Author: tramadora_q3o93j

  • Cracolândia, Redenção, Ocupa Brasília e a militarização da política

    texto por Edson Teles

    foto: Centro de Mídia Independente: https://midiaindependente.org/?q=node/298

    fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2017/05/31/cracolandia-redencao-ocupa-brasilia-e-a-militarizacao-da-politica/

    A securitização das práticas sociais tem sido recorrente nos vários modos de governo da vida. Se nas principais potências militares do planeta isto se dê sob a alegação de guerra ao terrorismo, aqui no Brasil a justificativa é o combate à criminalidade e à violência urbana.

    Em São Paulo, neste mês de maio, tentaram legitimar uma ainda maior militarização da cidade. Foi a operação visando acabar com a “anormalidade” dos usuários de drogas na Cracolândia. Mais conhecido como “política higienista”, o “Projeto Redenção” da Prefeitura de São Paulo, cuja parte de suas reuniões, não sem propósito, ocorreram na Secretaria de Segurança Pública, visa “erradicar” – arrancar pela raiz, eliminar, extirpar – o tráfico de drogas e “revitalizar” a distribuição da posse imobiliária da região.

    As cenas que se seguiram à determinação do prefeito, juntamente com o governador e por meio de suas forças policiais, foram de violência indiscriminada. Bombas, tiros, ameaças, destruição de imóveis provocando o “fluxo” desesperado de centenas de paulistanos, abandonados pelas instituições que deveriam lhes garantir direitos. É como se fosse necessário, para este modo fascista de governo, transformar seres humanos em bando, os excluindo do acesso à lei, para acionar os mecanismos inscritos na mesma lei e que visam lidar com possíveis situações emergenciais. O bando é a própria condição da efetividade de um poder autoritário e discricionário, cujos instrumentos devem ser os equipamentos do Estado.

    Os fluxos resultantes da repressão policial produziram outras cracolândias pelo Centro de São Paulo. São cenas conhecidas do paulistano. Em janeiro de 2012, Prefeitura e Estado haviam “deflagrado” a “Operação Dor e Sofrimento”, cuja síntese funcional era inflingir dor e sofrimento aos usuários, mediante a falta da droga e a dificuldade de fixação, obrigando-os a solicitarem ou aceitarem ajuda (leia-se: “internação”). Agora, em 2017, a agressão do Estado foi mais longe e pretende, com autorização judicial, abordar, deter e internar compulsoriamente os indivíduos considerados perigosos para a “ordem pública” na região.

    Mas de qual “ordem pública” se está falando? Por que a garantia da lei e da ordem exige zonas de indistinção entre o lícito e o ilícito, o democrático e o fascista? A que visa a política de produção dos “bandos”?

    Sem dúvida que no caso da Cracolândia um dos principais objetivos específicos da ação criminosa das instituições do Estado é a tentativa de erigir a “Nova Luz”, projeto de especulação imobiliária para a construção de torres de apartamentos e de centros comerciais sob a direção das já excessivamente delatadas construtoras. A alegação de lugar degradado não se deve à presença de usuários de drogas, mas à negligência do poder público em cumprir funções e serviços básicos como coleta de lixo, manutenção dos espaços comuns, cuidado com os bens históricos e culturais do bairro. Soma-se ainda o fechamento de um grande centro comercial, em 2007, e a demolição deste e de outros imóveis nos anos seguintes, espaço para onde se deslocaram com mais intensidade os abandonados e esquecidos.

    Contudo, há nestas ações a articulação de uma militarização da vida urbana, ou ainda, da política. Atos de governo para a manutenção da ordem – higienistas, como na Cracolândia, ou repressivas, como na violência contra as manifestações do “Ocupa Brasília” – não objetivam somente os “criminosos”, “traficantes” e “vândalos”. Estariam na mira das forças da ordem todos os que podem ser de alguma forma perturbadores da normalidade hegemônica submetida a poderes econômicos, oligárquicos e políticos.

    Quando em 2007 o então ministro da Defesa Nelson Jobim anunciou que a presença das tropas brasileiras em solo haitiano seria um bom treino para a garantia da lei e da ordem no Brasil, já se visava agredir com esta força militar os atos de protesto e movimentos de resistência, desde os mais críticos às políticas neoliberais até os coletivos de luta contra a gentrificação e em defesa de direitos humanos. No manual do ministério da Defesa, de execução da “Garantia da Lei e da Ordem”, de 2013, pode-se ler que seu uso se destina, como uma de suas principais funções, ao emprego das Forças Armadas quando houver o “esgotamento” dos órgãos de segurança pública para conter os “movimentos contestatórios”. No cenário do treino descrito no “Manual” se descreve como “forças oponentes” os “elementos integrantes de movimentos sociais reivindicatórios, de oposição ou protesto, comprometendo a ordem pública”.

    No movimento “Ocupa Brasília” se tentou, novamente como em outros momentos de produção de farsas da lógica da governabilidade, alegar a violência de alguns, os “vândalos” infiltrados nos movimentos sociais, para reprimir indiscriminadamente e em proporções obviamente desiguais e absurdas corpos em resistência. Esse parece ser o alvo: os corpos em luta, em especial os dos negros, dos pobres e das mulheres.

    Frequentemente, lanço meu próprio corpo às ruas em dias de manifestações. Desde 2013 não vou a elas sem um lenço para tapar o meu rosto. Eu sei que se for uma manifestação que apresente qualquer risco à “ordem”, as bombas e tiros virão. A “máscara” é o mínimo de proteção. E lá, no calor da correria, quando a polícia começa a agredir indiscriminadamente para intimidar o protesto, facilmente entendo e me solidarizo com os que têm a desproporcional coragem (em relação à força policial) para enfrentar as agressões. Não dá mais para apelar à lógica conciliatória diante do governo da vida descartável e matável. É claro que não se deve lançar-se contra o que irá nos ferir profundamente, é importante se preservar. Mas compreendo a revolta (e isso é também política, concorde-se ou não com o método) produtora dos ataques aos símbolos do capitalismo ou da burocracia e das instituições do Estado.

    Dor, sofrimento, redenção. Redenção, dor, sofrimento, repressão. Não, a redenção não aconteceu. Ninguém foi liberto, salvo ou reabilitado. Tal como no “Projeto Redenção” em São Paulo, a violência do Estado se repetiu, sob moldes parecidos, nas proximidades do município de Redenção, no interior do Pará. Dez pessoas foram executadas pela Polícia Militar, segundo os relatos dos sobreviventes colhidos pelo Ministério Público Federal. O que mais se pode ler nestes depoimentos transcritos é: “a polícia chegou atirando”, de modo semelhante a Cracolândia ou a Brasília, mas com munição letal. Redenção é uma localização próxima ao massacre de Eldorado dos Carajás, que completa 21 anos com profundos rastros de impunidade. É também a região onde, entre 1972 e 1974, cerca de 100 guerrilheiros de resistência à ditadura foram assassinados e, em sua maioria, continuam com os corpos desaparecidos até hoje.

    Brasília, Cracolândia e Redenção não são fatos isolados. Também não começaram a ser praticados ontem. São modelos de laboratório para a modulação de uma sociedade de controle. A sinergia entre estas operações de higienização, repressão a manifestações e eliminação de corpos em resistência é a característica e confirmação maior da militarização da vida, das subjetividades e da política. Essa nova política militar já vem sendo testada nos conflitos de terra, nas periferias das grandes cidades, nos entornos de campos de futebol, nos megaeventos esportivos por vários anos e, nestes dias, a vimos em plena potência. Esses modelos de “pacificação” e controle via a militarização vêm acompanhados de discursos de conciliação, consenso e manutenção da ordem. Trata-se de um tipo de biopolítica, praticada desde sempre, é verdade, mas que sofreu uma intensificação na última década (é só conferir relatórios de ONGs de direitos humanos) e sob os olhares atônitos ou de cumplicidade das instituições do Estado de Direito.

    São operações – termo apropriado ao discurso da guerra mobilizado (vocabulário utilizado também contra a violência urbana, o ataque à propriedade, os “vândalos”, mas que se soma à guerra contra o tráfico, alimentar, da saúde pública) – que desfazem as separações jurídicas e éticas entre o lícito e o ilícito, o legítimo e o ilegítimo. São cada vez mais localizadas, para não se tornarem alvo de denúncias do modelo bélico e ainda servirem como teste; e, permanentes, normalizando o que surge perante a opinião pública como exceção. Em vez dessa militarização da política se fundamentar nos direitos humanos, nas leis e na cidadania, tais formas de controle social emergem com base na construção dos perfis de indivíduos e de comportamentos, de territórios e coletivos, aos quais são atribuídos qualificações e graus de risco à ordem, bem como potências de resistência.

    A vigilância da vida (tanto as de resistência quanto as corriqueiras) tem como paradigma o controle dos espaços, comuns e privados, das estruturas e práticas sociais e da circulação dos corpos a partir da produção da ideia da guerra e da insegurança. Isso serve à militarização de discussões sobre a menoridade, o transporte, as paisagens e os espaços urbanos, mas também de questões amplas como a cultura popular. Os argumentos da guerra e da militarização se dirigem inclusive aos processos de produção de subjetividades. São nesses processos que se encontra a vida política mais profunda. E, também, são nessas ranhuras e porosidades do cotidiano que se criam as mais eficazes estratégias de resistência.

  • História em pedaços – Brasília, 24 de maio

    Publicamos aqui um relato de Gavin Adams sobre os acontecimentos do dia 24 de maio de 2017 em Brasília. Gavin tem realizado um rigoroso trabalho de observação, registro, coleta e interpretação de diversas manifestações de rua que vem ocorrendo desde o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Seus relatos são documentos preciosos sobre o atual momento histórico; uma observação fina no nível da rua, olhar de formiga construindo análises a partir de fragmentos. Na melhor tradição etnográfica ativista e num esforço benjaminiano, Gavin vai recolhendo tudo, como que tentando antecipar o pior porvir, deixando assim um rastro para o aprendizado de futuros intérpretes sobre nossa catástrofe.

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    24 de maio

    Cheguei no cruzamento central da cidade de Brasília a pé às 13:15h. O Shopping Conjunto Nacional estava à minha esquerda quando entrei e percorri o viaduto sobre o Eixo Monumental. Fui surpreendido pela multidão que já escoava pela avenida embaixo de mim. Esperava alcançar o Estádio Mané Garrincha para a concentração, mas a torrente era tal que fiquei para olhar. Tinha tanta gente que não deve ter cabido no estacionamento e acabou espirrando pela avenida, iniciando a passeata antes do horário previsto de início, que era 14h.

    Era muito bonito de ver e centenas de grupos, centrais e sindicatos caminhavam sob o forte sol, dos dois lados do viaduto. Muita bandeira, faixa e cartaz. Era uma verdadeira salada de frutas composta de inúmeros sindicatos e centrais. Tinha vários carros de som, e nesse segmento em particular predominavam os aventais amarelos da NCST. Muitos manifestantes sindicalistas estavam lá em cima do viaduto olhando a multidão também. Desci para a avenida e decidi caminhar um pouco em sentido contrário, na direção do estádio, para checar a passeata.

    Logo vi os Policiais Penitenciários, acho que carcereiros, de preto, talvez uns 300. São da Força Sindical. Vi a faixa “A reforma da Previdência é o fim da aposentadoria dos policiais”. Notei alguns dos numerosos balões da manifestação: CUT, CTB e CNTI. As centrais tinham trazido muita gente que vestia seus aventais e tremulava suas bandeiras. Eram muitos corpos em movimento.

    Tentei anotar os nomes dos sindicatos cujas faixas, camisetas ou bandeiras eu encontrava, mas eram tantos que apenas capturei algumas siglas. Alguns tinham nomes bem curiosos, e na hora achei que poderiam compor uma prateleira de remédios de uma farmacopéia laborista: APRASC, STICMA, ENESSO, FASUBRA, SINTRATECOB.

    Outras associações presentes ali naquele trecho: SINTHOTESB, SINDIRETA – DF, CSPB, CONTRATUTH, SINDUS, INTERSINDICAL, UGT, CTB, CONTAC, FORÇA SINDICAL, CGTB, MST, CSP-CONLUTAS, FSCM. Vi um grupo de uns 15 jovens negros com uma bandeira Quilombo. Bandeiras do Povo Sem Medo, das Brigadas Populares. Vi bandeiras do Brasil (umas seis), da Juventude do PT, do Pernambuco e Paraíba. Um moço vestia a camiseta com o rosto de Lula: “O cara está voltando!”.

    Ao caminhar vi os vários carros de som. Alguns tinham nomes como “Chumbo Grosso” e “Trio Laser”. Quando tem muita gente, o carro de som fica menos agressivo, e é possível buscar espaços mais vazios de som. O rumor geral das vozes era um oceano vivo. Mas os oradores estavam no modo sindical clássico. Apesar disso, o clima geral era de festa e carnaval. Um dos carros, inclusive, de Minas, trazia uns meninos que faziam um funk vocal, com beatbox e tudo. Naturalmente, muito Fora Temer e Diretas Já!. Uma outra palavra de ordem dizia “ô deputado, presta atenção, se você vota sim, a gente vota não!”. Um senhor de pé, parado na calçada, tinha um cartaz: “Precisa-se de presidente, governador e deputado para trabalhar na saúde, educação, segurança. Povo paga bem! Sem corruptos”. Um cartaz trazia “Liberte Rafael Braga”.

    Decidi voltar e caminhar na direção do fluxo. Passamos ao lado da Rodoviária e um orador anunciou 100 mil manifestantes. Outro mais adiante afirmou que a Globo tinha contado 25 mil (a PM deu 35 ao fim do dia). A contagem final na imprensa de esquerda deu um teto de 150 mil. Foi chamada de “a maior marcha da história” da esquerda em Brasília. Muita gente buscava refúgio debaixo da sombra das poucas árvores ao longo da avenida. Um orador em um carro de som rogou aos “companheiros de amarelo sentados na sombra, venham para a luta companheiros!”. Vi enfermeiras, aeroportuários, e depois os estivadores do Rio com suas camisetas “113 anos de luta e resistência”. Ao lado deles, os “Arrumadores de Itajaí”, com bandeira. Vi uma bandeira com o rosto do Che e “Juntos na Luta”, uma do PCdoB, da FENTECT, da FETRHOTEL, do CONEN, e outra do SINTUFF. Uma camiseta do Levante Popular da Juventude.

    Tinha muitos balões na passeata, contei mais de 100. Vi uma faixa “Volta Dilma – Anula o golpe”. Vi uma camiseta “Sou mais favela”, uma outra “Greve de 2006 – eu participei”, e uma bandeira do Rio Grande do Sul. Vi uma moça indígena de cocar.

    As palavras de ordem eram as clássicas e esperadas FT! E DJ!, além de “Golpistas, fascista, não passarão”. Teve muita chamada para a Greve Geral, que desta vez quer ser de 48 horas. O nome de Lula não foi chamado até onde ouvi. Fiquei de olho nas bandeiras do Brasil que eu via. Acho que até então umas 12, quase sempre aos ombros. Parei de contar aos 50.

    Entramos na Esplanada. Seguindo pela avenida, pela via da esquerda, notei um dragão inflável que estava sendo enchido. Ele tinha uns 10 metros e possuía três cabeças. Pude ver apenas duas palavras que nomeava cada uma delas: “juros” e “desemprego”. Mais adiante, uma pipa gigante, ainda no chão, com as cores LGBT e uma cauda que trazia um Fora Temer. Vi o Sindicato de Padeiros de São Paulo, uma bandeira do SINDUTE, do PSTU. Um ambulante vendia adesivos de unha no asfalto, muito buscado por manifestantes. Vi o Ivan Valente do PSOL e finalmente alcancei os policiais penitenciários que vira do viaduto.

