movimento das ocupas estudantis. Em quantidade bem menor que no ato anterior, porém ainda significativa, ônibus de diferentes cidades vieram para Brasília para realizar a mobilização. Os financiamentos foram mais diversos, em algumas localidades manteve-se a articulação com direções sindicais tradicionais locais e, em outras, formas alternativas foram utilizadas para viabilizar o recurso: houve caravanas financiadas por rifas, pedágios e festas(!). A Frente Povo Sem Medo adotou a tática de realizar manifestações locais, mobilizando suas bases locais para a manifestação em Brasília. O Sindicalismo Tradicional oscilou entre mobilizar as categorias e participar de algumas articulações anteriores, mas sem destinar força real à mobilização.

    Ao contrário da mobilização passada, ocorreram algumas reuniões de articulação do ato envolvendo participantes dos três setores principais da mobilização (Frente Povo Sem Medo, Frente Brasil Popular, Setor de Ação Direta). Além disso, plenárias internas anteriores foram realizadas pelos distintos grupos, planejando formas de ação na Esplanada durante o ato. Alguns militantes estudantis de outras cidades haviam ficado em Brasília no período entre as duas manifestações na intenção de articular melhor um segundo ato, fazendo a conexão estudantil nacional e também a articulação com outros setores. Junto às caravanas que chegaram antes do ato, foi realizada, na véspera, uma plenária de preparação para o ato. Lá foi apresentado um conjunto de planejamentos para que a mobilização constituísse uma linha política comum, diferente do 29/11. A programação era de que a concentração se desenvolvesse-se no decorrer da tarde, com indicações de uma crescente na esplanada até o começo da noite – quando o ato finalmente ocorreria em paralelo à votação da PEC. Avaliava-se que a antecipação do horário da votação pretendida pelo presidente do Senado era uma manobra que não daria certo e que a votação finalmente ocorreria no início da noite, como no ato passado. Assim sendo foi sugerido que as mobilizações mais radicalizadas fossem organizadas para o ápice da mobilização, numa tentativa de coordenar a ação direta e a ação sindical em horários distintos. A longa duração da sessão do senado permitiria que o conflito entre os diferentes setores fosse contornado.

    Como agora já sabemos, esta proposta partia de uma avaliação equivocada sobre a manobra do presidente do senado. Mas já na assembleia estudantil o plano não chegou a ser aprovado e, ao contrário, desencadeou um conjunto de cisões e debates acalorados entre os grupos/delegações presentes. Apesar dos esforços anteriores, a capacidade de articulação e confiança mútua entre os distintos setores do movimento estudantil ainda estava um tanto fragilizada. Diferentes avaliações sobre como lidar com a polícia, qual a política de articulação com outros setores ou mesmo se seria possível ou não barrar a aprovação da PEC 55 não produziram ambiente para uma melhor articulação geral estudantil. Talvez a única unidade fosse na impressão geral de que haveria confronto na manifestação e que deveria haver resistência. Foi deliberado, finalmente, que um bloco estudantil caminharia, fechando as ruas da cidade, da UnB até a esplanada (pouco mais de quatro quilômetros) e se somaria aos outros blocos para realização da manifestação.

    Na manhã do dia 13, porém, a institucionalidade mostrou todo seu vigor: a manobra do Senado deu certo e a votação encerrou-se pouco depois das 13h; a operação policial amplamente divulgada pela mídia no dia anterior realizou revistas em todos os ônibus que vinham de outras cidades, apreendendo vinagres, pessoas e tudo o que pudesse ser considerado objeto de vandalismo. Um cerco enorme foi montado na esplanada para dar a clara impressão de que a ação estatal seria efetiva neste caso: um total de três mil e quinhentos policiais e demais agentes de segurança pública foram mobilizados e a esplanada foi fechada na meia noite da manhã anterior; toda cidade foi alarmada.

