Por um materialismo do mistério
por: Alana Moraes
por: Alana Moraes
Por: Fernando Frias
O corpo-rito dos negrxs retidos
Corpo banzo que extrai de sua melancolia a luta
Choro, Samba, Ginga
Zumbi e Dandara dançam ao som de tambores
Negrxs amores cantam até a tristeza passar
A macumba já foi começar
Laroie Exu
Salve Dona Maria Padilha
Ao sino da igrejinha já fez blém blém
Seu Tranca Rua vai abrir a gira
Dancemos o transe erótico e libertador dos corpos
Que as forças da natureza tomem nossos corpos e sigamos pela deriva do inconsciente
Até que os corpos sejam livres e desnudem pelas ruas, avenidas e praças
Façamos travessuras na noite
Sejamos EXUS
Corpos, Corpos e mais corpos:
uni-vos!
Arte: Carnaval nos Arcos da Lapa. Heitor dos Prazeres
Você pode-poderá ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=lz5k1kxjfoA
por: JULIA RUIZ DI GIOVANNI
fotos: Alicia Esteves
“Se eu não puder dançar não será minha revolução” ou “não me convide para uma revolução em que eu não possa dançar”. Atribuída à ativista Emma Goldman, a fórmula hoje famosa seria uma reelaboração da convicção expressa pela escritora anarquista em sua auto-biografia: a liberdade que defendia era inseparável do direito à autoexpressão, à beleza e à alegria que ela própria exercia dançando às vistas de seus companheiros. Convertida em um ditado político, a frase ficou conhecida menos pela autenticidade da autoria e mais por sua capacidade de resistir ao tempo ganhar sentidos novos, sendo difundida e reinventada em contextos muito diferentes dos bailes que Goldman dançou. Além do direito às coisas belas e radiantes, o enunciado fala também da relevância tática e estratégica das forças do corpo dançante considerado em um sentido mais amplo. Reaparece, nesse sentido, sempre que alguém em algum lugar sente a urgência de indicar que não se pode abrir mão de algo que apenas os corpos em movimento articulam. Sempre que é preciso declarar que há revoluções que só os fazeres e saberes corporais podem operar, lá onde as criatividades amadurecidas nos trabalhos e amores cotidianos (ou contra eles) encontram a possibilidade transformação social.
Essa potência política dos corpos é um tema fundamental para as confluências entre práticas de ativismo e práticas artísticas, sobre o qual muito se experimentou e escreveu ao longo da segunda metade do século XX. É impossível conceber os protestos e conflitos protagonizados pelo proletariado urbano desde o final do século XIX sem considerar-se a produção de engajamentos corporais múltiplos e complexos, tensionados pelo adensamento da organização científica do trabalho e de políticas higienistas, tornados parte da educação dos corpos da classe trabalhadora para a produção capitalista. A partir dos anos 1960, o lugar do corpo ganha outros múltiplos sentidos, sendo associado a novas poéticas de dissenso e desobediência, que incluem na equação dos confrontos político-culturais dimensões da vida antes tidas como banais ou privadas – rituais domésticos, práticas sexuais, frivolidades festivas, condutas disruptivas. Além disso práticas de pensar e fazer corpo dos movimentos negros e do feminismo, foram e são fundamentais para que saibamos hoje que tudo que se diz sobre e pelos corpos constitui uma zona de enfrentamentos políticos da maior importância. O corpo que dança e luta é campo de batalha. Conflito e diferença ganham o peso próprio dos corpos: na sua materialidade, plasticidade, forças e fragilidades, o que era oculto ou invisível torna-se exposto e torna-se possível historicamente reconhecer a dimensão política de formas que permaneciam relegadas à massa indistinta das experiências cotidianas associadas à repetição mecânica, inconsciente, alienada, que supostamente não reivindicam nenhum sentido.
Então, é muito importante falar do corpo. Mas é mais importante ainda saber que dizer “corpo” não é o bastante. Dizer corpo muitas vezes serve somente para continuar mandando o que há de mais intenso e criativo na experiência política de “volta” ao lugar do que é marginal e indizível, do que mesmo que nos pareça sedutor, percebemos como algo aquém do pensamento. Pelo menos desde a década de 1970 o corpo tem um lugar importante (seja pela contracultura, seja pelo marketing capitalista) nos discursos de busca da felicidade, de prazer, de comunhão, de mais “natureza” ou mais “realidade”. Corpo se torna sinônimo de uma aspiração por mostrar o que se oculta, de eliminar o que separa, de atingir uma verdade livre de representações: um desejo difuso de retornarmos à uma suposta imediaticidade original, à afortunada condição do não-saber. O corpo, assim, condensa também formas de exotismo, presentes seja na sua ostentação como objeto sensível e sensual, seja na multiplicação de práticas e discursos terapêuticos fundados na exploração do corpo através de experimentos e exercícios. Passando pelos vocabulários da medicina, do erotismo e das drogas, o corpo, alegoria de desmistificação, se torna ele mesmo mito de uma busca da verdade.
Talvez a questão seja menos dizer corpo e mais fazer corpo. Como propõe a antropóloga Annemarie Mol[i], sabemos que “temos” corpo, que “somos” corpo, mas o que acontece se começarmos a perceber e considerar politicamente importante o fato de que um corpo é algo que fazemos e refazemos todos os dias?
E se em vez de supor o corpo como algo inteiro e acabado que é preciso “resgatar ou “reencontrar”, pudéssemos entender o corpo como algo que precisa ser feito ? Que sua inteireza não está dada, mas depende de pequenas e grandes ações íntimas e coletivas? Quem sabe isso nos fizesse reconhecer o tamanho da luta que esse fazer implica. Luta para manter-se inteira, que a juventude negra que acorda todos os dias na linha de tiro da política de genocídio que governa as cidades brasileiras, ou que as mulheres que mantém casas e comunidades funcionando noite e dia, que os sem acesso à serviços de saúde, que aqueles para quem a crise e a precariedade nunca foram condições passageiras, conhecem melhor que qualquer macroanálise. Isso quem sabe nos fizesse reconhecer mais seriamente, que no coração disso que chamamos política estão, por exemplo, todas a operações e tarefas ordinárias, anti-heroicas e não remuneradas que as mulheres fazem e refazem todos os dias. Todos as práticas de cultivo dos prazeres criativos e festivos, muito associados à categoria política da “juventude”: outro termo exotizante. Todos os sistemas difusos de cuidado, de vizinhanças, de escuta, de amparo, todos os usos, todos os exercícios e rituais religiosos e profanos de fortalecimento e preparo para os combates do dia a dia.
Poder dançar, desse ponto de vista, não seria entendido como um desejo individualizado de “extravasar”, nem dependeria das qualidades de certos corpos que supomos serem naturalmente mais propícios à insubmissão, à “expressão” ou mesmo à criatividade: em geral a corpos jovens ou mesmo femininos (no Brasil, diferente de outros países da América Latina, dançar é uma atividade considerada feminina ou feminizante, com toda carga de atribuições sociais, econômicas e de violências que isso implica). O que acontece se entendermos a dança não como uma atividade especializada, mas como um modo intensificado de estar presente, de lutar para fazer-se inteira, algo que pode ser e já é praticado por uma maioria? Poder dançar seria sim poder fazer corpo abertamente, conscientemente, políticamente: exercitar modos disseminados e socialmente compartilhados de mover-se e fazer mover, modos de conhecer o mundo, no ato mesmo de transformá-lo, saberes de que ninguém detém o monopólio ou o segredo.
por Henrique Parra
Com o acirramento de nossa crise política e o clima de pós-catástrofe planetária, aprendi rapidamente que algumas coisas que julgávamos como óbvias e certas (como os cuidados com a vida coletiva, a afirmação e defesa de direitos fundamentais), são muitos frágeis na realidade e, portanto, radicalmente necessárias. Tenho perseguido esta idéia numa espécie de movimento de “retorno ao básico”. Por outros caminhos, tal percurso tem me arrastado para reflexões e práticas sobre a produção do comum.
Neste cenário, enfrentar a pergunta “como podemos viver juntos?” deixa de ser modismo teórico ou estético, e se torna na prática um problema de grave urgência. Essa é uma das razões que tem me impulsionado a investigar os chamados “laboratórios cidadãos”. Ao tentar descrever um conjunto diverso dessas práticas, maisdo que delimitar as fronteiras de um conceito de “laboratório”, interesso-me por repertoriar os diversos arranjos sociais, suas infraestruturas, protocolos, práticas e valores que participam de maneira sempre contextualizada (e portanto parcial) da produção de um conhecimento comum, aberto e implicado. Por sua vez, neste fazer, novas comunidades se constituem com esses laboratórios, dando consistência e sustentação àquilo que lhes é comum, mas que de alguma forma era desconhecido ou ameaçado. Para usar uma feliz expressão do Antonio Lafuente, os laboratórios cidadãos funcionam como incubadoras de comunidades.