    Ia chegando mais perto do fim da Esplanada, onde acabam os ministérios, tendo passado vários carros de som. Deu para ver gente voltando, e dava para sentir alguma atividade lá na frente e sentir um cheiro de gás lacrimogênio. Um helicóptero da PM sobrevoava o local. A partir daqui, coletei uma infinidade de pequenos eventos que só mais tarde compilei em um retrato narrativo mais coerente. Do nível do chão, era difícil ter uma visão mais geral. Nas muitas reportagens que vi depois, era muito fácil colar os fragmentos de maneira maliciosa.

    Vi três carros de som, que eram os que estava mais perto da barreira policial. Dois deles vinham perpendiculares à barreira policial, que bloqueava o acesso ao Congresso. Eles acompanhavam a multidão que vinha pela via da esquerda na Esplanada. Estavam parados a uns 500 metros da PM. O outro carro tinha chegado antes, creio, e estava transversal barreira policial, mais do lado da via da direita da avenida. Era o carro de som da Pública. Os carros mais próximos eram um do PSTU CONLUTAS e o outro da CUT/UGT/CTB/CSB. Um outro da Força ficou lá trás.

    Pareceu de começo que o PSTU estava chamando o povo para o confronto, e que a CUT pelegava. Mas depois percebi que o pau já estava comendo e os três carros no final estavam pedindo e participando da defesa à agressão policial. No geral estes três carros participaram da resistência e buscaram sensibilizar a PM, dizendo “voltem suas bombas para trás, contra Temer e o Congresso”. Além disso, faziam as chamadas de concentração e encorajavam a formação defensiva e de confronto.

    É importante aqui sublinhar que a ação repressiva policial NÃO FOI RESPOSTA A VANDALISMO. Nenhum prédio tinha sido tocado quando as bombas e balas começaram a chover. A ação foi claramente de dispersão e não de contenção de indivíduos violentos. Pelo menos um manifestante foi baleado com munição viva, de arma de fogo. Vi depois na televisão que havia uma fileira de PMs no começo da Esplanda que pretendia revistar uma a uma 150 mil pessoas. O povo avançou e furou a coluna. A PM reagiu então e depois. Não se tratou de vandalismo.

    Assim, cheguei ao fim da Esplanada em plena conflagração. Eram umas 14:15h talvez. Escorri pela direita, em direção à linha de frente. Colei atrás dos policiais penitenciários, que claramente estavam prontos para a briga, atraídos pelo confronto. Mas um megafone avisou-lhes que obedecessem à liderança e não brigassem. Segui então uma bandeira do MAIS que ia à linha de frente.

    Vi melhor a linha de confronto. Um gradil separava os muitos PMs. Contei ali, à vista, uns 500. Mas depois na TV vi mais de 500 à espera atrás de um edifício. Tinha cavalaria, uma dúzia deles. Uns 200 soldados de escudo, capacete e cassetete, com atiradores. Estes estavam bloqueando a via asfaltada, portanto à minha esquerda era o foco do embate. O gramado for reservado para a manifestação, e o espaço atrás das grades, guardado pela PM, nos era proibido. Os primeiros 100 metros de gramado em frente a grade era área de risco e de contato com projéteis.

    O dia todo pode ser resumido como um vai e vem do povo contra a barreira, seguida depois de uma lenta varredura pela PM do espaço da esplanada em direção ao estádio, de onde viéramos. Ao lado disso, a certa altura, uma meninada foi progressivamente atacando os ministérios, protegendo-se com barricadas para ir segurando a PM enquanto trabalhavam todos os edifícios até o fim da Esplanada.

    Então o povo ia chegando e enchendo o espaço. Quando juntava massa crítica, estourava uma onda que ia encarar os policiais. Acabavam por recuar, depois de mais ou menos resistência. Então tinha várias zonas dentro da manifestação sob ataque. O fogo do confronto na frente, uma linha intermediária e uma zona de retaguarda, onde as pessoas sentavam-se sobre a relva ou conversavam em grupos. As zonas se expandiram e contraíram ao sabor do embate. Mas a ação da PM não fazia muita distinção e frequentemente atacava todas as zonas, redesenhando subitamente o mapa da refrega.

    Andei um pouco pela zona intermediária e vi uma bandeira trazia “UERJ em luta”. Uma meninada do JUNTOS vieram de amarelo e de escudos feitos de câmara de pneu de caminhão e foram para a linha de frente. Vi uma leva de pessoas com bandeiras do PCB e da Unidade Classista. Muitos autonomistas presentes, inclusive Black Blocks que tiveram destaque depois. Um palhaço de nariz vermelho. Trazia um cartaz onde se lia “Não sou palhaço, não bati panela”. Um homem se fantasiara de vampiro grisalho e vestia uma faixa presidencial. Ele sorriu para mim.

    Achei a coisa toda meio surreal, uma mistura de “fog of war” com carnaval veneziano sob o gás lacrimogênio. Os três carros de som irradiando vozes iradas que descascavam a ação da polícia, chamando a insurreição. As nuvens de gás varrendo a multidão. Gente em modo combate, outras relaxadas conversando, outras cuspindo e vomitando com o lacrimogênio e pimenta, de joelhos na grama. Acabei por lembrar de filmes como Kagemusha e outros filmes de guerra. Aqui do chão dava para ver grupos de bandeiras percorrendo o campo aberto por cima da cabeça das pessoas, indicando concentrações e dispersões de corpos. Tem algo de medieval nos embates de rua. Aqui, no espraiamento da Esplanada, era quase um xadrez.

    E, bem nessa hora, uma banda, no carro da Pública perto de onde eu estava, começou a tocar “Será?” do Legião Urbana. “Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer?”. Não posso dizer que sou fã do Legião, mas esta canção, no meio das bombas e gritos, bandeiras e palavras de ordem, no meio do Planalto Central do Brasil, comoveu. Que vida louca, eu com 50 anos e cabelos grisalhos ouvindo uma canção da adolescência perdida aqui nos campos da luta política atual. Nessa hora eu ainda era o jovem tímido esperando a vez de um futuro melhor, hoje cercado de meninas e meninos que iam confrontar a polícia e seus projéteis. A distância entre o país dos anos 1980 e esse Brasil do quase AI-5 colapsando em um motim sindical em frente ao Congresso Nacional.

    Eram 14:30h quando a cavalaria atacou. Eram uns 15 enormes cavalos cavalgando pelo gramado. Nessa hora tive medo. Uma coluna de soldados paramentados pode ser vencida na corrida. Mas a velocidade e inércia geradas por um grupo de cavaleiros é muito potente. Lembro-me dos motins contra o imposto individual na Inglaterra, o chamado poll-tax. Uma manifestação grande foi reprimida pela polícia, incluindo uma carga de cavalaria e seus longos bastões. Uma moça foi atropelada pela tropa montada e se machucou muito.

    Então eu corri. O orador no carro de som ficou revoltado e gritou muito contra a cavalaria. Só que aí a carga de cavalos hesitou e parou. O povo então se voltou contra os cavalos! Vi umas 2 mil pessoas correndo na direção da cavalaria gritando “pega eles! Fascistas!”. De onde eu estava vi também várias bandeiras tremulando nervosas voando em direção ao foco. A cavalaria recuou e se recolheu. Exultamos todos. Foi lindo.

    Nessa exata hora encontrei G do Arrua, o único conhecido que vi hoje. Conversamos um pouco. As bombas e balas de borracha continuavam a voar em nossa direção. Alguns atiravam pedras contra a polícia, às vezes algum rojão, mas a palavra “confronto” não é exata. Trata-se de tiro ao alvo, de agressão e repressão violenta. Não pude deixa de lembrar dos atos do MPL em São Paulo. A operação policial era idêntica: repressão ao direito de manifestação, provocação, perseguição pós-ato e atos ilegais como uso de arma de fogo, acompanhados de cobertura maliciosa da imprensa que fazia petistas… apoiar a ação policial! Lembro-me que ouvia então dos autonomistas “quando a PM bater em vocês amanhã nós também vamos ficar de lado olhando”. Hoje, estavam juntos. Aliás, acho que vi todas as centrais, partidos, grupos, coletivos e fracções de esquerda atuantes dos dias de hoje que conheço.

    Os dois carros de som que estavam ao lado vieram junto do carro da Pública, e formaram uma barreira contra os projéteis da polícia. A massa não parava de chegar, e novas ondas arremetiam contra o rochedo policial. Um menino negro avisava aos amigos “cuidado quando ouvir tiro, eu fui atingido por essa bala de borracha”, mostrando o projétil, chamado eufemisticamente de “elastômetro”. Vi duas bandeiras LGBT, uma da UJC. Vi uma camiseta com o rosto de Malcolm X, com o texto “Não há capitalismo sem racismo”, e outra camiseta com o Mandela. Vi ima bandeira do NOS, uma da ANEL, A banda toca Cazuza, “Que país é esse?”, mas não me toca. Não gosto muito dele.

    O carro de som cobra do comandante o respeito ao acordo firmado entre eles, de poder ocupar o gramado. O oficial responsável pela operação é chamado pelo nome muitas vezes. “Somos mais de 50 mil trabalhadores aqui, respeito! Exijo respeito!”. A certa altura, a multidão grita em uníssono, umas 5 mil pessoas: “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da policia militar!”. Vi banheiros químocos sendo rolados no chão para servirem de barricada contra os tiros. Teve uma hora quando a polícia atirava contra as pessoas no carro de som, o que não vinha fazendo.

    Uma moça do MTST distribuía uma máscara de boca. Pouco adiantava. No geral, é sempre possível observar onde detona a bomba de gás e sentir o vento. Muitos chutam o aparato de volta. Mas ficar de olho na direção da nuvem e se esquivar dá resultados. Mas nem sempre o vento colabora, e há nuvens invisíveis que te envolvem num aquário ardente. O rosto queima e os olhos e nariz ardem muito. Dá um desespero. Mas tem é que sair da nuvem e deixar queimar: arde mas passa, e não esfrega os olhos. Água não adianta.

    O gás foi muito usado, por mais de três horas. Muito agressivo. Um moço contou que o helicóptero da polícia não apenas atirava as bombas, mas também usava de suas hélices para espalhá-lo. Passei a reparar e acho que é verdade. Muita gente passou mal com a pimenta e lacrimogênio.

    A essa altura, manifestantes começaram a usar escudos. Valia tudo: uma placa “Nada temos a Temer”, uma placa redonda de trânsito E, faixas de pano. O orador no carro de som surtou “Vocês não vão impedir este ato! Quando a PM quer aumento vocês vão quebrar o Congresso! PM, fique quieta, recue! Vocês não têm a autoridade, vocês não têm o direito!”. Falou o deputado Vicentinho, o único orador de partido que ouvi, e rogou à PM que parasse a agressão. O povo cantava: “não adiante reprimir, o seu governo vai cair!”.

    Vi nessa hora o estandarte laranja do Rua, uma bandeira “Tribo UFRJ”, uma negra com o A anarquista, uma da LJR, uma vermelha e negra, “GT Antiracismo” da CUT, uma bandeira do sindicato dos Caravaneiros, uma de Minas Gerais, da LSR, UBES, UNE, Kizomba, Liga Operária, Enegrecer e FASUBRA. Vi uma camiseta “Morro do Timbó, Baixa do Sapateiro” e outra vermelha “Ajax Futsal”. Olhei para trás e vi balões até a altura do viaduto da Rodoviária. Vi também duas colunas de fumaça negra à nossa direita, contras as quais um drone branco se destacava. Depois vi que os fumos originavam de uns banheiros químicos e de um ministério cujo térreo ardia.

    Perguntei a um senhor a hora e eram 15:20h. Percorria agora a zona de retaguarda. Muitos jovens e coletivos, sentados e de pé. Certas agremiações são nacionais, e dava para notar que uns cuidavam dos outros e construíam intimidade na manifestação. Este é um espaço muito importante, o do encontro, que o carro de som (e a polícia) não deixa formar. A rua é educativa nesse ponto também, e “permanecer nas ruas” precisa significar formar fóruns de escuta e conversa. O púlpito precisa ser evitado. Vi um pessoal do Território Livre, da ADUSP e ANDES. Vi uma bandeira autonomista RECC, uma da JCA, uma do Faísca, do PSOL e outra do MTST. Vi um moço com a camisa do Santos FC onde pichara “Fora Temer!”, e outra camiseta “MLPS Vidreiros”. Muita camiseta preta também. Vi um batuque do Faísca e o pessoal do Arrua e do Levante popular da Juventude, alguns muito jovens, de 15-20.

    No geral da manifestação, achei muito diversa a composição das pessoas, e as idades iam dos 20 aos 50, bem equilibrado homem/mulher. Encontrei T, que disse que vira o Boulos.

    Um carro de som diz “somos todos filhos de Zumbi”. Depois anunciou que havia um homem baleado ali perto, e pedia socorro aos bombeiros. Disse que ele fora atingido por arma de fogo, o que foi confirmado depois na imprensa. Daí subiu um policial civil que subiu o tom das falas. Ele falou duramente contra a ação da PM: “É covardia, o que que é isso, meu irmão? É por isso que o Brasil está nesse estado. Vocês estão fudendo com nós. Mire naqueles que estão atrás de vocês! A família da PM está sendo defendida aqui, respeita porra! Respeito! Cadê a disciplina militar? Cadê o comandante da PM?”. Vi essa atitude combativa quando policiais civis e penitenciários aplaudiam a ação de black blocks e demonstravam respeito à meninada que fazia barricada e enfrentava a chuva de balas e bombas. Eles avançavam pouco a pouco em direção à linha de atiradores e tentavam atingir os policiais com pedras e, vez ou outra, rojões.

    A certa altura a banda começou a tocar o hino nacional em ritmo de rock. Foi bizarro, agora a linha de frente contava com várias barricadas e o pau comia. Eram 16h e, apesar de muita gente espalhada e insistindo em ficar e realizar o ato, os oradores começaram a desescalar o evento. A PM vinha avançando em varredura e já não havia nenhum manifestante entre a grade e os carros de som, que por vezes ficavam totalmente envolvidos por fumaça tóxica. Os tiros vinham dos dois lados, além da frente do ato. Três helicópteros sobrevoavam o local e atiravam bombas na manifestação.

    A bomba de gás nem assusta muito, o pior é a de concussão. Mas quando o gentil arco do artefato cruza o ar em sua direção, não dá para saber se é de gás ou de explosão. Ele rola na grama graciosamente, como um fliperama sinistro. Mas o pior mesmo é a bala de borracha, que zune na altura dos olhos.

    Fomos saindo e, mesmo de costas, a fuzilaria continuava. Um orador no carro de som dizia que “estamos saindo deste ato com muito orgulho!”, e chamou a Greve Geral. Vi uma faixa da “INTRATEL”, cujo símbolo era um desses emojis da carinha sorridente, com um headphone. Deve ser dos trabalhadores do telemarketing. Vi um pessoal do SINDIPOL, que é da polícia civil. Vi uma camiseta com toda a letra do Raul Seixa, “Gita”. Um moço da Força sindical ajoelha, cuspindo e tossindo muito. Um grupo de policiais penitenciários fazia um sorridente selfie de grupo no meio do gramado agora meio vazio. Vi um grupo de petroleiros também fazendo sua selfie coletiva.

    Voltamos pelo lado dos Ministérios e vimos o estrago. O da Fazenda queimou bem, os outros menos. Nos edifícios estragados, vi as seguintes pichações, dentre outras: “Desgraça Punk”, “Não ao silêncio”, “Greve Geral”, “Morte à Burguesia”, “Porcos Safados”, “Favela vive!” com o A anarquista.