    * Um ato que explodiu e dissolveu pela cidade

    Nota: Como o ato teve um desenvolvimento pelo tecido da cidade, esbocei para fins do relato este mapa demarcando os locais por onde a manifestação passou ou alguns pontos de referência para quem quiser se localizar espacialmente no relato. É um mapa desproporcional, mas que ajuda a se referenciar. Durante a descrição do ocorrido, sugiro que retorne a este mapa para que assim compreenda as trajetórias dos diferentes grupos.

    A PEC da morte foi aprovada aproximadamente às 13h – uma hora antes do chamado para concentração do ato. Assim, a mobilização marcada para a tarde mudou radicalmente seu caráter. Qualquer planejamento sobre interferir ou participar do momento histórico da votação da PEC 55 foi aniquilado pelos fatos. A sensação nos primeiros momentos pós-votação era confusa: as dúvidas sobre os motivos de realizar um ato no exato momento da aprovação; a sensação de ser vítima de uma manobra dos poderosos; a constatação de que o retrocesso já estava aprovado. Muitos chegaram a cogitar, pelas redes sociais, se haveria ou não manifestação uma vez que a PEC já havia sido aprovada. Era como se estivéssemos vivendo um imenso delay histórico.

    Às 14h, na esplanada, o ambiente era ansioso, esparso e com um vazio a ser preenchido. A presença policial era ostensiva e tomava conta de todo ambiente. As notícias da manhã eram de que todos os ônibus continuavam sendo parados e revistados violentamente na entrada da cidade, com algumas pessoas detidas e objetos apreendidos. Não se sabia quantas pessoas estariam presentes no ato nem de onde surgiriam. O Bloco Estudantil saiu do Campus da UnB em caminhada para a esplanada, fechando a via L2 Norte. Outros ônibus de outras cidades haviam chegado mais cedo e estavam meio perdidos, meio ilhados, espalhados em diferentes pontos da esplanada. Havia, no Museu da Nacional de Brasília, uma concentração dos setores sindicais, principalmente do movimento da área de educação. Caravanas do MST e MTST chegaram em bom número aproximadamente às 15h30.

    Tratava-se de um ato muito diferente do anterior: os blocos eram mais organizados, a predominância dos setores de ação direta (tanto no movimento sindical quanto estudantil) era mais evidente e, em função da truculência policial, os carros de som não foram liberados para realizar o trajeto previsto. Os setores do movimento popular presentes participaram ativamente da mobilização, porém sem o protagonismo que exerceram em outras cidades – talvez pela ausência do carro de som ou talvez a própria opção de alguns destes movimentos em realizar uma participação de suporte e apoio. Sem os alto-falantes e discursos amplificados, um grande silêncio tomava conta do momento da concentração. Nele estavam presentes muitas coisas: as dúvidas sobre como realizar o ato em meio a tanta vigilância; a reorganização do trajeto, como fazer uma mobilização contundente em um cenário de repressão, aprovação da PEC e menor número de manifestantes que o ato anterior. Centralmente, havia um bloqueio policial enorme logo após a catedral. Este bloqueio não deixaria ninguém passar sem ser revistado e ter objetos ou mesmo o corpo apreendidos. Ficamos parados por horas e a pergunta no ar era \”o que diabos é possível fazer?\”

    Esta pergunta esbarrava no fato de que, nesta manifestação, não era possível algum burocrata dizer que \’havia uma minoria de vândalos/as infiltrados querendo desvirtuar o sentido original traçado pela manifestação\’ (SIC). Tratava-se de um ato composto principalmente pelos setores de ação direta, organizada para agir e resistir à violência capitalista/institucional. Às 17h, quando aproximadamente começou a movimentação do ato, suponho que havia algo próximo a cinco mil pessoas presentes. A polícia fazia questão de revistar a todas e todos, em fila. Para além da possibilidade de ser incriminado/a por motivos torpes, a revista consistiria de fato em uma humilhação estatal, um ato de suplício que determinaria quem teria o controle sobre a mobilização. Três opções circulavam entre os blocos: aceitar o baculejo policial, cedendo e realizando um ato simbólico na esplanada; forçar a passagem do bloco sem a realização da revista generalizada, a partir de pressão e negociação com o comando da mobilização; modificar o trajeto do ato, indo para outro rumo que não a esplanada.