Um dos aspectos que têm me interessado observar nessas experiências são as chamadas “tecnologias sociais de pertencimento” (ainda sem o devido rigor do conceito utilizado por Isabelle Stengers e Brian Massumi). De que é feita uma cidade? O que é qualidade do ar ou da água? Que mal é esse que faz nosso corpo adoecer? Encontrar formas de habitar, de se alimentar, de cuidar da saúde etc, são exemplos de problemas que tem sido enfrentados por diversos coletivos que experimentam a construção de novas relações e vínculos, que criam formas de acolhimento e escuta da diversidade, que trocam experiências e elaboram um vocabulário capaz de descrever e nomear aquilo que vivenciam, que constrõem regras de convívio e gestão de um espaço etc.
Diante da crise, desaprender para reaprender a viver coletivamente de outra maneira exige muita disposição e imaginação ou uma boa dose de precariedade. Ocupas urbanas, praças e hortas autogeridas no centro das grandes cidades, grupos de afetados por doenças raras, coletivos de cuidadores que reconfiguram as bordas das famílias, enfim, na proporção inversa ao desabamento do mundo há uma pletora de experiências cuidando para que a vida siga. Porém, assim como o trabalho invisível e não-pago das mulheres que fazem o planeta girar, essas experiências seguem fora do radar do reconhecimento macropolítico.
FOTOS Centro Social Autonomo La Tabacalera
Nessas primeiras semanas aqui comecei a me reconectar com algumas iniciativas dessa sub-ordem. É muito revigorante ver e participar dessa fabricação de outras formas de vida. Há muitos aprendizados em jogo. Uma antiga fábrica ocupada transformada em centro cultural autogerido (Tabacalera); uma praça com horta e brinquedos para crianças e aduntos (Esto es una Plaza); um edifício público ocupado (Ingobernable) entre tantas outras [1]. Em cada uma delas, tecnologias sociais de pertencimento e de organização, conhecimentos, práticas, novos corpos são inventados com outras maneiras de estar junto, sempre de maneira contextualizada, o que faz com que nada seja exatamente replicável.
Porém, o compartilhamento dessas experiências é sempre possível e portador de conhecimentos úteis para outros grupos. Ademais, para dar sustentação no tempo, para tornar esses modos de associação durável, é preciso criar suas próprias “tecnologias” (nos dizeres de Latour, a “tecnologia” é a sociedade tornada durável”). Formas de resiliência, adaptação, reprodução ampliada daquele comum que essas comunidades produzem e promovem. Neste sentido, saber organizar coletivamente uma festa de bairro é uma atividade altamente relevante. Grandes cidades com boas condições de vida, são cidades com bons bairros. O que aconteceu com os bairros de São Paulo? Podemos pensar a “vida de bairro” e suas relações de vizinhança como um “comum” ameaçado pela vida privatizada das grandes cidades? Como seria um laboratório cidadão organizado em torno disso? Imediatamente, percebemos como a micropolítica conecta-se a outras escalas.
Por isso a importância de reaprendermos a ativar a capacidade do encontro, de estar e permanecer juntos, de criar um ambiente com sua cultura, suas infraestruturas, seus codigos e sua economia, para que sejamos capazes de dar sustenção no tempo às práticas e valores que desejamos reverberar.
[1 ]Bernardo Gutierrez, jornalista e pesquisador produziu inúmeras reportagens sobre essas experiências. Em português veja essa: http://outraspalavras.net/posts/madri-laboratorio-democratico-global/ Seu livro, recentemente publicado, também descreve muitas experiências urbanas de Madrid: http://www.bernardogutierrez.es/indexen.html
PS: este post é parte da série de relatos que irei realizar durante o período de pós-doc em Madrid. Mais informações sobre o projeto atual: http://wiki.pimentalab.net/index.php?title=Projetos_Pesquisa
de Henrique Parra, publicado em:
https://pimentalab.milharal.org/2017/08/08/sentidos-para-uma-travessia/
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Brincando comigo, um amigo brasileiro escreveu perguntando se eu estava me exilando e abandonando a luta pela democracia no Brasil. Ouvir essa frase em 2017 é muito estranho. Evidentemente, esta viagem não tem nada de exílio: um exilado não tem qualquer alternativa senão fugir; a partida é incerta, o destino imprevisível e não há qualquer certeza sobre o retorno. Ainda assim, impossível ouvir essa provocação sem o peso do atual contexto histórico e sem a memória de nosso recente passado. Em nosso caso, a volta se dará rapidamente, o destino da viagem é certo e voltaremos, provavelmente, antes de qualquer mudança profunda em nosso quadro político atual.
Mas aquela provocação ficou reverberando. Ela fez eco com alguns sentimentos que me habitavam nos dias que antecederam a partida. Faz exatamente um mês que eu voltara para São Paulo com a família, após dois anos e meio morando no litoral – http://cienciaaberta.ubatuba.cc , mas praticamente ficando muito tempo na estrada entre Ubatuba, Guarulhos, São Paulo e Rio. Foi um período gostoso porém exaustivo. Neste inicio de julho, voltamos para um novo apartamento na Helvétia, coração pulsante de novos e velhos conflitos da cidade. Em pouco menos de um mês transformamos aquele espaço em nossa nova morada e a deixamos preparada pra ser habitada por amigas queridas durante nossa breve estadia em Madrid.
Fazendo tudo isso em tão pouco tempo, desterritorializações e territórios em fluxo, criando novas relações, projetos e novos vínculos afetivos tão importantes para novas vidas que se instalam, senti esta partida de uma maneira diferente das outras viagens. Senti mesmo que novos processos e vínculos estavam sendo interrompidos pela conjuntura dessas mudanças. Vivendo intensamente em cada um desses territórios, acompanhando as transformações políticas dos últimos anos, e cuidando de pessoas queridas que passaram por situações de vulnerabilidade, pude observar e sentir novos entrelaçamentos entre o mundo macropolítico e aquele das tensões e mutações subjetivas. São tempos sensíveis e de muitos limitares este que vivemos. Difícil saber o que virá pela frente. A catástrofe já aconteceu em toda parte, e tem intensidades diferentes em cada lugar, em casa povo e para cada indivíduo. A crise política que vivemos no Brasil é apenas uma dentre outras dimensões deste desabamento.
Ao mesmo tempo, em muitos lugares e com muitas pessoas que encontro, sinto que pulsa um desejo de criação de novas formas de vida em comum. Por isso, aquela imagem do exílio não nos serve. Não deixamos para trás um mundo de impossibilidades. Ao contrário, são muitos os mundos possíveis que carregamos conosco. Empresto a belíssima imagem da cineasta sikh Valarie Kaur, em seu discurso sobre a luta dos direitos civis contra o intolerância nos EUA pós-Trump – https://www.youtube.com/watch?v=9CbKjNWS864 . Sendo pai de uma pequena criança fiquei tocado pela maneira como ela transformou sua experiência materna numa metáfora do desafio político atual. Diante da necessidade de acolher uma nova criança num mundo que se apresenta como pior que aquele onde ela cresceu, o que fazer? “E se a escuridão que temos diante de nós, não for a escuridão da tumba (Tomb) e sim a escuridão do útero (Womb)? O que a parteira diz? -Respire e empurre! Porque se você não empurrar poderá morrer! Respire e empurre!”
Nota: este post inaugura uma série de pequenos relatos que pretendo realizar durante o período de pós-doc em Madrid. Mais informações sobre o projeto atual: http://wiki.pimentalab.net/index.php?title=Projetos_Pesquisa
A Plataforma Contra o Arco Mineiro do Orinoco, como espaço de articulação de ações dirigidas à anulação do Decreto Nro. 2248 “Arco Mineiro do Orinoco”, torna de público um comunicado tomando posição sobre a atual conjuntura, propondo soluções que apelem à democracia na Constituição vigente (de 1999).