    Chegamos ao Museu Nacional, já na extremidade da Esplanada. Ouvimos umas mulheres gritando “vaza, vaza!”. Vimos então que uma coluna de 40 PMs enquadrou três desavisados adolescentes que pichavam “Fora Temer!” na parede do museu. Juntou gente (tinha muito manifestante) gritando “Não acabou, tem que acabar, EQOFDPM!” e “Fora Temer!”.

    Vimos a Força Nacional no caminho de volta, mas não o exército. Vários grupos de PMs estavam localizados em vários pontos da cidade. Depois vieram notícias da covarde atuação que é usual: a perseguição de grupos pequenos de manifestantes submetidos a todo o tipo de agressão.

    Subimos ao CONIC para uma merecida cerveja. A caminho do lugar, uma mulher cutista estava contando que sua irmã telefonara dizendo que Temer tinha decretado estado de sítio. Disse que ela chorava ao telefone. Assustamos um pouco, mas esperei para ver o que era, os boatos crepitam em manifestação de rua. Achamos um boteco repleto de sindicalistas, e também o G, que estava numa mesa. Ele esclareceu que de fato era um decreto presidencial chamando o exército a manter a ordem, mas com limite de data e circunscrito a Brasília. Depois o decreto foi anulado, dadas as críticas que recebeu. Mas uma linha importante foi cruzada e tenho certeza que, em outro ambiente político, de maior consenso ao redor de um presidente, a medida passaria por legal. O STF não peitaria e ficaria por isso mesmo.

    Vimos na tela dos botecos o programa do Datena, que mostrou uns BBs batendo em policiais, o que foi muito comemorado. Vimos imagens do Rio de Janeiro. Quando passou um grupo de 7 PMs, patrulhando aquele espaço, a galera explodiu em “Fora Temer!” e “Diretas Já!”. Os PMs voltaram e encararam com rosto fechado por um tempo e depois saíram.

    Vimos as notícias do dia depois. A PM do Pará fez 10 mortos em despejo. Vimos os seis tiros disparados por um PM na cidade. Essas irrupções de violência parecem convidar coordenação tenebrosa. Vimos as repercussões da Cracolândia, incluindo uma ocupação de secretaria municipal. O ato espontâneo da Paulista. Vimos os tumulto nos trâmites das reformas, o empurra-empurra e tapetão no Congresso. O JN comprando o discurso do caos e a necessidade da intervenção das Forças Armadas. O JN defende Reinaldo Azevedo de uma maneira que não fez por ocasião da divulgação do grampo de Lula e Dilma ou no caso de Eduardo Guimarães.

    foto: https://pbs.twimg.com/media/DArf1hLXYAA1AKb.jpg

     

  • Carta do Povo Guarani à sociedade nacional sobre a CPI da FUNAI e INCRA

    Reunidos na Aldeia Morro Alto, em Santa Catarina, nós as lideranças do povo indígena guarani do sul e do sudeste do país, articulados na nossa organização política, a Comissão Guarani Yvyrupa, resolvemos escrever essa carta para divulgar o nosso pensamento e as nossas palavras sobre a Comissão Parlamentar de Inquérito da FUNAI e INCRA. Nossas palavras são para vocês, nossos amigos, porque os nossos inimigos não merecem o nosso tempo: para eles, que nos atacam há muito, nós guardamos as nossas flechas.

    E o que temos a dizer é que não foi surpresa ver na televisão que a bancada ruralista, os deputados que se dizem donos da terra e da bala, acusaram as nossas lideranças, os nossos parceiros, e o órgão e as leis que nos defendem. Na lista de “indiciados”, estão lideranças da terra indígena Morro dos Cavalos (SC) e Mato Preto (RS), estão rezadores e anciãos, e estão inclusive parentes que já se foram desse mundo e estão com Nhanderu, nosso Pai Celeste – sobre eles não pesará mais a injustiça desse mundo. Estão também na lista de indiciados antropólogos que trabalharam na identificação das nossas terras, servidores da FUNAI, Procuradores do Ministério Público Federal, e religiosos, cujo maior crime foi o de entender a nossa luta.

    Também não foi surpresa ver na televisão os mesmos deputados que acusaram as nossas lideranças, os nossos parceiros, e o órgão e as leis que nos defendem, são os mesmos que figuram nas listas dos que receberam dinheiro dos empresários que cortam nossas aldeias com rodovias, que levantam casas e prédios e querem construir condomínios nas nossas terras, que trancam nossos rios com barragens hidrelétricas, e que querem cavar o chão para arrancar os minérios que Nhanderu enterrou nos nossos territórios.

    De qual crime nos acusam? O de existir. Por se identificarem como indígenas, querem que nossas lideranças respondam por “falsidade ideológica”. Por se organizar para defender nossos territórios e os direitos de todos os povos, querem que nossas lideranças respondam por “formação de quadrilha”.

    O que temos a dizer a vocês, nossos amigos, é que os tempos estão difíceis mas não é hora de recuar. Há mais de quinhentos anos o povo guarani faz a sua luta, há mais de quinhentos anos guardamos os nossos tekoa. Tenham certeza que agora, mais do que nunca, estaremos fortes e chamamos vocês para estar do nosso lado. Nossos inimigos apostam na nossa morte, mas não se enganem: se vencem eles, perdemos todos. Os xeramoi já disseram, e agora dizemos a vocês: se não houver terra para os Guarani, para os todos os povos indígenas, para os quilombolas, para os que vivem da terra mesmo, não haverá terra para ninguém.

    Que estejamos sempre fortes.

    Aguyjevete!

    (Foto retirada de: https://www.flickr.com/photos/stankuns/13985055326/in/photostream/)

  • O que é um centro social? Ou sobre a Ingobernable (artigo traduzido)

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    Texto original em espanhol publicado em 10 de maio de 2017 aqui:
    http://ctxt.es/es/20170510/Firmas/12653/ingobernable-centro-social-okupas-patio-maravillas-carmena.htm

    Tradução: @_urucum em 11 de maio de 2017

    O que é um centro social? Ou sobre a Ingobernable
    Emmanuel Rodríguez [*]

    Desentulhar, varrer, esfregar… E assim até dar conta de todos os 3.000 metros quadrados do edifício \”Gobernador\” 39, situado em frente ao Jardim Botânico de Madrid, a meros 200 metros da estaçao Atocha. O edifício foi okupado no último 6 de maio, durante uma manifestação convocada com um lema enfático: \”Madrid não se vende\”.

    Desde então, o edifício, há tempos abandonado, tem sido povoado por toda classe de tribos, jovens, advogados, curiosos, ativistas, que circulam por todos os lados atarefados, apreensivos em limpar e tornar o mais apresentável o possível um espaço… gigantesco. Desde então, também, diversas associações e coletivos solicitam cantos para reuniões, oficinas, discussões sobre a situação internacional, sobre a soberania alimentar, espaços para organizar iniciativas que enfrentem o problema dos aluguéis da cidade, que crescem a um ritmo de dois dígitos. Inclusive, muitos dos representantes da nova política, em atitude valente, e sobretudo inteligente (é o caso de Pablo Iglesias e de Alberto Garzón) vem dado boas vindas ao novo espaço.

    Um centro social é uma instituição anômala. Funciona de acordo com lógicas que não estamos acostumados. A vida de um centro social é regulada pelos próprios participantes lá mesmo, sem a mediação de administrações públicas e tão pouco de empresas comerciais. A responsabilidade é coletiva, a atividade é coletiva, a administração é coletiva. Também por isso, muitos centros sociais são realidades extremamente vivas. E podem assegurar isso quem conheceu as distintas sedes do Patio Maravillas, ou previamente dos chamados Laboratorios. Espaços onde todas as semanas passavam literalmente milhares de pessoas para organizar atividades das mais variadas: desde batalhas de rap até bailes de salão, desde assembleias políticas até noites flamencas. Seu êxito reside no fato de que não havia falta de interesse e iniciativa para fazer uso dos espaços.

    Os centros sociais podem parecer anomalias, mas só desde uma perspectiva convencional atada ao que comunica o \”país oficial\”. Apenas na região de Madrid existem cerca de 60 espaços deste tipo. Há os grandes, a ponto de envolver boa parte da vida civil e política de alguns bairros, e há os pequeníssimos, de apenas algumas dezenas de metros, que se dedicam a uma só atividade. Há os alugados e há os ocupados. Há os metropolitanos, como La Ingobernable, empenhada em dar guarida para muitas atividades hoje dispersas pela cidade. E há os rurais, instalados em alguns pequenos povoados e direcionados a promover agroecologia e o consumo local. Na Espanha há mais de 600 centros sociais.

    Nos equivocaríamos, porém, se atribuíssimos esta realidade a uma condição particular ibérica. Se podem encontrar centros sociais em quase todas as grandes cidades europeias. Em Roma ou em Berlim são quase a única opção de ócio para aqueles jovens que não querem passar pela experiência embrutecedora da macro discotecas. Em Berlim, qualquer turista pode acabar em uma festa sob o ritmo de algum repetitivo som industrial, e poderá se surpreender ao saber que o espaço em que se divertiu a noite não era outro que não uma antiga okupa. Em muitas cidades alemãs e italianas os centros sociais são realidades tão comuns que as instituições estão acabando por reconhecê-las, estão deixando de incomodá-las.

    Poucas cidades estão sendo tão inteligentes, neste sentido, como a cidade de Nápoles. Alí, o prefeito, a pedido da maior parte dos movimentos sociais da cidade, está estabelecendo um estatuto particular para os centros sociais. Os espaços napolitanos estão sendo declarados comunes urbanos. Isto quer dizer, simplesmente, que a prefeitura as considera entidades legítimas; e, por sua vez, entidades que não são de sua competência.

    Um comum, um bem comunal, é um recurso que não é propriedade pública (do Estado), mas tão pouco uma propriedade privada. Um comum pertence a uma comunidade que gesta/gere o comum. Um centro social é assim um comum urbano, um espaço em que uma parte da cidadania decide tomar posse, gestionar/gerir diretamente e gerar riquezas que nenhum mercado e nenhuma burocracia seriam capazes de produzir. Curiosamente, essa riqueza, em forma de iniciativas, discussões, criatividade social e cultural, é o que constitui a base da democracia, ao menos quando entendemos que esta é algo mais do que partidos, voto e representação. Se a democracia é sobretudo a ativação cidadã e a participação sem mediações, os centros sociais são um recurso democrático inestimável.

    El Gobernador 39 é um caso exemplar da má gestão de bens públicos e, portanto, das potenciais vantagens de uma gestão comum. O edifício, propriedade da prefeitura, foi sede da UNED [Universidad Nacional de Educação a Distância], e em seguida centro de saúde, até que seus usuários foram transferidos para o bairro Vallecas. Pouco antes de deixar a prefeitura, Ana Botella cedeu o edifício ao arquiteto Emilio Ambasz. O contrato se realizou com legalidade duvidosa e por um periodo de 75 anos. Emilio recebeu a concessão através de sua própria fundação, cujo secretário entre 2008 e 2010 foi Miguel Ángel Cortes, ex secretário de Estado da Cultura e amigo íntimo da família Aznar [**]. Para ser exato, este “conseguidor” profissional acaba de ser marcado pelo fiasco de 28 milhões relacionados ao falido Museu de Arte Natural de Málaga.

    Diante de um PP [Partido Popular] desesperado com escândalos diários de corrupção, a prefeitura de Madrid governada por Manuela Carmena se vê em dúvidas sobre o que fazer com Gobernador 39. Mais uma vez se vê a beira de uma nova guerra cultural contra os aparatos midiáticos do PP, e lembra os tristes casos dos titiriteiros, os tuits de [Guillermo] Zapata ou os trajes dos Reis Magos [***]. Talvez ela pudesse ser aconselhada para neste caso deixar estar, deixar que La Ingobernable gere suas próprias simpatias e sua própria legitimidade. E que entenda que, sem centros sociais, como o Patio Maravillas, onde foi fermentado em grande medida a candidatura de Ahora Madrid, não há mudança.

    Seja como for, se Carmena ainda quiser disputar com o PP (se valendo de argumentos de seu próprio terreno, basta que investigue esse obscuro assunto da cessão do edifício a Emílio Ambasz. Também pode repetir o argumento liberal em relação a propriedade. Os liberais quando eram liberais, e não simples usurpadores de bens públicos, consideravam como valor último da propriedade a sua função social: a propriedade privada só se justifica em razão de sua capacidade de gerar riqueza. Por esse motivo, e em toda a Europa, as revoluções liberais lançaram ambiciosos processos de desamortização do que chamavam de bens em \”mãos mortas\”; terras da igreja e de povos cujo rendimento era considerado muito abaixo do que, ao menos em teoria, proprietários eficientes poderíam alcançar. O argumento dos liberais é um argumento de progresso, não um argumento legal. E com esse argumento ignoraram uma legalidade com vários séculos de história.

    Sobre os resultados da desamortização na Espanha, que muitas vezes produziu o oposto do que se pretendia, não cabe entrar agora. Porém, o argumento a favor de La Ingobernable é parecido. Manter a cessão fraudulenta a Emilio Ambasz ou, em outra direção, continuar a abdicar da administração do edifício e deixá-lo em \”mãos mortas\”. A propriedade comum de Gobernadora 39, o centro social La Ingobernable, é um bem que uma cidade como Madrid, assaltada por contínuos escândalos de corrupcão, não pode prescindir. Esse bem se chama democracia.

    Em grande parte da Europa já entenderam, espero que aqui também.

    Emmanuel Rodríguez – historiador, sociólogo e ensaista. É editor de Traficantes de Sueños e colaborador da Fundación de los Comunes. Seu último livro é \’¿Por qué fracasó la democracia en España? La Transición y el régimen de 1978\’

    ** José Maria Aznar é ex presidente da Espanha

    *** Titiriteros, Zapata, Reyes Magos, recentes \”guerras culturais\” da política madrilenha que se tornaram objeto de ataques conservadores ao governo municipalista, e não deixou de criar tensões internas na confluência de forças que possibilitaram a eleição da Manuela Carmena. Ver por exemplo: http://www.publico.es/culturas/cultura-sigue-siendo-problema.html

  • Mulheres, ocupações e a finitude radical das subjetividades políticas

    por Edson Teles

    Um edifício que até pouco tempo atrás estava abandonado. Agora, dentro se encontram mais de 100 famílias. Passam os dias refazendo as ligações de água, luz e esgoto, se organizando para ocuparem de maneira o mais equânime possível os apartamentos. Experimentam a produção de um comum em meio a tamanha heterogeneidade existencial. São migrantes do nordeste brasileiro, imigrantes da África, mundo árabe, América Latina, paulistanos, cariocas, mineiros. São várias as línguas faladas, mas nada que impeça a comunicação, ao contrário, funcionam como um convite ao encontro do diferente. Estas são cenas do filme “Era o Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé. Mas podem ser vistas em várias ocupações de movimentos populares por moradia.

    O Hotel Cambridge foi uma luxuosa hospedaria paulistana dos anos 50, 60 e 70, localizado no coração da cidade, em uma das principais vias do Centro. Como resultado da especulação imobiliária e do descaso dos governantes com a carência de moradias, o enorme edifício permaneceu por vários anos fechado, abandonado e deteriorando-se. Os movimentos de luta por moradia, como em outros edifícios da cidade, ocupou e iniciou a revitalização do espaço. O filme documentário nos apresenta uma experiência política alargada que poderia auxiliar na reflexão sobre o atual contexto das lutas de resistência.