    A disposição espacial da mobilização era, neste momento: (Museu Nacional)-> Frente Brasil Popular -> Frente Povo Sem Medo -> Bloco Estudantil <- Bloqueio Policial – (Catedral). O bloco estudantil estava à frente, visualmente estruturado para a ação direta: o corpo todo coberto; máscaras de proteção do sistema respiratório e da identidade; organizado em grupos de afinidade que se cuidariam nos momentos de tensão; com dinâmica de bandeiras em diferentes cores pra indicar quando prosseguir, parar, recuar, reagrupar; materiais para ressignificações urbanas; escudos, vinagre, leite de magnésia, comissão de primeiros socorros; organização interna para decidir como responder às investidas externas. Um jogral foi puxado por uma estudante. Ela informou sobre a decisão da PM da manifestação só prosseguir caso houvesse revista de todo mundo e da deliberação do movimento em realizar a manifestação sem ser revistado. Informou que a manifestação seguiria, que não seria revistada e que o ato seguiria à esplanada independente de qualquer decisão arbitrária da polícia.

    As baterias ressoaram, as palavras de ordem ficaram mais incisivas, as balaclavas subiram ao nariz. Um cheiro de vinagre começou a se confundir com gás lacrimogênio. O bloco se aproximou e caminhou rumo à esplanada, chegando nariz a nariz com o bloqueio policial. \”Deixa passar a revolta popular\” foi uma das últimas palavras de ordem ouvidas antes das bombas começarem a estourar. O conflito inicial, entre as duas linhas de frente, foi composto por um brutal e bestial ataque da polícia. Policiais abriram mão de suas armas e atacaram com paus e pedras que vinham do lado de cá; roubaram os escudos e passaram a se defender com as madeirites pintadas com \”Poder para o povo\”. O bloqueio da tropa de choque policial utilizou lacrimogênio, spray de pimenta, bombas de efeito moral, balas de borracha. Uma nova bomba, que faz barulho, emite luz e solta gás lacrimogênio como um buscapé também foi utilizada. A repressão policial abriu-se rapidamente.

    Este primeiro ataque policial foi brutal e muito eficiente em desestruturar o primeiro momento da manifestação: as barricadas utilizadas dia 29/11 foram rapidamente desmontadas; as bombas de gás asfixiaram qualquer tentativa de reaglomeração e resistência na rua; o bloco policial não parou de avançar de forma que recuar tornou-se a única alternativa. Mas como a repressão policial não parava (contrariando uma possível ação tática de utilizar a força bruta para conter e dispersar rapidamente a manifestação), o ato desmembrou-se em vários blocos menores que seguiu distintos caminhos pela cidade, extrapolando o espaço anteriormente previsto para a manifestação. Em suma, a repressão tornou impossível que o ato se dispersasse completamente, pois quem se desgarrava em grupos menores era perseguido e detido pela PM. Ficar organizado e em grupos grandes tornou-se também uma alternativa de autodefesa. Segue uma lista das trajetórias de alguns que parecem ter sido os principais blocos deste segundo momento da mobilização:

    – Um grupo embaralhou-se à população na Rodoviária do DF, realizando atos e mobilizações ali mesmo junto a usuários e usuárias de ônibus. Um ônibus da viação TCB foi queimado nestas imediações (cuja foto de um garoto acendendo um cigarro em seu fogo tornou-se símbolo do protesto). A partir daí este grupo ficou ilhado na rodoviária do DF, perseguido dentro dela e com pequenos focos de confronto. A polícia passou a revistar indiscriminadamente qualquer pessoa tida como suspeita e deteve algumas tantas para averiguação. Esta situação durou algumas horas.

    – Outro Grupo foi para a Rodoviária da Região Metropolitana (entorno) do Distrito Federal, no outro lado da rua. Alguns ônibus foram quebrados e há relatos de que dirigentes das centrais sindicais burocráticas passaram a denunciar uma ou outra pessoa à polícia como vândalos. Este grupo, espremido pelas bombas de gás lacrimogênio, dividiu-se em dois caminhos: parte subiu as escadas da rodoviária rumo ao andar superior (que dava acesso ao CONIC) e outra parte seguiu pela lateral da rodoviária rumo ao Setor Bancário Sul.