Tradução para URUCUM de Giovanna Marra, o comunicado é de junho de 2017, original do espanhol aqui
O texto dá continuidade a série sobre Venezuela iniciada com texto traduzido aqui
Levando em conta a grave situação que atravessa o país, nós da Plataforma contra o Arco Mineiro decidimos pronunciarmos e nos posicionarmos frente fatos importantes da realidade:
a) Arco Mineiro do Orinoco: contempla um megaprojeto mineiro com 150 empresas transnacionais em uma zona que abarca 12% do território nacional. Uma zona econômica especial, que implica um secionamento da soberania, em que se restringem direitos políticos e sociais contemplados na Constituição, e que colocam em risco populações indígenas, a fonte hídrica mais importante do país, o fornecimento de 70% da eletricidade a nível nacional e toda a biodiversidade que contempla a região da Guiana, devido à ampla destruição social, cultural e natural que implicam as dinâmicas extrativistas das empresas mineiras no Mundo. Propomos: a derrogação do decreto 2248, a proteção de Zonas Virgens do Sul, um diagnóstico das empresas metalúrgicas e mineiras do estado, e uma discussão nacional para debater planos econômicos produtivos.
b) Mineração Ilegal: flagelo que atualmente envolve direta e indiretamente a centenas de milhares de pessoas. Os habitantes das zonas mineiras e pessoas que migram em busca de um maior ingresso, estão submetidos a um regime paraestatal administrado por grupos criminosos que controlam o desenvolvimento da atividade mineira a pequena escala. Esta dinâmica deparou-se em sintomas graves de decomposição social (massacres, fossa comuns), em uma devastação criminosa e contaminação acelerada dos principais rios do Sul, epidemias nacionais de paludismo e difteria, e condições de trabalho escravo para as dezenas de milhares de pessoas que trabalham nas minas a pequena escala. Propomos: um debate nacional entre todos os setores sociais do país e principalmente da região da Guiana sobre esta realidade e as possíveis soluções, a presença das instituições do estado para controlar os índices de violência, um plano de reordenamento territorial e de desmantelamento destes grupos garantindo mecanismos de controladoria cidadã para impedir violações de direitos humanos.
c) Contaminação Ambiental: o governo mantém uma política de silencio criminoso frente aos desastres ambientais que ocorrem continuamente no país, tanto para aqueles casos nos quais o estado é diretamente responsável, assim como em outros nos quais estaria indiretamente implicado. As gigantescas montanhas de coque de petróleo no complexo criogénico Jose Antonio Anzoátegui, os abusos da mineração ilegal, o caso da lagoa de lodos vermelhos de Bauxilum e o derrame petrolífero em Trindade e Tobago que atualmente contamina praias de Anzoátegui, Nova Esparta e Los Roques, são algumas das centenas de casos que vêm denunciando expertos na área ambiental. Propomos: tomar medidas de emergência imediatas para deter a contaminação acentuada que vem se desenvolvendo no pais, considerando as opiniões e propostas de ambientalistas que vêm lutando; assim como acatar o estabelecido na constituições e demais leis da república relacionados al tema.
d) Pagamento sustentado da Dívida Externa: nos últimos 3 anos foram pagos mais de 60.000 milhões de dólares ($) em Dívida Externa, implicando uma redução de mais de 60% das importações (inclui alimentos e medicinas), com respeito ao ano de 2012. Somado à isto, PDVSA vendeu Bônus a Goldman Sachs com um desconto de 60%, recebendo 865 milhões de $ e tendo que pagar a soma de 3556 milhões de $ no ano de 2022. Em outras palavras, o governo vem endividando fraudulentamente ao país à custa de que os venezuelanos tenham menos alimentos e remédios. Propomos: o fim do pagamento da dívida durante um lapso determinado, e realizar uma auditoria pública e cidadã para certificar que parte da dívida é real e que parte é ilegítima e ilegal.
É urgente abordar estes assuntos para deter a crise e buscar saídas viáveis ao lamaçal em que se encontra o país. É imprescindível que estes e demais pontos de importância nacional se debatam de maneira aberta, pública e respeitosa com todos os setores da população venezuelana, mais além das dirigências da polarização, o que vem a ser fundamental para avançar em saídas democráticas e pacíficas à crise.
Recebido por whatsapp (ainda não sei quem foi o tradutor)
O vídeo com o discurso de Angela Davis está neste link (a partir do tempo 3:20:54).
Angela Davis é um dos maiores ícones mundiais do feminismo e do movimento negro.
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Transcrição da fala de Ângela Davis na Reitoria da Universidade Federal da Bahia no dia 25.7.2017
Eu não tenho nem condições de expressar a vocês o quanto estou emocionada por estar aqui nesta noite. Para mim, é assim que deveria ser a aparência da universidade. Quero agradecer à Ângela Figueiredo, ao Odara. Quero agradecer também ao NEIM pelo convite para homenagear o dia 25 de julho. Essa é minha quarta visita a Bahia e sexta ao Brasil.
Neste momento, me sinto extremamente envergonhada por ainda não ter aprendido português. Esse é o meu próximo projeto. Estou muito feliz por estar aqui celebrando com vocês o Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha. Na Bahia, o Julho das Pretas. Estou muito entusiasmada por estar aqui no Brasil, especialmente porque tenho acompanhado os acontecimentos que vêm se desenvolvendo dentro do movimento das mulheres negras.
Me parece que, neste momento, o movimento das mulheres negras brasileiras representa o futuro do planeta. As mulheres negras brasileiras têm uma história extensa de envolvimento em lutas pela liberdade. Como tem sido simbolizado, por exemplo, pela Irmandade da Boa Morte. O conceito de Boa Morte nos convida a imaginar a imagem de um futuro melhor. Isso me leva a reconhecer as amplas contribuições das mulheres negras no Brasil e na Bahia no contexto da cultura religiosa.
Durante a minha visita, fui honrada com a possibilidade de atender uma oficina oferecida na Irmandade e também de passar um tempo na Roda de Samba da Dona Dalva. Tive a oportunidade de aprender sobre o trabalho de Dona Dalva na preservação do samba de roda. Recentemente ela recebeu um título de doutora honoris causa pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano.
Também tive a oportunidade de me encontrar e conhecer a Ebomi Nice. Quero também ressaltar que há alguns anos fui honrada com um convite para conhecer o terreiro de Mãe Stella de Oxóssi e me encontrar com ela, que me disse sobre seus esforços a fim de preservar a cultura e a religiosidade dentro das tradições baianas e que as mulheres negras estão no centro dessas tradições.
Como foi dito por Dulce Pereira, já venho ao Brasil desde 1997. Nunca vou me esquecer do encontro que ocorreu em outubro daquele ano, em São Luís do Maranhão. Tive a oportunidade de encontrar Luiza Bairros pela primeira vez. O espírito de Luiza Bairros continua presente. Também encontrei pela primeira vez Vilma Reis e tantas outras mulheres negras maravilhosas, as quais continuo a me encontrar todas as vezes que venho ao Brasil.
A atual visita, organizada pela professora doutora Ângela Figueiredo, foi um encontro organizado em um contexto mais amplo, um curso em Cachoeira sobre o feminismo negro decolonial. Quero agradecer a Ângela — toda vez que alguém chama por ela, eu também olho — por me convidar para voltar a Bahia várias vezes. As pessoas me perguntam se eu já fui ao Rio de Janeiro, a São Paulo. Não, mas eu venho a Bahia de novo, de novo e de novo.
Menciono essa escola porque ela reuniu estudantes negras do Brasil, América do Sul, África do Sul, Canadá, Estados Unidos e Porto Rico. Ao fazê-lo, produziu concepções importantes que poderiam não ter sido disponibilizadas se esse encontro não tivesse ocorrido. Todas nós, que tivemos a oportunidade de estar aqui, vindouras de outras partes do mundo, temos muita sorte de estar aqui neste momento, onde o ativismo de mulheres negras está em um nível elevado e pungente.
Como já foi dito e reiterado várias vezes, o movimento social liderado por mulheres negras é o movimento social mais importante do Brasil. Após o golpe antidemocrático que resultou na deposição de Dilma Roussef, as mulheres negras criaram a melhor esperança para este país. Muitas de nós, nos Estados Unidos, estamos entusiasmadas acompanhando a Marcha das Mulheres Negras no Brasil desde novembro de 2015. Nós continuamos a sentir as reverberações dessa Marcha. Agora estamos no Julho das Pretas.