    Desde o golpe contra a presidente Dilma Roussef se tem conversado, buscado, debatido sobre qual a saída para lidar com as intervenções cancerígenas em ebulição. Como resistir? Parece ser a esta a principal questão. Atônita ou surpreendida pelas estratégias autoritárias das elites dominantes, a esquerda se vê sem ou com poucas ferramentas para lidar com a situação. Por outro lado, se experimenta no país ricas formações políticas em que outros modos de intervenção nas relações sociais associam demandas práticas e cotidianas com a movimentação de novas subjetivações. Uma delas, me parece, está registrada nas cenas do filme de Eliane Caffé. Trata-se da quebra do paradigma masculino, branco, hétero, viril, universais que ainda teimam em ditar normatizações à ação política.

    Talvez o maior registro de subjetividades da ruptura e da resistência no filme esteja na presença de mulheres enquanto eixo organizador das relações humanas, éticas e políticas dentro da ocupação Cambridge. Enquanto uma das principais personagens, Carmem Silva interpreta a si mesma como líder da ocupação. Sempre à frente das ações, assessorada por outras mulheres, Carmem tem de lidar com diferenças culturais e sociais as mais variadas, vulnerabilidades existenciais, carências e fragilidades inerentes às condições de vida daquelas pessoas. Além da organização interna do movimento, da gestão do local e de suas instâncias políticas, as lideranças precisam se haver com as instituições do Estado que constantemente exercem pressão sobre o movimento. Desde a Polícia Militar, passando pelo sistema judiciário, até a interferência do Conselho Tutelar, ameaçando recolher uma criança cuja mãe tem dificuldades em exercer suas duas ou três jornadas diárias de trabalho.

    Também na experiência do imigrante dentro da ocupação a questão de um lugar social da mulher é tematizado quando vemos os homens dentro da Lan House do prédio se conectando com as mulheres que ficaram nos campos de guerra ou em meio aos conflitos sociais nos territórios de origem daqueles indivíduos. Uma mulher se comunica de dentro de um edifício, na faixa de Gaza, cujo cenário de fundo é um espaço urbano destruído por bombas, bem como a parede de seu apartamento está destruída. Neste caso, a ocupação vem de outro Estado, o israelense.

    O que mais chama atenção, do ponto de vista de novos agires, não é tanto a presença de mulheres em funções políticas e fortemente marcadas pelo masculino e suas caracterizações generalizadoras. Isto já vemos acontecer há tempos, nos mais diversos modos do agir, em movimentos e instituições. A diferença, portanto, não está nesta “presença”, mas nas suas funções ou efetividades. O processo político passa por mudanças e, neles, subjetividades diversas e singulares são a demanda dos indivíduos em movimentos. Se habitamos um mundo biopolítico, o corpo deve ocupar um outro espaço, ou estar nos atuais com outra postura.

    As subjetivações, ou subjetividades coletivas, para se produzirem na diferença e por suas próprias singularidades, entram em choque com concepções universalizadas do chamado sujeito político. Os processos de suas produções, bem como suas existências, perecem, têm data de validade, são finitas. As possibilidades eternas, os modos de relações sociais e humanas com base em valores universais, a imobilidade do indivíduo ao se manter dentro de padrões do agir diminui as pretensões e possibilidades de intervir no curso dos acontecimentos. Produz o engessamento da política aprisionando as resistências em caixas pré moldadas.

    Se, ao contrário, compreendermos as subjetividades, o mundo que habitamos e as nossas existências pelo viés da finitude radical, teremos a abertura para formas de resistência nas quais estratégias, mecanismos e tecnologias políticas também serão finitas. É aí que as mulheres, no caso do filme, se encontram com as transformações do contemporâneo. Sua existência social e afetiva já experimenta o viver dinâmico, com rupturas e transformações constantes. Se a finitude é a condição subjetiva da ação, com implicações efetivas nas máquinas políticas, então a questão se coloca de modo mais alargado: trata-se de se questionar o que estamos fazendo neste cenário, qual território me é acessível, por quanto tempo nos encontramos em determinado contexto e o que se faz com ele? O que e como se pode modifica-lo? O que em mim posso transformar para que a política também se modifique? Nesta abordagem é interessante considerar a ação política como processos em elaboração e permanente mudança.

    Para se pensar em atos, éticas e estéticas de resistência seria favorável ter em conta que as formas de dominação se atualizam e se modificam. Inclusive, limitando as possibilidades de dessubjetivações para manter o controle dos indivíduos. Resistir, neste caso, não é somente um ato de grupos sociais organizados, mas também a ação de coletivos ou indivíduos não compostos para a luta. São as sensibilidades poéticas, funcionais, performativas. Corpos e afetos que se reescrevem através de outras configurações urbanas, políticas, amorosas. A proliferação de uma rica formação política ganha em opções com um agir ciente das finitudes e da não eficácia do universal.

    É difícil hoje se esperar pelo líder, pela direção e condução de seus atos por meio da “organização” ciente de um “papel histórico”. Não se trata de desprezar os líderes, de desconsiderar a memória das lutas populares, as formas tradicionais dos movimentos e partidos. Trata-se de somar a tudo isto – que, de certa maneira, já operamos há algum tempo – toda e qualquer criação de intervenções e afetos associados às questões dos negros, das mulheres, das pessoas LGBTs, dos que não possuem, das minorias. Em certos casos, trata-se mesmo de substituir o tradicional pelo novo e inesperado. A “cerimônia do adeus” ao que nos pertencia pode ser uma liberdade para a criação do novo. E se finito, inesperado, fora do controle, mais de resistência se pode apreender com o acontecimento.

    A ação política não estaria nos modelos, tradicionais ou não, mas no cruzamento e na correlação dos componentes heterogêneos, dos processos finitos e radicais. E, por natureza semelhante, esta seria mais a política das sensibilidades afins às mudanças e à percepção do novo.

  • A repressão em seis eventos dessa semana

    (3/5/2017)

    Em apenas uma semana seis eventos gravíssimos aconteceram.

    Os eventos expressam a gravidade do momento em que vivemos no Brasil, talvez uma virada definitiva na conjuntura política. Combater essa avalanche autoritária, as arbitrariedades cometidas, o modo de atuação desse Estado violento e racista que se alimenta da legitimidade social punitivista precisa ser a prioridade de toda a esquerda e aqueles que estão na luta hoje.
    – Três companheiros trabalhadores sem-teto foram presos e continuam presos sem nenhuma prova por estarem se manifestando no dia da greve geral. Amanhã tem vigília denunciando essa arbitrariedade e também o caso do Rafael Braga que continua preso: https://www.facebook.com/events/156199361580725/

    – Ontem (2/5), companheiros refugiados palestinos e antifascistas foram presos porque estavam se defendendo de ataques fascistas e xenófobos produzidos por uma marcha contra imigrantes de um grupo chamado \”Direita São Paulo\” e que contou com todo o apoio da polícia, inclusive, para bater nos palestinos. Para entender mais o que é esse grupo: goo.gl/IYp0TL

    – Mateus Ferreira da Silva, o estudante de ciências sociais de Goiânia, continua internado por ter sido gravemente ferido por um policial militar durante uma manifestação. goo.gl/fOirDS

    – Uma adolescente na região metropolitana de MG foi baleada, na boca, atingida por uma bala de borracha em uma reintegração de posse ILEGAL de uma ocupação. goo.gl/BddH1T

    – O massacre contra indígenas e camponeses também está aumentando de forma preocupante. Uma emboscada armada por fazendeiros e com cumplicidade policial provocou um massacre contra indígenas no maranhão. De acordo com a Pastoral da Terra, 2016 bateu recorde de violência no campo, com 1.079 conflitos por terra, um aumento de 40% em relação ao ano anterior (que teve 771 casos): goo.gl/oTUnso

    – Uma CPI da Funai absurda, armada pela bancada ruralista, agora quer criminalizar lideranças indígenas e amigos antropólogos (Que JÁ estão sendo indiciados!) . O documento é dedicado a um bandeirante. goo.gl/AKyVJe

    Precisamos de redes mais integradas de resistência, muito apoio jurídico, coordenação nas redes, articulações internacionais, proteção para todos e todas que estão sendo criminalizadxs. Exceção é a regra.

    Precisamos estar fortes, atentas e organizadas.

  • Movimentos tradicionais, autonomistas e um novo ciclo de lutas no Brasil. Entrevista especial com Alana Moraes

    Publicado por: http://www.ihu.unisinos.br/567067-movimentos-tradicionais-autonomistas-e-um-novo-ciclo-de-lutas-no-brasil-entrevista-especial-com-alana-moraes

    Por: Patricia Fachin | 28 Abril 2017

    A crise petista transformou a esquerda em um “lugar de muita melancolia”, que produz uma “fixação” por “Bolsonaros”, ao invés de criar “afetos mais potentes para continuar caminhando, pensando novas possibilidades, criando brechas”, avalia a socióloga Alana Moraes na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ela, as tentativas de resposta à crise vêm “clamando por fórmulas que simplificam a questão”, seja no discurso que defende a “unidade das esquerdas”, no grito “Fora Temer” ou no discurso do “pacto pela estabilidade democrática”.

    Ao invés de procurar respostas simples e simplistas, defende, a esquerda precisa se perguntar “o que é ser de esquerda no Brasil hoje”. Ser esquerda, questiona, “é nos mobilizarmos para ter um candidato ‘viável’ para 2018? É nos afetarmos com a prisão dos muitos ‘Rafaéis Bragas’, com os massacres contra camponeses, indígenas, contra os pobres na periferia, contra as mulheres, que acontecem cotidianamente neste país? Construir redes mais eficazes contra a violência estatal? Esse é o momento de perseguirmos essas questões mais de fundo, de nos definirmos mesmo, em comum”. Antes de aderir a uma “unidade das esquerdas”, sugere, é preciso “pensarmos que esquerda somos e o que realmente queremos ser depois dessa experiência do ciclo petista”. E dispara: “2018 será uma consequência feliz ou infeliz do que conseguimos juntos produzir de respostas”.

    Na entrevista a seguir, a socióloga comenta a atuação dos movimentos sociais autonomistas no país e frisa que “a dificuldade de mobilização” que existe hoje “é fruto de uma escolha política do PT e de muitos outros setores ligados ao partido que foram completamente enfeitiçados pela disputa eleitoral, pelos jogos que estavam colocados para que o PT pudesse permanecer no poder, pelos pequenos poderes dos gabinetes”. Apesar disso, Alana aposta que a greve de hoje, organizada pela Central Única dos Trabalhadores – CUT e as Centrais Sindicais, será “uma mobilização histórica”.

    Além da mobilização organizada pelas Centrais, a socióloga menciona que “alguns processos interessantes estão também produzindo essa greve geral: coletivos que estão se reunindo na cidade para colar lambes de convocação como fez o Arrua em São Paulo; o próprio Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST fazendo assembleias em bairros na periferia de São Paulo para chamar as pessoas; os professores das escolas particulares enfrentando, muitas vezes, direções e pais conservadores e aderindo massivamente à greve; o movimento negro mobilizando e convocando para uma ala negra na marcha; os movimentos feministas também convocando bastante”.

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    Alana Moraes | Foto: Arquivo pessoal

    Alana Moraes é graduada em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestra em Sociologia e Antropologia pela mesma universidade, e atualmente cursa doutorado no Programa em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line – Como você está avaliando o atual cenário político do ponto de vista das mobilizações sociais? O que tem sido significativo desse ponto de vista?

    Alana Moraes – É interessante porque o Brasil hoje vê desmoronar todo o arranjo institucional democrático representado pela Constituição de 1988, ao mesmo tempo em que a esquerda partidária e organizada também entra em uma crise profunda. Parece que agora vivemos em uma cidade de escombros, nada é muito reconhecível do ponto de vista das estruturas, mas alguns ainda acham que é possível reformar os edifícios, emendar os encanamentos, fiações. Eu sou daquelas que acham que temos que resgatar as coisas mais importantes, claro, mas é preciso não se ocupar muito com os escombros. Temos que construir uma nova cidade, viva, cheia de praças, para que a gente possa se encontrar e decidir juntos o que vai ser nosso projeto de emancipação.

    Tenho pensado muito numa frase do Marx em que ele diz que \”A situação desesperada da sociedade em que vivemos me enche de esperança\”. Penso que podemos e temos o dever de resgatar essa esperança. A esquerda hoje se tornou um lugar de muita melancolia: produzimos essa fixação com “Bolsonaros”, com nossas derrotas, mas precisamos de afetos mais potentes para continuar caminhando, pensando novas possibilidades, criando brechas. Por isso é importante estar conectado com as lutas que surgem hoje. A melancolia também é um efeito do neoliberalismo que nos paralisa, nos deixa doentes.

    Respostas à crise

    Muitos respondem a essa crise das esquerdas clamando por fórmulas que simplificam a questão: \”unidade das esquerdas\”, ou \”primeiramente fora Temer\”, \”pacto pela estabilidade democrática\”. É óbvio que a luta agora tem que ser no sentido de continuar denunciando o golpe e exigir o afastamento do governo ilegítimo, mas no fundo sabemos que o buraco é bem mais profundo. Temos um Estado racista que mata, encarcera, distribui desejo de punição. O Rafael Braga está preso porque carregava um Pinho Sol. Temos que nos perguntar o que é ser de esquerda no Brasil hoje. É nos mobilizarmos para ter um candidato \”viável\” para 2018? É nos afetarmos com a prisão dos muitos “Rafaéis Bragas”, com os massacres contra camponeses, indígenas, contra os pobres na periferia, contra as mulheres, que acontecem cotidianamente neste país? Construir redes mais eficazes contra a violência estatal? Esse é o momento de perseguirmos essas questões mais de fundo, de nos definirmos mesmo, em comum.

    Antes de “unidade das esquerdas”, sinto falta de pensarmos que esquerda somos e o que realmente queremos ser depois dessa experiência do ciclo petista. 2018 será uma consequência feliz ou infeliz do que conseguimos juntos produzir de respostas. Acho que precisamos abandonar a ilusão de que um novo programa de esquerda nascerá de uma ou duas reuniões com intelectuais ou dirigentes partidários. Penso que um programa, um plano de ação em comum, podem dar mais certo na medida em que conseguem produzir encontros, implicar pessoas vindas de lugares diferentes em práticas concretas.

    IHU On-Line – Alguns têm defendido – e até criticado – que o PT vem reconquistando sua hegemonia, inclusive de mobilização entre os setores de esquerda. Na sua avaliação, isso está acontecendo? Por quê?

    Alana Moraes – Acho que nem o PT acredita mais nessa hegemonia. Mas toda a dificuldade de mobilização que temos hoje, e o PT sabe bem disso, é fruto de uma escolha política do PT e de muitos outros setores ligados ao partido que foram completamente enfeitiçados pela disputa eleitoral, pelos jogos que estavam colocados para que o PT pudesse permanecer no poder, pelos pequenos poderes dos gabinetes.

    Esse não é só um problema do PT, é um problema da esquerda internacional. As apostas da social-democracia europeia hoje foram completamente absorvidas pelo sistema. A vida no neoliberalismo é insuportável. Nunca antes as pessoas estiveram tão medicalizadas e deprimidas, se sentem impotentes, não decidem nada das escolhas políticas que realmente afetam suas vidas. Óbvio que querem agora soluções mais radicais, que possam, de alguma forma, chacoalhar o sistema político. Não tem mágica aí: hoje os movimentos que mais mobilizam no Brasil, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST, conseguem fazer isso porque têm conexão com a prática, com o cotidiano das pessoas. O PT escolheu o caminho do Estado, da gestão e, é claro, muitas conquistas importantes surgem daí: a expansão das universidades, valorização do salário mínimo. Mas a experiência do PT no governo nos serve também para pensar sobre os limites de ocupar um Estado sem fazer da luta contra ele, contra essa forma atual de governamentalidade neoliberal que é uma camisa de força, uma máquina de moer tudo a serviço da financeirização e do processo contínuo de espoliação dos mais pobres.