    – O grupo que subiu as escadas travou a via imediatamente a frente da escada, utilizando um ônibus como trava da via. Parte deste grupo seguiu para o Setor Bancário Sul e outra parte foi refugiar-se no CONIC. O CONIC, um conjunto de prédios comerciais com formato de galerias de comércio alternativo, foi sitiado pela polícia que passou a prender, espancar e perseguir quaisquer pessoas que pudessem ser identificadas como manifestantes. As lojas e prédios locais fecharam por receio de que a repressão adentrasse suas portas.

    – Um grupo grande, vindo pelos dois lados da Rodoviária da Região Metropolitana, encontrou-se no Setor Bancário Sul. A imediata compreensão de que era o setor financeiro quem se beneficiaria da aprovação da PEC estimulou a manifestação a se reorganizar e seguir, ali, realizando intervenções sobre os prédios dos bancos e outras organizações capitalistas beneficiadas pelo corte de gastos. Neste momento, por diferentes motivos (engarrafamento, dispersão, falta de planejamento) a polícia não tinha tropas direcionadas para este grupo, que era o maior remanescente da manifestação. Os/as manifestantes saíram do setor bancário sul rumo à W3 Sul, passando pelo Setor Hoteleiro/Comercial Sul. Neste caminho duas coisas simultâneas ocorreram: alguns bancos privados e sedes de partidos conservadores estavam no caminho. A resposta à repressão e aprovação da PEC 55 atingiu principalmente o Itaú Cultural, Banco Santander e Partido Trabalhista Brasileiro com sprays, paus, pedras. Não foi registrada no IML nenhuma ocorrência de vidros, prédios e placas com risco de vida. Apesar de suas instituições sugarem todo nosso sangue, edificações ainda não possuem sistema nervoso e, portanto, não podem ser vítimas de violência física.

    – Chegando ao começo da W3 Sul foi sugerido que a manifestação ali presente caminhasse até a sede local da Rede Globo, localizada cerca de oitocentos metros dali, no começo da W3 Norte. Este setor da cidade estava todo engarrafado tanto pelo horário como pelo caos instaurado há pouco pela repressão. O bloco caminhou sem problemas aparentes até bem perto da sede da Rede Globo, onde uma operação policial estava armada para conter a manifestação. Vários grupos de carros e motos da Rotam e Bope dispersaram mais ainda este bloco, fazendo com que dezenas de pequenos grupos – indo de duas até de cinquenta pessoas – fugissem da repressão rumo às primeiras quadras da asa norte. Um grupo passou pela porta da concessionária da Citroen e entrou na Concessionária, que afirmou ter tido 20 carros depredados.

    – Outro grupo correu da Globo para dentro da SQN 302, tentando sair do ato e caminhar rumo à UnB. Esta quadra e suas vizinhas são blocos destinados a parlamentares, ministros, e militares. Os blocos destinados a políticos são normalmente vazios, pois os mesmos utilizam a sua bolsa aluguel pra se hospedarem em resortes ou bairros mais luxuosos da capital. Tanto por denúncias dos moradores destes bairros elitistas como pela perseguição, estes pequenos grupos passaram a viver um jogo de pacman pelas quadras de Brasília, com a diferença de não haver qualquer pílula que transformasse momentaneamente os fantasmas em seres inofensivos. Muitas pessoas conseguiram se esgueirar e fugir pelas quadras. Outras tantas foram detidas e jogadas ao escárnio público de moradores/as conservadores/as da cidade. Há que se ressaltar, porém, que muitos/as moradores/as ajudaram pessoas que fugiam, ofereceram abrigo, indicaram caminhos e filmaram arbitrariedades policiais. Para a mídia corporativa, obviamente, só os relatos conservadores servem e importam. O ato contra a PEC havia enfim se dissolvido na cidade.