Este é um momento difícil para o nosso planeta por vários motivos, mas, sobretudo, por termos uma guinada à direita na Europa, nos Estados Unidos, na América dos Sul e especialmente no Brasil. Não tenho nem como começar a explicar para vocês qual é o sentimento de morar nos Estados Unidos onde Donald Trump é presidente. Mas não devemos nos esquecer que, um dia após a posse de Trump, o movimento de mulheres levou para Washington três vezes mais pessoas que o número que participou da cerimônia de posse. Estima-se que mais de cinco milhões de pessoas participaram da Marcha das Mulheres contra Trump no mundo, inclusive na Antártida.
A Marcha das Mulheres em Washington foi liderada por mulheres negras, latinas, asiáticas, indígenas, muçulmanas, e também mulheres brancas. Nos encontramos em Washington, por todo o mundo e todos os países, para dizer que nós resistiremos. Todos os dias da presidência de Trump, nós resistiremos. Nós resistiremos ao racismo, à exploração capitalista, ao hetero patriarcado. Nós resistiremos ao preconceito contra o Islã, ao preconceito contra as pessoas com deficiência. Nós defenderemos o meio ambiente contra os insistentes ataques predatórios do capital. Aqui em Salvador, no dia 25 de julho, dedicado às mulheres negras na América Latina e no Caribe, afirmamos ainda de forma mais forte: com a força e o poder das mulheres negras dessa região, nós resistiremos.
Sabemos que as transformações históricas sempre começam com as pessoas. Essa é a mensagem do movimento Vidas Negras Importam (Black Lives Matter). Quando as vidas negras realmente começarem a ter importância, isso significará que todas as vidas têm importância. E podemos também dizer especificamente que, quando as vidas das mulheres negras importam, então o mundo será transformado e teremos a certeza de que todas as vidas importam.
As lutas das mulheres negras estão conectadas com as lutas de pessoas oprimidas em todas as partes. Com aquees que dizem “não” às políticas anti-imigratórias de Trump e à construção de seu muro. Com aqueles que dizem “não” ao apartheid e ao muro que separa Israel da ocupação Palestina. Com aqueles que dizem “não” ao racismo e à misoginia na Colômbia. Com aqueles que dizem não ao sistema de castas na Índia. Estamos em solidariedade com as mulheres Dalits em suas comunidades. Com aquelas que dizem “não” à violência cotidiana, doméstica e íntima, que incide sobre as mulheres negras e que, geralmente, são impostas a elas por homens negros.
Finalmente as mulheres negras têm sido reconhecidas pelo trabalho em manter as chamas da liberdade acesas. Não é o tipo de liderança que visa dar visibilidade ou poder a indivíduos, baseada em carisma, o individualismo masculino carismático. Mas é o tipo de liderança que enfatiza as intervenções coletivas e apoia as comunidades que estão em luta. A liderança feminista negra é fundamentalmente coletiva.
Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, reconhecemos a importância de confrontar a violência de estado. Enquanto o racismo está saturando todas as instituições — nas questões da moradia, do emprego, da saúde e da educação — e pode ser mais dramaticamente reconhecido nos sistemas policiais e punitivos. As mulheres negras têm liderado ações contra a violência do estado, a violência policial e o racismo dentro do sistema carcerário, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.
Tenho falado sobre a liderança das mulheres negras, mas eu deveria estar me referindo, na verdade, à liderança feminista negra. É necessário enfatizar a condição da mulher negra na perspectiva de gênero e de raça, reconhecendo que também está implicado nisso classe, sexualidade e gênero, para além da convenção binária. Nosso foco está nas mulheres negras empobrecidas, inclusive as que estão encarceradas, as queer, as trans, as com deficiência. Mas também estamos conscientes que não focamos na mulher negra a partir de um arcabouço separatista, porque as mulheres negras também estão se engajando nas lutas de outros grupos. Às vezes ao ponto de elas serem excluídas desses movimentos.
As mulheres negras estão entre os grupos mais ignorados, mais subjugados e também os mais atacados deste planeta. As mulheres negras estão entre os grupos mais sem liberdade do mundo. Mas, ao mesmo tempo, as mulheres negras têm um trajetória histórica que atravessa fronteiras geográficas e nacionais de sempre manter a esperança da liberdade viva. As mulheres negras representam o que é não ter liberdade sendo, ao mesmo tempo, as mais consistentes na tradição, que não foi rompida, da luta pela liberdade, desde os tempos da colonização e escravidão até o presente.
Lembremo-nos de Rosa Parks, que sempre enfatizou que queria ser lembrada como uma mulher poderia ser livre, de tal forma que todas as pessoas pudessem ser livres. Lembremo-nos de Lilian Ngoyi, líder do movimento anti-apartheid na África do Sul, que disse, em 1956, entre as suas irmãs: “Agora que atingiram as mulheres, vocês acionaram um trator e serão esmagados”.
Carolina Maria de Jesus nos lembrou que a fome deveria nos levar a refletir sobre as crianças e sobre o futuro muito antes de o conceito de interseccionalidade ser utilizado. Lélia Gonzales insistiu que não só deveríamos compreender a complexa inter-relação de raça, classe e gênero, mas que deveríamos ter em mente as conexões entre os povos indígenas e os povos negros. Essa são as lições que nós dos Estados Unidos precisamos aprender com a história do feminismo negro no Brasil.
O que me leva a levantar o próximo ponto. Existe, geralmente, a pressuposição de que a forma mais avançada de feminismo negro é encontrada nos Estados Unidos. É verdade que há muitas figuras norte-americanas reconhecidas pelo desenvolvimento do feminismo negro. Isso não deveria se dar pelo entendimento de que nos Estados Unidos estamos mais avançados. Essa é uma visão colonialista e imperialista. Na verdade, isso ocorre porque as ideias, sejam elas conservadoras ou radicais, circulam com mais facilidade a partir dos Estados Unidos do que as ideias que emanam do Brasil. Não posso me levar tão a sério assim. A meu respeito, gosto sempre de ressaltar que ninguém jamais conheceria meu nome se pessoas de todo o mundo, inclusive do Brasil, não tivessem se organizado para exigir minha liberdade, no princípio dos anos 70.
É verdade que cada uma dessas viagens que fiz ao Brasil têm me trazido novas perspectivas. Desde a primeira conferência de Lélia Gonzales, em 1997, no Maranhão, até a escola do feminismo negro decolonial da qual participei agora. A partir disso, passo a questionar o meu papel em trazer o conhecimento feminista negro para o Brasil. Passei a perceber que nós, nos Estados Unidos, somos aquelas que precisamos aprender com os conhecimentos e as perspectivas que são produzidas pela longa história de luta feminista negra brasileira.
Precisamos aprender sobre o poder feminista negro preservado dentro da tradição do Candomblé. Precisamos aprender sobre os movimentos organizados por mulheres negras trabalhadoras domésticas na Bahia e no Brasil. Tive o privilégio de conhecer Marinalva Barbosa, que é a presidente do sindicato de trabalhadoras domésticas da Bahia. Temos muito a aprender com a atividade dessas mulheres.
Nós ainda não conseguimos nos organizar de uma maneira bem sucedida através de sindicatos dessa categoria nos Estados Unidos, apesar do fato de que mulheres negras, trabalhadoras da limpeza, terem organizado uma greve em 1881, em Atlanta, na Geórgia. Mesmo apesar do fato de que nos anos 20 e 50 tenham havido esforços, que não tiveram sucesso, de organizar sindicatos dessa categoria. Não é uma coincidência que Alicia Garza seja uma das mulheres co-fundadoras do movimento Vidas Negras Importam. Mesmo assim, ainda não temos um sindicato de trabalhadoras domésticas.
Deixem-me compartilhar com vocês algumas palavras sobre o complexo industrial carcerário. O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, estou correta? Sendo a primeira nos Estados Unidos e depois vêm Rússia e China. Os Estados Unidos está aprisionando um quarto da população carcerária de todo o mundo. Se olharmos para a população carcerária feminina, um terço está encarcerada nos Estados Unidos.
Se tivéssemos tempo esta noite, poderíamos falar mais aprofundadamente sobre como essa população carcerária reflete o capitalismo global e como esse sistema negligencia as necessidades humanas. Essas pessoas não tem acesso a moradia, educação, saúde ou qualquer outro serviço que seja necessário para a sobrevivência. A rede carcerária mundial constitui um vasto depósito onde pessoas consideradas desimportantes são descartadas como lixo. Aquelas tidas como as menos importantes são as pessoas negras, do sul global, muçulmanos e muçulmanas, indígenas.