    A esquerda que era oposição ao PT não parece pensar por outros caminhos também: ganhar eleições, construir mandatos, fazer políticas públicas. A receita é bem parecida. Precisamos de outras experiências de politização. Pensar e praticar o que seria modos de vida diferentes: redes de cooperação de trabalho que usem mais a tecnologia e a internet a favor dos mais pobres; novas redes de compartilhamento de cuidados; pensar com mais consistência a autoconstrução de moradias de qualidade contra a propriedade privada e os terrenos vazios para especulação; fortalecer as redes de midiativismo periférico que estão denunciando a violência policial, pensar sobre as disputas territoriais que nos façam ter mais controle de decisão sobre aspectos fundamentais da vida: as escolas, políticas de transporte, postos de saúde. Eu acredito que seja a partir dessas experimentações e da politização do cotidiano que vamos conseguir pensar um outro jeito de ser esquerda e de viver juntos. Isso não quer dizer que devemos abrir mão de disputar o que deveria ser público. As lutas hoje contra os desmontes dos direitos trabalhistas, a reforma da previdência são lutas incontornáveis. Mas uma esquerda que define seu sentido apenas pela disputa do Estado, desse Estado, é uma esquerda que está condenada ao definhamento.

    IHU On-Line – Qual é o impacto ou o legado de Junho de 2013 nos dias de hoje? Como os anseios expressos naquelas manifestações se manifestam ou repercutem ainda hoje?

    Alana Moraes – Os ecos de Junho estão aí quando nos deparamos com todo esse cenário de listas da Odebrecht, delações, acordos. Junho foi o grito ensurdecedor contra esse sistema. Ele começa com uma faísca simples, a indignação contra o aumento do transporte, mas foi a faísca suficiente para questionar toda a engrenagem. Junho sugeriu a possibilidade de radicalizar a luta contra o sistema que engoliu o próprio PT, mas naquele momento o PT quis se posicionar pela manutenção da ordem. Só que a \”ordem\”, demorando mais ou menos, estará sempre contra os de baixo. O PT e a esquerda de modo geral perderam a possibilidade de, com uma mobilização social histórica de 2013, fraturar e desmontar esse grande esquema de funcionamento da política no país. Outras forças se organizaram a partir desse vácuo e o \”Fora PT\” conseguiu responder aos anseios mais conservadores, mas, ao mesmo tempo, as mobilizações da direita tinham um perfil social e uma aparição política completamente diferente do que foi Junho. Junho pedia o fim da polícia militar, enquanto as manifestações da direita pediam mais polícia. A linha de corte é evidente.

    Agora estamos nos equilibrando num fio muito delicado: não podemos achar que a Lava Jato é, de fato, a solução para uma nova ordem democrática, isso é um erro gravíssimo. A Lava Jato expressa, justamente, o poder de outra casta, a do judiciário racista, a mesma que prende o Rafael, o único preso de 2013 hoje. Ao mesmo tempo, não podemos concordar com nenhum pacto de anistia de caixa 2 ou qualquer outro acordo que pretenda salvar esse sistema. Precisamos pensar outros caminhos, mas, enquanto isso, continuar nas ruas denunciando Temer, exigindo novas eleições. O golpe foi cruel porque ele desmonta, por dentro, tudo o que grande parte da esquerda brasileira construiu como estratégia: o pacto lulista, o nacional-desenvolvimentismo que se alimentava de propinas, o agronegócio, que além de destruir nossas florestas, de exterminar populações indígenas, terminaria votando pela família e por Deus contra o governo que mais o favoreceu. No fundo, a luta de classes prevalece, é o Martírio, filme impactante de Vincent Carelli, esse Brasil que permanece insubmisso, existindo pelas bordas.

    IHU On-Line – Muitos pesquisadores têm chamado a atenção para a mudança no modo de atuação dos movimentos sociais nos últimos anos, os quais já não seguem uma hierarquia e são mais difusos se comparados aos movimentos tradicionais. Nesse sentido, pode nos dar um panorama sobre o modo de atuação dos movimentos autonomistas nos dias de hoje? Que mudanças identifica entre antigos e novos movimentos, quem participa de movimentos sociais hoje, quais são as práticas desses movimentos e como eles se relacionam com a esfera pública?

    Alana Moraes – Gostando ou não dos governos petistas, ninguém diria que o Brasil de hoje é o mesmo de dezesseis anos atrás. As formas de pensar e fazer luta, de se organizar, também estão mudando, ainda que coexistindo com as tradicionais formas de representação, cada vez mais em crise, como os partidos e sindicatos. O próprio Movimento Passe Livre – MPL, aliás, passou por uma crise importante desde 2013, e os debates produzidos nessa crise por eles são bons debates para pensar os problemas desses caminhos mais autônomos também. É difícil definir o que são os movimentos autonomistas hoje, é uma constelação bastante diversa de pequenos grupos que vêm misturando debates sobre formas de organização mais horizontais com outros debates sobre concepção de luta revolucionária, sobre o papel da classe trabalhadora, formas de conscientização, trabalho de base, tática etc. Podem misturar, por exemplo, como influências de forma de organização o zapatismo, mas, do ponto de vista da relação com a classe trabalhadora, apostar em estratégias de \”proletarização\” de seus militantes, como os trotskistas faziam aqui na década de 1970 nas fábricas.

    Acho que vivemos em uma fase de experimentações políticas e isso é muito interessante, mas não gosto muito de saídas nostálgicas que fetichizam a classe trabalhadora ou que se colocam essa tarefa de \”conscientizar\” o outro, a \”classe\”. Acho que é a prática de uma vida coletiva em comum que pode criar pertencimentos e nisso acredito pouco nas receitas da ortodoxia marxista e muito nas práticas feministas.

    Coletivos

    Outra coisa que explode no Brasil hoje são os coletivos de negros e negras e os coletivos feministas. Isso representa uma mudança subjetiva avassaladora. Hoje não se faz mais um debate na esquerda ou na universidade só com homens ou um debate sobre periferia sem negros e negras, sem gente da periferia, não se pode mais fazer isso sem consequências. E aqui a esquerda tem caído em uma armadilha. Vejo muita gente, de autonomistas a leninistas, dizendo que as novas lutas negras e feministas estão \”dispersando\” a \”verdadeira luta de classes\”, que elas são \”cooptadas pelo sistema\”, são \”pós-modernas\”. Mas o que é a \”classe\” no Brasil? A classe é uma mulher negra que trabalha fora e dentro de casa cuidando de outros, mal paga. Não é possível falar do neoliberalismo hoje sem falar do encarceramento em massa de negros que ele produziu, sem falar do feminicídio que explode, sem falar de um modelo de exploração permanente do corpo e da vida das mulheres, que servem de colchão para toda crise econômica e social que o próprio sistema produz. Então, eu diria que nada é mais ameaçador para a ordem capitalista do que mulheres feministas e negros e negras que se organizam. Toda a concepção de trabalho, de valor, e até mesmo de quais as vidas merecem ser vividas no capitalismo é produzida com os pilares do patriarcado e do racismo.

    Existe uma desconfiança em relação à \”esfera pública\” generalizada. Entre aspas mesmo, porque sabemos hoje que ela não é democrática, pública, ou igualmente acessível a todos e todas. Talvez o que toda essa constelação de novos movimentos esteja produzindo, como ecologia política, seja novas possibilidades de radicalização democrática. Quando os secundaristas ocupam suas escolas, entre outras coisas, é para dizer que eles próprios devem poder decidir sobre suas vidas, sobre suas escolas, contra uma gestão autoritária e burocrática. A divisão existente em muitos partidos de esquerda, que separa dirigentes-formuladores de política daqueles que executam tarefas, essa divisão não faz o menor sentido para essa nova geração. Não podemos pensar uma nova institucionalidade que seja mais aberta, mais democrática, sem pensar as formas tradicionais de organização das esquerdas.

    IHU On-Line – Como a esquerda, em geral, reage diante desses movimentos difusos? Eles podem ser considerados como movimentos ligados à esquerda?

    Alana Moraes – Quando o chamado novo sindicalismo surgia nos anos 1970, 1980, fazendo grandes greves e depois durante toda a discussão de formar um novo partido da classe trabalhadora, o PCB, que era a \”esquerda tradicional\” da época, dizia que criar o PT seria um gesto inconsequente, que atrapalharia no processo da abertura democrática e que o verdadeiro partido da classe era o PCB. É muito curioso que agora muitos dirigentes do PT estejam falando a mesma coisa desses novos movimentos, coletivos, do próprio processo de mobilização de Junho de 2013. Eu acho que o binômio novo X velho talvez não nos ajude hoje, ainda mais nessa conjuntura de reação conservadora. Precisamos pensar juntos novas formas organizativas, e hoje eu não vejo nenhum partido de esquerda realmente aberto a isso.

    A esquerda cria um universo próprio, com um vocabulário próprio, é autorreferente; o marxismo, muitas vezes, é tristemente transformado em cartilhas. A derrota sofrida pelo PT no Brasil é uma derrota de toda a esquerda, e penso que se não estivermos suficientemente abertos para formas de organização mais porosas e democráticas, mais conectadas com os novos \”chãos de fábrica\”, escolas, universidades, agroecologia, ocupações urbanas, coletivos de arte, se o programa político não estiver fortemente vinculado com as lutas da vida real, com as possibilidades de construir espaços de resistência ao neoliberalismo, acho que vamos demorar ainda mais tempo para levantar da lona. Não tem atalhos.

    IHU On-Line – Que futuro vislumbra para os novos movimentos sociais? Que impacto eles podem ter no âmbito público, por exemplo?

    Alana Moraes – Acho que vivemos um novo ciclo de lutas. O MTST, os secundaristas das ocupações, os coletivos que discutem direito à cidade, os coletivos feministas, o novo movimento negro, os coletivos antiproibicionistas, a proliferação de coletivos periféricos, o midiativismo, os advogados ativistas, os movimentos de mães de vítimas de violência policial, os coletivos de arte que estão explorando outras linguagens e formas políticas, os hackers e aqueles que discutem hoje o problema da segurança na internet, de uma comunicação livre, de uma alimentação livre de veneno, enfim, acho todos esses compõem o que seria essa nova geração política.

    É claro que o sindicalismo mais tradicional combativo ainda é muito importante, mas hoje temos novos atores em cena e que colocam novas questões – nada nos autoriza a jogar fora as experiências passadas, assim como combater as novas experiências de luta. É uma ecologia política bem interessante e que fala muito sobre o novo Brasil. Com a crise da forma-partido enquanto forma de organização, o que precisamos pensar hoje é o que seriam os novos espaços de confluência para que essas experiências de resistência possam se encontrar mais; como podemos pensar mais ações conjuntas, nos fortalecer mutuamente, nos reconhecer e ir produzindo nossos vínculos porque eles não são imediatos, ao contrário, eles são fruto dos encontros, do trabalho de construção de novas comunidades políticas.

    No final dos anos 1990, começo dos 2000, tínhamos o Fórum Social Mundial que, com todos os limites, nos permitia pensar juntos e nos formar também coletivamente. É preciso retomar esse fio e pensar o que seria hoje esse espaço, quais seriam as novas questões e possibilidades de atuar juntos. Não podemos perder também a possibilidade de criar redes internacionais de resistência, nos conectar com aqueles e aquelas que estão pensando o esgotamento do modelo progressista na América Latina, por exemplo. A recente convocação para a greve de mulheres, a campanha feminista do “ni una menos”, nos interpelam também para pensar desse lugar das alianças internacionais.

    IHU On-Line – Outro ponto da sua pesquisa é o estudo das novas configurações da classe trabalhadora no Brasil. Em que consistem essas novas configurações, como e desde quando elas estão ocorrendo?

    Alana Moraes – A classe trabalhadora no Brasil sempre foi muito heterogênea. Essa classe que imaginamos, masculina e industrial, ainda que muito relevante, só existiu de forma significativa em São Paulo. Nos últimos 30 anos, a forma de acumulação de capital mudou muito, assim como o trabalho. Com o domínio crescente do capital financeiro, as formas especulativas tornam-se cada vez mais importantes. A classe de assalariados transforma-se agora em uma classe de endividados. A tradicional relação capital-trabalho que se dava em um espaço delimitado (empresas, fábricas etc.) perde importância na produção de riqueza, o setor de \”conhecimento\” torna-se o setor mais dinamizado do capital e a classe trabalhadora desloca-se majoritariamente para o chamado setor dos \”serviços\” e dos cuidados. Esse deslocamento é o que faz também com que muitas pessoas procurem outras formas de sobrevivência, como os pequenos negócios, as pequenas produções familiares, o trabalho dos \”bicos\”.

    Com essa nova espacialidade do trabalho, com o fim das grandes fábricas e espaços de produção, fica mais difícil a organização dos trabalhadores nos locais de trabalho. Como diz o geógrafo David Harvey, toda a cidade se transforma agora em uma grande fábrica. Ainda temos um grande setor da classe trabalhadora que se relaciona com o desemprego constantemente. Junta toda essa fragilidade com uma vida impossível nas nossas cidades, com o déficit habitacional, o aumento dos aluguéis pela dinâmica da especulação imobiliária.

    A pergunta que ainda não sabemos responder é: se o sindicalismo correspondia, enquanto forma organizativa, a uma classe trabalhadora do começo do século XX, quais as formas possíveis de auto-organização da classe do começo do século XXI? A esquerda precisa pensar se a figura clássica do \”trabalhador\” pode ainda mobilizar essas novas subjetividades que emergem desde as dinâmicas neoliberais (e suas resistências cotidianas!) ou se a produção de identidades coletivas migrou também para outros lugares.

    É uma pergunta. Não sabemos bem, mas não podemos deixar de pensar nela e não podemos mais alimentar a nostalgia fordista querendo que as fábricas voltem para que nos situemos. A classe trabalhadora mudou radicalmente e pode não construir tanta identidade assim com o trabalho (já que os trabalhos \”que restam\” são trabalhos extremamente precários, extenuantes, pesados), mas com outras dimensões da vida, e por isso a igreja evangélica tem um papel fundamental. O combate ao neoliberalismo também passa por recriarmos formas de convivência, por exemplo, que produzam outras formas de solidariedade e cooperação, novos modos de existência.

    IHU On-Line – Sua pesquisa de doutorado trata sobre a produção da vida em comum e os caminhos da politização do cotidiano entre os sem-teto na periferia de São Paulo. Como a pesquisa está sendo desenvolvida?

    Alana Moraes – A minha pesquisa parte de uma pergunta simples, mas que hoje transformou-se quase em um não-problema para a esquerda e para a própria universidade: como se vive junto? Como é possível produzir uma vida em comum, um espaço compartilhado, pertencimentos coletivos em um mundo neoliberal marcado pelos processos constantes de esgarçamento dos tecidos sociais, pela transformação do mundo do trabalho, pela crise urbana?

    Na minha opinião, o MTST é um movimento incontornável para entender o Brasil de hoje. Ainda que seja um movimento de quase 20 anos, o MTST explode e emerge na cena política com mais protagonismo em Junho de 2013. Portanto, é também fruto de 2013, de algum modo. As ocupações de sem-teto nas periferias de São Paulo são um grande laboratório de produção da vida coletiva. Pensar a alimentação, cozinhas coletivas, como fazer as mediações de conflitos de todo o tipo, a limpeza, as inseguranças de falar em assembleia, o desemprego, separações conjugais, a relação com as crianças, com a fé.

