por: Alana Moraes
Isabelle Stengers há tempos vem apontando para a \”intrusão de Gaia\” como acontecimento que produz deslocamentos radicais na relação dos humanos com a Terra viva. Isso porque, ela segue, os Modernos elaboraram dois modos preferenciais de se relacionar com a Terra: alguns consideraram que ela era um recurso a ser explorado infinitamente, outros que era preciso \”protege-la\”, \”preserva-la\” como uma \”boa mãe provedora\”. Mas ela nunca foi enxergada como portadora de um poder assustador, incontrolável, destruidor e decisivo.
\”Ofendida , Gaia é indiferente à pergunta “quem é responsável?” e não age como justiceira (…) Teremos que responder incessantemente pelo que fazemos diante de um ser implacável, surdo às nossas justificativas. Um ser que não tem porta-voz, ou, antes, cujos porta-vozes estão expostos a um devir monstruoso\”
Pois então, o vírus é a intrusão dessa Gaia-criatura viva e furiosa que nos faz lembrar de um jeito doloroso que os inúmeros micro-organismos, vírus, bactérias, sempre fizeram parte de seu regime de existência. Nós, os humanos, não.
Percebam que o que se faz evidente agora não é a \”fragilidade da Terra\”, \”do meio-ambiente\”, mas é a nossa fragilidade, nossa existência contingente nesse mundo. O confinamento nos deixa perceber/sentir que o \”lá fora\”, \”o mundo\” é parte do nosso corpo vivo, estamos emaranhados, misturados com a Terra, vivemos em uma simbiose obrigatória com muitas outras entidades e criaturas. De repente, tudo o que queremos é o contágio, a contaminação, não da doença, mas do mundo e de suas criaturas – porque pensamos e vivemos graças ao mundo e aos outros. Porque a vida acontece apenas graças ao fluxo contínuo dos materiais que a atravessam.
O vírus é a entidade estrangeira que fala pelo nosso corpo, através dele, da sua fraqueza e estupidez. Fala que nossas noções de \”política\” e de \”progresso\” ou \”civilização\” são débeis, inócuas; Faz com que sintamos a febre dessa Gaia Criatura como resposta imunológica às simplificações ecológicas e biológicas produzidas pelos modos extrativistas que seguem fazendo desertos em nome do \”crescimento econômico\”, \”desenvolvimento\”; que seguem produzindo muros, cercas, desejo de segurança e separação.
O medo da contaminação como forma de governo das vidas sempre foi a principal bio-tecnologia colonial, sempre atualizada pelos regimes autoritários modernos. Agora estamos nós personagens desse pesadelo da \”purificação\” cheirando à alcool gel, monitorando uns aos outros, capturados pela tecnologia de domesticação e controle mais eficiente e infernal dos Modernos: a domesticidade heteropatriarcal. Agora com as centenas de outros dispositivos virtuais que prometem nos \”entreter\”, nos livrar do desconforto desse \”acidente\” que é o fim do mundo.
Mas existe, existirá um jeito de compormos outra vez com a Gaia-criatura e seu devir-monstruoso contra os \”porta-vozes\” daquilo que tem nos envenenado: o progresso, o crescimento, a mobilização permanente, os representantes seguros de suas decisões, os cientistas que tem medo de deixarem suas verdades correrem riscos?
Parece que estamos agora obrigados a pensar.