Quando nós trabalhamos e lutamos contra a violência do estado manifestada através de práticas policiais e de encarceramento, afirmamos que as vidas negras importam, que as vidas indígenas importam. A professora Denise Carrascosa, aqui da UFBA, tem liderado um projeto de mulheres dentro do sistema carcerário chamado “Corpos indóceis e mentes livres”, um projeto entusiasmante que reune mulheres encarceradas de tal forma que elas possam dramatizar as suas realidades, as suas vidas.
Esses são os tipos de projeto inovadores que produzem conhecimentos feministas sobre a relação entre a liberdade e a falta de liberdade. Acabei de ser informada que a professora Carrascosa tem sido impedida de entrar no complexo penintenciário feminino porque ela se juntou a outras encarceradas para protestar contra o tratamento punitivo aplicado a uma mulher que foi trancafiada, sendo-lhe negado o uso de medicamentos pós-operatórios.
Em função da professora Carrascosa ter levantado a sua voz, seu projeto, que já dura sete anos, foi barrado. O que vocês farão em relação a essa situação? Quero sugerir que vocês peçam a cada uma das pessoas aqui presentes para assinar uma petição exigindo que esse projeto seja reincorporado. Sabemos que nos últimos dez anos houve um aumento de 500% na taxa de encarceramento de mulheres e que dois terços de todas as mulheres que estão encarceradas no Brasil são negras.
Isso me leva aos meus últimos dois pontos. Um deles é a questão da reprodução da violência. Nós não podemos excluir a violência doméstica e íntima das nossas teorias sobre a violência do estado e institucional. Frequentemente, agimos como se uma não tivesse relação com a outra e que, se as mulheres negras são vítimas dessa violência cotidiana praticada por seus maridos e namorados, isso significa que os homens e garotos negros são violentos. Como podemos refletir sobre isso?
Nós precisamos nos perguntar qual é a fonte dessa violência que prejudica e fere tantas mulheres negras. Qual é a relação dessa violência com a violência policial e do sistema carcerário? Se essa violência do indivíduo está conectada com a violência institucional e do estado, isso significa que não conseguiremos erradicar a violência doméstica enviando aqueles que a praticam ao sistema carcerário. Se desejamos erradicar as formas mais endêmicas de violência do indivíduo da face da Terra, então devemos eliminar também as fontes institucionais de violência. Este é o chamado para a abolição do encarceramento como a forma dominante de punição para pensarmos novas formas de abordagem para aqueles que são violentados. Este é o chamado do feminismo negro para formas de justiça decoloniais.
Meu último ponto diz respeito aos contantes esforços para conter nossa resistência. Quando nós resistimos, as instituições dominantes e, sobretudo, o estado, tentam conter a nossa resistência. Querem transformar as nossas lutas, em estratégias de consolidação do estado. O movimento pelos direitos civis é agora é reivindicado pelo estado como central em suas narrativas sobre a democracia. Mas o movimento Vidas Negras Importam, principalmente na era Trump, é considerado um insulto.
No Brasil, agora que o mito da democracia racial foi totalmente exposto, a pergunta que se apresenta é se o movimento de resistência das mulheres negras pode ser apropriado. Afirmamos que, na medida em que nos levantamos contra o racismo, nós não reivindicamos ser inclusas numa sociedade racista. Se dizemos não ao hetero-patriarcado, nós não desejamos ser incluídas em uma sociedade que é profundamente misógina e hetero-patriarcal. Se dizemos não à pobreza, nós não queremos ser inseridas dentro de uma estrutura capitalista que valoriza mais o lucro que seres humanos.
Se reconhecermos que aqueles que queriam resolver a questão da escravidão buscavam formas mais humanas de escravização, nós estaremos utilizando a lógica do racismo. Reconhecemos que a reivindicação da reforma do sistema policial e da reforma do sistema carcerário apenas mantêm as estruturas racistas ao mesmo tempo em que finge se importar com as questões raciais.
É por isso que dizemos não ao feminismo carcerário e sim ao feminismo abolicionista. É por isso que nós convocamos essa solidariedade para além das fronteiras nacionais e ressaltamos que o feminismo radical negro decolonial reconhece as nossas profundas conexões, mesmo a medida em que reconhecemos também nossas contradições.
A luta pelo acesso à agua no Quilombo Rio dos Macacos vem sendo rotulada como “terrorista”. Tenho aqui em minhas mãos um apelo que vêm do Quilombo Rio dos Macacos relacionada aos seus direitos humanos de acesso à terra e à água que lerei após o evento. Mas o que eu quero dizer é que as lutas que acontecem dentro dessa comunidade estão conectadas às reivindicações para a proteção da água por populações indígenas contra o veneno trazido pelos dutos de petróleo.
Essas lutas estão conectadas também aos esforços que ocorrem em Flynn, Michigan, em expor o envenenamento das águas nas comunidades negras. Essas lutas também estão conectadas com as das comunidades palestinas, engajadas em defender as suas reservas de água, alvo constante das forças militares de Israel. Somente através da solidariedade e da luta, nós poderemos preservar o nosso acesso a água.
Quilombolas, presente!
Finalmente, quero salientar a minha alegria em estar aqui com vocês no Brasil, Bahia, Salvador, celebrando o Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha. Mulheres negras representam o futuro. Porque mulheres negras representam uma possibilidade real de esperança na liberdade.
Originalmente publicado em: http://www.buala.org/pt/vou-la-visitar/brasil-brasa-chama-algumas-notas-sobre-a-situacao-politica-brasileira
Para Marco Aurélio Garcia, militante e intelectual internacionalista / in memoriam
fora todos
Desde 2013 e seu junho disruptivo, o sistema político brasileiro está num processo de gradual perda total de legitimidade. O atual momento (de um presidente ilegítimo e com aprovação popular praticamente inexistente[3]) representa por ora o ápice desseque se vayan todos contínuo de quatro anos, bem diferente do caso clássico e incisivo argentino que, em 2001, derrubou vários presidentes em poucos dias a partir de fortes mobilizações de rua[4]. Ao medo de todos pertencentes aos poderes constituídos em junho de 2013, sucederam tentativas de captura e esperanças de muitos que esse acontecimento fosse passageiro – a crise política, no entanto, persistiu e se agudizou.
Alguém, no entanto, vai se eleger em 2018 (se houver eleições) e essa pessoa virá de algum canto: do partido da justiça, da Globo ou da mídia, dos bancos, do sistema político moribundo (Geraldo Alckmin, Marina Silva[5]) ou alguma surpresa. Nesse sentido, vale perguntar se a Lava Jato é uma exceção para atingir o PT e alguns poucos mais (Eduardo Cunha, Sergio Cabral[6]), pois boa parte da casta política está aí, inquieta mas ainda relativamente intocada, tentando se segurar e abafar a Operação (como Temer e Aécio[7], dentre outros). Vale questionar igualmente que economia resiste a investigações a fundo, via delações premiadas, de seus vínculos com o sistema político, das relações entre elites política e econômica (e até militar)? Imaginam isso ocorrendo nos EUA do complexo industrial-militar ou na França da antiga petroleira ELF e seu papel nas conexões com o continente africano (Françafrique)?
Qual a originalidade brasileira nesse contexto? É o país mais corrupto que todos os demais? A venda de decisões governamentais, promiscuidades entre “público” e “privado” e a corrupção da democracia seriam uma exclusividade nacional? Por que aqui assumiu essa dimensão[8]? Além disso, a limpeza por ora se limita a um setor bem específico do capitalismo brasileiro, as empreiteiras. Setores com suspeitas de mal-feitos como grandes grupos de comunicação e bancos estão por ora fora do leque investigativo e punitivo e temores destes se fizeram notar no processo de negociação da delação premiada de Antonio Palocci, ex-ministro de Lula e Dilma. Ademais, fica pendente uma investigação mais apurada sobre questão do “elemento externo”, acerca do papel dos EUA e suas agências nesse processo – talvez futuros vazamentos (leaks) ajudem também nessa empreitada.
\’As instituições políticas representativas estão derretendo\’. foto de isidro martins\’As instituições políticas representativas estão derretendo\’. foto de isidro martins
choque
A ativista e pesquisadora Naomi Klein já pode acrescentar mais um estudo de caso ao seu importante livro (esgotado no Brasil)[9]. Um choque-golpe em forma de impeachment sem crime de responsabilidade, governo temerário e restauração neoliberal na seguinte agenda: drástica contenção dos gastos públicos, mudança na legislação do pré-sal favorecendo o capital estrangeiro, reorientação da política externa, o liberou-geral da terceirização, mudanças nas regras da aposentadoria, ataque aos povos indígenas, desmonte das políticas culturais, diminuição dos beneficiários do Bolsa Família, aumento do desmatamento, intensificação da repressão aos movimentos sociais e uma série de descalabros que poderiam compor uma lista quase interminável. Entramos num buraco cada vez mais fundo – o abismo nos espreita – e o Estado do Rio de Janeiro é o retrato da calamidade (pública), ao não conseguir honrar mais compromissos mais básicos (manutenção mínima da infra-estrutura social, pagamento dos servidores), que pode atingir rapidamente o país como um todo.