    Na ocupação do Capão Redondo, fizemos uma rádio comunitária e temos também um cursinho popular para jovens, um salão de beleza autogerido, um bazar de roupas usadas. Construímos parede por parede, fiação por fiação. É um mundo extremamente feminino também. São as mulheres que cuidam das relações, as \”tias\” que, de alguma forma, também fazem novos parentescos, \”o movimento tem que entrar no sangue\”, como elas dizem. Na semana passada, fizemos uma roda de conversa só com mulheres sobre trabalho produtivo e reprodutivo na ocupação. Eram mais de 100 mulheres no barracão, e na hora da apresentação quase 90% das mulheres ali ou se apresentou como \”desempregada, do lar\”, ou \”faxineira\”, \”diarista\”, \”cuidadora\”, \”babá\”. Duas mulheres trans, em condição de prostituição, que trabalham à noite, também participaram da atividade. Fiquei pensando que se fosse uma reunião feminista na USP, teria um monte de tensão, mas ali no Capão, evangélicas, prostitutas, mulheres que cuidam, produziram um espaço incrível de formação coletiva e de convívio possível, pensando, por exemplo, o que fazemos com nosso escasso tempo livre. É muito importante pensar o tempo livre. As mulheres praticamente não têm esse tempo: estão sempre trabalhando, cuidando de tudo.

    Minha pesquisa segue os problemas colocados nessa feitura cotidiana das possibilidades coletivas, das práticas compartilhadas de trabalho e cuidados – elas são bem anteriores às cenas que costumamos ver como propriamente \”políticas\”: as manifestações, os embates públicos. Muitas pessoas chegam nas ocupações extremamente fragilizadas, quadros graves de depressão, ansiedades, insônias crônicas, alcoolismo. No entanto, a vida coletiva cura e estou muito interessada nisso também, em como podemos nos curar coletivamente. Eu me esforço muito para não elaborar um conhecimento sobre os sem-teto, mas um conhecimento com eles e elas, com a relação que estabelecemos nas tarefas e afetos de todos os dias. Nossas práticas de ciência precisam também estar situadas e posicionadas politicamente. Não é mais possível, nem desejável, produzir uma política ou um conhecimento de vanguarda, afastado dessas questões que só acontecem quando estamos implicados com algo, com relações, com uma causa coletiva. É um aprendizado de pensar a partir da demanda que a luta nos coloca.

    IHU On-Line – Qual é a expectativa para a greve geral anunciada para esta sexta-feira? Sendo a greve promovida pela CUT e pelas Centrais Sindicais, qual é a expectativa de adesão da população?

    Alana Moraes – Eu acho que vai ser uma mobilização histórica. Para mim, é um exemplo de como o processo prático de construção coletiva pode nos levar para lugares mais interessantes, podemos falar com mais gente. Alguns processos interessantes estão também produzindo essa greve geral: coletivos que estão se reunindo na cidade para colar lambes de convocação como fez o Arrua em São Paulo; o próprio MTST fazendo assembleias em bairros na periferia de São Paulo para chamar as pessoas; os professores das escolas particulares enfrentando, muitas vezes, direções e pais conservadores e aderindo massivamente à greve; o movimento negro mobilizando e convocando para uma ala negra na marcha; os movimentos feministas também convocando bastante.

    Por isso é importante que as estruturas sindicais repensem também o uso dos grandes carros de som que quase sempre impõem uma hierarquia muito grande nos atos e abafam qualquer possibilidade de outras expressões, impedem até que as pessoas conversem. Penso que nossas possibilidades de resistência estão muito vinculadas com a produção de outras espacialidades políticas também, espaços que permitam mais o encontro, que falem para mais gente e que permitam (e distribuam!) mais a própria condição da fala.

  • A periferia contra o estado? Para escapar das ciências tristes! Criemos outras possibilidades

    Por Alana Moraes, Henrique Parra, Hugo Albuquerque, Jean Tible e Salvador Schavelzon | Imagem: Gavin Adams

     

    Cagaram mil e uma regras de conduta
    Eu mandei pra puta que pariu
    E sorri, feliz.
    Jenyffer Nascimento

     

    No último dia 25 de Março, a Fundação Perseu Abramo apresentou os resultados da pesquisa Percepções na periferia de São Paulo, trabalho que era destinado, nas suas próprias palavras a \”compreender, de forma profunda e detalhada, os elementos que têm formado a visão de mundo e o imaginário social nas periferias da cidade de São Paulo\”. Dentre suas conclusões, o estudo considerou que \”a mistura entre valores do liberalismo, do individualismo da ascensão pelo trabalho e do sucesso pelo mérito, com valores mais solidários e coletivistas relacionadas à atuação do Estado, à universalização de direitos, à ampliação da inclusão social, permeiam a visão de mundo e o imaginário dessa nova classe trabalhadora das periferias de São Paulo\”, gerando intensos debates e conclusões peculiares. A pesquisa da FPA foi movida por uma pergunta inicial: \”por que os pobres não votam mais no PT?\”.

    A pesquisa diz muito mais sobre si mesma e sobre a \”visão de mundo\” que a informa, do que potencializa novas perguntas e entendimentos sobre os processos sociais em curso. Curioso observar as leituras que surgiram dos resultados publicados. De uma lado, uma esquerda que se apresenta esgotada, sem assumir uma crise de paradigma constata que o território que pensava como próprio foi ocupado pelo inimigo.De outro lado, aparece uma direita triunfalista, que celebrou com matérias ou editoriais nos grandes jornais os resultados da pesquisa da FPA, no que aparece para eles como capitulação do estatismo de horizonte socialista frente a um liberalismo que é pano de fundo de uma sociedade aberta, do livre mercado, o mérito e o encerramento do conflito ideológico no campo social.

    A pesquisa serve a ambos os propósitos. Porém, outras possíveis leituras se abrem nas fissuras que permitem escapar de um mundo de binarismos, homogeneizações, e guerras culturais ancoradas nas disputas ideológicas do século 20. Esses lugares são os que mostram que a história não acabou, mesmo que algumas formas de construção política de fato não sejam mais possíveis. Bairros organizados para lutar por moradia e transporte, respostas políticas da população que não necessariamente se alinham com escolhas eleitorais. Um tránsito sinuoso, de ondulações e curvas, mostra também a possibilidade de outra ciência e outra política, que não pretende completar o trabalho da civilização ou do catequismo, e não assume como episteme as fronteiras impermeáveis de um indivíduo-cidadão, da sociedade organizada pelo Estado, nem do mercado, do trabalho e da propriedade privada como únicos, permanentes e estáveis de organização.

    Todo o debate gerado em torno da pesquisa, nos fez pensar também que disputar o que \”são\” os pobres é uma armadilha que só pode ser desativada por outras práticas de pesquisa, outros lugares de posicionamento. Essa inquietação a respeito do fundo no qual as questões foram postas nos parece um bom problema de partida: que modos de conhecer podem contribuir para a criação e potencialização de projetos coletivos de autonomia?

     

    Descer a torre e pensar pelas frestas: ritos de desautorização

    \”Por que os pobres não acreditam mais em nossa promessa de salvação?\”. É uma pergunta que ecoa através das décadas. Nas teorias clássicas do populismo, ao menos na sua primeira geração, os pobres eram \”cooptados\”, imersos em uma cultura rural e atávica cujo sentido era conferido pelas relações clientelistas. Estavamos fadados a ter uma classe trabalhadora vulgar, sem consciência, movida por interesses econômicos, quase sempre manipulada. As teorias sociológicas estavam lá para comprovar – isso, é claro, até migrantes nordestinos do ABC paulista restituirem de vez a dignidade da classe contra a teoria. Na cidade de São Paulo, o sindicalismo da oposição metalúrgica, nesse mesmo período, produzia intelectuais-operários e convocava intelectuais das universidades para pensar as possibilidades de luta e autonomia dentro das fábricas. A explosão do movimento operário nos anos 70/80 em São Paulo, assim como os movimentos populares de bairro, emergiam na cena política questionando a velha divisão entre sujeito e objeto, que em um dos seus desdobramentos, também se expressa na divisão que separa a vanguarda política da classe trabalhadora. O desejo de radicalização democrática se insurge também contra as fronteiras do pensamento e a autoridade de enunciação.

    De volta a um período de fechamento democrático, com intensificação das práticas autoritárias estatais, surge também uma necessidade renovada de pensar outras formas políticas que, dentre outros deslocamentos, consiga mais uma vez questionar as formas de produção de conhecimento. Nos deparamos hoje com um mundo em intensa transformação: as formas do trabalho mudaram radicalmente assim como as formas de representação, que hoje econtram-se em crise.

    O que propomos aqui é uma investigação coletiva que seja demandada pelos problemas que surgem de um novo ciclo de resistência, e que possa assim contribuir para desestabilizar a separação hierarquizante das formas de pensar e agir no mundo. Nossa proposta é simples: uma prática de pesquisa que atue pelas demandas concretas das resistências ao modo de vida neoliberal. É preciso também rejeitar a crítica ao \”pensamento intelectual\” que vem ecoando entre nós mesmos, lutadores e ativistas. Para superar esses impasses, nosso desafio é ainda maior: afirmar que é da luta e das criações de novas formas de vida que podem nascer reflexões intelectuais criativas e potentes. Da mesma forma, afirmar que não há potência de pensamento que não esteja fortemente implicado em processos coletivos de transformação. Não há pensamento criador sem luta, como não há luta sem produção de conhecimento.

    Assumir uma prática de pesquisa na qual estamos todos posicionados, implicados em causas e processos coletivos. Não nos é mais permitido fazer uma ciência ingênua. As feministas bem sabem que sem o corpo, sem a compreensão da economia de relações que fazem os próprios \”sujeitos\”, suas vulnerabilidades, sofrimentos e cotidianos não é mais possível fazer conhecimento, muito menos política. A crença na existência de sujeitos prontos – seja ele o sujeito da classe, seja ele o novo sujeito periférico é uma crença masculina que nunca leva em conta todo o trabalho anterior de relações, vínculos, alimentação, pertencimentos que produz pessoas, pensamentos, \”opiniões\”. Trabalho esse muito mais imprescindível em contextos populares. O movimento negro emergente no Brasil também tem produzido formulações imprescindíveis para pensar as formas de ciência. Pensar, por exemplo, como o racismo atua profundamente nas subjetividades, impedindo de forma violenta com que os sujeitos tenham acesso a sua própria fala: como levar à sério essas formulações nas práticas de \”aplicação de questionários\”, por exemplo?

    A dinâmica dos questionários pode ser muito cruel quando ele se torna uma inquisição averiguadora de \”valores\” dos pobres. Se a aposta for no mundo do discurso sobre a realidade, não tenham dúvida, ao menos no mundo ocidental, ele sempre estará do lado dos valores dominantes – da periferia de São Paulo ao Bronx. Uma política renovada precisa pensar outras formas de conhecimento sobre a realidade que não estabeleça tribunais, mas ao contrário, que se afete pelos interstícios, pelos escapes – que não negue a dominação, mas que consiga pensar apesar dela.

    Uma ciência que se compromete com a epistemologia das classes dominantes não pode ser outra coisa que não um retrato triste do pensamento colonial e da impotência política, ora pacificando as experiências dos pobres em categorias estranhas como o \”liberalismo popular\”, ora culpando os próprios pobres por não entenderem nunca as engrenagens da sua própria dominação. É também a expressão de um mundo intelectual que só consegue pensar a si próprio como a vanguarda iluminada da classe – distante, pedagógica, mas intacta em suas certezas.

    No entanto, a vanguarda nunca está lá – se estivesse, saberia, por exemplo que o apelo a imagem do \”empreendedorismo\” é evocada entre várias camadas de experiência: do pragmatismo das \”virações\” cotidianas de quem sempre foi excluído do assalariamento (especialmente mulheres) até o desejo de poder trabalhar sem um patrão. Quando a pesquisa identifica no \”empreendedorismo\” um \”liberalismo popular\” joga fora, de uma vez só, toda uma experiência de classe forjada entre migrações, industrialização e desindustrialização, desempregos constantes, assim como toda a dinâmica pragmática de uma economia popular feita por cabeleireiras, motoboys, faxineiras, ambulantes, as pessoas dos \”serviços gerais\”, a classe que vive do cuidado.

    A pesquisa dispensa também os intelectuais da classe que pensam a periferia porque sentem o que isso quer dizer e desobedecem, mais uma vez, as cercas que pretendem separar \”pensadores\” de \”objetos\” de conhecimento: movimentos populares, os artistas periféricos ou que constrõem relações com a periferia, as redes de cursinhos populares, movimento negro, feministas, secundaristas, aqueles que fazem as novas batalhas de slam, os saraus – deixam de pensar também a partir das tensões geracionais que hoje explodem dentro da própria classe. Uma pesquisa sobre os \”pobres\” que se pretende crítica dos poderes dominantes – da ciência ao golpismo – deveria convocar aqueles que estão produzindo pensamento na periferia, nos emaranhados de suas contradições e modos de vida, para pensar desde as hipóteses iniciais até às interpretações dos dados. Toda pesquisa deve ser também a possibilidade de encontros.

    Uma das consequências não previstas da ampliação do acesso à universidade no Brasil, com todos os limites desse processo, das transformações recentes na sociedade brasileira, foi a entrada massiva dos mais pobres, negros e mulheres nas universidades; a proliferação de coletivos feministas, coletivos negros, a luta por melhores condições nas universidades. Um processo não desprezível de tomada de assalto dos lugares de enunciação do conhecimento e que estabelece, pouco a pouco, ritos de desautorização da figura do homem branco intelectual portador da ciência. Desautorizam também as arenas de disputas em torno do que são ou devem ser os pobres. Nos convidam, mais uma vez, a embaralhar as fronteiras que separam pensamento e luta, transformar as práticas de fazer conhecimento.

    Não queremos afirmar a \”experiência\” como um lugar de autoridade: ela é um campo atravessado por inúmeros fatores e circunstâncias. Ela também é produzida por poderes e contra-poderes, violência, a vaga na creche que nunca chega, a passagem que aumenta novamente. No entanto, uma prática transformadora de conhecimento deve por isso apostar na fricção com a experiência ao mesmo tempo que deve também recusar, sempre que possível, a autoridade de um saber \”explicativo\” e especializado. A pesquisa do Eder Sader sobre a periferia de São Paulo nas décadas de 1970-80, por exemplo, já levava muitas dessas questões e era movida tambem por um espírito de criação emancipadora e coletiva que apostava na relação orgânica com a classe para pensar outros caminhos de ação. Aliás, naquela época, a desconfiança dos pobres em relação ao Estado já era evidente. No entanto, muitos intelectuais petistas como Eder Sader extraíam dessa desconfiança, proposições radicais sobre novas formas democráticas.

    Para derrotar o modo de vida neoliberal, precisamos voltar a perseguir problemas complexos. Eles estão por todos os lados, são produtos também das próprias praticas de resistência. Seria um problema muito mais interessante, por exemplo, pensar como é possivel que essa fração de classe que a pesquisa identifica como \”liberal\” e \”solidária aos seus empregadores\” seja também aquela que compõe a base social de movimentos sociais como o MTST. Pensar os problemas levantados pelas experiências de arranjos comunitários em curso: cozinhas coletivas, práticas de educação popular, produções artísticas que vem construindo novas linguagens e dispositivos de \”politização\” mais horizontais, as novas experiências de clínicas públicas de psicanálise, os coletivos de comunicação e midiativismos periféricos. É que as verdadeiras questões dão trabalho (nascem do trabalho de toda construção coletiva!) e, no fundo, precisamos escolher se vamos pensar com a classe (a classe preta, mulher, jovem, universitária), sobre ela ou contra ela. Pensar, finalmente, como a classe é feita e não dada.

     

    Para além do binarismo Estado X Mercado

    A esquerda que só se concebe do lado do Estado, e contra o mercado, também pode ser produtora de subjetividade neoliberal, criando condições para que, no final do caminho, o sujeito revolucionario transmutado em consumidor do mercado, dispense suas vanguardas e padrinhos, sem que a transição a um governo abertamente pro mercado, por mais diferente, não se constitua em clivagem determinante para a vida das famílias da periferia.