    Não foram poucos os casos de tortura, repressão e violência policial neste momento, espalhados em toda a cidade. Várias pessoas presas tomaram chutes, socos e pisões quando já algemadas e deitadas. Outras tiveram sprays de pimenta jogados diretamente em suas faces quando já rendidas. Outras tantas ouviram as mais distintas ameaças, recheadas de todos os preconceitos machistas, racistas, homofóbicos a depender de qual grupo social fossem identificados. Pessoas caminhavam pelas ruas com medo da mais simples presença policial, que podia tornar-se agressiva a qualquer momento e em qualquer local/hora. Durante muitos dias depois a sensação ainda seria a de se perceber-se perseguido/a por agentes da lei.

    * Pós-ato, vigília e tentativas de enquadramento

    Neste momento, enfim, não havia qualquer foco de manifestação pela cidade. As pessoas foram trocando mensagens, tentando se localizar, compreender o número de detidos/as e organizar redes de apoio. As delegações de fora de Brasília estavam localizando se havia algum/a preso/a de suas cidades. \”Você está bem? Onde você está?\” devem ter sido trendtopics das agências de monitoramento das redes sociais. Muitas pessoas feridas estavam se tratando e tentando evitar maiores sequelas da repressão. Ao fim, foram localizados/as a maioria das pessoas presas. Estavam ou na 5ªDP, na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA) ou no Departamento de Polícia Especializada (DPE). Com a exceção de um adolescente que foi mantido na DCA, todas/os detidos/as que não foram liberados imediatamente foram levados à DPE. Convocou-se então uma vigília de apoio aos manifestantes na porta da Delegacia.

    Aos poucos foram chegando diversos militantes na porta da Delegacia. Não havia uma dimensão exata do número de pessoas detidas naquele momento, mas falava-se em um número que girava entre cinquenta e cem pessoas. Advogados/as chegaram e, após muita insistência, conseguiram entrar para encontrar as pessoas detidas. Chegamos ao número de sessenta e quatro pessoas presas quando a lista geral foi liberada pela polícia. Junto dela, também, a intenção de enquadrar todos/as detidos no artigo 20 da Lei de Segurança Nacional. Este, datado de 1983,

    \”Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências.
    Art. 20 – Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas. Pena: reclusão, de 3 a 10 anos. Parágrafo único – Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo.\”

    Este enquadramento era altamente arbitrário pois não havia identificação nem flagrante das pessoas detidas cometendo qualquer delito; o enquadramento seria realizado coletivamente sem discriminação individual (de um conjunto de pessoas presas a esmo na manifestação); finalmente porque uma lei oriunda da Ditadura Militar para atacar grupos políticos tratados como terroristas não deveria ser utilizada nos dias de hoje. Caso isso ocorresse, estava aberto mais um precedente do estado de exceção para criminalização dos movimentos sociais.

    A rede de apoio avolumou-se e fez diferentes atividades de pressão/solidariedade: muitos/as advogados/as foram contatados/as, ligações e articulações junto a setores de direitos humanos, agentes institucionais. Chamado a parlamentares locais e federais para realizarem intermediação na DPE e também pressão junto ao executivo local. A vigília uniu diferentes grupos à frente da DPE que, à sua maneira, faziam ligações e informes para outros grupos, compravam comidas e suprimentos para as pessoas presas; montaram um conjunto de tendas para que se abrigassem madrugada adentro enquanto a acusação definia-se ou não em relação a quem fora detido/a. Toda esta pressão teve resultado: horas depois da entrada de parlamentares e representantes do governo para mediar com a polícia, foi retirada a acusação de violação da Lei de Segurança Nacional. Todos/as detidos assinaram um termo circunstanciado e foram, durante longas horas madrugada adentro, sendo liberados/as. Todas/os, ao sair, relataram todo o terror que passaram na mão da polícia desde suas detenções (quando muitos foram torturados/as, espancados/as e ameaçados/as de morte), ao tratamento humilhante que receberam na DPE e o terror da acusação ao qual estavam sendo acometidos/as sem nenhuma prova. Por força da mobilização, enfim, uma vitória foi conquistada e a Lei de Segurança Nacional foi retirada do caso.