Crise política, social (mais de dez milhões de novos desempregados em dois anos, a fome retornando e as desigualdades voltando a se acentuar) e econômica (recessão, economia em frangalhos). As reformas trabalhista e da previdência como continuidade, desdobramento e motivação do golpe; nenhuma eleição chancelaria tal programa. Temos um sistema sem nenhuma legitimidade (e sem o crivo das urnas) aprovando reformas importantes e impopulares (em vários sentidos)[10]. Mesmo a queda de Temer não breca as reformas, já que ele se fragiliza justamente ao gastar boa parte do tempo e energia em defender-se das graves denúncias de corrupção que sofre, diminuindo o ritmo de aprovação dessas mal-chamadas reformas.
Creio que Temer não deve terminar seu mandato usurpador, mas de alguma forma, isso pouco importa: entrará outro (Rodrigo Maia[11]) em eleições indiretas e buscará efetivar essa obsessão golpista pela retirada de direitos dos trabalhadores e dos de baixo, junto com a continuidade do Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles[12]. Até termos eleições diretas? Ninguém pode ter certeza que haverá eleições no ano que vem (previstas para outubro de 2018). Não é difícil vislumbrar mais um golpe no golpe, que pode tomar a forma de impedir a candidatura Lula, da adoção abrupta do parlamentarismo, adiamento do pleito ou qualquer outra manobra. É significativo para compreender nossa situação o fato do sistema não ter suportado nem mesmo um programa moderado de mudanças. Na justiça de exceção que se manifesta continuamente no país e agora atinge Lula em sua injusta e absurda condenação em primeira instância a uma pena de quase dez anos por um imóvel que ele não possui e visitou uma vez – de outra forma e numa intensidade bem distinta em relação ao emblemático caso do Rafael Braga[13], pode-se dizer que Lula foi tornado preto (ou seja permanentemente condenável sem provas).
\’Entramos num buraco cada vez mais fundo – o abismo nos espreita – e o Estado do Rio de Janeiro é o retrato da calamidade (pública)\’. foto de isidro martins\’
lutas
Vivemos uma insatisfação altíssima (e uma esmagadora maioria apoia eleições diretas imediatas, de acordo com as pesquisas[14]), mas sem expressão contundente nas ruas. É certo que tivemos atos fortes na greve geral do 28 de abril e no ato em Brasília do dia 24 de maio[15], mas essas belas jornadas não tiveram continuidade nem lograram manter a pressão. Ocorrem várias mobilizações militantes sim, mas que penam em chegar nas “pessoas comuns”. Se o governo ilegítimo e seu mundo permanecem de pé (ainda que cambaleantes – até quando?), tudo indica que revoltas mais fortes estão por vir, inclusive por conta da deterioração das condições de vida da população. As crises tendem a piorar[16].
A isso se soma um fato curioso: um sistema em crise e sem uma esquerda fazendo uma crítica radical a ele. Viveríamos um cenário de terra arrasada? Apesar da situação adversa e difícil, temos muita luta no Brasil – trata-se, certamente, de um dos países com movimentos mais fortes. Desde o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)[17], sua Escola Nacional Florestan Fernandes (um belíssimo caso de educação popular) e todos os movimentos do ciclo de lutas que se inicia no fim dos anos 1970 ao surgimento de novas iniciativas subversivas. Podemos nos referir tanto ao fortalecimento (apesar do etnocídio nunca interrompido) dos coletivos indígenas e à exuberância LGBT, secunda, feminista e negra, quanto à uma miríade de experiências, urbanas e rurais (festas, hortas, saraus, ocupações variadas). Uma periferia bombando política, cultura e existencialmente. Um novo imaginário radical com tintas de autonomia de variadas intensidades. Podemos pensar numa cartografia selvagem conectando essas múltiplas terriorialidades: desde os territórios indígenas (que compõem 12% do país) aos ditos tradicionais (quilombolas e outros) aos quais se juntam ocupações de terra, prédios, locais de trabalho, cultura. Como conectar, fortalecer o apoio mútuo desse tecido organizativo subversivo, suas territorialidades livres e conexões numa infra-estrutura da vida?
Transição. Dissemos acima que o sistema político brasileiro está em xeque desde 2013. Isso também significa que um novo ciclo de lutas também se inicia nesse contexto; do país e da esquerda. O anterior (iniciado no fim dos anos 1970 e do qual os governos petistas são um desdobramento institucional e moderado) produziu uma série de “entidades agregadoras” (Partido dos Trabalhadores (PT), Central Única dos Trabalhadores (CUT), MST e outras mais). Hoje vivemos esse nó, um desafio de política-criação, de articulação das diferenças que as duas frentes de partidos e movimentos existentes (a Brasil Popular, puxada por MST, CUT e PT, e a Povo sem Medo, capitaneada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST) não conseguem efetuar ou só o fazem de forma (infelizmente) bastante limitada – deixam muitas ricas lutas de fora.
Nesse contexto, Lula permanece o principal personagem político do país desde 1989 e deve continuar ainda nesse posto por um tempo, mesmo se não puder ser candidato nas eventuais eleições do próximo ano. Político de maior aprovação popular apesar de todos os ataques, Lula mostra uma excepcional resiliência. Ontem e hoje, apresenta-se como problema e como solução. Ontem, personificou um ponto de convergência para boa parte da esquerda e ponto de referência para a população e os de baixo, mas também abafou experiências alternativas dessa mesma esquerda. Hoje, pode ainda representar um freio a um avanço (em curso?) da extrema-direita (seu candidato, o deputado Jair Bolsonaro alcança 20% nas pesquisas para as presidenciais) e contra o apetite arrasador da restauração neoliberal, mas é também um problema, pois ele não parece levar em conta (e isso, apesar da candidatura posta para 2018) as novas subjetividades e aspirações nem apresenta um esboço de programa para as atuais condições. Acaba, assim, colocando a discussão no terreno das eleições de 2018 e ainda numa chave de debate empobrecida, que talvez subestime os perigos da conjuntura atual[18].
\’Apesar da situação adversa e difícil, temos muita luta no Brasil – trata-se, certamente, de um dos países com movimentos mais fortes\’. foto de isidro martins\’Apesar da situação adversa e difícil, temos muita luta no Brasil – trata-se, certamente, de um dos países com movimentos mais fortes\’. foto de isidro martins
Como seguir nesse momento? Isso envolve, a meu ver, múltiplas dimensões de (re)construção e composição paciente e conjunta, sem atalhos artificiais:
– um novo programa, no qual pelo menos três pontos me parecem fundamentais: a defesa da vida (o fim da contínua necropolítica brasileira) e a descolonização do país, uma radical reformulação do sistema político e uma economia do comum[19] – para além do nacional-desenvolvimentismo que muitas vezes parece ser a única proposta das esquerdas nesse campo;
– aliar-se em questões concretas, lutas pontuais e urgências, alianças pragmáticas para o fim das matanças, do encarceramento em massa, para o alívio imediato da pobreza, miséria e desemprego (que regressam com força);
– criar confluências e coalizões que articulem de verdade classe e diferença. Parece que os seus adversários percebem melhor tais conexões que as próprias esquerdas – Huntington e seus parceiros temiam o fortalecimento da participação, protestos e organizações de “negros, indígenas, chicanos, estudantes e mulheres” e suas demandas/lutas nos anos 1960[20], enquanto um deputado gaúcho, presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, julga que “quilombolas, índios, gays, lésbicas, tudo que não presta”[21] estariam influentes demais no então Governo Federal de 2013;
– constituir mais espaços de encontro (territorialidades livres, existentes e por vir) e debates (revistas, mídias variadas, peças/filmes/vídeos) – formação e auto-formação.
Tudo isso com a obsessão de chegar nas pessoas comuns e questões do cotidiano, multiplicando as experiências, tentativas e perguntas coletivas.
NOTAS
Agradeço os comentários de Sebastião Neto, Ramon Szermeta, Alana Moraes e Rita Natálio (de quem partiu a ideia desse texto).