    O estudo da FPA conclui inequivocamente que a recusa ao Estado, e afirmação de alternativas a ele, são liberalismo. As massas pobres das periferias só poderiam estar alienadas, embebidas no sonho do mercado. A resposta, e antes dela, a pergunta, diz mais, novamente, sobre quem a fez do que quem a respondeu. Os pobres sujeitos à repressão sistemática do Estado mediante o aparato de segurança e, por outro lado, excluídos dos modos de autopreservação e cuidado público – a educação, a saúde etc – deveriam amar o Estado – e ainda que este funcione mal, talvez, deveriam ter a consciência do seu funcionamento ideal. Deveriam?

    A mesma conclusão esbarra em uma armadilha conceitual: como poderia o liberalismo ser contra o Estado? Não foi sob o regime neoliberal que se constituíram enormes redes de repressão policial, desenvolvimento bélico, apropriação dos fundos públicos e expropriação do patrimônio coletivo, espionagem de cidadãos e de fantásticos aparatos de aprisionamento e punição? O liberalismo, ainda que conteste o \”Estado grande\”, jamais atuou no sentido de sua abolição, tampouco advogou pela sua diminuição de garantidor da ordem capitalista.

    As multidões periféricas, ao conseguirem habitar, cuidar de sua saúde e se proteger da violência física perpetrada pelo Estado, podem ser mais anti-liberais do que as tais estruturas anti-liberais: a ideia vã de uma dicotomia entre Estado e Mercado, quase como uma batalha do fim do mundo, gera um sistema no qual em um polo está um Mercado planejado pelo Estado e, no outro, um Estado a serviço de um Mercado — a despeito dos arranjos e das gradações, Estado e Mercado estão sempre ali, interdependentes.

    O liberalismo pode ser inclusive interpretado como provocação e resposta dos pobres, frente ao Estado da esquerda que não oferece saídas políticas viáveis, nem projetos de sociedade sedutores, e menos ainda o mercado, frente ao qual os pobres sabem, sim, reivindicar o Estado ou, quem sabe, um outro lugar para além da representação e burocratização da vida.

    O binômio Estado X Mercado apresentado pela pesquisa perde de vista uma das principais engrenagens do modo de funcionamento do neoliberalismo que, para avançar, precisa que mercado e Estado produzam uma coexistência intrinseca: seja nas ações publicas orientadas por critérios de \”produtividade\” ou \”eficácia\”, a \”gestão de resultados\” ; seja no papel crescente das polícias como garantidoras extra-legais da propriedade privada, da especulação imobiliária e na criminalização dos movimentos questionadores da ordem de mercado.

    Se a romantização dos pobres e da pobreza é um equívoco, isso não pode ser dito nem pensado sem uma necessária desromantização do saber técnico, neutro e, literalmente, iluminado da ciência pura que se pressupõe, ainda hoje, uma espécie de demiurgo, de ente transcendental capaz de organizar o mundo a partir de seu local privilegiado de observação.

     

    Uma ciência comum para uma política do comum

    Toda ciência fabrica mundos. Um ato de descoberta científica produz novos objetos, novos processos, novos sujeitos e com eles surgem outras recomposições do mundo. É por isso que podemos dizer que a ciência é também política, no seu melhor sentido. Ela cria novas partições, novas dobras e novos pertencimentos com o real. Na sua versão etnocêntrica e colonial, no entanto, a ciência é política no mal sentido; ela fecha mundos, se interpõe sobre caminhos divergentes, ela \”limpa\”, \”barra\” as diferenças, classificando e organizando tudo no lugar narcisista do Eu. É política do poder, da ordem e do progresso.

    O desafio de construir outras formas de produção de conhecimento exige também a invenção de outras formas políticas. Como seria essa ciência comum potencializadora de outros mundos compartilhados? E o que pode acontecer se partirmos de uma perspectiva parcial, situada e incorporada e que fosse movida pelos problemas dos modos de existência? O que acontece se renunciarmos de partida às ambições projetivas e as totalidades pré-constituídas ou mesmo à eleição de um ponto de vista privilegiado a partir do qual explicamos todo o ordenamento do social? Se todo saber é também poder, como seria produzir um saber insurgente de uma forma política também desconhecida?

    Inspiramo-nos aqui na experiência de diversos movimentos sociais, comunidades afetadas (por problemas de saúde, desastres, conflitos etc), minorias organizadas que a partir de sua experiência e saberes produzem junto a outros atores cognitivos e políticos (pesquisadoras e pesquisadores profissonais ou amadores, ativistas, gestores engajados entre outros), novas formas de organização e luta simultaneamente à produção de conhecimentos contra-hegemônicos. Neste processo, surgem também novos sujeitos políticos. Encontros de saberes e formas diferentes de vida interessadas na co-criação de mundos. A experiência de mulheres que se organizam e que produzem saberes que interrogam as práticas e protocolos médicos, num ataque direto à biopolítica dos sistemas de saúde; os trabalhadores então invisibilizados ou silenciados que criam seus centros de pesquisa e documentação e confrontam as estatísticas oficiais (como foi a criação do Dieese); indígenas e quilombolas cujos saberes são indissociáveis da produção das formas de suporte à vida em comum; hackers e suas comunidades cujas práticas modificam o regime de visibilidade da vida contemporânea tecnicamente mediada, produzindo política através de tecnologias aparentemente neutras, criando clivagens que dão a ver os novos processos de produção de valor e as técnicas renovadas de governo das populações.

    Se criamos espaços de escuta novas linguagens podem ser inventadas (ao invés de ficarmos operando mediações que encaixam o pensamento dos outros em nosso mundo). Talvez seja mais do que tradução, mas a pura invenção de uma outra linguagem comum, por isso, também criadora de outras comunidades políticas. Os regimes de subjetivação que nos constituem são muito heterogêneos. Se desejamos criar novos entendimentos, capazes de fazer proliferar a multiplicidade do real, teremos que aceitar as indeterminações e os trajetos experimentais. Disputemos a imagem do laboratório! Ao invés da sala limpa, pensemos num laboratório contaminado. Nossa hipótese é de que podemos constituir um novo laboratório (que fabrica novos sujeitos, novos objetos, novos mundos) junto àqueles que estão produzindo novas formas de vida em comum, agindo contra o desmanche de algo que é comum e encontra-se ameaçado pelas forças em jogo. Porém, este comum não é necessáriamente conhecido ou visível. Ele é aquilo que é produzido entre todos, e não para todos. Mas justamente por isso, é frequentemente imperceptível. Ele pode ser o silêncio da noite, a qualidade do ar que respiramos, o tempo que temos para cuidar dos próximos, nossos trajetos na cidade e até o trabalho que temos (como é difícil definir hoje as bordas do trabalho e do não-trabalho!).

    Como seria a política dessa forma de conhecer? Talvez, ela também seja inventada justamente ali onde se produz a vida mais ordinária. Nossa hipótese, é que esta forma de conhecer surge simultaneamente à formação de novas comunidades políticas que, para além do regime da representação, produzem a política de forma imanente à vida. Se ela realiza no presente sua política, não é que ela seja prefigurativa da forma política a se construir noutras escalas. Sua política é da ordem de uma singularidade. Ela é menor, situada, parcial, incorporada, da mesma forma que o conhecimento que a produz.

    Apostamos que nesta forma de conhecer por meio desta política do comum, novas individuações coletivas – de ordem transindividual – podem emergir. Por isso, não há forma política a ser preenchida. E isso é o mais difícil no atual momento. Manter os canais de enunciação, de práticas cotidianas, de formas multiplas de pertencimento, todos abertos à proliferação de outras formas de vida (mais solidárias, mais emancipatórias, mais autônomas etc) também demanda a capacidade de lutar contra todas as formas de opressão, homogeneização, sujeição e exploração. Essa forma de conhecer que desejamos praticar com essa política, é sempre feita a favor de algo e contra algo.

     

    Conclusões tão precárias como a classe: por outras práticas de pesquisa-luta

    Uma ação política emancipatória que realmente queira sair de seu beco sem saída precisa, sem dúvida, atravessar os muros que nos separam não apenas fisicamente, mas os muros que interditam o desejo, o pensamento, as práticas de existência em comum

    O problema da liberdade e da emancipação coletiva, da construção de mundos que buscam superar opressões e muros, é um problema que nos situa, todos e todas, em um terreno comum. Isso quer dizer que, apesar de todas as experiências de lutas, das mais vitoriosas até as derrotadas, apesar de todas as teses, ensaios, questionários, não há fórmula-guia que possa nos confortar e mostrar a salvação. Não sabemos. Ou apenas sabemos que nosso saber não pode ser interposto a outros saberes. Não há um plano pronto a ser executado e nesse sentido, toda pesquisa que se pretende comprometida com um projeto de transformação deve conter, desde o início, a possibilidade de experimentações e criações. A relevância de uma pesquisa engajada pode ser testada pela possibilidade que ela oferece de fazer sentido para as pessoas, em suas vidas comuns, para a produção de novos mundos.

    Perseguimos a hipótese de que um conhecimento ativo pode ser produzido a partir dos ruídos com a experiência, extrapolando os lugares de autoridade e ser o resultado de alianças e relações entre diferentes saberes situados e desejantes de um projeto comum. Não é mais permitido (ou legítimo) produzir um saber sobre os \”outros\” de modo instrumental, reificado e não-solidário. Nossa prática de investigação se deseja híbrida e acontece no meio, no entre pesquisa-luta, sua terceira margem. Em certo sentido, é uma forma de conhecer antiga, mas que no atual contexto adquire novas configurações graças às metamorfoses nos regimes de poder e suas formas de saber: os antigos centros de produção de verdades e seus dispositivos, multiplicaram-se e há também novas concentrações, fazendo emergir novos campos de lutas.

    Um laboratório ocupado por corpos e saberes interpelados pelo problema da fabricação de um mundo em comum. Pesquisadoras, pesquisadores que sejam capaz de farejar onde estão as dobras que podem nos mover, as questões que os poderes dominantes tentam esconder a qualquer custo, que possam produzir interferências no sistema hierarquizado de saberes e que possam, de fato, sonhar com outros mundos mas também praticá-los. Enfim, abandonar o delirio de fazer uma ciência neutra que revele as \”percepções\” dos pobres (pra quê? pra quem?) e ensaiar novos laboratórios povoados de corpos, afetos, interferências.

    Fazer mundos exige escuta, é entender com outros, exatamente o que precisa ser feito: novas infraestruturas para a vida coletiva; espaços que possibilitem decisões coletivas sobre a vida comum, pensar o compartilhamento dos cuidados, gerir o problema do desemprego e produzir novas sustentabilidades, criar novas práticas de co-formação que possam se multiplicar, redes de proteção contra violência do estado, novas linguagens e, dessa forma, apontar para outras formas de vida que não estejam encerradas no binarismo Estado X Mercado. Pensar com outros – levar à sério as diferenças, suas contradições, formas de vida, práticas de existência. A classe sempre está por fazer-se, não há uma susbtância a ser revelada.

    Contra a melancolia da vida neoliberal e suas práticas de conhecimento impotentes, cultivemos os afetos alegres de uma ciência implicada e comprometida com a produção de formas de vida em comum, mais solidárias e emancipatórias.

     

    Publicado também em: http://outraspalavras.net/brasil/quer-dizer-entao-que-a-periferia-e-liberal/

  • Da revolução feminista e o problema do comum Bruxas de todos os mundos: distribuí-vos!

    Alana Moraes*

    Como narrar um mundo no qual nós, mulheres, fomos continuamente exiladas, expulsas, condenadas? A história é, sobretudo, o terreno dos vencedores – e a metáfora uma arma de neutralizar o acontecimento. Buscamos por isso a matéria prima da fala, pausas, gestos, silêncios, o grito. Somos o fim da possibilidade interpretativa e sua autoridade significadora. É assim que contamos nossas histórias. É do mangue, da espessura anônima que recebe tudo que morre e tudo que nasce. É da rua sem saída, das encruzilhadas, das cozinhas abafadas e dos segredos que fabricamos nossa poética e nossas alianças. \”Gostariam de acreditar que eu fui derretida no caldeirão. Mas não fui, nós não fomos\”, diz Gloria Anzaldúa. 

    Talvez seja necessária uma ruptura com a própria linguagem – a língua do opressor. Porque é urgente destruir o sentido metafórico em nome do qual, durante séculos, a história das bruxas foi congelada. Nossas falas são herdeiras daqueles e daquelas que fizeram da língua um lugar corporificado – em feitiçaria as palavras funcionam como matéria. Elas vibram como flechas: circulam, atingem, transformam, fazem pegar. A palavra desautorizada que age no mundo provocando temor aos altares do discurso oficial: da medicina aos governos, dos velhos aos novos hospícios, do casamento à solidão das mulheres (em situação de) prostitutas.

    Evocar todas as bruxas para contar uma história sobre o fim do mundo – quantas vezes já assistimos essa história? Escovar a história à contrapelo. Uma poética benjaminiana da redenção dos vencidos – das vencidas! – como única possibilidade de futuro. Não é inteiramente verdade que as bruxas foram mortas e caçadas em nome de um “obscurantismo religioso”. Não! Elas foram queimadas também em nome de um futuro. Um futuro fabril, assalariado, masculino e moderno. Um futuro cromado, veloz e imponente. Um futuro desenhado entre grossas e protegidas paredes anunciado por vozes militares e pálidas, futuro neurótico cheio de medo do mundo.

    Stengers, bruxa belga, diz que “os verdadeiros herdeiros dos caçadores que queimaram as bruxas , são as ciências humanas que transformaram esse mundo em não-acontecimento:  um mundo de pobres velhas – dizem eles – era apenas uma questão de superstição.”

    Em Caliban e a Bruxa, Silvia Federici, bruxa italiana, nos oferece um tratado de rendenção. Contar a história do surgimento do capitalismo como a história de uma guerra contra as mulheres.

    Nossa pergunta ecoa e persegue os labirintos dos séculos: Por que um dos maiores massacres da história – aquele cometido pela igreja, pela intelectualidade da época, pela nascente burocracia estatal, pelas elites econômicas – um massacre que exterminou, perseguiu, torturou milhares de mulheres – por que essa história de uma violência originária foi apagada século após século? Por que a história desse massacre foi pacificada em fábulas, transformou-se em folclore, fez com que gritos de liberdade se transformassem em canções de ninar? Nós sabemos.

    Conectar o pré-capitalismo com o pós-capitalismo em um sobrevoo trans-histórico – nem tão baixo que nos possa enganar a visão, nem tão alto que possa nos embriagar na vertigem de uma história transcendente, essa que se proclama a ciência histórica que tudo vê com os olhos de deus. O vôo das bruxas, ao contrário, é sempre um vôo entre camadas, polinizador. Voar pelos interstícios. Fertilizar. Somos herdeiras dos deslocamentos, da lua cheia, das tecnologias fúngicas, pensando com Tsing (2015), contra o ideal tão arraigado de domesticação da monocultura, “pelo menos o da domesticação de mulheres e de plantas” (Tsing, 2015:180).

    Recuperar o início da história do capitalismo para não esquecer que a “caça às bruxas” atingiu seu ápice na Europa entre os séculos XVI e XVII, ou seja, em uma época na qual as relações feudais já estavam dando lugar às instituições econômicas e políticas típicas do capitalismo mercantil.

    Para não esquecer que a caça às bruxas, antes de se disseminar como uma guerra acusatória contra as mulheres, foi organizada por um aparato administrativo oficial. Política de Estado – com todas as letras maiúsculas. O Estado foi feito a partir desses escombros de destruição de uma vida em comum e incorporou em sua burocracia as imagens dos nossos pesadelos: um grande pai, o protetor, o juíz, o caçador, encarcerador, o dirigente.