    Sobrou somente um adolescente preso. Este, um estudante paranaense, passou a noite dormindo ao relento na DCA, acusado de depredação de patrimônio. As possibilidades aventadas antes da audiência de conciliação era de que ele ficasse preso em Brasília até o fim do processo ou que ficasse em liberdade mas não pudesse sair dos limites do Distrito Federal rumo à sua casa. Novamente, em função de uma boa atuação das conselheiras tutelares envolvidas – junto a advogados/as, parlamentares, movimentos sociais e de direitos humanos – o jovem foi liberado para voltar a sua cidade natal e responder ao processo (com acusações bem mais brandas) em liberdade.

    Os dias posteriores ao ato estão ainda constituindo seu legado. Os movimentos sociais estão refletindo internamente sobre a nova conjuntura e perspectivas de ação. O Estado afirmou estar investigando por meio de seus arquivos, vídeos e documentos diversos militantes presentes no ato com intenção de realizar processos posteriores. A PEC da morte foi aprovada com ampla reprovação da sociedade e em sua sequência já foram anunciadas as impopulares e cruéis Reforma da Previdência e Reforma Trabalhista. Os conflitos de 2016 seguirão por algum tempo.

    * Legados e desafios

    Seguem, enfim, algumas considerações finais sobre esta mobilização e questões futuras

    1 – O ato do dia 13/12 de Brasília foi uma manifestação organizada em torno da Ação Direta; não foi um ato ordeiro desvirtuado pelos infiltrados. Ao contrário da manifestação passada, o setor que articulava um tipo de mobilização burocratizada e hierárquica não teve presença determinante na mobilização. Seja pelo aparato de segurança da polícia ter conflitado com o aparato instrumental destes setores ou mesmo por eles não terem investido seriamente na sua autoexpressão durante a mobilização. O conjunto de táticas, organizações, instrumentos e perspectivas da manifestação do dia 13/12 eram orientadas à metodologia de Ação Direta de Rua.

    2 – A ação das forças do estado do Distrito Federal tomaram a cena mais uma vez. Em um primeiro momento, pela demonstração de eficácia, controle e rapidez na repressão à mobilização. Em um segundo momento, pela estranha ação de espraiar os blocos de manifestantes pela cidade. Por fim, em sua capacidade de realização do terror urbano e persistência em perseguir manifestantes onde quer que estivessem. A polícia manteve o controle da mobilização, com uma vitória exemplar sobre a manifestação enquanto ela esteve na esplanada. Aparentemente perdeu a dimensão da ação tática quando a manifestação se espalhou pela cidade, entre engarrafamentos, blocos distintos e mudanças de trajetos. Todavia manteve-se em atividade firme mesmo quando aparentemente perdida taticamente.

    3 – Junto à disciplina, equipamentos e organização tática, também ganhou destaque a crescente e latente expressão de ódio à manifestação, por parte dos policiais. Em diferentes espaços (seja nas mobilizações, redes sociais e na hora da detenção), agentes da polícia tem apresentado uma valoração pessoal odiosa aos manifestantes, para além do exercício da lei. Este ódio expresso tem encontrado ressonância justamente junto aos setores nobres da população onde uma detenção massiva foi executada. Esta combinação de elementos deve sempre abrir um alerta a qualquer militante, pois carrega traços de violência política que leva a caminhos mais perigosos. Assim, os precedentes de criminalização pela Lei de Segurança Nacional e os relatos de tortura devem ser bem recordados pois podem indicar um acirramento muito mais radical que os que se vislumbra atualmente.

    4 – A disposição à Ação Direta aparentemente foi a responsável pela manutenção da manifestação quando da primeira dispersão. Talvez, fosse um ato organizado com uma outra disposição, a resposta à primeira repressão violenta fosse de resignação. Todavia os ensinamentos e traumas do ato anterior foram convertidos em metodologias de resistência que, se não mantiveram o ato pela esplanada, espraiaram-no pela cidade. Contraditoriamente, muitas pessoas relatavam que tentaram sair da manifestação mas em função da repressão direcionada não viram outra forma que não fosse seguir junto aos grupos organizados, como forma de autodefesa.