[3] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/06/1895650-maioria-dos-brasileiros-pede-saida-de-presidente.shtml e http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/06/1895645-aprovacao-da-gestao-temer-cai-a-7-menor-em-28-anos.shtml
[4] No preciso paralelo feito por Ramon Szermeta: “enquanto na Argentina em 2001 um martelo se abateu sobre todo o sistema representativo causando um terremoto e produzindo um efeito de castelo de cartas, no Brasil, ao contrário, o efeito mais se assemelha ao de cupins corroendo diária e lentamente o que ainda havia de credibilidade das instituições em todos os níveis, numa ação que originalmente havia sido programada para atingir exclusivamente o governo, seu partido e sua base de sustentação e se espalhou atingindo a todos”.
[5] Respectivamente, atual Governador de São Paulo, do PSDB, e ex-senadora e ex-ministra, duas vezes candidata à Presidência, da Rede.
[6] Respectivamente, o ex-presidente da Câmara dos Deputados e o ex-Governador do Rio de Janeiro; ambos do PMDB e encarcerados.
[7] Senador e Presidente do PSDB, perdeu a última eleição presidencial para Dilma Rousseff.
[8] Sobre a Operação Lava Jato, vale muito a pena ler de Bruno W. Reis “A Lava-Jato é o Plano Cruzado do combate à corrupção”. http://novosestudos.uol.com.br/a-lava-jato-e-o-plano-cruzado-do-combate-a-corrupcao/ (agradeço a indicação de leitura de Vera Telles).
[9] Naomi Klein. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro, Record, 2008.
[10] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/05/1880026-71-dos-brasileiros-sao-contra-reforma-da-previdencia-mostra-datafolha.shtml e http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2017/05/1880398-maioria-rejeita-reforma-trabalhista.shtml
[11] Atual presidente da Câmara dos Deputados, do DEM, primeiro na linha sucessória.
[12] http://midianinja.org/guilhermeboulos/meirelles-e-a-falencia-da-democracia/
[13] Jovem catador negro, preso no dia 20 de junho de 2013 no Rio por portar duas garrafas com produtos desinfetantes nesse dia da maior manifestação (na qual ele nem tinha participado). Foi condenado a mais de cinco anos de prisão por estar portando esse produtos perigosos. Depois de conseguir, devido à progressão da pena, sair da prisão com tornozeleira eletrônica, a Polícia Militar o acusou, em outro episódio, de tráfico emputando a ele o porte de drogas. Foi condenado a 11 anos de prisão. Seus advogados recorreram e mobilizações buscam impedir mais essa brutal injustiça. Para saber mais, veja: https://libertemrafaelbraga.wordpress.com/about/, http://midiacoletiva.org/documentario-rafael-braga-o-homem-que-foi-condenado-por-porte-de-pinho-sol/ e http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/na-historia-de-rafael-braga-retrato-de-nosso-judiciario-racista/
[14] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/04/1879861-com-rejeicao-a-temer-de-61-85-defendem-eleicao-direta-diz-datafolha.shtml
[15] Sobre esse ato em Brasília, ver os relatos de Gavin Adams (https://urucum.milharal.org/2017/05/24/historia-em-pedacos-brasilia-24-de-maio/) e de Henrique Rocha (https://m.facebook.com/henrique.rocha.9404?fref=nf&refid=52&__tn__=C-R).
[16] Acerca dessa questão, uma boa entrevista do coordenador do MTST, Guilherme Boulos: https://www.conversaafiada.com.br/tv-afiada/boulos-a-revolta-e-subterranea-num-barril-de-polvora
[17] No dia 25 de julho, o MST protagonizou a Jornada de Luta pela Reforma Agrária, a partir do lema “Corruptos, devolvam nossas terras!”, ocupando fazendas de um amigo e assessor de Michel Temer, de Ricardo Teixeira (ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol) e a Base de Alcântara, no Maranhão, a respeito da qual o governo golpista negocia utilização pelos EUA: https://www.brasildefato.com.br/2017/07/25/mst-realiza-serie-de-ocupacoes-durante-jornada-nacional-de-luta-pela-reforma-agraria/
[18] Ler a interessante análise de Juarez Guimarães: http://www.sul21.com.br/jornal/nao-ha-nada-mais-desmobilizador-hoje-do-que-2018-entre-nos-e-2018-ha-um-abismo/
[19] Um exemplo talvez pioneiro que se aproxima disso, vindo do Equador, FLOK/Buen conocer: modelos sostenibles y políticas públicas para una economía social del conocimiento común y abierto en Ecuador. http://book.floksociety.org/ec/
[20] Michel Crozier, Samuel P. Huntington e Joji Watnuki. The Crisis of Democracy: report on the governability of democracies to the Trilateral Commission. New York University Press, 1975 (p. 61).
[21] http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2014/02/em-video-deputado-diz-que-indios-gays-e-quilombos-nao-prestam.html
de: Sebastião Neto
O Marco Aurélio que conhecemos
Para Pereirinha[1], Pedro Pereira Nascimento, que também se foi hoje e não pode ficar para hora extra
1979, a ressaca da Greve dos Metalúrgicos da capital, aquela em que mataram o companheiro Santo Dias e prenderam no domingo a noite mais de 300 lideranças e ativistas. A mobilização não foi impedida. A Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSM-SP) tinha faro de classe, percebeu a temperatura nas fábricas, obrigou a diretoria a alugar subsedes em 10 dias, organizou a greve a partir de COMANDOS.
Elegeu o Pereirinha na massa como coordenador das negociações. A greve foi histórica. Pouca gente leva em conta essa greve e a de 78 na capital quando fala em novo sindicalismo. Talvez porque ainda não enxergaram o que se tecia dentro das fábricas na escuridão da ditadura,talvez ainda ofuscados pelos holofotes da abertura democrática. Organizar os GRUPOS DE FÁBRICA, fazer formação e levar a reflexão (ver – julgar – agir – e viva Rossi e tod@s da JOC), fazer ver que os pelegos eram agentes, mas o problema era a ESTRUTURA SINDICAL.
Se escondendo de diretores do Sindicato que eram colaboradores do DOPS da ditadura[2]; conquistando CIPAs, mudando de emprego, de região. Foi uma grande greve e o cortejo com o corpo de Santo Dias emocionou e envolveu a cidade. A classe operária de 1917, das greves dos anos 50 e 60 mostraram à cidade a sua cara. Na ressaca dessa greve, a gente contabilizava muito mais de 100 demitidos. Tínhamos a lista dos militantes, região por região. Chutando, eram perto de 200 identificados. Fora os milhares de grevistas que foram punidos.
Em 78, o Brasil tinha conhecido a greve das \”Comissões de Fábrica\”. Foram mais de 200 Comissões que brotaram. Como a Oposição Metalúrgica puxou duas greves tendo contra a diretoria do Sindicato? Todo mundo queria saber quem era esse movimento. Em 78, as eleições foram fraudadas, anuladas e o ministro do Trabalho simplesmente deu posse aos pelegos. Anízio Batista, nosso candidato a presidente, volta ao trabalho paciente de organizar pela base. Lembrem: Santo era o candidato a vice na chapa de 78 (ver o filme Braços Cruzados, Máquinas Paradas, do Robert Gervitz. E rever!).
Pois bem, nesse cenário de terra arrasada, os ânimos continuavam altos. As Associações de Trabalhadores (futuras sedes das CUTs zonais) lotadas de piqueteiros desempregados e de trabalhadores das fábricas ganhos para a luta. Decidimos fazer um curso de formação profissional e com muita formação política. Boa parte desses metalúrgicos tinham baixa qualificação e uma luminosa vontade de liquidar a pelegada e fazer uma revolução. As mulheres não tinham acesso a nenhuma ocupação qualificada. As nossas militantes foram ter formação profissional dada por nós mesmos. Uma mulher conseguir ser reconhecida na fábrica como trabalhadora qualificada era uma guerra inglória.
Procuramos quem podia ajudar. A Maria Nilde Mascellani, através da RENOV, conseguiu um dinheiro para comida e transporte e nos repassou sem frescuras, com autonomia. E se dispôs a coordenar o curso para os desempregados.
O local foi o atual CPA -Centro de Profissionalização de Adolescentes na Ragueb Chohfi, em São Mateus, que tinha bancadas, tornos, uma fresadora, uma plaina e espaço pra aulas e reuniões. E estava sem atividades durante o dia. Ponto pra gente.