    A “caça às bruxas” foi o modo pelo qual as mulheres foram expropriadas de seus próprios corpos, controle reprodutivo e da vida comunitária. Nas propriedades coletivas, típicas do modo de produção feudal, ainda que a divisão sexual do trabalho existisse, não havia, entretanto uma hierarquização radical entre os trabalhos. Foi preciso o trabalho assalariado – aquele que se dava fora do espaço coletivo – para que a hierarquia se instaurasse. Expropriadas da possibilidade da produção comunal, excluídas do trabalho assalariado, as mulheres foram aos poucos sendo empurradas ao espaço doméstico e ao trabalho inesgotável e não pago da reprodução da vida e da nova \”força de trabalho\”. Uma verdadeira fábrica social capaz de produzir a mão de obra e reproduzi-la cotidianamente. Diria Silvia que a ameaça da fogueira ergueu barreiras mais formidáveis ao redor dos corpos das mulheres do que aquelas levantadas quando as terras comunais foram cercadas.

    “Marx nunca poderia ter suposto que o capitalismo preparava o caminho para a libertação humana se tivesse olhado sua história do ponto de vista das mulheres”.

    A acumulação primitiva não é um momento originário, como pensava Marx, mas a forma pela qual o capitalismo administra suas próprias crises de tempos em tempos: expropriação massiva de trabalhadores agrícolas e camponeses, encarceramento em massa, a escalda da violência e perseguição contra as mulheres, novas diásporas de trabalhadores migrantes e em consequência movimentos de perseguição a esses trabalhadores. A escalada do feminicídio como expressão do esgarçamento contínuos do tecido social – o ódio dos caçadores nunca nos abandonou. A violência doméstica quase sempre começa com uma punição pelo não cumprimento de um trabalho doméstico – e o feminicidio é uma comunicação da soberania masculina pela morte de um corpo não domesticado, uma língua envenenada. O estado que destrói nossas possibilidades associativas e práticas hermanadas é o mesmo que nos promete justiça. Não acreditamos. O capitalismo é uma guerra perpétua às mulheres.

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    O pacto fundador do capitalismo moderno é a guerra contra as mulheres na Europa, a guerra contra os povos indígenas e depois a escravidão negra nas colônias. Guerra também epistemológica – porque foram modos de pensar o mundo, modos de pensar pela interdependência, pelo prazer que foram sistematicamente apagados e lançados nesse abismo inelegível da “superstição”. Guerra ontológica porque precisou destruir modos de existência.

    Nos julgamentos por bruxaria, a “má reputação” era prova da culpa. A bruxa era também a mulher desobediente que “respondia”, discutia, insultava e não chorava sob tortura. No entanto, ainda pixamos em algum muro de Hanói ou Cochabamba: “Somos mais do que hereges, somos pagãs!”.

    É preciso não esquecer também do papel da nova moldura familiar: complemento do mercado, instrumento da privatização das relações sociais e, sobretudo, da propagação
    da disciplina capitalista e da dominação patriarcal, a família surgiu no período de acumulação primitiva também como a instituição mais importante para a apropriação e ocultamento do trabalho das mulheres. Apagamento dos nossos corpos, criações e autonomia. Um novo regime de regulação doméstica e patriarcal do trabalho.

    Hereges do novo mundo moderno. Hereges do regime assalariado. O capitalismo não seria possível sem esses dois cercamentos fundamentais: o das terras e da possibilidade comunal por um lado, e por outro, o cercamento dos nossos corpos e a transformação deles em um terreno inesgotável de apropriação de trabalho. Hereges do futuro.

    Elaboramos em todo esse tempo um idioma de protesto corporal contra a disciplina do trabalho. Em São Caetano do Sul, no subúrbio da cidade de São Paulo, fez-se o aparecimento do demônio para várias operárias de uma nova seção onde se fazia a escolha, classificação e encaixotamento de ladrilhos na Cerâmica São Caetano S.A. Durante vários e sucessivos dias, no ano de 1956, mulheres desmaiaram no chão de fábrica depois de verem demônios espreitando.

    Final dos anos oitenta nas fábricas de eletrônicos da Malásia, centenas de mulheres são possuídas por demônios e desmaiam constantemente na linha de produção.

    Somos mais do que o chão da fábrica poderia suportar.

    É preciso por isso saber herdar a experiência das bruxas, saber evocá-las para pensar também uma outra política – uma política do meio, como nos sugere Stengers – que não seja apenas obcecada pela micropolítica, mas também que não se perca nos caminhos inférteis da macropolítica – essa que faz, muitas vezes, o trabalho do capitalismo: descuidar dos vínculos, das pequenas alianças, das constituições dos nós. Reapropriação dos meios de reprodução.

    Uma “política do meio” é uma politica extremamente pragmática. As bruxas são extremamente pragmáticas. Verdadeiras técnicas da experimentação. Nossas perguntas devem ser:  “como as relações funcionam?”,  “de que materiais são feitos os vínculos?”. Conhecer o terreno, entender suas propriedades, desestabilizar continuamente as fronteiras que separam o corpo da terra, o trabalho da vida – as bruxas foram representadas voando em suas vassouras porque sempre desprezaram as fronteiras.

    Esse saber de terreno, pragmático, nos faz pensar as feituras cotidianas desse mundo materialmente sempre provisório e que só́ pode ser sustentado por uma prática constante de produção de relações. 

    O que as bruxas possuíam – e ainda possuem –  é uma poderosa tecnologia de pertencimento. Hay que mezclarse entre diferentes! Como nos diz a bruxa boliviana Maria
    Galindo: entrar juntas e assaltar às mesas desordenando tudo. A comunidade também pode ser um lugar privilegiado da reprodução patriarcal, como ela mesmo nos conta sobre o Bem Viver. Por isso, n
    os resta produzir as alianças insólitas, as alianças proibidas entre putas, lésbicas, indígenas. Uma co-mu-na-li-da-de radical feita de implicações e diferença. Tornar-se capaz de fazer e pensar porque se pertence a algo. Não é possível ser livre sozinhas, sabemos. Por isso precisamos de círculos, rituais de experimentação do viver juntas. Precisamos reativar o corpo e a festa.

    Evocar também as mulheres que foram às guerras. As bruxas soviéticas que estiveram na linha de frente para nos contar que a guerra não tem rosto de mulher – “somos gente da comunhão”, nos lembra Svetlana, bruxa ucraniana,  falando entre os escombros femininos da guerra contra o nazismo. Evocar Rosa Luxemburgo, Bruxa comunista, profanadora da política com o “p” maiúsculo – aquela que também lutou contra as cercas do Partido, da nação, contra a guerra e suas honras masculinas. Por um comunismo-feiticeiro!

    As bruxas curdas e a produção de um novo confederalismo ecológico;

    A bruxa negra Ângela Davis, a mulher mais perigosa do mundo – diria a nação com o maior poder bélico desse mesmo mundo – lutando também contra as cercas das prisões, nossa nova escravidão.

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    As bruxas zapatistas e a produção cotidiana do entramado comunitário; O primeiro levante zapatista, em março de 1993, foi liderado pelas mulheres.

    A bruxa Louise Michel, sobrevivente da Comuna de Paris, deportada para a Nova Caledônia, lá onde conheceu o povo Kanak e se indigenizou.

    As bruxas, milhares, de bruxas-sem-teto e suas cozinhas coletivas, o compartilhar dos cuidados, os modos de produção da vida são «princípios operativos» :  o poder está nas infra-estruturas! “Os homens só sabem dar opinião”, elas dizem. O poder está na cozinha e sua política de experimentação.

    Evocar as novas bruxas-secundaristas, tomando de assalto suas escolas, corpos, cabelos e sexo contra o Estado.

    A socialidade nos excede. O perigo do saber das bruxas vem dessa tecnologia poderosa de produzir relações, fazer funcionar, pensar com o mundo vivo para além do Estado. “tramas que geram mundos” – como diz Raquel Gutierrez, bruxa mexicana.

    “O mais anti-capitalista dos protestos é cuidar de alguém e cuidar de si. Levar a sério a prática feminilizada e historicamente invisibilizada de cuidar, alimentar, receber. Levar a sério a vulnerabilidade, a fragilidade, a precariedade de cada um e dar apoio, honrar, fortalecer. Proteger uns aos outros, fazer e praticar comunidade. Um parentesco radical, uma socialidade da interdependência, uma política do cuidado “, nos diz Hedva, Bruxa norte-coreana.

    O capitalismo precisou destruir a feitiçaria para perpetuar seu projeto de modernidade. “Elas creem, nós sabemos” – é o que eles dizem. Mas o capitalismo é, ele próprio, um sistema de feitiçaria sem feiticeiros, para terminar com essa imagem nos oferecida pela bruxa belga. O mundo enfeitiçado da mercadoria. O que nos permite resistir às capturas é um processo muito radical de fabricação de conexões. Produzir substâncias de desenfeitiçamento pela pratica experimental de estar junto.

    “O que é importante não são nunca as filiações, mas as alianças e as ligas; não são os hereditários, os descendentes, mas os contágios, as epidemias, o vento. As bruxas bem o sabem” – Para terminar com Deleuze, o filósofo que inventou o devir para poder experimentar também a bruxaria.

    O futuro comunista é feito de contágios, das alianças insólitas e malditas – mas sobretudo, é pragmático e imanente. Tem a ver com o saber das bruxas de fazer funcionar os corpos em relação. Criar sentidos e práticas do comum contra as cercas. Saber herdar a bruxaria. “Manter a brasa viva”, nos convida Silvia Cusicanqui, bruxa aimara, para que o fogo possa pegar novamente.

    * Antropóloga e militante feminista

  • Nota de apoio ao MTST. Contra a escalada da repressão aos movimentos e lutas no Brasil!

     

    Companheiros/as,

    Um coletivo de entidades de defesa de Direitos Humanos (Cendhec, Gajop, CPDH e RENAP-PE), gabinetes de parlamentares progressistas (Edilson Silva e Ivan Moraes Filho), assim como as comissões de \”DHs\” e de \”Prerrogativas das/os advogadas/os\” OAB estiveram desde o final da tarde de quarta-feira, dia 22 de fevereiro,  na central de flagrantes de Recife. Nessa tarde uma manifestação do MTST na Companhia Estadual de Habitação foi interrompida por uma ação policial sem ordem judicial e terminou com a prisão do advogado do movimento e manifestantes de forma arbitrária. 
    Participantes idosos, mulheres e crianças foram agredidos/as pela polícia, \”balas de borracha\” e munição letal foram utilizadas, advogadas/os foram agredidos verbalmente e impedidos de acompanhar a ouvida de testemunhas. Houve pelo menos duas e pessoas atingidas por balas comuns e que foram atendidas em hostpitais da área.
    Recebemos também notícias de que um dos detidos teve duas costelas fraturadas durante a detenção no ato e está com hemorragia interna no HGV.
    Sem diálogo nenhum com a delegacia. Imputaram tudo e mais um pouco: tentativa de incêndio; dano qualificado ao patrimônio; Associação criminosa; resistência à prisão.
    Os detidos foram transferidos/as para o fórum do Recife nesta quarta-feira (22/02) para audiência de custódia. Pedimos aos parceiros/as das entidades de defesa de DHs e movimentos que comparecessem  e acompanhassem  a audiência junto aos familiares dos militantes presos. A mobilização foi importante para conquistar a liberação dos militantes detidos. As acusações, no entanto, estão mantidas. 
    A ação é um padrão de ação policial que afronta o próprio Estado de Direito e que potencialmente afetará todos/as nós.
    =========Inglês============
    Comrades,
    In the afternoon ofthe 21rst of February, a demonstration led by the MTST (Homeless Workers Movement) protesting in front of the government agency Housing State Company was interrupted by a police attack, no warrant served. The repression included the arbitrary detention of the movement’s lawyer and of many more demonstrators.
    On the same day, a collective composed of several Human Rights organizations have come together at the police station in the Brazilian city of Recife, where those detained had been taken to. Organizations include Cendhec -Centro Dom Helder Câmara, Gajop – Legal Support for Popular Organizations, CPDH – Environment State Agency, and RENAP/PE –National Popular Lawyers Association, progressive members of the State Assemblies (Edilson Silva and Ivan Moraes Filho), as well as the Human Rights and Lawyers’ Prerogative commissions of OAB (National Bar Association). 
    Elderly protesters, women and children were injured by the police. Both rubber bullets and live ammunition were deployed, lawyers were verbally abused and stopped from accompanying the hearing of witnesses. There were at least two people hit by standard metal bullets and they are receiving medical attention in local hospitals.
    We have also received reports that one of the men detained has suffered injuries to his ribs, which were cracked during detention. He is currently in Getulio Vargas Hospital, bleeding internally.
    There was no dialogue once inside the police station. Many charges were brought against the demonstrators: attempted arson; damage to property; association with criminal intent; resistance to arrest. 
    Those detained were transferred to Recife’s Courts on Wednesday (February 22) for a custody audience. We have called our partners in Human Right defence organizations, other movements and relatives to join us as we followed the audience. The mobilization achieved the release of the arrested militants, who were released on the same day. However, the charges were mantained.
    The aggression is a pattern of police action that affronts the very Rule of Law and potentially will affect all of us.
    ========Espanhol==========
    Compañeras/os
     
    En la tarde del 21 de febrero, una manifestación dirigida por el MTST (Movimientode Trabajadores sin Techo) que protestaba en frente a la Companhia Estadual de Habitação [agencia gubernamental de vivienda] fue interrumpida por un ataque dela policía, sin orden judicial. Larepresión incluyó la detención arbitraria del abogado del movimiento y demuchos más manifestantes.
    Ese mismo día, en la comisaría de la ciudad brasileña de Recife, adonde fueron llevados los detenidos, se reunió un grupo de organizaciones de derechos humanos. Las organizaciones incluyen Cendhec (Centro Don Helder Câmara), Gajop (Apoyo Jurídico a Organizaciones Populares), CPDH (Comité Permanente por la Defensa delos Derechos Humanos) y RENAP / PE (Asociación Nacional de Abogados Populares), parlamentares progresistas de las Asambleas Estatales (Edilson Silva e Ivan Moraes Filho), las Comisiones de Prerrogativa de los Derechos Humanos y de los Abogados de la OAB (Asociación Nacional de Abogados).
    Ancianos/as, mujeres y niñas y niños fueron atacados/as por la policía con balas de goma y munición letal; los/las abogadas/os fueron agredidos/as verbalmente y se les impidió acompañara las/los testigos. Hubo por lo menos dos heridos por balas comunes, que estánsiendo atendidos en hospitales de la zona. También se nos informó que a uno delos detenidos le quebraron dos costillas durante la detención y está internado en el Hospitla Getúlio Vargas con una hemorragia interna.
     
    No hubo diálogo una vez dentro de la comisaría. A los detenidos se los acusa de todo: intento de incendio; daño calificado al patrimonio; asociación con intensión criminal; resistencia a la detención.
     
    Los detenidos fueron trasladados a los Tribunales de Recife el miércoles 22 de febrero para una audiencia de custodia. Llamamos a los/las compañeras/os delas entidades de defensa de DDHH y otros movimientos para que se uniesen anosotros y a los familiares para acompañar la audiencia. La movilización logró la liberación de los militantes detenidos en lo mismo dia. Todavia, se han mantenido los cargos. 
    Fue una acción policial que secontrapone al proprio Estado de Derecho y que potencialmente nos afectará a todos/as.
    créditos: Tradução Tática
    Read more:
    http://www.mtst.org/mtst/nota-do-mtst-brasil-sobre-a-violencia-da-policia-na-cehab-e-a-criminalizacao-do-movimento/
    Diário de uma detenta e nove detentos:  nao.usem.xyz/af1d