    5 – Dado que a Ação Direta não é debatida abertamente por um amplo setor da esquerda há pelo menos algumas décadas, estamos em um estágio muito preliminar de suas dimensões. Esta característica crescente nas lutas atuais tem diversos méritos (defendidos por quem a emprega) e fragilidades (alardeados por quem a critica) que estão poucos baseados na experiência real vivenciada. Está em aberto a reflexão por parte dos grupos defensores da Ação Direta uma análise profunda sobre quais os possíveis limites e perigos destas formas de ação. Ao contrário de fragilizar, este debate pode trazer mais aprofundamento da perspectiva. Listando algumas questões, podemos refletir por exemplo sobre a contradição em realizar manifestações com métodos de açãos direta antiestatistas e necessitar do apoio institucional para ser libertado/a da repressão (em algum momento a institucionalidade pode não comportar mais setores sensíveis às luta). Também ficou a reflexão sobre como lidaremos com o perigo que enfrentamos: por sorte, algum cuidado dos manifestantes ou decisão tática da repressão, nenhum manifestante se machucou mais seriamente. Por outro lado, o número de pessoas traumatizadas pós-manifestação é muito grande. A repressão à Ação Direta causou simultaneamente revolta popular e sequelas diversas em muitos/as militantes.

    6 – Existem, na esquerda, três principais linhas de luta convivendo durante as mobilizações – expressas neste texto cada uma delas pela Frente Brasil Popular, Frente Povo Sem Medo e Setor de Ação Direta. Cada um destes três setores tem um trunfo específico que apresenta publicamente em suas lutas (infraestrutura institucional; capacidade organizativa; contundência na ação). Nas diferentes cidades brasileiras estes três setores tem convivido com mais cooperação ou conflito. Independentemente de quais fragilidades possam apontar um ao outro, todas estas estratégias tem sido derrotadas nas lutas objetivas.

    ***

    “E com o bucho mais cheio comecei a pensar:
    Que eu me organizando posso desorganizar
    Que eu desorganizando posso me organizar
    Que eu me organizando posso desorganizar”,
    (Chico Science, da lama ao caos)

    A Ação Direta não diz respeito somente a manifestações violentas; é um conceito que trata sobre romper com as mediações que sustentam a organização atual das coisas. As manifestações deste tipo atingem tanto o conteúdo da luta concreta (neste caso a pauta da PEC) como a forma da organização da sociedade capitalista. Ao propiciarem espaços de auto-organização, gestão direta das escolas/universidades, greves radicalizadas e ativas, espaços de luta não burocratizados ou hierárquicos, a luta contra a PEC da morte, ainda que derrotada objetivamente, possibilitou uma vitória que as lutas futuras hão de herdar: aprendemos que nos organizando podemos desorganizar.

    Escrito por Nigganark

    Agradeço às revisões de Leila Saraiva, Ana Vaz, Germano Corrêa, Carla Coelho, Sara Teixeira, Bianca Campos, Thiago Lima

  • Palácio do Planalto ocupado!

    Cerca de 500 lideranças indígenas (de vários povos do MA, BA, RS, SC e SP), de pescadores e pescadoras artesanais, quilombolas e quebradeiras de coco ocuparam o Palácio do Planalto, na manhã dessa terça-feira, 22.

    Na pauta dos movimentos estão o repúdio à PEC241-55/16, à PEC 215/00 e ao PL 4059/12, que libera a venda de terras para estrangeiros.

    Os povos e comunidades tradicionais também cobram Temer sobre os recentes boatos sobre possíveis mudanças que o governo estaria planejando fazer nos procedimentos administrativos de demarcação das terras indígenas.

    Além disso, os povos manifestam-se pela retomada das demarcações das terras indígenas, quilombolas e reconhecimento e regularização dos territórios pesqueiros.

    Retirado de: . Data de acesso: 22/11/2016