O padre Hugo cedeu às oficinas, um pouco ressabiado. A OSM-SP era um puta movimento, mas eram uns cabeças duras….O sangue irlandês dele se irmanou na rebeldia. Conseguimos o divisor da fresadora no Jardim Ângela (Jd.Thomaz) de outro curso que estava desativado… Mota e eu demos todas as garantias e explicações e, claro, devolvemos alguns cursos depois. A Maria Nilde era a nossa \”diretora\”. Fazia a liga. A equipe era Kopcak, Scapi, Maria Antonina, Paulo de Tarso Venceslau; dos metalúrgicos, Vito e Neto. O craque da mecânica nas oficinas era o Mota. E a gente mesmo dava as aulas profissionalizantes.
Tudo muito coletivo, dinheiro contadinho, miserê danado, mas todo mundo comia e tinha condução. Gente de todas regiões. Critérios de admissão discutidos e votados naquela nossa cultura assembleária e conselhista. Nos acusavam, santa ignorância, de anarcosindicalistas (!!!). Visto hoje, é um elogio.
…
Sabem a história do encontro do pensamento elaborado com os proletários? O Marco Aurélio tem a ver com isso.
Professores? Além da Nilde, que parecia uma fada que arrumava soluções e puxava a orelha da nossa rudeza a cada dia, mais esses da coordenação e os catedráticos, por assim dizer, foram Éder Sader e Marco Aurélio Garcia e, de quebra, o professor visitante Chico de Oliveira. Chico falava imperturbável, sereno um par de horas enquanto fazia um círculo de guimba de cigarros aos seus pés. Tinha uma decisão coletiva de não fumar nas salas – e um acordo tácito de deixar quieto porque ele ensinava muito.
A gente era turro, mas não era burro. Um clima de vida socialista no curso. Comida coletiva, transparência nas contas, muita literatura revolucionária. E muita cultura e diversão. Porta de fábricas nas madrugadas e dia inteiro de aulas e convivência. Cada turma de quatro meses assim. Amizade e companheirismo que duram até hoje. Imaginem um racha de futebol na hora do almoço e naquela disputa o cuidado de não machucar o Éder Sader que era hemofílico, mas fazia questão de jogar.
Esses anos todos tenho dito que, dos professores, o mais sério e preocupado em interagir com os alunos foi o Marco Aurélio. Nos levava muito a sério. As aulas eram preparadas, a gente percebia. Discutíamos os temas, a grade, os objetivos da formação e ele cumpria.
Para ele, era uma vida louca no seu fusquinha. Campinas, São Paulo, Pinheiros, São Matheus. 30 km do centro, trânsito do cão… E algumas poucas vezes ainda tinha a delicadeza de conversar na sua casa, onde não tínhamos noção clara de quem era a Beth Lobo, da sua importância, nem mesmo a do próprio Marco. Era um apoiador, como chamávamos quem não era metalúrgico, numa esquerda que queria revolução e não apenas o jogo institucional dito democrático. Pra gente tava de bom tamanho.
Tivemos aulas de Manifesto Comunista com o Florestan Fernandes para a incrível vanguarda do MOSMSP na Zona Sul (salve Silva! salve Chico Gordo,salve Tranca e tant@s outr@s). O professor Florestan (lembra a Nadine) dizia: \”tem três questões centrais no Manifesto…\”, e a peāozada anotava, entendia e discutia. E repete até hoje. Enfim, não tínhamos a dimensão do que fazíamos. Tínhamos uma percepção do rumo.
Quando soubemos do enfarte dele, matamos a charada. O Marco vivia estafado. Era um cara da revolução, da militância e do rigor téorico. Aquela bela foto grande na parede dum severo Trotsky que tinha em casa não era por acaso.Tinha pouco mais de 40 anos quando teve um problema no coração. Talvez a abreviação da vida dele agora tenha a ver com isso.
Só o vi ocasionalmente depois que virou governo. Por acaso, em aeroportos. Mas o mesmo cara afável, do “apareça para conversar” e dava o celular, não se escondia atrás das telefonistas no Palácio. Sempre retornou. Delegações da Toscana. Emilia-Bologna, Veneto, Andalucía, crise da Parmalat, tudo que organizamos e tentamos teve seu incentivo e apoio. Deu apoio ao Fórum Mundial do Trabalho em Barcelona, organizado pelo Oriol Homs, que o IIEP fez a agenda aqui no Brasil, viabilizou o Graziano ministro ir, e foi também.
É vero que tudo isso deu em nada. A inépcia governamental em cada ministério liquidou essas cooperações. Faz parte do LIVRO DAS OPORTUNIDADES PERDIDAS. Na semana que mataram o Tiro Fijo, me encontrei com ele por acaso e dei uma reclamada. Deu risada e sem ironia me disse: “vou te contar que é muito pior do que você reclama”. E dizia: “vamos conversar, vamos resolver”.
Como navegou nos governos Lula e Dilma? Não sei. Só conheço o que é público. Sei que fez um esforço monumental. Quando antes secretário de relações internacionais do PT, sempre se podia conversar com ele sem muitas prosopopeias, sem gente vigiando horários. Ele desfiava análises sobre cada país da América Latina; apontava cenários. Era o cara pra dirigir a coisa. O formulador… Porque não lhe deram poder-poder eu não sei.
Por último, Marco Aurélio ensaiou analisar as lutas operárias2. Outras tarefas o ocupavam. É um pensamento inconcluso no tema. Metalúrgicos de São Paulo x Metalúrgicos de São Bernardo objeto de tanta análise ligeira, mas o texto dele tem rigor conceitual. Transcrevo uma parte:
\”Uma visão imediatista e, por vezes, superideologizada dos processos em curso em São Bernardo e São Paulo, apresentava o primeiro como exemplo negativo de concessão ao sindicalismo oficial e o segundo como paradigma de sindicalismo independente, construído pela base, a partir das comissões de fábrica.
A realidade era bem diferente. São Bernardo, sobretudo a partir de 1979, começara a organizar suas ações utilizando centralmente o espaço sindical oficial (a greve saindo da fábrica e se transferindo para o estádio), o que poria em evidência, e de forma dramática, os limites mesmos do sindicalismo atrelado, mesmo quando ocupado por uma liderança combativa. A particularidade é que não só a liderança compreende estes limites, mas o próprio movimento passa a senti-los.
Por outro lado, apresentar a Oposição Sindical de São Paulo como estruturada essencialmente a partir das Comissões de Fábrica significava passar para a realidade o que estava ainda nas intenções.
Não é verdade também que a O.S.M.S.P. tivesse um desprezo olímpico pela intervenção no espaço sindical. A campanha salarial (e a greve) de 1979 mostrou a vitalidade da oposição (a despeito da derrota do movimento) e sua capacidade de servir-se inteligentemente da estrutura sindical nas mãos de Joaquinzão.
Na raiz desta tentativa de opor apressadamente São Bernardo a São Paulo está o vício de confrontar abstratamente duas experiências, sem levar em conta as condições de possibilidade de cada uma delas. Não é preciso ser especialista em movimento operário para constatar as profundas diferenças entre as categorias dos metalúrgicos de São Paulo e São Bernardo. Estruturas industriais radicalmente distintas, histórias sindicais próprias, enfim, um sem número de particularidades acabaram por distanciar política e organizacionalmente experiências que se encontravam tão próximas geograficamente, o que não quer dizer, no entanto, que não seja possível e até mesmo fértil a análise comparativa de ambas. Esta comparação passa, no entanto, pelo confronto das representações que o movimento foi produzindo num e noutro caso com as respectivas realidades destes movimentos.\”
O Marco Aurélio Garcia retratado na grande imprensa hoje não é o que conhecemos. Na vida de cada revolucionário que nunca saiu da trilha há muitas fases. Muitos descobriram hoje que Marco Aurélio foi vereador pelo PCB. Poucos sabem da sua militância no Chile. Muitos o conheceram exilado em Paris. Muitos lembram do Marco Aurélio do Em tempo, do Arquivo Edgard Leuenroth, das secretarias da cultura… Nós o conhecemos como um dedicado e brilhante intelectual revolucionário, absolutamente solidário com uma peãozada que se construía como classe.
Hasta siempre!
[1] Militante histórico da Ação Popular (AP), baiano. Em toda a história do enfrentamento com os pelegos, foi o único metalúrgico da Oposição Sindical eleito para coordenar as negociações com os patrões, durante a greve de 1979
[2] A cooperação da diretoria dos Metalúrgicos de São Paulo com a repressão política e a lista dos 334 presos em 79 está no livro Investigação operária: empresários, militares e pelegos contra os trabalhadores, publicado pelo IIEP em 2014.